Amor à nobreza
O que vem a ser a nobreza?
É a classe social sobre a qual a civilização católica e as instituições por ela criadas – fecundadas pela graça de Deus e pelo Magistério da Igreja – trabalharam, elevando-a a um grau de esplendor magnífico.
Então, o que é um nobre?
É uma pessoa na qual todos os valores cristãos foram aprimorados por séculos de educação, de modo que o quinto, oitavo ou décimo avô de um nobre poderia ter sido um Rei Clóvis da França1, mais ou menos bárbaro, mas o seu quinto, oitavo ou décimo descendente poderia ser Luís XIV, o Rei-Sol.
Ora, os franceses dizem que noblesse oblige – a nobreza traz obrigações. Assim, o requinte de civilização pesa no homem, e o nobre deve fazer todos os esforços necessários para sustentar esse elevado grau de perfeição. Então, quando um deles teve uma infância dura, foi obrigado a estudar e a aprender maneiras belas, e atingiu uma qualidade superior, ele é como uma barra de ouro, transformada, patinada e trabalhada, sem nenhuma liga com metais inferiores. Ele tem verdadeiramente nobreza.
Entretanto, ele não possui essa alta qualidade para olhar os outros de cima, mas a fim de olhar para cima, e ver a Deus mais de perto.
Restaurar a Cristandade
Em certo momento, pela natural maturação do espírito, eu me dei conta de que existiam nações, veios e correntes de opinião mais católicos ou menos, mas que houvera tempo em que todas as nações do Ocidente tinham sido católicas, e que esse mundo, formado segundo a Religião, era chamado de Cristandade2.
Esse nome me pareceu augusto e majestoso, deleitável ao mais alto ponto, inclusive no seu próprio som. “Cristandade! – pensava – Mas, que expressão bonita! Tem algo de enigmático… Como uma simples palavra pode ter tanta majestade e doçura? Cristandade…”
E vinha-me a ideia: “É preciso restaurar a Cristandade!”
Lembro-me de que eu tinha um amigo chamado Constantino e, em certa ocasião, ouvi papai falar com o pai desse menino, dizendo:
– O nome do primeiro Imperador cristão!
Pensei: “Que coisa linda! Houve, então, um primeiro Imperador cristão! Aahh!”
Essa ideia da ligação entre a Igreja e a monarquia, que nascia no meu espírito, me parecia muito conatural comigo.
O Rei Alberto da Bélgica visita o Brasil
Após o término da Primeira Guerra Mundial, o mundo permaneceu dois ou três anos curando suas próprias feridas e, depois destas terem cicatrizado, quando a alegria de viver estava recomeçando e as fortunas se refazendo, uma das pessoas que emergia nessa situação com mais brilho e glória era o Rei Alberto da Bélgica3.
Ele havia feito face à invasão alemã, defendendo o território de seu país com um pequeno exército, e foi obrigado a recuar até uma pequena província à beira mar, com dois ou três municípios que os alemães não tinham dominado. E declarou:
– Não abandonarei a Bélgica, pois o papel de um rei é ser cavaleiro e, portanto, vou lutar aqui até a morte!
Enquanto muitos outros grandes personagens da Guerra foram apenas estrategistas, ele foi um verdadeiro herói, que descia ao campo de batalha e se arriscava por inteiro, e por isso foi chamado de Roi-chevalier4.
Ora, o paraibano Epitácio Pessoa5, homem de muito boa educação, de família tradicional do Nordeste – uma das mais ilustres do Brasil –, antes de ser Presidente da República tinha sabido fazer boas relações com o Rei Alberto e a Rainha Elisabeth6, tornando-se amigo pessoal de ambos. Então, convidou o casal para visitar o Brasil e descansar sobre os louros após as fadigas da guerra7. Eles aceitaram e vieram, com alguns elementos da corte da Bélgica, o que causou enorme entusiasmo aqui, e Epitácio Pessoa, que já era Presidente, fez o quanto podia, promovendo festas, bailes, honras e paradas8.
Recomendações de Dª Lucilia, antes da passagem dos Reis da Bélgica
Os jornais anunciaram o trajeto que o Rei e a Rainha deveriam seguir quando chegassem a São Paulo, acompanhados pelo Presidente. Eles passariam pela esquina da Alameda Glete com a Barão de Limeira, exatamente em frente à nossa casa.
Naqueles dias eu estava doente: havia contraído uma forte gripe e, para evitar contágios domésticos, minha cama fora colocada no escritório, na esquina da casa, junto à qual a comitiva iria passar. Uma vez que eu ainda não podia sair dali, minha mãe, ultracuidadosa, me disse:
– Meu filho, hoje você vai fazer uma ligeira imprudência, com a qual estou de acordo: verá passar o Rei Alberto da Bélgica, um dos maiores homens de nossos dias.
Ela me contou algo sobre o heroísmo do Rei durante a Guerra e continuou explicando, com toda dedicação:
– Você verá também a Rainha Elizabeth, que é bávara, mas durante a Guerra esteve completamente a favor do país que ela adotou como seu, e também a Condessa de Caraman-Chimay, primeira dama de honor da Rainha. Quando chegar a hora em que devem passar os automóveis, mamãe vai avisá-lo e você vai ficar em pé junto à janela, com todos os vidros fechados, mas vendo tudo. Estarei perto de você, para mostrar-lhe as pessoas e ajudá-lo a analisar, pois não quero que perca essa ocasião única e raríssima em sua vida de poder ver um rei, uma rainha e uma dama de corte. Provavelmente, você nunca mais os verá, pois, quando for adulto e visitar a Europa, esses personagens já não terão o viço da idade em que agora estão.
Eu imaginava que veria passar um rei e uma rainha de contos de fadas, dos quais a minha mente estava cheia, e não preciso dizer que aceitei o convite de mamãe. Entretanto, como não se toleraria naquele tempo que alguém fosse à janela usando pijama, tive de vestir-me por inteiro.
O Rei e a Rainha da Bélgica
A comitiva vinha da estação9. Então, quando passou em frente à nossa casa, mamãe foi mencionando as diversas pessoas, as quais vinham na ordem que tinha sido publicada pelos jornais e cujas fotografias eu já havia visto: primeiro o Governador do Estado10, atrás dele o Presidente da República, em seguida o Rei da Bélgica com a Rainha, e depois outros personagens.
Os automóveis eram limusines, iluminadas por dentro e rodavam devagar para que o povo pudesse ver. Entretanto, por alguma razão que não entendi, o automóvel dos Reis, assim como o do Presidente da República, passou depressa. Lembro-me que olhei com algum interesse para o Rei Alberto e a Rainha, mas não me impressionei muito com eles, em parte por ter certo ressentimento em relação aos Aliados devido à queda da monarquia austro-húngara. Era uma ferida em minha alma, mal cicatrizada.
A Condessa de Caraman-Chimay
Logo depois passou um automóvel fechado, e lembro-me de mamãe dizendo:
– Meu filho, preste atenção e olhe ali: aquela é a Condessa de Caraman-Chimay11.
