Festas familiares
No meu tempo de pequeno, o carnaval em São Paulo tinha um grande arraigo no espírito da população. Eram três dias que marcavam o ano, com verdadeiras exibições de maravilhoso, em que simpáticas negras de ébano não tinham a menor dúvida em se apresentarem vestidas de Madame de Pompadour, com saias rodadas e fazendo gestos bonitos… Outros ostentavam títulos pomposos, como Príncipe da Noite e iam para um famoso baile no Teatro Municipal, trajando fantasias cujo intuito era mostrar a beleza.
Vestindo fantasias de carnaval
Em casa, a criançada também se fantasiava de corpo inteiro, mas nós nem opinávamos sobre os trajes, sendo apenas avisados assim:
– Você, neste carnaval, vai se fantasiar de tal coisa.
Os meninos, mais ou menos indiferentes, vestiam o que lhes dessem. Eu, por exemplo, aceitava de bom grado o que me indicassem, sobretudo quando se tratava da vontade de mamãe. Ela desejando, eu também queria! Mas as meninas eram mais complicadas e queriam saber se isto ou aquilo ficava mais bonito ou mais feio… Aos quatro ou cinco anos já se preocupavam com o arranjo do cabelo!
As fantasias infantis que mamãe preparava eram próprias a entreter a inocência e sempre tendiam ao sério, elevando o espírito das crianças, ao contrário de algumas outras, que conduziam ao burlesco, incentivando os meninos a tomarem atitudes descompostas e a se mostrarem como palhaços, fazendo toda espécie de diabrura.
De qualquer maneira, a criança era estimulada a representar um papel.
Para as meninas, eram mais freqüentes as fantasias estilo Luís XIV, Luís XV ou Luís XVI, ou tiradas da história da França, em geral. Em algumas ocasiões representavam também figuras da história do Brasil. Houve, por exemplo, uma equipe que encenou o último baile na Ilha Fiscal1, oferecido pelo imperador D. Pedro II à Marinha chilena, poucos dias antes da proclamação da República.
Em certo carnaval, vesti a fantasia de marquês, e mamãe explicou-me que esse traje exigia de mim uma atitude de leveza, o que supunha duas condições: os pés tinham de estar na posição exata de acordo com os costumes do Ancien Régime e o corpo nunca deveria permanecer inteiramente teso e reto, mas sempre um pouco apoiado no bastão e, no total, exprimindo a mesma atitude da fisionomia. Sem isso, eu cairia na banalidade e desmereceria em relação à fantasia. Eu tinha muita implicância com o cabelo de algodão, mas compreendi que devia adaptar-me a ele, por ser parte dos costumes daquela época. Na hora das fotografias, houve, portanto, muita colaboração de mamãe e do fotógrafo para o resultado obtido no retrato, mas eu também fiz a minha parte, desejoso de adotar uma posição própria ao Ancien Régime. Apareço, de fato, tomando a atitude de quem está se preparando para dar uma resposta, segundo as fórmulas de polidez do tempo.
Algumas famílias procuravam tecidos esplendorosos para imitar as grandes figuras do Oriente, visto como a terra dos contos das Mil e Uma Noites; com riquezas, jóias lendárias e palácios fabulosos; esmeraldas ou rubis na Pérsia e pérolas na Índia… A atenção do mundo era muito atraída pelo maravilhoso indiano.
Recordo-me de que um primo-irmão, dois anos mais velho do que eu, vestiu-se de sultão persa com um traje que reputei lindíssimo e deslumbrante! Essa roupa era bem mais rica do que as minhas fantasias e comportava um turbante com a clássica aigrette [pequeno penacho], sem a qual não se concebiam roupagens orientais. E ele foi fotografado sentado sobre uma almofada, tendo ao lado sua irmã, também vestida de persa. Percebi que ele procurava realmente viver o papel de um sultão e tomava um ar pensativo, de homem que está mergulhado nas delícias de seus palácios, de suas grandezas e de seus domínios, tendo a alegria de ser um monarca.
Eu me lembro que um tio me deu uma História Universal ilustrada, muito bonita, a qual mostrava uma fotografia tirada na Índia: um lago tranqüilo, onde se refletia um céu oriental, muito alto e de um azul profundo, tendo no meio uma ilha com abundante vegetação, onde havia um palácio todo feito de mármore branco resplendente. Uma parte da construção estava coberta pelas árvores e a outra se banhava na água… Uma verdadeira maravilha!
