Nas galas da sociedade
Em São Paulo, o mundo da vida social em família possuía um brilho, uma elegância e uma distinção, ainda com resplendores nobiliárquicos do tempo do Império, que depois se perderam completamente.
As tradições aristocráticas europeias de etiqueta, polidez e delicadeza ainda sobreviviam em meio à influência hollywoodiana – cada vez mais desembaraçada, menos cortês e mais decadente – e várias famílias traziam consigo um tônus e um estilo, pelos quais se percebia a sua dignidade e a sua ufania, por provirem de personagens que haviam marcado época na história do bandeirismo, dos riscos, das dificuldades e dos problemas de São Paulo ou do Brasil.
Grandes festas
Os bailes de grande gala eram planejados com quatro ou cinco meses de antecedência e, muito mais do que em clubes, essas festas se realizavam, sobretudo, em casas particulares, das quais algumas eram como pequenos palácios. Os convites para um baile de grande estilo eram oficialmente para as nove horas da noite, mas tratava-se de uma mera convenção, pois seria tido como pouco educado quem aparecesse antes das onze e meia.
Quando se chegava, via-se a casa toda iluminada e, ainda do lado de fora, já se ouvia a música. Os automóveis iam deixando os convidados, enquanto o povinho da vizinhança ficava de pé, nas calçadas, olhando e comentando.
O jardim estava deserto e também iluminado e, em geral, o terraço se encontrava cheio de homens fumando. No salão da festa havia músicos, pois eram contratadas duas ou três boas orquestras, que se substituíam umas às outras para tocarem a noite inteira, executando as melhores danças do tempo.
Categoria e pompa nos trajes
Nessas grandes ocasiões, alguns dos homens mais velhos compareciam de casaca, traje pomposo, faustoso e de alta distinção, o qual dava uma categoria e uma finura difíceis de descrever. Compunha-se de um paletó preto comprido, cujo corte descia na parte traseira, cobrindo as pernas. O colete era branco e a camisa também branca e engomada, o colarinho alto e quebrado na frente, com gravata borboleta. Esse contraste das duas cores realçava quer a brancura quer o negrume, dando muito ar de solenidade e, por isso, era o traje utilizado nas grandes galas.
É preciso acrescentar que a casaca se usava com sapatos de verniz e, às vezes, com luva branca de pelica, o que ficava muito elegante e bonito. Utilizava-se também a cartola, chapéu semelhante a um tubo alto, mas feito de um feltro preto, sedoso e lustroso, o qual dava reflexos coloridos e, enquanto a pessoa andava, todas as luzes do caminho brilhavam na sua cabeça como uma espécie de auréola luminosa.
Esse traje se tornava ainda mais bonito quando usado com condecorações, as quais eram colocadas à altura da gravata, na lapela do lado esquerdo ou presas numa fita que descia do ombro direito e terminava num laço.
Ora, nesses anos de 1923 e 1924 tudo já decaía e minguava no Brasil, e apenas em poucas ocasiões podiam-se ver homens vestidos desse modo. Eu, por exemplo, nunca usei casaca nem mandei fazê-la, pois, como todos os rapazes, desde os quinze anos comparecia às festas apenas com smoking, o qual era uma espécie de casaca de segunda classe, fruto dessa decadência.
O prestígio dos idosos
As salas de baile eram espaçosas, e na bordadura, formando um quadrilátero em volta do centro, havia duas ou três fileiras de cadeiras, nas quais se sentavam as senhoras, que tinham ido levar as filhas ou as netas. Elas também assistiam à festa, faziam parte da vida social e se apresentavam com toilettes de grande categoria, vindas dos principais costureiros de Paris. Algumas já tinham vastas cabeleiras brancas, enfeitadas com aigrettes1 de plumas e às vezes com discretos diademas, nos quais se viam duas ou três fileiras de brilhantes.
Então, ali estavam senhoras de todas as idades, inclusive algumas bem avançadas em anos, pois se considerava que os idosos, em traje de gala, davam um esplendor e uma densidade especial à
cerimônia. Elas não dançavam, mas permaneciam no salão de baile olhando, abanando-se com os leques e de vez em quando cochichando, com mais sensacionalismo e interesse do que as próprias pessoas que dançavam. Via-se um balançar de cabeças, em que se percebia que às vezes entrava um comentário assim:
– Fulano está dançando muito com Cicrana… Dará em noivado?