Era uma pessoa muito mencionada nos jornais. A limusine da Condessa passou bem devagar e eu a vi sentada no meio do banco, sozinha, com um vestido de gala e portando sobre a cabeça uma pequena coroa de ouro – que a Rainha não usava – correspondente à alta condição dela, pois era de uma família principesca12. Também usava uma espécie de tule branco, muito ligeiro, partindo dos cabelos, no qual incidia a luz interna do automóvel causando reflexos ao mesmo tempo que fazia brilhar o ouro da coroa. E ela, séria, digna, impávida e linda, sem olhar para a direita ou para a esquerda, parecia uma estátua e tinha muito mais majestade do que a própria Rainha da Bélgica. Era um modelo de elegância, uma figura de contos de fadas!
Fiquei impressionadíssimo, encantado e pensei: “Oh! Deve ser uma rainha!”
Aquela impressão entrou com força dentro da minha alma e ficou para mim como o próprio símbolo do esplendor social. Mamãe me disse:
– Olhe o véu. Veja como ela está sentada, e a posição dos braços. Assim é que se deve fazer!
Muito propensa a admirar os outros, no modo de dizer isso ela mesma mostrava respeito pela Condessa, contente por ver uma pessoa superior a ela e por ter a alegria de mostrá-la a seu filho. Assim, incentivava-me a admirar aquela superioridade e, no fundo, a amar tudo quanto estivesse acima de mim mesmo. Era a pessoa mais sem inveja que eu conheci em minha vida!
Depois, as pessoas da família que estavam comigo no escritório saíram para continuar vendo a comitiva. Mamãe me fez voltar para a cama e deitei-me, pensando: “Graças a Deus, vou poder ficar sozinho e refletir um pouco sobre a Condessa de Caraman-Chimay”.
Lembrei-me muito mais dela do que da Rainha durante a noite, no dia seguinte e a vida inteira, e até hoje conservo dela essa recordação. Provavelmente elaborei, ao longo dos anos, uma figura da Condessa de Caraman-Chimay, sublimando-a segundo mil ideias novas, tomando aquela visão de infância e destilando-a como um instrumento de trabalho cultural.
Alguém poderia dizer: “Isso não é objetivo! Você desfigurou a imagem da Condessa”. Eu respondo: “Fui objetivo, sublimando o quadro da Condessa de Caraman-Chimay, pois, na realidade, não estava tão interessado nela, mas, sim, numa regra da ordem do universo. Eu queria uma imagem de Deus e a consegui, elaborando em meu espírito esse padrão e esse modelo.
No fundo, acontece que, pela natural sanidade da criatura humana, existem na mente do homem certas matrizes de unum, de bonum, de verum e de pulchrum13, que o levam a ver nas coisas claros reflexos de Deus, e as quais só podem ser destruídas pelo pecado. Então, à maneira de um losango, essas noções iniciais se alargam ao longo da vida, de ponto em ponto, numa grande quantidade de conceitos e aplicações.
Em certo momento, por exemplo, passa diante de minha atenção a Condessa de Caraman-Chimay. Eu a focalizo e a aprecio, e, no fim, sou capaz de fazer uma crítica, pela qual posso entender o que há nela de unum, bonum, verum e pulchrum e vejo no que ela é semelhante a Deus. O losango se fecha novamente em seu elemento inicial, pois eu percorri o périplo total de meu pensamento, naquela matéria. Isso é o que eu chamo de oração e de meditação.
O Presidente Epitácio Pessoa diante da casa de Plinio
O Epitácio Pessoa conseguiu que o velho Conselheiro Antônio Prado, homem riquíssimo e alto personagem da antiga Monarquia – o qual depois tivera funções na República e havia sido Prefeito de São Paulo14 –, oferecesse um grande baile em honra ao Rei e à Rainha da Bélgica. Essa festa seria na própria casa do Conselheiro, uma espécie de palácio, chamado Chácara do Carvalho15, na ponta da Alameda Barão de Limeira, próximo à nossa casa.
O Presidente da República também compareceria, naturalmente, junto com sua esposa, pois eles não se afastaram do Rei e da Rainha nem um só dia, como devia ser.
Nessa ocasião, no entusiasmo de ver novamente o Rei Alberto, a Rainha e a Condessa de Caraman-Chimay que passariam a caminho do grande baile, todas as famílias do Bairro dos Campos Elíseos, inclusive a minha, estavam à espera.
O cortejo passou junto à casa de minha avó, pela Alameda Glete. Desta vez, o Epitácio vinha à frente dos Reis, num carro landau16 muito digno, puxado a cavalo. Entretanto, quando ele estava sob as janelas de minha casa, houve algum incidente que impediu o trânsito, e o veículo teve de se deter por um instante. E meu pai, com as suas expansões nordestinas, talvez por ser de Pernambuco, vizinho da Paraíba, gritou:
– Viva!
Quando ouviu aquilo, o Epitácio se virou. Ele não conhecia a família Ribeiro dos Santos, mas, vendo vovó com toda sua beleza junto à janela, num olhar classificou as pessoas que ali estavam e fez um ligeiro cumprimento atencioso, porém mantendo certa distância, uma vez que não nos conhecia. Aquele gesto foi tão bem feito, que me pareceu uma verdadeira obra-prima.
Os cavalos se puseram novamente em movimento, e eu guardei para sempre na memória o modo de o Epitácio Pessoa, como Presidente da República numa sociedade ainda aristocrática, entender certa situação e saber como proceder.
Cartas da Princesa Isabel
Minha avó era monarquista enragée17.
Em casa, quando terminava o jantar, ela costumava ir até um sofá que havia numa das salas, reclinava-se e dormia, enquanto a família conversava em volta. Então, às vezes, os dois irmãos dela18, aos quais estimava muito, faziam sinais entre si e começavam a fingir uma discussão sobre formas de governo, na qual um deles fazia um ataque pesado contra a monarquia. Sem falta, ela acordava e dizia:
– Isso não!
Havia uma gargalhada de todos. E, sistematicamente, quando os dois queriam, a cena se repetia…
Quando estivemos na Igreja de Saint-Germain-l’Auxerrois, em Paris19, minha avó havia conhecido a Princesa Isabel20 e, a partir desse encontro, manteve correspondência com ela. Então, no ano-bom21, vovó e mamãe escreviam para a Princesa, e esta lhes respondia, sempre muito amável, por cartas diretas ou, quando estava muito ocupada com encargos sociais, por meio da Baronesa de Muritiba, uma cearense que fazia o papel de dama de honor para ela.
Em geral, o correio chegava pelas dez horas da manhã. E tal era a tranquilidade da vida, que as cartas ficavam jazendo numa mesinha, no fundo do corredor, até que cada um apanhava a sua. Vovó nunca perguntava se havia correspondência para ela, mas, no final do almoço, na hora da sobremesa, o copeiro trazia as cartas que ainda não haviam sido recolhidas, apresentando-as numa salvazinha de prata, como era de estilo em qualquer casa naquele tempo. Era um momento de curiosidade para todo mundo.