Minha mãe, nas suas delicadas fantasias maternas, por ocasião de um carnaval2, inventou de trajar minha irmã de princesa persa e a mim, de marajá indiano. No ano anterior, eu tinha ouvido falar muito dos marajás, pois eles começavam a visitar a Europa com freqüência, por ocasião do fim da Primeira Guerra Mundial. Eu possuía apenas uma vaga idéia sobre a Índia, muito mais fotográfica do que geográfica, pois o mapa não me dizia nada: uma península com forma pouco elegante, pendurada na Ásia e tendo a ilha de Ceilão como ponto final… Então, eu quis logo saber o que era, exatamente, um marajá. Mamãe me explicou, mostrando-me fotografias deles que eram apresentadas nas revistas sociais, vestidos a rigor e em palácios lindos:
– Olhe aqui um marajá. Você vai se fantasiar assim.
Tal era o clima criado por ela em torno do tema, que insinuava um convite, muito discreto e longínquo, para viver o papel de marajá durante alguns dias. Então, sendo muito perguntador, eu quis saber a diferença que havia entre rajá e marajá; mas ninguém soube me informar e eu tive de usar a fantasia sem obter o esclarecimento…
Entretanto, a idéia de que os marajás eram príncipes autônomos e senhores de seus próprios Estados me deu ainda mais encantos a respeito de sua condição. Agradou-me muito, também, notar que eles usavam jóias, das mais esplêndidas, para exprimir o seu próprio poder, e perceber que esses adornos simbolizavam um certo conteúdo religioso da autoridade, segundo o que me parecia ser a concepção deles.
Então, tendo a imaginação muito “voadora”, senti grande alegria de me fantasiar assim. O significado místico e superior de marajá se me apresentava como uma verdadeira beleza, e eu não olhava o aspecto pagão deles, mas considerava-os como um católico o poderia fazer. Entendi que o fantasiar-me de marajá suporia seriedade, convicção do meu próprio poder e do meu direito, juntamente com a capacidade de me impor, com certa amabilidade provisória, pronto a reagir como um dragão se me atacassem.
Lembro-me da fantasia de marajá: comportava um turbante de várias sedas com uma aigrette; roupa também de seda, toda espécie de anéis e uns colares de mamãe pendurados ao pescoço. Os sapatos eram de cetim cor lilá, com as pontas voltadas para cima, o que achei uma verdadeira beleza, pois me pareceu muito feliz a idéia de fazer um calçado que se erguesse do chão, como se aquele dissesse: “Estou no chão, pois é necessário; mas o melhor de mim mesmo se alheia à poeira e eu levanto as pontas para o alto”.
Eu estava ébrio de contentamento, mas o que mais me agradava era a aigrette; percebia que ela acompanhava os meneios da cabeça e assemelhava-se a uma espécie de sismógrafo, muito nobre da alma humana. Ela estava presa ao turbante por uma grande “pedra preciosa” e aquilo dava-me a impressão da profundidade do pensamento humano, do qual se erguia uma “construção” ligeira. E, sem que entrasse nisso a menor preocupação por minha própria pessoa, sentia a minha dignidade de homem realçada.
Mamãe falava dos marajás com tanta seriedade que imaginava – segundo os padrões dela – uma fantasia seriamente bonita e, portanto, dispendiosa. Pode-se ver que não era barato revestir um menino com tecido importado da cabeça aos pés, e apenas para aquela ocasião, já que o traje, depois, não teria nenhuma utilidade; mas ela se empenhava em que seus filhos se apresentassem bem.
As crianças eram levadas fantasiadas ao fotógrafo, para deixarem uma lembrança à posteridade, nos álbuns de fotografias conservados pelas famílias. Quando posávamos, tínhamos de dar uma idéia memorável do que era o pimpolho ou a pimpolha, do que o zelo dos pais tinha feito por nós e de como era a educação da nossa época. Eu me lembro de mim mesmo, sentado numa poltrona de madeira em estilo italiano da Renascença – sem nada a ver com um marajá, portanto – e pensando: “Agora tenho de fazer o papel de marajá e devo sentar-me com o ar de um homem que está julgando e dominando. Mas fazer carranca para isso seria um recurso de baixa categoria, pois qualquer um consegue ficar bravo e isso não confere importância. Preciso ter o ar de quem é superior, sem fazer uma fisionomia zangada. Agora vamos! Vou exigir isso de mim mesmo!”.