E assim os mais idosos formavam uma espécie de senado ou de tribunal mudo, julgando com benevolência paterna ou materna o que estava se passando ali; mas, sobretudo, exemplificando e estimulando os jovens a admirarem e a se modelarem. A mocidade dançava com mais recato, distinção e categoria, porque eles estavam ali.
Todo moço que conhecesse uma senhora idosa presente na festa dava prova de boa educação em aproximar-se dela e, em pé, fazer uma curvatura. Ela sorria, oferecia a mão para ele beijar, perguntava-lhe pela mãe ou pela avó e mandava lembranças. Ele também perguntava como ela ia passando, fazia duas ou três curvetas e se retirava.
Os homens, se quisessem sentar-se, tinham de ir ao fumoir – sala especial para os fumantes – ou às outras salas da casa, mas no salão de baile um homem não se sentava. E, num fumoir, o senhor de idade era o centro natural da conversa. Alguém levava um amigo ou um parente para apresentar-lhe, ele contava algo de sua própria vida ou era questionado a respeito do futuro do Brasil, perpetuamente em crise… E assim os jovens iam penetrando na atmosfera da maturidade.
Uma dança respeitosa
Via-se também uma ou outra fräulein ou miss,2 mais raramente mademoiselle,3 que acompanhavam e fiscalizavam as moças.
Estas últimas, por sua vez, timbravam em ser delicadas e muito femininas, vestidas com roupas claras e ornadas com joias. Os rapazes as convidavam para dançar, tratando-as de “senhora”, pois era considerado um tanto cafajeste chamá-las de “senhorita”. Durante a dança mantinham-se as distâncias, pois os corpos não deviam se tocar, e o tratamento era muito respeitoso de parte a parte, sobretudo do rapaz para com a moça. Depois ele a acompanhava até o lugar de onde a havia tirado e, se a conversa entre os dois não continuava, ele fazia uma reverência diante dela, a qual dava um sorriso para ele, e depois cada um ia dançar com outra pessoa.
A oportunidade para ter uma conversa mais prolongada consistia em convidá-la para o buffet.
Iguarias da Europa e do Brasil
Em geral, o buffet era extraordinário! Havia mesas enormes, onde ofereciam champanhe e ponche, uma composição de vinho com frutas, considerada a bebida por excelência nas festas, a qual era servida em poncheiras de prata colossais. Esgotada uma, o maître d’hôtel4 fazia vir outra, e delas se tirava o quanto se queria, pois nunca faltava.
Serviam também sanduíches ou canapés dos mais diversos tipos, caviar e outras delícias, vindas da Europa em quantidades prodigiosas. Não faltavam as iguarias nacionais, como fios de ovos e demais doces, além de alguns pratos de comida salgada: peru, de primeira ordem, preparado com dias de antecedência, canja com pedacinhos de presunto picado, croquetes e empadas, mas o triunfo era um prato de que eu era entusiasta: a maravilhosa galantine,5 com carnes imersas numa geleia prestigiosa!
E numa parte escura e distante do jardim, ainda havia reservas: tonéis de cerveja e pilhas de pão preto, com grandes quantidades de fiambres, queijo nacional e sardinha.
O fim da festa
Enquanto os patrões se divertiam, os chauffeurs6 permaneciam esperando fora, em pé ou sentados, comendo, bebendo e conversando tranquilamente. Se algum deles passasse um pouco da conta na bebida, o risco não era muito grave, pois as ruas eram tão desertas que as possibilidades de uma batida de automóvel eram raras. E eles também se levantariam tarde no dia seguinte.
O baile acabava às cinco e meia da manhã. E assim como era considerado chinfrim quem quisesse ser dos primeiros a chegar, também era preciso valer muito para ter a audácia de ser dos últimos que saíam. A pessoa que sabia se prestigiar, chegava por volta da meia-noite e saía às quatro e meia da manhã, quando a festa ainda estava no auge.
O encontro do ornato com a seriedade
Curiosamente, os homens mais velhos só iam a esses grandes bailes, mas não às festas comuns, por uma espécie de desdém. A uma matinê de domingo, por exemplo, compareciam apenas as senhoras.