Chegavam missivas de alguma parenta que vivia longe, ou da família de meu pai que morava em Pernambuco, informando sobre a saúde de tal pessoa ou, por exemplo, contando que fora inaugurada uma nova máquina de moer cana. Papai então explicava como era essa máquina. Tratava-se de notícias de rotina na vida de família, recebidas com cortesia e com certo interesse, mas, quando chegava alguma carta da França, já se sabia que era um acontecimento. Minha avó dizia:
– Atenção! Olhem! Aqui está chegando uma correspondência de Boulogne-sur-Seine22.
Era uma carta ou um cartão postal da Princesa Isabel para minha avó. Verdadeira atração! Todos comentavam:
– Chegou carta da Princesa! Que interessante!
Eu prestava atenção nos republicanos que havia no ambiente: até eles se interessavam! De maneira que cada carta da Princesa Isabel era uma espécie de infusão de monarquismo na sala. Entretanto, aquele enlevo era passageiro e, daí a pouco tempo, eles voltavam a tomar atitudes igualitárias.
Minha avó abria, ela mesma, o envelope no qual estava escrito: “Excelentíssima Senhora Dª Gabriela Ribeiro dos Santos”. Lia antes em silêncio e depois o fazia em voz alta, para todos ouvirem, uma vez que eram cartas sociais, contando notícias, sem nada de particular ou confidencial. A conversa parava e todo mundo permanecia quieto, para prestar atenção e ouvir a leitura:
– “Minha cara Dª Gabriela…”
Não preciso dizer que mamãe tinha uma verdadeira devoção, sincera e completa, por ouvir aquelas palavras.
É de se notar que minha avó lia as cartas da Princesa com todo respeito, mas com muita naturalidade, como quem dissesse: “Há algo de mais natural do que uma pessoa, tão superior a mim, me escrever?” Nesses momentos eu via que ela possuía uma ideia da sua própria grandeza de alma, o que não se confundia com a santidade, mas que constituía a alegria dela.
Lida a carta, vovó a punha de lado e passava a tratar de outros assuntos mais banais, enquanto a missiva da imperial signatária percorria a mesa de ponta a ponta. No fim, ela perguntava onde esta se encontrava, pois queria guardá-la numa gavetinha especial, mas, enquanto o copeiro ou a criada ainda não houvessem retirado todos os objetos usados na refeição, a carta era deixada sobre a mesa, e um ou outro republicano permanecia por ali, esperando que a sala estivesse vazia, para ler também a correspondência da Princesa…
Respostas de Dª Gabriela à Princesa
Mais tarde, quando minha avó escrevia a resposta, eu a via consultar o primogênito dela23, por exemplo a respeito do modo de encerrar a carta. Ele era político republicano, mas homem muito destro em etiquetas e, para vovó, era o doutor das regras!
Então, esse meu tio debatia com ela a respeito de duas ou três formas diferentes de encerrar uma carta para a Princesa Isabel. Lembro-me bem dos dois, conversando sem prestar atenção num menino que ali se encontrava, observando-os avidamente. Tratava-se do seguinte problema: ela queria escrever: “…minhas homenagens, que eu peço comunicar também aos demais membros da Casa Imperial”. Entretanto, não estava bem pedir à Princesa que fizesse tal favor – o qual se poderia pedir entre duas amigas do mesmo nível –, pois ela não era um estafeta para dar recados. Então, o que fazer?
Meu tio pensava um pouquinho e dizia:
– A senhora ponha: “Minhas homenagens, extensivas aos membros da Casa Imperial”.
A palavra “extensivas” resolvia o caso de um modo especial. Ao ouvir aquilo, não fiz nenhum comentário junto a eles – pois não se interessariam pelos aplausos de um pirralho – mas tomei aquilo como um néctar e lembro-me de ter pensado: “Não vou me esquecer disso, até o fim da minha vida!”
E adotei essa fórmula, que sempre uso em minhas cartas.
Posteriormente, quando a Princesa morreu, a Baronesa de Muritiba passou a morar no Brasil e continuou a corresponder-se com minha avó e minha mãe. Vinha às vezes a São Paulo para visitar vovó, a qual com muito agrado a recebia no melhor salão da casa.
D. Pedro II, vovô do Brasil e patriarca
Ouvindo os monarquistas de minha família, e inclusive os republicanos, falarem a respeito de D. Pedro II, em cujo reinado vários deles tinham vivido, eu percebia que a figura do velho Imperador gozava de profunda simpatia no Brasil.
Prestando atenção, notei que ele era tido como a encarnação de todas as virtudes do brasileiro: bom, compassivo, muito inteligente e instruído, e tido como um dos homens de maior erudição de seu tempo. O nome dele figurava no Larousse ilustrado, em língua francesa – o maior dicionário daquele tempo e fonte de consulta para todo o mundo –, o que era uma glorificação para um intelectual. Eu não fazia procuras no Larousse, mas folheava-o muito, e não me lembro de haver encontrado nele nomes de pessoas de língua portuguesa, a não ser de dois homens: Camões e D. Pedro II. E, deste último, dizia: “Foi Imperador do Brasil entre tais anos”. Mencionava-se algo sobre a competência dele na direção do Estado, e afirmava-se que era “un savant distingué”24. Ou seja, tinha-se distinguido enquanto sábio, pois era muito aprofundado num determinado ramo do conhecimento humano.
Então, eu via que D. Pedro II era tido geralmente pelos brasileiros como um papai envelhecido, ou como um velho vovô do Brasil, de barba branca, amado e respeitado, ainda cheio de vitalidade e de capacidade de ação, tranquilo, mas não bobo, com um olhar que não era o de um policial – o que não convém a um imperador – mas de um homem que sabe o que vê e a quem vigia, famoso por causa de certo caderno preto que ele possuía, contendo muitos nomes. Quando ouvia falar mal de um homem de certa importância, o qual talvez fosse candidato a algum cargo público, esperava achar-se a sós e, então, abria o tal caderno e escrevia o nome do personagem, assim como aquilo que diziam sobre ele. Assim, quando era pedido determinado cargo para alguém, ele ia verificar se o nome do indivíduo estava no caderno e depois mandava investigar sobre a honestidade e a capacidade dele. O resultado é que o número de pessoas honestas que ocupavam os cargos públicos era grande, e a probidade da administração sob a direção do Imperador era exemplar.
Eu percebia, portanto, que o Imperador havia fundido na sua pessoa as qualidades de pai e de monarca, como um verdadeiro patriarca. Esse era D. Pedro II.
Críticas dos republicanos ao Imperador
Eu ouvia os republicanos – ao menos naquele meu círculo familiar, que eu tomava como imagem do mundo – fazerem apenas uma crítica a ele, que era de não ter pulso. E a risada que davam dele era o contrário daquilo que se dizia para difamar quase todos os monarcas, os quais eram tidos como tiranos.