Plinio fantasiado de mago
Em outra ocasião3, minha mãe fantasiou-me de mago, o que comportava uma outra visualização. Tinha de fazer o interessante papel de um homem ligado às figuras de um Oriente lendário trazendo, no fundo de suas indagações e das suas experiências místicas, não sei que revelações ou manifestações, carregadas de mistério e de poder.
Perguntei a mamãe se os magos não tinham parte com o demônio, mas ela me tranqüilizou, dando-me a certeza de que a minha fantasia não teria nada a ver com ele. Percebi que essa idéia nem lhe tinha passado pela mente!
Antes de ser fotografado com a fantasia, o fotógrafo me disse:
– Agora estude a fisionomia com que você quer aparecer e faça-a.
Eu tinha de fazer uma pose e esperar imóvel. Mas, sendo muito distraído, já pensava em outra coisa ao longo desse período… E não entendia um detalhe: naquele tempo, a fotografia era chamada de “instantâneo” – portanto parecia-me que devia ser tirada num instante –, mas eu tinha de ficar dez minutos sem me mexer! Nunca perguntei ao fotógrafo a razão disso… Ele permanecia fazendo não sei que manigâncias debaixo de um pano preto, em geral pouco limpo, e eu tinha vontade de perguntar-lhe: “Por que o senhor não termina isso depressa e me solta já, ou, ao menos, me conta o que está fazendo aí dentro?”.
Apareço, então, na coleção de fotografias de mamãe, com um chapéu cônico e uma vara sobre a qual me apoiava, tendo uma fisionomia misteriosa e pensativa, tanto quanto eu – que não sou nada misterioso – poderia imaginar e apresentar.
Um corolário engraçado da sessão de fotografias era a visita aos tios, para estes verem as crianças fantasiadas. Naturalmente, eu me sentia analisado e percebia que eles, interiormente, perguntavam-se: “Quando chegarem as dificuldades da vida, esse menino vai levar adiante o ‘carro’ da família, ou é desses que os parentes terão de arrastar? Quem é esse que vem entrando aqui, em nosso horizonte?”.
A nossa primeira visita era sempre à casa de uma das minhas tias, que nos recebia sentada numa cadeira de balanço. Ela se balançava várias vezes e comentava pouca coisa; até que, em dado momento, dizia:
– Meus filhos, eu tenho bolos.
Minha irmã, então, recusava terminantemente:
– Tia, eu já lanchei, não se preocupe!
E não comia, apesar do olhar “duro” da Fräulein sobre ela. De fato os bolos não eram bons… Eu os aceitava, e era capaz de comê-los todos, por saber que a governanta, depois, ia fazer um relato do ocorrido e eu não queria causar um desgosto a mamãe.
Dia de Páscoa no Parque Antárctica
O dia de Páscoa dava-me uma felicidade vibrátil e triunfal, mas sem frenesi. Tratava-se de um domingo de satisfação, no qual eram distribuídos presentes às crianças, para associá-las à alegria da Ressurreição de Nosso Senhor. Nas mesas das famílias o menu era melhorado e havia felicitações recíprocas. E mamãe, sempre procurando que tivéssemos uma infância muito alegre, nessas ocasiões organizava festas e distrações especiais para as crianças. Em cada dia de Páscoa, ela organizava um piquenique em algum lugar bonito de São Paulo, como o Jabaquara ou, sobretudo, o Parque Antárctica. Levava uma cesta enorme, com pães doces, bolos, ovos duros, sanduíches de presunto, sardinha ou lombo de porco e, naturalmente, ovos de Páscoa.