Em geral, essas festas mais correntes começavam pelas sete horas da noite e terminavam em torno das nove e meia ou dez horas. Então, as famílias voltavam para jantar em casa – com exceção de poucas, que iam aos restaurantes – e, ao chegarem, encontravam algumas luzes acesas, e o avô no seu escritório, lendo um livro ou fazendo uma reflexão, à luz de seu abat-jour. Eles iam cumprimentá-lo e todos se retemperavam naquela gravidade que recompunha os equilíbrios. O velho, permanecendo em casa, representava a lâmpada perene da seriedade, a qual se encontrava com o ornato que chegava.
O salão de festas do Trianon
Ora, aos quinze anos, começava também para mim a frequência à vida social, e a presença nas festas.
Eu já havia assistido a um bonito baile em casa, na festa da entrada em sociedade de minha irmã Rosée e algumas primas, mas, naquela ocasião, não conhecia quase ninguém. O primeiro baile a que fui convidado, porém, realizou-se na passagem do ano, num lugar chamado Trianon, na Avenida Paulista,7 onde havia uma imensa sala de festas.
Fui em automóvel com meus primos e minha irmã e, quando cheguei ao local, vi um grande terraço com vistas para a cidade e perguntei-me: “Onde essa gente vai dançar ou fazer festa? Aqui?” Notei que desciam por uma escada e pensei: “É bem aquilo de que não gosto! Vão dançar num buraco!”
Mas quando entrei tive uma impressão inteiramente diferente. O salão se encontrava na parte de baixo e estava adornado com guirlandas de flores, de modo magnífico. O ambiente era todo cheio de mesinhas muito bem arranjadas, formando uma espécie de meia-lua em torno de uma pista de dança.
As famílias iam ocupando os lugares à medida que chegavam. Nós também nos sentamos e a orquestra começou a tocar, mas, assim que iniciaram o serviço, minha atenção foi logo atraída para o menu. Havia uma galantine estupenda, a qual completou harmoniosamente as impressões agradáveis da sala e do ambiente.
Eu estava me deliciando com a festa, mas, de outro lado, via também o quanto aquilo tudo tinha de mundano e superficial, próprio a um gozo da vida sem nenhum ideal. Então, percebia que era atraído para onde não queria e, diante disso, sentia-me muito perplexo.
Uma encenação na passagem de ano
Em meio à conversa geral, de repente foi dado o sinal da meia-noite. Houve então um burburinho, depois fez-se silêncio, todos se levantaram e começou o Hino Nacional.
Em seguida vi entrar duas figuras no espaço vazio: um homem maquiado, todo esfarrapado, o qual fazia o papel de velho alquebrado, andando com dificuldade e apoiado numa bengala. Atrás dele aparecia um moço, vestido com um smoking gasto – mas que pretendia ser um bonito traje segundo a última moda –, ufano e gabola, e com olheiras pintadas de azul claro. Ele dava pontapés no velho, que ia fugindo e caía no chão, até que esse moço o expulsava, empurrando-o para fora. Naturalmente, eram atores pagos.
Não entendi logo aquilo, até que alguém do meu lado me deu a explicação: tratava-se de um símbolo do ano de 1923 que acabava e do ano de 1924 que ia começar. O Ano Novo entrava com as suas esperanças e empurrava o ano velho para trás. Então houve palmas prolongadas.
À meia-noite, a Salve Rainha
Achei aquela encenação horrível e, com pavor de me deixar influenciar pelo ambiente, pensei com os meus botões: “Quanta loucura na mentalidade desta gente! Aqui ninguém reza. Eu vou rezar!”
Todos entoavam o Hino Nacional e eu estava respeitosamente de pé, associando-me a esse ato, mas o meu coração foi mais alto do que o Brasil e me dirigi a Nossa Senhora.
Rezei a Salve Rainha em português, pois ainda não a sabia em latim, e também disse a Ela: “Ne permittas me separari a Te”8 – uma das jaculatórias do Anima Christi, de Santo Inácio. Pedi que naquele ano Nossa Senhora não permitisse que eu me separasse d’Ela, e que me desse a graça de unir-me cada vez mais a Ela. Creio que eu era a única pessoa que rezava ali, naquele momento.