Porém, acontece que o Imperador era realmente penetrado por ideias de liberalismo e podia ser chamado, ao pé da letra, de liberal, pois ele consentia em ser tratado de um modo que não ia bem com toda a sua apresentação, com a tradição que personificava nem com o supremo cargo que ele exercia.
Por exemplo, lembro-me de alguns episódios que minha mãe contava a respeito dele.
Lembranças maternas: D. Pedro II em Pirassununga
O Imperador palmilhou o Brasil, viajando em condições muitas vezes desconfortáveis. Então, quando mamãe ainda morava em Pirassununga, anunciaram que D. Pedro II passaria pela cidade, como ponto de um itinerário que ele seguiria através de várias regiões, em trem. A cidade toda se organizou para festejá-lo, e enfeitaram a estação para recebê-lo.
Os monarquistas estavam divididos em dois partidos: o Partido Liberal e o Partido Conservador. E um chefe político de certa cidade próxima inventou uma brincadeira, cuja vítima seria um membro do partido oposto.
Assim, quando o trem do Imperador passou por essa cidade, na qual ele não iria descer, várias pessoas o homenagearam na estação, entre as quais esse chefe, o qual arranjou um jeito de conversar com ele e dizer-lhe:
– Vossa Majestade vai a Pirassununga. É um lugar do interior que está começando a viver, mas onde existem verdadeiros eruditos. Por exemplo, o Sr. Fulano de Tal – era o chefe do outro partido – conhece a língua tupi na perfeição!
Ora, o Imperador era um verdadeiro poliglota e, por senso de dignidade, fazia questão de conhecer a língua dos seus súditos da floresta, os índios, tendo alegria em mostrar que havia feito o notável esforço de aprender o tupi. O resultado é que ele seguiu para Pirassununga e, já na estação, quando começaram os cumprimentos, chegou a vez de apresentar o mencionado político. Alguém deu o nome dele e disse:
– É o chefe do partido.
O Imperador lhe fez uma saudação em tupi, mas o homem não sabia essa língua! Foi preciso explicar a D. Pedro II que ele não sabia tupi, o que era muito desagradável, pois prejudicava a boa opinião do Imperador a respeito de alguém que queria ser bem-visto, para fazer carreira. Houve gargalhadas na sala, pois os de Pirassununga conheciam o jogo político e perceberam logo tratar-se do truque de um adversário, o qual desejava divertir-se, fazendo uma pilhéria e colocando o outro em má situação.
E o Imperador, com toda bonomia, deixou passar isso sem dizer nada, foi para o lugar que lhe haviam destinado num salão, sentou-se e começou a conversar.
Quando contaram isso diante de mim, eu – que já tinha ouvido a Fräulein Mathilde conversar muito sobre questões de bom tom, de precedência, de hierarquia e de respeito –, sabia que jamais se poderia conceber um episódio assim com um monarca europeu, e transpunha esse princípio para o ambiente brasileiro. Para mim, aquilo era inimaginável! O Imperador não devia tolerar que alguém o tomasse como meio para dar uma piquetada num adversário político, numa briguinha de arrabaldes.
Então, esse fato aparecia no meu foco psicológico justamente como algo que explicava as críticas feitas a ele. E fazia o raciocínio: “Ora! Veja o resultado de não ter pulso! Está cheio de qualidades, como uma árvore de Natal poderia estar coberta de enfeites, e todo o mundo o reconhece. Mas, porque foi mole, caçoam dele”.
Narrações paternas: o Conselheiro João Alfredo e a deposição do Imperador
Meu pai contava que ouvira do Conselheiro João Alfredo25, seu tio, que, quando começaram a correr no Rio de Janeiro as notícias sobre a derrubada do Império26, ele foi ao palácio São Cristóvão, uma grande casa na qual o Imperador passava uma parte do ano, e onde se encontrava naqueles dias.
O Conselheiro pediu para falar com ele, e a resposta veio com toda facilidade, por tratar-se de uma pessoa que tinha muito acesso ao Imperador: pedia que ele entrasse. D. Pedro II, sozinho e calmo, saudou-o com afabilidade e então o Conselheiro João Alfredo disse:
– Senhor, venho comentar com Vossa Majestade os boatos que correm de que a República foi proclamada e de que Vossa Majestade está deposto. E vim me oferecer para o que possa querer de mim nesta situação.
O Imperador ouviu-o e respondeu:
– Não há nada de real nisso. Eu não estou deposto.
Ora, a República já estava proclamada. Meu tio-avô contou-lhe fatos que provavam a sua afirmação, mas o Imperador não quis crer. Então, alguém bateu à porta e ele deu ordem:
– Entre!
Era um militar, chefe da guarnição que custodiava o palácio, o qual fez continência e disse:
– Senhor, é a hora habitual de pedir instruções a Vossa Majestade!
– Não tenho instruções.
Quando ele saiu, o Imperador disse a meu tio-avô:
– João, você está vendo? Não tem nada de mais! Esse homem veio me pedir ordens, e você ainda diz que estou deposto? Oh, João!
O Conselheiro se sentiu tão desapontado que disse apenas:
– Bem, saiba Vossa Majestade que estou à disposição para o que desejar.
E retirou-se. Os fatos seguiram seu rumo e D. Pedro II embarcou para o exílio. Eu ouvia essas narrações e depois fazia as minhas reflexões, que não apresentava a ninguém. E, quando um tio meu se referia ao Imperador sem o devido respeito, minha avó, dona da casa e matriarca da família, dizia:
– O que é?!
Ele se calava para não receber uma repreensão, e eu tinha vontade de interpelá-lo:
– Se D. Pedro II não tinha pulso, devia-se a alguns homens como o senhor!
Mas essas maneiras não eram do agrado de Dª Lucilia, a qual não apreciaria que eu fizesse essa livre crítica de um tio.
A revogação do banimento da família imperial
Com a proclamação da República no Brasil, a família imperial brasileira havia sido banida do País.
Entretanto, tomando em consideração que D. Pedro I tinha proclamado a Independência, o Presidente da República Epitácio Pessoa considerou um absurdo atravessar o ano do Centenário da Independência com a família imperial exilada. Ficava muito mal celebrar tanto D. Pedro I, enquanto os seus descendentes não podiam pôr os pés no País, sem serem presos. Não havia propósito! Afinal, essa família fazia parte do patrimônio do Brasil.
Então, vendo que o fantasma da monarquia estava completamente afastado, Epitácio Pessoa – o qual realmente sabia fazer as coisas – teve o bom gosto de mandar revogar o decreto de exílio. Assim, antes do Centenário da Independência em 1922, foi publicado um novo decreto do Presidente da República anulando o banimento e declarando a anistia da família do Imperador, pela liberalidade do governo republicano27.
Assim, a família imperial brasileira pôde voltar ao Brasil, participar das comemorações da Independência junto com a República – o que era uma atitude ultrabrasileira! – e foi recebida com toda distinção pelo Presidente. Tinha-se chegado a uma composição, na qual havia certo interesse deste último em dar uma posição de honra e de simpatia à reminiscência monárquica, para acabar de uma vez com as lutas e resignar o que restava do monarquismo a um status confortável na república aristocrática.