Íamos de bonde para o Parque Antárctica, com mamãe, que era acolitada por duas ou três Fräulein, pois cada grupo de irmãos ou primos tinha uma delas, assim como cada pelotão de soldados é comandado por um sargento. Aquelas quinze crianças chegavam e se debandavam. As governantas tinham ordens de nos espalhar e, durante esse tempo, mamãe escondia os ovos de Páscoa. Brincávamos com um jogo chamado croquet, que comportava uns martelinhos e bolas pintados na Inglaterra, os quais eram tirados de uma bonita caixa. Tratava-se de fazer passar as bolas através de uns arcos fincados no chão. Para mim, era enormemente tedioso! Eu era dos menos hábeis, pois tinha duas “mãos esquerdas” para esse jogo e não fazia muita questão de ganhar. Eu atingia a bola errada e no meu caminho sempre havia um formigueiro… Nunca acertava no croquet! Mas, por outro lado, eu achava as peças muito bonitas e brincava com os objetos mais do que jogava o croquet, enquanto os outros torciam para ganhar. Evidentemente, eu era o perdedor sistemático, mas, no fundo, sabia que ficava com a melhor parte…
Porém, como acontece freqüentemente entre crianças brasileiras, não tomávamos muito a sério o jogo… Logo começava a brincadeira e a algazarra.
Em certo momento, mamãe dava um sinal: era a hora do almoço, no qual não havia sobremesa, pois esta era constituída pelos ovos de Páscoa, que era preciso procurar nos lugares mais difíceis. Alguns meninos eram muito espertos: logo saíam correndo e descobriam-nos. Outros, como eu, eram mais lentos. Eu não prestava muita atenção naquilo e, no momento de procurar os ovos, não tinha agilidade. Mas alguém, com predileção por mim, escondia alguns dos ovos mais gostosos num lugar que só ela conhecia e, então, acompanhava-me com o olhar, percebendo a minha desolação, pois eu estava com fome! E quando todos haviam encontrado os ovos de Páscoa, eu ia me aproximando dela, já sabendo qual seria o desfecho. Ela sorria e dizia-me:
– Filhão, por ali, você vira assim, que tem uma coisa muito boa.
Eu chegava ao local indicado, sem achar nada, e dizia:
– Não estou encontrando.
Ela continuava:
– Não, você não está olhando bem. Procure para lá…
– Mas não está.
– Assim, assim…
Os outros estavam longe e não ouviam. Eu pensava: “Mas não seria mais fácil que ela me trouxesse esse ovo de uma vez?”.
Afinal de contas, eu encontrava uns dois ou três ovos indicados por ela e comia-os, recebendo uma inundação de alegria e sentindo-me assim cumulado e envolto nessa atmosfera de proteção, de afago e de bondade. Depois me incorporava aos outros e saía correndo, encantado também com aquela alegria que reinava entre todos e me enchia de felicidade.
Mas de onde vinha essa felicidade?
Em parte da companhia de meus primos e de minha irmã, em parte da visão do parque, daquela natureza e do “Baltasar”, do qual já falei, ou dos ovos de Páscoa, mas especialmente de algo que estava além de tudo isso, no fundo de minha alma, dando-me enorme satisfação. O que era?
É que meu horizonte de bem-estar terreno tinha como centro, no fundo, a felicidade de ter Fé, de ser um menino puro, de sentir, sem sabê-lo, a vida divina palpitar em mim e o contato com Deus pelas graças místicas. Eu me regozijava com tudo isso. A ordenação rumo a Deus era a fonte da minha alegria.
Nas festas de São João, encantos pelo fogo
Como a todo menino, o fogo me deslumbrava e eu o tinha em conta de uma verdadeira maravilha.
Ainda usavam-se velas na vida doméstica. Eu gostava muito de brincar com elas e, logo que me apercebia de um fósforo, riscava-o e acendia uma vela se os meus pais estivessem ausentes, pois havia uma proibição categórica: não brincar com fogo! “Mas”, pensava, “o fogo é uma coisa linda! Então, desta vez, vamos brincar…”.
Entretanto, às vezes, o pavio estava meio esgarçado e eu acendia apenas as pontas daqueles filamentos. Notava que o fogo lutava, tomava conta deles e, por fim, do pavio inteiro. Em outras ocasiões era o contrário: o filamento apresentava certa resistência e o pavio não era aceso. Então, comecei clandestinamente a especializar-me em tocar fogo em filamentos de pavios, com a confusa noção de que isto representava qualquer coisa na vida.
Por ocasião das comemorações de São João, eram feitas fogueiras em todas as residências, inclusive na minha. Entretanto, sendo muito levado a apreciar as cores, eu sentia certa tristeza ao ver que o fogo sempre tinha a mesma cor. Parecia-me que seria bonito se houvesse fogos de várias tonalidades, pois assim eu poderia apreciar o esplendor de certa cor, brilhando no fogo.