Então, nesse lugar eu formei a resolução de nunca deixar passar o ano sem recitar essa oração. E dou graças a Nossa Senhora por essa vez que rezei a Salve Rainha, na primeira festa de passagem de ano a que assisti em minha vida.
Depois da cena, todos começaram a dançar. Eu não dancei, mas permaneci olhando e comendo. A festa durou algum tempo e, em
certo momento, os meus familiares levantaram-se e saíram. Senti-me aliviado quando fomos para casa, mas, apesar de tudo, permaneceu no meu espírito a ideia da riqueza, do bom gosto e do esplendor que ainda existiam na sociedade aristocrática daquele tempo.
Meditação sobre o fim da civilização cristã
Fui ao salão do Trianon mais de uma vez, para assistir à festa de fim de ano. E sempre me chamava a atenção que, assim como o ano de 1924 havia entrado triunfante e alegre, expulsando aos pontapés o ano de 1923, do mesmo modo 1924 era posto fora a pontapés por 1925, o que aconteceu também com 1926 e 1927…
Tocava o Hino Nacional e, bem entendido, alguém ali dentro rezava a Salve Regina.
Quando eu acabava de rezar, via aquela gente fina e distinta ceando: homens de casaca e senhoras em grande toilette, algumas com os cabelos já branqueados. Começava a prestar atenção nas fisionomias, e percebia que todas, sem exceção, se manifestavam contentes e até eufóricas, porque estava passando o ano. E perguntava-me: “Quantas vezes eles assistiram à mesma cena? Como ousam estar tão alegres, expulsando o ano que saudaram tanto? Ao cabo de trezentos e sessenta e cinco dias vão ter horror desse moço, o qual vai estar de bordão na mão, recebendo do outro uma sova. Ou seja, cada ano é uma ilusão, a qual traz sofrimentos, mas, quando acaba, eles a expulsam e recolhem outra… Eles não veem isso? Essa gente não cria juízo? São assim e não têm remédio!”
E pensava comigo: “Esta cena representa a civilização cristã nos seus últimos lampejos, já confundidos com a luz malsã do tempo que vem. Mas ela sai com os pontapés de quem? Daqueles mesmos que nasceram na época dos restos dessa civilização, e que haveriam de saudar com entusiasmo o advento da nova era”.
Quando terminava a festa, eu voltava para casa pensando nessas questões, bem como em inúmeros outros problemas.
Dois propósitos de Plinio
Logo no começo do ano de 1924, quando mandei fazer novas roupas com calça comprida, sem precisar recomendação de ninguém, tomei a deliberação de nunca sair à rua sem levar o rosário no bolso pequeno da calça, hábito que conservo até hoje,9 aliás, usando sempre o mesmo bolso.
Também tomei outro costume, igualmente ligado ao rosário: quando eu vestia roupa nova pela primeira vez rezava umas tantas Ave Marias – não me lembro quantas –, pedindo a Nossa Senhora que nunca me permitisse ir com esse traje a algum lugar que desagradasse a Ela e que eu não A ofendesse, usando essa roupa.
E, graças à Santíssima Virgem, posso dizer que nunca cometi um pecado em nenhuma festa, nem sequer venial.
Em Santos, a casa dos tios e o Hotel Parque Balneário
Outro ambiente da vida social era para mim uma ocasião a mais de entrar numa nova arena.
Nossa família descia ao litoral por ocasião do inverno, no qual Dª Lucilia padecia muito do frio, bem como outras pessoas da família. Hospedávamo-nos na residência de meu tio Nestor em Santos ou, às vezes, permanecíamos numa casa alugada, próxima à dele.