Os restos mortais do Imperador e da Imperatriz
D. Pedro II falecera na França e lá havia sido sepultado. Mas, com a revogação do decreto de banimento – aproximadamente trinta anos depois da morte dele28 –, o Presidente da República também permitiu a vinda para o Brasil dos restos mortais do Imperador e da Imperatriz
Dª Teresa Cristina.
Assim, a pedido do governo republicano, o cruzador São Paulo – nosso melhor navio de guerra naquele tempo – veio trazendo os restos mortais, com alguns membros da família imperial a bordo29. E, de tal maneira a família imperial era simpatizada no País, que os corpos dos Imperadores foram recebidos e sepultados com honras oficiais de soberanos, em grande estilo.
O Conde d’Eu em São Paulo
Quando o Conde d’Eu30 veio a São Paulo, hospedou-se no Rotisserie Sportsman, o melhor hotel da cidade. E Dª Olga de Sousa Queirós, muito rica naquele tempo, mandou levar móveis da sua própria casa para mobiliar o quarto do Príncipe.
Lembro-me que eu estava, com toda minha família, fazendo estação de águas em Prata, e viemos todos a São Paulo para visitá-lo. Creio que depois voltamos para Águas da Prata, mas não me recordo bem.
Uma vez que o Conde d’Eu seria cumprimentado por bom número de pessoas, ele poderia ter ocupado algum salão do andar térreo do hotel, o qual, imagino, devia ter vários, apesar de eu não os ter visto. Entretanto, os visitantes fizeram fila no corredor do apartamento dele, que os recebia, de pé, numa saleta de espera junto ao seu quarto.
Eu não imaginava encontrar um príncipe de lenda, mas também não havia renunciado à hipótese de ver nele algo de lendário. Porém, senti-me um tanto decepcionado ao conhecê-lo pessoalmente. Era um velhinho esperto, de tipo europeu clássico, com cabelo muito branco, já escasso, e barbicha.
Naquele tempo não existiam aparelhos para as pessoas que tinham defeitos de audição, mas apenas uns tubos acústicos à maneira de cornetinhas, e o Conde d’Eu utilizava um desses, que ele tinha de segurar com a mão, pondo-o no ouvido e tirando-o depois, à medida que as pessoas iam passando para cumprimentá-lo. Essa espécie de corneta era fechada por uma pequena grade trabalhada, mas parece que não funcionava muito bem, pois era preciso repetir o que se dizia e, afinal, ele se manifestava muito contente. O Conde parecia sentir-se bem no Brasil.
Visitas de D. Pedro de Alcântara a Dª Gabriela
Quando os membros da família imperial começaram a vir ao Brasil, iam visitar, naturalmente, as famílias que conheciam, entre as quais estava a de minha avó, por ser ela velha amiga da Princesa Isabel.
D. Pedro de Alcântara31 vinha a São Paulo com certa frequência e, numa ocasião, apareceu em nossa casa de manhã, antes do almoço, horário muito incômodo para vovó. Lembro-me que, quando ela foi à sala de visitas para recebê-lo, ele disse:
– Dª Gabriela, desculpe-me por vir visitá-la nesta hora da manhã, mas tenho que partir agora para Paris e, se minha mãe souber que eu vim ao Brasil e não cumprimentei a senhora, terei de passar por uma situação difícil. Uma das primeiras perguntas que ela me fará é: “Como deixou Dª Gabriela e Dª Lucilia?” De maneira que não tenho coragem de partir sem cumprimentar a senhora.
Vovó deu risada e respondeu com amabilidade, e ele se retirou.
Assim, qualquer membro da casa Imperial do Brasil, quando vinha a São Paulo, tinha o encargo de visitar minha avó, ainda que fosse de maneira rápida, por exigência da Princesa Isabel.
Em outra circunstância, em que D. Pedro de Alcântara veio a São Paulo para uma estadia mais demorada32, ele foi portador de algum recado ou lembrança – do qual não me recordo bem – da Princesa para minha avó, e esta ofereceu então uma recepção a ele, para a qual convidou muitas pessoas.
Meu tio Gabriel, sendo o filho mais velho de vovó, tinha de comparecer, mas permaneceu afastado, conversando com uma ou duas pessoas no ângulo de uma sala, à maneira de alguém que não tem nada a ver com a família, e, no fim, despediu-se de D. Pedro com uma amabilidade fria. Aliás, o Príncipe nunca foi convidado para a casa dele.
A cantora francesa e as boas maneiras dos antigos
De acordo com os costumes daquele tempo, quando se desejava ter uma atitude muito amável com alguma visita, contratavam-se artistas para cantar ou recitar poesias, e desse modo animar o ato social. Nossa família convidou, então, uma moça francesa, a qual declamava e cantava muito bem, e era também professora de dança. Pessoa bem educada, com a vivacidade própria do seu país e ligeiramente petulante, era muito interessante, sem estar, entretanto, à altura do ambiente onde ela iria cantar.
Eu tinha curiosidade de analisar certo pormenor, perguntando-me: “Será que eles receberão essa moça em meio aos outros convidados, ou vão manter certa distância em relação a ela, de maneira que entrará para cantar e depois lhe dirão apenas ‘muito obrigado’? Como eles vão se arranjar, inclusive para pagá-la?”
Se eu perguntasse a algum parente sobre isso, os imperativos da época o levariam a tomar a atitude de quem achava a pergunta forçada e extravagante, e não me explicaria o que desejava. Entretanto, eu sabia que os mais velhos deveriam ter alguma técnica, antiga e tradicional, para resolver esses casos, e queria aprendê-la.
Eu conhecia certas pessoas, de gerações posteriores, que agiriam com toda franqueza na hora de contratar a moça, dizendo: “Você está convidada para cantar e ganhará tanto, mas, sabe? Estou convidando um círculo muito íntimo de relações e, por isso, não vou me permitir o gosto de ter você presente até o fim”. Isso quereria dizer: “Vá embora”. Ora, eu sabia que os mais antigos não fariam isso. Como procederiam, então?
Em certo momento, entrou a cantora, a qual foi recebida com toda amabilidade:
– Como vai você? Venha! Vou levá-la para cumprimentar Dª Gabriela.
Ao vê-la, vovó disse:
– Ah! Vou apresentar você… D. Pedro, esta é a senhorita Tal, que veio aqui para nos encantar com sua voz tão agradável. D. Pedro, com certeza, vai gostar de ouvi-la.
Ele entendeu perfeitamente a situação e cumprimentou-a num tom ameno:
– Ah! Muito obrigado! Estou certo de que será muito agradável.
Imediatamente criou-se um espaço vazio para ela poder cantar. Houve palmas, veio o garçom trazendo champagne e a conversa continuou, até que, em certo momento, foi diminuindo e se fez certo silêncio, o que significava: “Cante mais”.