Nessas festas também soltavam-se balões, mas nunca consegui fazê-lo e fui sempre o mais desajeitado possível para isso! Custei a compreender que a fumaça fazia subir o balão e, quando chegava a hora de soltá-lo, eu ficava de lado, pensando: “Essa gente sabe ser tediosa, a mais não poder!”.
Entretanto, em certa ocasião, numa festa de São João, observei os mais velhos da família abrindo uns pacotes que continham alguns canudos e acendendo fogo na ponta destes. Fiquei encantado, então, ao ver aquelas bolas com fogos diferentes subindo pelo ar e, a certa altura, movendo-se como lantejoulas e emitindo uma luz prateada muito viva.
Cheguei a mexer um pouco com aqueles pistolões, mas o meu encantamento – um tanto reservado, pois talvez ninguém me compreenderia – foi uma caixa de fósforos especiais, os quais se acendiam como os comuns, mas tinham cores diferentes. Quando podia acendê-los em algum recanto do jardim de casa, onde ninguém estivesse prestando atenção em mim, tomava aqueles palitos e permanecia analisando o fogo vermelho, dourado, azul ou verde, gostando muito de ver aquela chama tranqüila, grande e luminosa, tendo dentro de si algum mistério que não chegava a desvendar e consumindo o palito, quase até a minha mão.
Eu acendia um no outro, repetidas vezes, aplicando-me a uma espécie de meditação sobre o fogo que me agradava enormemente, com idéias e fantasias no seguinte sentido: Eu tinha certa impressão de que seria muito belo se Deus tivesse criado em algum lugar do Universo, para homens ou para outros seres, um ambiente de chama vermelha, outro de chama verde e outro de chama azul, nos quais eu poderia imergir sem me queimar, para sentir-me completamente envolto por aquela atmosfera. Seria uma espécie de paraíso, ao mesmo tempo fresco e ígneo, muito mais bonito do que o ar transparente e incolor no qual nós estamos.
Na minha opinião, o fogo tinha simbologias diversas conforme as cores. Por exemplo, a ponta da chama azul era um pouco transparente e eu olhava através daquele ar quente, quase sem cor, que transmitia uma idéia de irrealidade suave, elevada, agradável e repousante. O fogo verde, pelo contrário, dava-me a impressão de vida e de algo fresco, mas o meu fogo preferido era o da minha cor predileta: o vermelho. Parecia-me ser o rei das cores e, portanto, o fogo vermelho era o rei dos fogos!
Numa festa em que eu estava isolado, absorto na contemplação do fogo, distraí-me e deixei cair uma parte daquele fósforo sobre a minha perna, formando uma bolha. Chorei copiosamente e fui logo pedir o auxílio de mamãe para o desastre que me aconteceu… Lembro-me ainda do carinho com que ela veio e, muito jeitosa para tudo, aplicou-me a pomada adequada. Eu me senti refrigerado por mais uma experiência do carinho materno.
Os aniversários de Plinio
Mais ou menos um mês antes do meu aniversario, mamãe me dizia qual fora a impressão que eu lhe dera durante o ano, como bom católico, bom filho e bom estudante. E o presente que eu receberia seria melhor ou menos bom, conforme tivesse sido o meu comportamento, como nota simbólica dessa severa avaliação feita por ela. Então, íamos às grandes casas de brinquedos estrangeiros no centro da cidade e ela me dizia:
– Escolha um presente que lhe agrade, dentro de tal limite de preço, e seu pai virá depois comprá-lo.
Papai comprava sempre o que eu desejava e trazia-o para casa sem dizer nada, quando chegava da cidade, pela tarde. Eu via o pacote mas não falava sobre ele, tomando aquilo como o mais misterioso dos casos. Durante a noite anterior ao meu aniversário, o brinquedo era deixado aos pés da minha cama e eu despertava muito cedo, pela vontade de encontrá-lo! Saltava da cama e começava a brincar com o presente!
Quando meus pais acordavam, eu ia agradecer-lhes; e não preciso dizer que o primeiro cumprimento era para mamãe! Abraçávamo-nos e beijávamo-nos várias vezes, e ela me abençoava outras tantas, fazendo pequenas cruzes na minha testa e rezando baixinho. Eu não sabia no que consistia essa oração e permanecia silencioso, mas encantadíssimo, pois aquilo era o que mais me agradava do aniversário! Depois falava cordialmente com meu pai e lhe pedia a bênção.