Esse meu tio era filho de fazendeiros de Piracicaba10 e havia sido educado na Europa. Embora fosse de ascendência exclusivamente brasileira, tinha certo jeito de inglês: esguio, claro, loiro, com olhos entre verde e azul. Era homem muito interessante, de trato leve e agradável, e gostava de conversar sobre as várias personalidades que conhecera, como a Imperatriz Eugênia da França11 e o Rei Leopoldo da Bélgica,12 entre outras…
Então, nessas ocasiões a nossa distração consistia em ir de manhã à praia e, à tarde, ao Hotel Parque Balneário – onde nos hospedávamos de vez em quando –, o qual estava a dois passos da casa de meu tio. Esse estabelecimento de grande luxo
era o ponto de concentração da alta sociedade de São Paulo no litoral. Muitas famílias que alugavam casa em Santos e não se hospedavam no hotel, frequentavam os salões deste, e todos se encontravam. Em geral, as famílias já se conheciam ou aproveitavam para se conhecer, cumprimentar-se e conversar, com o entretenimento que isso podia trazer, mas também com as severas amolações que tais encontros podiam causar…
As regras de educação mandavam ter para com os mais idosos toda espécie de consideração, mas eles nem sempre tratavam de assuntos que interessassem aos mais moços. Então, eu era obrigado a ir cumprimentar alguma velha senhora, por exemplo, e perguntar-lhe como passara a noite, e ela às vezes contava que havia sofrido um reumatismo e tinha tossido um pouco, pois a temperatura caíra, etc. E eu devia permanecer ouvindo, com ar de quem recebe notícias sensacionais.
Uma outra me chamava:
– Ó Plinio! Você não é filho da Lucilia?
– Sim, senhora!
E logo me estendia a mão para que a beijasse – sem eu saber quem ela era –, dizendo:
– Você não sabe quem eu sou?
– De momento, não a estou reconhecendo bem.
– Eu sou sua prima Tal!
– Aah!
Eu ignorava que essa prima existisse… Mas, como não queria mentir, nem podia dizer que nunca ouvira falar dela, respondia:
– Perfeitamente!
Ela pedia notícias de mamãe, e eu depois perguntava:
– E todos os seus, como vão?
– Ah! Eu vivo tão isolada! Os meus parentes morreram.
Era uma gafe, pois eu deveria saber isso, uma vez que se tratava de minha prima… Tinha vontade de olhar para a ponta dos meus sapatos. Então, encontrava uma saída:
– Mas a senhora está muito bem disposta.
– Ah, isso é verdade. Sente-se aqui um pouco. Vamos conversar!
E eu devia permanecer ali, até chegar outra pessoa para cumprimentá-la. Então, tentava engajar esse novo interlocutor na conversa e, quando ambos se animavam, fazia o meu sorriso mais alegre e dizia:
– Com licença!
Passava para outro salão, e encontrava um colega, o qual justamente eu queria evitar, que me dizia:
– Plinio, queria apresentar-lhe minha irmã.
– Ah, pois não. Muito prazer!
E precisava ser amável com todo o mundo, aguentando inclusive pessoas sem graça…
Também, não posso me esquecer do horror que eu tinha de subir a escada do hotel, quando estava hospedado lá. Três andares a pé! Como era preciso ceder o lugar no elevador às senhoras e depois aos homens de idade, eu ficava conversando junto à porta, até verificar que havia um espaço vazio, e entrava. Às vezes, já estava dentro quando, de repente, aparecia um senhor idoso, fino, amável e correto. Eu imediatamente tomava o ar de quem estava sôfrego de dar o lugar para ele, e dizia:
– Faça o favor! É seu!
Afinal, arranjava uma vaga e subia no velho elevador.
O primeiro smoking e o auxílio de tio Nestor
E aconteceu que um dos bailes a que eu compareci, depois dos meus quinze anos, foi no Hotel Parque Balneário, e meu primeiro smoking ficou pronto para essa ocasião.
Para minha idade, vestir esse traje era altamente promocional. Tinha botões de pérola, camisa de peito duro com colarinho engomado e quebrado no alto, gravata preta, abotoaduras de cristal e platina, e sapatos de verniz. Mas pensei: “Não sei vestir essa roupa, nem gosto de fazê-lo! Não vou me divertir nessa festa, mas tenho de ir! Vamos ver como é essa história…”
Eu estava hospedado em casa de meu tio. Ora, quando ia pôr o smoking, ele bateu à minha porta, eu abri e perguntei:
– O que o senhor deseja?
Ele respondeu:
– Vestir a você.
– Mas como? Vestir-me?!