Ela se levantou e cantou ou declamou mais um pouco. Houve novos aplausos, foram servidos salgadinhos e, afinal, ao cabo de algum tempo, chegou o momento em que ela deveria retirar-se. Então, alguém fez um ou outro comentário elogioso:
– Pois olhe, foi muito bom!
E vovó, simulando lembrar-se de algo, procurou com o olhar alguma pessoa da casa, a qual deveria trazer certo objeto, e disse à moça francesa:
– Olhe, você sabe? Eu estava prevendo que todos gostariam enormemente de sua música, de maneira que até mandei comprar uma lembrancinha para você se recordar deste dia em que nos agradou tanto.
Era uma caixa, provinda de alguma casa de joias, contendo uma linda pedra preciosa. Todo mundo sorriu, ela ainda permaneceu um tempinho na casa e depois saiu. Eu pensei: “Perfeito!”
Porém, o mais interessante era que não se tratava de um caso excepcional, pois, para as pessoas mais antigas, aquela atitude era corrente. Entretanto, eu já previa que chegariam os dias em que tudo isso seria considerado como uma realidade antiquada, própria aos museus.
Lembro-me também de ter ido com minha família acompanhar D. Pedro de Alcântara até a Estação da Luz quando este partiu para a Europa.
Morte da Princesa Isabel e telegrama de pêsames
Não posso me esquecer que certo dia, de manhã, foram publicadas notícias nos jornais e chegaram telegramas da Europa anunciando que a Princesa Isabel havia falecido33.
Minha avó chorou e, na hora do almoço, momento da “vida parlamentar” da família, disse:
– É preciso passar um telegrama à família da Princesa.
Então combinaram quem escreveria, em que termos e para qual membro da família imperial. Após o almoço, vovó sentou-se na cadeira de balanço e, de acordo com o filho dela, redigiu com a sua letrinha miudazinha o telegrama de pêsames que desejava mandar ao Conde d’Eu, a quem a Princesa Isabel deixava viúvo.
No endereço escreveu, em francês:
“A sua Alteza Real
O Príncipe Senhor D. Gastão de Orléans, Conde d’Eu.
Boulogne-sur-Seine, Rua tal, número tanto
Paris”.
E, no estilo antigo, depois vinham as fórmulas: “Rogo a Vossa Alteza queira aceitar…”
Papai, mamãe e vários outros da família também escreveram telegramas para o Conde d’Eu. Depois, minha avó me chamou e me incumbiu de ir ao telégrafo:
– Olhe aqui, você me passe estes telegramas. Peça dinheiro à Samaria34, porque é caro.
De fato, o telegrama para a França custava muito naquela época, e eu devia levar um maço de telegramas, um dos quais era bastante grande. Perguntei:
– Mais ou menos quanto custa, vovó?
– Tanto assim…
Deram-me o dinheiro necessário para pagar, que eu pus no bolso, junto com os textos dos telegramas. Eu não gostava de ir à cidade nem ao telégrafo, mas minha avó mandava com decisão e eu entendia que, se me recusasse, mamãe me pediria para ir… Então, para mim, a ordem estava dada e pensei: “Já vou de uma vez”. E fui tomar o bonde, resignadamente, num horário um pouco tardio, antes que o telégrafo fechasse.
Entretanto, também tinha o propósito de aproveitar a saída para ir a uma confeitaria e, pelo menos, tomar um sorvete com creme chantilly, pois isso sempre fazia parte dos meus programas… Mas não comuniquei a ninguém esse plano, pois sabia que seria censurado por um ou outro: “Como é isso? Você leva um telegrama de pêsames, e vai morrendo de vontade de tomar sorvete?! Não pode ser!”
Fui ao escritório de uma companhia particular de telégrafos chamada Western, a qual funcionava na Rua XV de Novembro. Ao chegar, encontrei o balcão inteiramente vazio de clientes, e havia apenas duas moças escrevendo à máquina.
Ainda me lembro do guichê, feito de certa matéria dura de cor verde claro, semelhante a um vidro fosco, com duas pequenas hastes de metal dourado, entre as quais havia uma vedação. Isso fazia com que a moça telegrafista trabalhasse sem deixar aparecer o rosto, e não visse a pessoa com quem estava tratando, mas somente lhe ouvisse a voz. Dizia o preço do telegrama, e apenas se viam as mãos dela, ao passar-lhe o dinheiro. Era um posto de telégrafos feito no tempo em que havia preocupação com a pureza e a proteção das empregadas.
Apresentei todos os bilhetes a uma delas, dizendo com muita seriedade:
– Aqui estão alguns telegramas para Paris. Faça o favor de ver quanto custa.
Ela recebeu tudo e disse:
– Vou contar as palavras.
Ficou um tempo em silêncio e começou a ler, mas de repente a ouvi exclamar:
– Céu! Que coisa! Noossa! Que bonito!
E gritou para a companheira que trabalhava no guichê vizinho, e a qual eu também não via:
– Venha ver! Depressa! Olhe que maravilha! Que telegrama lindo está sendo passado aqui! Ouça bem! Vou ler para você ouvir!
E leu o endereço do telegrama, enlevada:
– À Son Altesse Royale… Mas, que beleza! Parece um conto de fadas!
Eu estava tão habituado à pressão revolucionária dos meus colegas do São Luís que inicialmente pensei tratar-se de um debique, mas logo percebi que, de fato, ela estava achando aquilo lindo. A outra também fez algum comentário, do qual não me lembro mais, e ambas continuaram o burburinho com encanto.
Depois me indicaram o preço, os telegramas seguiram e eu me retirei, mas sempre guardei na memória, com alegria, a ênfase e o contentamento que tivera aquela pobre mocinha, por saber que existiam no mundo pessoas que ainda chamavam outras com grandes títulos… Curiosamente, as duas eram típicas modernotas, mas, naquele momento, uma tradição havia passado diante dos olhos delas, fazendo-as sentir o gosto de admirar.
Se eu, entretanto, fosse dizer a algum dos meninos com os quais convivia: “Morreu a Princesa Isabel”, ele imediatamente daria uma vaia e comentaria: “Não quero saber de princesa nenhuma! Vamos brincar! Vamos rodar nas bicicletas, e nada de Princesa Isabel!”
Eu teria vontade de dizer: “Mas, não vê que ela é muito mais interessante do que você?”, e ele responderia: “Por quê? Ela não vale mais do que eu!” E começaria a “ladainha” da inveja…
Era a Revolução
A família de D. Pedro de Alcântara
Eu conheci bem toda a família imperial brasileira. Lembro-me de quando apareceram pela primeira vez no Brasil os filhos de D. Pedro de Alcântara e de Dª Elizabeth35.
Quando foi anunciado que eles viriam nos visitar – talvez no ano de 1922 – os mais velhos de nossa família nos ensinaram – a minha irmã, a meus primos e a mim – uma série de regras de cortesia que deveríamos manter em relação àqueles meninos, os quais eram de nossa idade: as meninas tinham de fazer uma pequena reverência para as princesinhas, e nós faríamos uma curvatura de cabeça diante dos pequenos Príncipes. E, como se tratava de uma visita de cerimônia, todos estaríamos vestidos com trajes de gala.