A Fräulein então me fazia começar o dia no ritmo normal, mas no horário de estudo eu tinha folga e podia brincar com o presente.
À tarde, fazíamos correrias pelo jardim e era servido um grande lanche para todas as crianças da família, na sala de jantar. Mamãe preparava aquilo que me agradava – sempre mais salgados do que doces – e eu comia abundantemente: eram sanduíches de presunto, sardinhas, patês, chocolate com creme e outras iguarias, não faltando nunca os dois pratos característicos das reuniões de família: o peru, preparado com esmero um ou dois dias antes, e os fios de ovos, que tinham de ser feitos em casa, pois comprá-los na confeitaria era reputado de mau gosto. Feitos em casa tinham outro charme!
Toda a casa se enchia: a sala de jantar, as duas salas de visitas e a sala de jantar das crianças. As pessoas permaneciam conversando longamente, em pé ou sentadas e, em certo momento se despediam à la bonne franquette [sem formalidade].
Naquele dia o jantar era parco, para evitar indigestões e dormir cedo. Eu recebia novas bênçãos de mamãe e estava encerrado o aniversário.
Um presente especial: La Ferme
Em certa ocasião, recebi de um tio um presente muito bonito, vindo da França, intitulado La Ferme [A Granja].
Aquilo me regalou! Era um brinquedo concebido com muita inteligência. Tratava-se de uma caixa, tendo uma tampa em cima e outra do lado. Ao abri-las, via-se todo um panorama campestre, com uma pequena e encantadora aldeia da França, em três faces, enquanto no chão havia uma pradaria, uma praça e um rio impressos no papel. Mas tudo era feito de tal modo que a criança se sentia no centro dessa aldeia e podia compor várias ambientações, dispondo as figuras de modo diverso.
Havia ali tudo quanto existe num vilarejo europeu, em objetos feitos de chumbo: sete ou oito casinhas com teto de colmo, uma igrejinha com seu sininho e seu pequeno relógio – o qual infelizmente não funcionava, pois era apenas pintado, mas me extasiava –, os montes de feno dourado característicos, formando cilindros com uma espécie de teto cônico em cima, o granjeiro, a Madame granjeira com as suas crianças, os camponeses e as camponesas arando, um cachorrinho, animais pastando, uma pontezinha para pôr sobre o riacho, perto do qual estava plantado um chorão, com essa elegância espontânea que constitui um dos charmes da França. Viam-se trepadeiras, duas ou três cerejeiras carregadas com seus frutos, que eu, evidentemente, devorava com os olhos. E tudo era representado mais bonito do que é na realidade.
Aquilo me agradava muito e, em toda a minha vida de menino, nunca vi um brinquedo que pedisse das crianças tanta inteligência, tanto espírito contemplativo, tanto senso inventivo e sociológico, e tanto gosto “governativo” e “ordenativo”, quanto essa Ferme. O menino podia imaginar várias realidades e criar sempre novas ordenações das coisas.
Por exemplo, onde colocar essa verdadeira árvore de Natal da natureza, que é uma cerejeira carregada de cerejas? Quais plantas localizar na pracinha? Onde formar uma alameda? A que altura do rio deve-se pôr a ponte? Onde deixar aquele animalzinho? Era uma verdadeira composição que incentivava o meu gosto pela tranqüilidade, e na qual eu me sentia um pouquinho o governador da aldeia.
Pelo meio da rua andava um personagem notável, usando trajes de 1870, mais ou menos; muito teso, elegante e altivo, aparentando ter uns trinta e cinco anos – o que, na minha época, representava uma vitalidade de vinte aliada a uma maturidade de cinqüenta –, vestindo uma redingote [sobrecasaca] preta e bem cortada, ligeiramente cintada, chegando até os joelhos, e ostentando um cravo na lapela. Tinha uma bengala debaixo do braço esquerdo, luvas cinza-claro e cartola da mesma cor, que ele suspendia discretamente com a mão direita, cumprimentando alguém num gesto imóvel e perpétuo. Era, evidentemente, o homem mais importante da aldeia.