– Você é um desajeitado, e estou vendo que nem vai prestar atenção no seu traje… Eu quero que você vá muito bem vestido e, então, quem vai arranjá-lo sou eu. Quando tiver posto a camisa e as calças, me chama no quarto, pois vou ver se sua roupa está bem esticada. Eu mesmo vou vestir seu colete, dar o laço na sua gravata, pôr as pérolas na sua camisa e ainda vou controlar seu penteado. Você tem de ir perfeito!
Assim, ele e eu fomos de uma enorme paciência um com outro. Tio Nestor queria que eu me sujeitasse e, como eu via a sua boa vontade, tinha de aceitar… De fato, ele levou o afeto e a dedicação ao ponto de dar o laço de minha gravata, e ainda explicar-me a razão pela qual esse laço estava bem feito. Vestiu-me o colete e depois foi preciso ir com ele até o espelho para refazer o meu penteado, pois a risca não estava bem…
Quando eu já dava tudo por encerrado, ele me perguntou:
– Você amarrou os cadarços de seus sapatos?
Eu olhei e disse:
– Tio Nestor, não amarrei.
– Você vai dar um laço feio e desajeitado. Eu mesmo vou fazê-lo.
Então, com surpresa para mim, ele se abaixou e ajoelhou-se com os dois joelhos no chão. Eu quis pôr o pé sobre algum objeto, para facilitar-lhe ao menos o trabalho, mas ele não o permitiu: mandou-me sentar e amarrou meus cadarços, com mil cuidados. Tal era o carinho com que me tratava!
Por fim, desci e fui até o Parque Balneário. Quando cheguei, logo na entrada da sala de baile encontrei-me com um grupo de senhoras idosas que eu conhecia, e lembrei-me que devia beijar a mão de cada uma delas, segundo a fórmula que me havia sido explicada. Elas, que pouco antes me tinham visto ainda de calças curtas, vendo-me pela primeira vez com smoking, julgaram amável dizer-me que estava muito bem vestido, mas com uma ligeira brincadeira, o que era natural. E eu, desconfiado e pensando que aquilo talvez envolvesse alguma caçoada, pensei: “Tio Nestor disse que estou impecavelmente vestido. Então, do que estão rindo?”
Fingi não perceber nada e entrei para a festa. Depois entendi que elas gracejavam a respeito de um menino, filho da amiga delas, que viam começar a ser homem.
Vitória sobre a tentação de mediocridade
Lembro-me também do ocorrido em outra ocasião, em São Paulo, nesse período em que eu começava a frequentar os ambientes da sociedade.
Eu ia de automóvel para certo local, onde deveria desenrolar-se uma festa que exigia muito cerimonial. Era atraído pelo deslumbramento que o luxo causa, mas, ao mesmo tempo, sentia a tensão normal de um rapazinho dessa idade: “Será que eu me haverei corretamente? Terei as respostas adequadas?
Lembrar-me-ei de todas as fórmulas de gentileza? Não me esquecerei de alguma pessoa a quem devo cumprimentar? Manterei durante todo o tempo o porte ereto que minha governanta alemã sempre me recomendou, ou cederei à minha própria natureza, curvando-me sobre mim mesmo e dando uma impressão pouco distinta? Essa reunião me atrai, mas se apresenta para mim como uma batalha. Vale a pena conduzir esta batalha?”
Durante o percurso, o automóvel de minha família passou diante de uma casa de pequena burguesia, na qual eu vi um ambiente confortável, mas sem nada de luxuoso. E, bem calmas, apoiadas no peitoril da janela – com uns travesseiros debaixo dos braços, para não se machucarem – estavam ali duas senhoras idosas. Deviam ser irmãs, pois se entendiam tão bem que nem se falavam, mas mantinham uma espécie de conversa contínua, sem pronunciar uma só palavra e, quando passava alguém pela rua, olhavam juntas na direção da pessoa. Percebi que haviam jantado muito cedo, com o dia ainda claro, e estavam passando um serão tranquilíssimo.
Então, pensei com os meus botões: “O que é melhor? Ser elas ou ser eu? Não valeria a pena jogar fora toda esta tralha – automóvel de luxo, roupa de luxo, gente de luxo – entrar nessa casa e permanecer no meio dessas velhas, olhando de um lado para outro, sem amolação? Quando eu me encontrar na festa, no auge da minha batalha, elas estarão se oferecendo um chá de hortelã ou de erva cidreira e depois vão dormir tranquilas, coisa que eu aprecio muito, e da qual se pode discutir se não é mais agradável do que uma reunião social. Então, não é melhor levar a vida delas?”