Os Príncipes adultos seriam recebidos na sala de visitas maior e mais pomposa, enquanto na outra, menor e mais íntima, os mais moços permaneceríamos com os principezinhos. A recomendação era de nos sentarmos nas poltronas e conversarmos bien sagement36, de modo cerimonioso.
Os Príncipes e o papagaio
Lembro-me de um pormenor, muito infantil, que se deu no início da visita.
Em certa parte côncava dessa salinha havia um porta-chapéus, onde eram deixados também os casacos, e no qual existia uma espécie de bandejinha destinada aos cartões de visita das pessoas que entravam em casa, os quais eram normalmente levados a minha avó.
Os pequenos Príncipes entraram, todos muito vivos, espertos e animados. Como nós, estavam vestidos com trajes de gala e foram colocar os chapéus no mencionado móvel, mas, ao olharem aquela salvazinha, perceberam que havia nela uma ornamentação: um desenho em alto-relevo, representando dois papagaios. Então, ficaram interessadíssimos e começaram a dizer:
– Olha o papagaio! Papagaio, papagaio!
E eu julguei fazer o papel de bom dono de casa, dizendo-lhes:
– Ah! Mas esses são papagaios de metal! Não têm nada de extraordinário. Se quiserem ver um papagaio de verdade, há de todas as espécies, no Brasil. Aqui mesmo, em casa, eu tenho um papagaio!
Eles perguntaram:
– Onde está? Onde está? Queremos ver o papagaio!
Eu respondi:
– Lá!
Era perto da cozinha… Então, toda a criançada de D. Pedro de Alcântara e o bando inteiro dos meninos de casa, fazendo um enorme barulho, saíram correndo em direção à cozinha a fim de ver o pássaro.
Tratava-se de uma papagaia muito tagarela que meu pai me trouxera de Pernambuco, chamada Olga, a qual morava num terracinho do lado de fora da copa. Quando alguém lhe acariciava a nuca ela ficava imediatamente doce, como que anestesiada, e perdia toda a sua arrogância.
Ora, para aqueles pequenos europeus era uma novidade e uma sensação ver um autêntico papagaio, que falava. Entretanto, os Príncipes não entenderam o que este dizia, pois tinha sotaque nordestino, mas nós fizemos a tradução. Em certo momento, eles quiseram tocar o papagaio, mas eu não o permiti e me coloquei como o defensor dele, o que provocou uma disputa acirrada…
É preciso dizer que os mais velhos de minha família ficaram horrorizados quando verificaram que uma boa parte da visita principesca havia se dado em torno do papagaio, e a recepção, tão pomposamente calculada no que tinha relação aos menores, estava-se desenrolando, logo desde o início, na cozinha.
Então, toda a meninada, Príncipes ou não, teve de tomar juízo afinal, voltar à saleta de visitas, sentar-se e começar a conversar.
Uma Princesa de contos de fada
Eu estava encantado com aqueles pequenos Príncipes e os analisava, devorando-os com os olhos, pois eram para mim como fragmentos da Europa que admirava e, ainda mais, fragmentos da realeza, píncaro da Europa!
Chamava-me a atenção de modo especial, entre os filhos de D. Pedro de Alcântara, a superioridade de D. Pedro Gastão37 e da futura Condessa de Paris38 sobre os outros. Eram muito interessantes.
Ele era alguns anos mais novo do que eu, e já conhecia a arte de agradar. Mas quem me encantava, principalmente, era a futura Condessa de Paris, a qual tinha mais ou menos a minha idade39.
Era muito bem apresentada, graciosa e lindíssima. Uma menina ravissante40, com todo o ar de uma princesinha de contos de fada, e parecendo ela mesma uma pequena fada. Com o estilo e a classe de uma grande dama, mantinha certa distância, mas, ao mesmo tempo, mostrava uma gentileza extraordinária. Todo o aspecto dela era muito europeu, com um olhar eslavo e uma beleza principesca fora do comum.
Ainda me lembro muito bem da figura dela, sentada numa poltrona, calma e quieta, acompanhando a conversa, mas falando pouco. Tinha os cabelos literalmente dourados e, sobre estes, à maneira de chapéu, uma redezinha também dourada, para mantê-los em ordem. Aquilo me impressionou muito e não me escapou mais da memória, pois me pareceu imponentíssimo e em alto grau adequado a uma princesa.
Entretanto, notei que, dos meninos de minha família, ninguém prestava uma atenção especial nela. Quando os visitantes se retiraram, naturalmente começaram os comentários entre nós, e eu esperava que toda a meninada explodiria em elogios à pequena Princesa. Nada! Ninguém a elogiou. Então, para fazer uma experiência, eu disse:
– Que bonita a princesinha! Vocês não a acharam um encanto?
Eles responderam:
– Não!
– Mas, o que estão pensando? É um primor, uma Princesa de conto de fadas!
Percebi que os meninos e meninas não a comentavam porque, no fundo, ela possuía uma forma de beleza superior e conservadora, enquanto as irmãs dela chamavam mais a atenção por representarem o tipo convencional de mulher europeia que já começava a aparecer, e que o geral das pessoas aceitava.
E refleti: “Essa é uma das mil diferenças que me separa deles, mas eu continuarei fiel ao que sou! Vou dizer mais: nem vou contar a esses Príncipes o que eu vejo neles, pois estou vendo que eles pensam a respeito de si próprios o mesmo que os outros pensam. Entretanto, eles são meus superiores e estão nimbados por um carisma, o qual me comunica algo que o comum das pessoas não possui. E com isso eu me alegro!”
Dª Maria Pia e seus filhos no Brasil
Entre as pessoas da família imperial que vieram ao Brasil no ano de 1922, para participar das celebrações e festejos do Centenário da Independência, estava também a Princesa Maria Pia de Bourbon-Sicílias41, viúva de D. Luís42, e os filhos dela, ainda crianças. Era a primeira vez que vinham a nosso país.
Quando ela chegou ao Rio de Janeiro, o Presidente da República mandou sua esposa recebê-la a bordo do navio e dar-lhe um tratamento de protocolo, como uma princesa de casa reinante. Ela foi então hospedar-se com os filhos no Hotel Glória ou no Hotel Copacabana – não me lembro bem – onde estavam reservados para eles excelentes apartamentos, e a própria Dª Mary Pessoa43 foi novamente visitá-la, ato contínuo.
Em São Paulo, a Princesa Maria Pia se hospedou com os filhos em casa da Condessa Penteado44, uma das senhoras mais ricas da cidade naquele tempo, a qual possuía um verdadeiro palácio na Avenida Higienópolis45 e ofereceu a eles apartamentos suntuosos.