Ele poderia ser imaginado como prefeito, juiz, delegado ou fazendeiro, pois o seu físico se prestava a ser interpretado segundo esses variados papéis. Um dos lados originais do brinquedo era estimular a criança a imaginar diante de quem ele fazia a saudação e, assim, preparar a cena do cumprimento. Mas esse homem representava tanta distinção e afabilidade, que eu ficava encantado e pensava como seria bom se eu o conhecesse, saudando-o do mesmo modo e conversando com ele. Nós teríamos uma prosa sobre temas tão agradáveis, tão doces e tão elevados!
Perguntei a papai que homem era aquele e, talvez por ser advogado, ele respondeu-me tratar-se de um juiz. Eu, então, achava-o muito sereno, imparcial, um tanto distante do resto das pessoas, mais bem vestido do que todo o mundo e quase “pisando sobre nuvens”; pois, sendo juiz, a justiça passava pela aldeia, brilhando nele, enquanto os camponeses cumprimentavam-no com respeito, dizendo: “Monsieur!”.
E eu pensava: “Quando eu me formar na Faculdade de Direito, quem sabe se terei o direito de usar uma roupa assim?”. Mas olhava para meu pai e para um dos meus tios e refletia: “Não, eles não usam esse traje, mas se vestem como qualquer um. Isso decaiu”.
Lembro-me de contemplar La Ferme, encantado e interessadíssimo. Até hoje sinto repercussões da alegria que me causava esse brinquedo, diante do qual eu tinha horas de “sessão”, arranjando e desarranjando, de preferência quando estava sozinho, para poder compor tudo inteiramente à minha guisa. Eu deixava as minhas fantasias e apetências falarem e andarem naturalmente.
Lamento que esse brinquedo se tenha perdido, na enxurrada do tempo.
Encantos pelos soldadinhos de chumbo
Em certo momento, começou para mim a “era” dos soldadinhos de chumbo. Já se desenvolvia em mim um veio militarista e eu olhava com grande interesse aqueles brinquedos, os quais constituíam o meu gosto predileto: soldados alemães ou franceses, marinheiros ingleses. Toda espécie de variedade, do que eu gostava enormemente! Nessa época, planejei ter mil soldadinhos; mas enquanto não os obtive, não me apressei nem me afligi. De fato, cheguei a possuir mil e tantos deles. É preciso dizer que tinham qualidades muito diversas: alguns eram bem comuns e até um tanto mal contornados, mas outros eram muito bons.
De todos os presentes que recebi na infância, nenhum me deixou recordação mais profunda do que um, de excelente qualidade: uma caixa grande, contendo soldadinhos de chumbo franceses. Eram os meus bem-amados couraceiros de cavalaria, montados em bonitos cavalos, tendo couraças de cor de aço, capacetes com crinas e espadas na mão! Um deles tocava clarim e também havia canhões. A última palavra do excelente! Estávamos em plena Primeira Guerra Mundial e aquilo tudo dizia muito para mim. Fiquei eletrizado!
Eu os tirava da caixa, que tinha um panorama feito em papel impresso, e permanecia sozinho durante horas no quarto dos brinquedos, deitado de bruços nos ladrilhos do chão e dispondo os meus soldados em função daquela paisagem, regalando-me em formar paradas monumentais e marchas ideais. Ora eu os alinhava de um modo, ora de outro, fazendo-os às vezes abrir o caminho para a passagem dos chefes de estado, prestando continência. Organizava, por exemplo, um batalhão à frente do qual marchava sozinho um soldado e depois a ordem mudava de aspecto quando punha dois soldados juntos. Entusiasmado com a função da força armada na ordem do universo e no equilíbrio geral da humanidade, eu ficava sonhando com batalhas e contemplando aquelas disposições de tropas que me encantavam, embora sem explicitar propriamente qual era a beleza daquilo. Não me saciava de olhar e perguntava-me: “Mas por que gosto tanto disto? O que há aqui? Que maravilha é esta?”.
Assim, o esplendor da vida militar se apresentava ao meu espírito de modos sempre diversos, e eu tinha tranqüilíssimos antegostos das minhas lutas futuras. Todas as batalhas – não militares – que eu teria de travar ao longo de minha vida explicariam depois essa atração.
1 Situada na Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro.
2 No ano de 1917.
3 No carnaval de 1918.
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