No fundo, era o lado inferior da minha natureza que solicitava uma capitulação e propunha uma fuga, com vistas à minha vantagem e ao meu conforto, e foi por um triz que eu não fiz uma escolha errada, resolvendo o seguinte: “Eu vou para essa reunião social e me portarei como quiser, porque não vale a pena fazer esforço. Depois, nunca mais voltarei, mas vou entrar em ambientes semelhantes ao das duas velhas, e levarei uma vida
sossegada. Nada melhor do que o sossego!”
Entretanto, pensei comigo mesmo: “Mas, que vergonha! Vamos fazer esforço!”
E tomei o outro rumo, mas, naquele instante, o meu destino poderia ter cambaleado.
No Teatro Municipal
Também não posso me esquecer da primeira vez que entrei
no Teatro Municipal de São Paulo. Eu tinha entre quinze e dezesseis anos, e fui assistir a uma ópera, também a primeira em minha vida. Sempre muito calmo, sem frenesi nem torcida, fiz o que nenhum rapaz de minha idade faria: cheguei classicamente atrasado, aliás, sem muita vontade de ver essa ópera.
Nas grandes noites de representação de gala, as portas do teatro por onde entravam os automóveis – debaixo dos arcos laterais – eram custodiadas pela Guarda Civil, com uniforme azul-escuro e alamares de prata. Devido ao meu atraso, não me permitiram entrar na plateia – onde eu tinha lugar reservado – para evitar que fizesse ruído. Perguntei quanto tempo levaria o primeiro ato, pedi licença para subir e responderam-me:
– Só se o senhor for até a galeria, em cima.
– Não, vou até o foyer.13
– Se o senhor fechar a porta com cuidado pode entrar. Do contrário prejudicará a audição, pois está se apresentando uma grande cantora italiana,14 que não tolera nem sequer o barulho de uma porta.
Assim, acabei permanecendo em certo ponto de uma escadaria, de onde podia ver o palco.
Cena de esplendor
Entretanto, o auditório me interessou mais do que a ópera e comecei a olhar em torno de mim, examinando e fazendo a análise das pessoas, discretamente, com golpes de vista furtivos.
No teatro dourado e enfeitado, repleto de alto a baixo em seus camarotes, frisas e plateia, encontrava-se reunida e hierarquizada a melhor aristocracia de São Paulo. Nunca me esquecerei do esplendor daquela cena, vista num coup d’ensemble,15 e do fascínio que me causou.
Os membros do governo e as principais autoridades tinham camarotes especiais, e se apresentavam com todo o aparato da República Velha.16 Os homens de mais idade haviam comparecido de casaca e os moços de smoking, como eu também, aliás. As senhoras estavam lindas em seus grandes vestidos de gala, com joias em quantidade e movimentando-se com muita elegância.
Quando acabei meu exame pensei: “Está essa mulher representando aí. Vamos ver o que ela diz”.
Drama romântico e falta de bom senso
Tratava-se de uma cantoria do século passado:17 uma das óperas de Verdi, chamada La Traviata18 – isto é, “a transviada”, executada por uma companhia italiana. Eu não conhecia a peça, fui ao teatro sem a menor ideia sobre o enredo, e só depois de ter saído é que vim a compreender o drama, por comentários de outros. Era uma história muito monótona que se passava nas primeiras décadas do século XIX, cuja protagonista apanhava tuberculose pela tristeza de não poder casar com determinado rapaz, e acabava morrendo.
Segundo os gostos do romantismo, a dor, a tragédia, o fracasso e a morte eram considerados com sublimidade, e parecia muito bonito ser infeliz e morrer de desgosto, como a traviata. Então, na parte da ópera de que me lembro, o cenário representava um quarto de dormir comum e, deitada na cama, bem composta, a atriz principal que fazia o papel de tuberculosa moribunda. E era contraditório o espetáculo de uma tísica que morria cantando a plenos pulmões… Aquilo me pareceu completamente ridículo e sem bom senso!
Depois, a traviata, quase expirante, fazia o seu testamento, que era lido em público por um tabelião, e mandava dar aos pobres da região um tanto do dinheiro dela. E cantava em italiano, cheia de bons sentimentos:
– Ah! Il povero, il povero,19 ó, ó, ó!
No fim, aparecia em cena o eventual futuro sogro dela, o qual queria impedir o casamento. Então havia um dueto famoso – de cuja melodia ainda me lembro – em que o pai do rapaz e ela discutiam cantando. Era a ária do bom senso contra a ária do amor romântico, mas, naturalmente, apresentadas de maneira a derrotar o primeiro. Ela lhe pedia que tivesse pena e assim continuava a sua dor cantada, acompanhada pela orquestra com os trêmulos que se pode imaginar… Aquela cena dramática era muito própria a comover as pessoas que têm gosto em verter lágrimas.
A morte da traviata e a sensação de falta de ar
Em certo momento a traviata se sentia tão ofendida e injuriada, que começava a choramingar, a ofegar cada vez mais e a entrar em agonia, com uma crise de falta de ar… Ora, quando eu a ouvi cantar com a respiração entrecortada, aquilo me deu certo reflexo nervoso, pelo qual também comecei a sentir falta de ar.
Apesar de eu sempre respirar normalmente, durante toda a vida tive esse defeito: quando ouço falar de alguém que está sem ar ou vejo uma pessoa que perde a respiração, também começo a ofegar e tenho de me afastar. Tal é o meu horror à ideia da falta de ar!
Então, vendo a traviata, pensei: “Essa mulher não acaba de morrer! Não sei se vou conseguir assistir à peça até o fim…”
Para me distrair um pouco, olhei para o público: algumas senhoras tinham pena, alguns homens prestavam atenção e certos ouvidos musicais acompanhavam tal ou qual sequência da música. Impressionou-me a grande calma com que todos presenciavam a “morte” daquela atriz, bem sentados e bem vestidos, havendo jantado e esperando a hora de dormir. Para tornar a vida ainda mais agradável, iam de noite assistir a uma agonia, num espetáculo lírico interessante.
A ópera continuava e a cantora imitava tão bem a falta de ar, que me deixava sem fôlego. Não podia aguentar mais! Comecei a sentir tanta indisposição que tive de me retirar. O velho pai do rapaz saiu pela porta do palco e eu saí por uma do teatro, a fim de respirar um pouco. E lá fora, numa galeria, ouvi de longe a traviata que afinal acabava de morrer.
Essa ópera tinha um caráter revolucionário, pois dava a entender que as pessoas sem virtude podem, no fundo, ter sentimentos morais nobres e delicados, de generosidade, caridade e desinteresse. Era a Revolução, preparando as mentalidades daquele tempo para aceitarem a imoralidade declarada.
1 Em francês: espécie de pequeno penacho, utilizado para ornamentar chapéus ou capacetes.
2 Em inglês: senhorita, governanta britânica.
3 Em francês: senhorita, governanta francesa.
4 Em francês: mordomo.
5 Prato de carne picada, coberta de gelatina.
6 Em francês: choferes.
7 No local onde hoje existe o Museu de Arte de São Paulo (MASP).
8 Em latim: “Não permitais que eu me separe de Vós”.
9 A presente anotação é do ano de 1983.
10 Cidade do interior do Estado de São Paulo.
11 Eugênia Maria de Montijo (1826-1920), Imperatriz dos Franceses, esposa do Imperador Napoleão III.
12 Leopoldo II (1835-1909), Rei dos Belgas.
13 Em francês: sala de estar, num teatro.
14 A soprano Gilda Dalla Rizza (1892-1975).
15 Em francês: visão de conjunto.
16 Assim é denominado no Brasil o período de governo transcorrido entre a proclamação da República (1889) e a Revolução de 1930.
17 O século XIX.
18 La Traviata, ópera em três atos, de autoria de Giuseppe Verdi (1813-1901), foi apresentada no Teatro Municipal no dia 28 de setembro de 1924, domingo, às 15 h. Cf. Correio Paulistano, 26 de setembro de 1924. Nº 21.970, pp. 6 e 10.
19 “O pobre, o pobre!”
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