Os netos da Condessa, alguns dos quais eu conhecia, por serem meus colegas no São Luís, naturalmente brincavam com os principezinhos, pois tinham mais ou menos a mesma idade. Um deles era Caio Prado Júnior, o qual, nas horas vagas, fazia um pouco de sala para o filho mais velho da Princesa e jogava tênis com ele. Era um rapaz finíssimo, muito bem educado e com jeito de verdadeiro aristocrata, mas que veio a ser depois um dos líderes mais conhecidos e destacados do Partido Comunista no Brasil, bem como o seu principal intelectual.
Então, os membros da família imperial começaram a ser recebidos em casa de várias famílias monarquistas e, depois, eram também visitados por estas, em retribuição.
Uma verdadeira Princesa
Eu costumava prestar muita atenção em retratos de reis, príncipes e princesas que apareciam nas revistas e, inclusive, tinha um álbum no qual fazia coleção de fotografias da família imperial do Brasil, que eu recortava de jornais e revistas. Imaginava como seriam todas as famílias régias e todas as epopeias das monarquias e das aristocracias do passado, e escolhia as fotografias que me pareciam mais próximas dos contos de fadas, os quais constituíam o meu analogado primário46 em matéria de reis, príncipes e princesas, pois pensava que, se a monarquia não era parecida com um conto de fadas, não era nada…
Já tinha visto fotografias da Princesa Maria Pia e pensava: “Esta, sim, é uma Princesa como se deve ser!”
Então, certo dia ela veio visitar minha avó, minha mãe e toda a família.
Quando chegou a nossa casa, alguém me avisou e eu compareci à sala de visitas para cumprimentá-la, pensando: “Agora, resta saber se ela corresponde à ideia que eu fazia”. E, quando a vi, tive a seguinte sensação: “É isso! Encontrei!”
Era uma Princesa na força do termo.
Pareceu-me a própria expressão da grandeza, por sua beleza e seu jeito digno, fino e aristocrático, apesar de ter certo ar de desilusão da vida, no qual, entretanto, transparecia um fundo de esperança. Tinha muitíssima bondade, própria a uma pessoa que, antes de tudo, foi mãe, e me dava a impressão de ser muito católica e direita, debaixo de todos os pontos de vista. Naquele contato, afinou-se um tanto em mim certa orientação religiosa, a respeito de como deveria ser uma católica.
Minha avó e todos os que estavam em casa receberam bem a visitante, mas mamãe o fez com especial respeito e afeto, e eu percebi que a Princesa gostou muito dela.
Eu via que Dª Maria Pia não manifestava sempre o que pensava, pois as circunstâncias não o permitiam, mas, quando alguém mencionava em sua presença algo que não deveria ser tratado, notava-se o desacordo dela.
Os filhos de Dª Maria Pia
Nessa ocasião conheci também os filhos dela, o Príncipe D. Pedro Henrique47, D. Luís Gastão, o qual morreu ainda jovem48 – com fama de virtude, segundo dizem – e a Princesa Pia Maria49.
Eles brincaram conosco em casa, com muita naturalidade de parte a parte, como é próprio a uma roda de crianças, inclusive fazendo esconde-esconde no jardim. De outro lado, eu sentia da parte deles uma despreocupação total: nem lhes passava pela mente a ideia de que nós fôssemos faltar-lhes com o respeito e, se o fizéssemos, eles não o notariam.
Entretanto, havia uma enorme diferença entre o modo de nós tratarmos a eles – assim como aos filhos de D. Pedro de Alcântara – e a outros meninos de nossa idade. Basta dizer que até eu me arranjava e me vestia melhor para recebê-los, apesar de todo o meu desinteresse por meus próprios trajes, pois, para mim, ter em casa aqueles Príncipes representava algo estupendo, extraordinário, que me deixava encantadíssimo!
Eu prestava muita atenção em D. Pedro Henrique e em D. Luís Gastão. O primeiro era apenas alguns meses mais moço do que eu, que nesse tempo tinha treze anos. Ele falava muito bem o francês, mas não igualmente o português, pois fora educado no exílio, e pronunciava meu nome de modo um pouco afrancesado: Pliniú.
Lembro-me dele, vestido com roupa de veludo escuro e gola branca de renda, sentado muito comodamente. Quando lhe perguntávamos qualquer coisa, ele respondia com um sorriso e não entrava em pormenores sobre o que pensava, mas esse sorriso era tão bem-humorado e de tão bom coração que nós aceitávamos bem aquele silêncio. Além do mais, éramos uma grei, uma população de irmãos e primos muito habituados a conviver entre nós mesmos, de maneira que ele se perdia um tanto, em meio à nossa conversa debandada e contínua.
O irmão dele era mais magro, claro e louro, dado a avermelhado, e também falava pouco, dando-me a impressão de possuir um temperamento mais difícil e desconfiado.
Logo depois desse encontro, eu fui, juntamente com minha mãe e minha avó, retribuir a visita a Dª Maria Pia, no palacete da Condessa Penteado. Pela vaga recordação que eu guardo, ela e os filhos não se encontravam ali naquele momento. Nós os esperamos, em meio a outros visitantes, e, depois de algum tempo, voltamos para casa. Lembro-me de ter prestado muita atenção no ambiente, observando os abat-jours, os cristais e tudo o mais.
Presentes para os pequenos Príncipes, escolhidos por Dª Lucilia
Quando a família imperial ia embarcar para a Europa, minha irmã e eu, por sermos netos de Dª Gabriela, tivemos de acompanhar os principezinhos até a estação de trem.
E, como nós dois tínhamos mantido muito mais contato com eles do que os outros primos, papai, mamãe e os mais velhos da família entenderam que seria interessante oferecermos a cada um dos três alguma lembrança do Brasil, na hora de eles partirem.
Recordo-me da preocupação de mamãe em encontrar um presente original, que não fosse, por exemplo, algo que se pudesse encontrar em Paris, em muito melhor qualidade. Então, o que encontrar aqui, de mais interessante do que em Paris?
Naquele tempo, faziam-se no Liceu de Artes e Ofícios50 caixas de esmalte, de cristal ou de madeiras preciosas brasileiras, para guardar pequenos objetos. Estas últimas eram lindas, muito bem feitas e ornamentadas com pequenas incrustações de um cipó fininho, perfumado e decorativo, envernizado e encerado, das cores mais bonitas e variadas, fazendo grinaldas em torno da caixa e ornatos sobre a tampa. Verdadeiras joias!
Então, depois de cogitar, ela ou a Fräulein51 foram com Roseé e comigo a esse liceu, para encomendar três bonitas caixinhas de madeira. Mamãe indicou como tinham de ser os ornatos e explicou que as três caixas não podiam ser iguais, pois a que era destinada à menina tinha de ser mais delicada, enquanto as dos meninos deviam ser mais fortes. Também mandou comprar numa bonbonnière francesa o que havia de melhor em matéria de marron glacé52, pois achava que os meninos deveriam ter saudades de comer doces da França, e encheu as caixas com eles. Para mim, o marron comido em caixa de cipó parecia um símbolo interessante do seguinte: qualquer coisa, desde que seja trabalhada segundo um verdadeiro espírito seletivo, possui categoria para estar “em casa” junto com outras de maior qualidade, e tem entrada e livre curso por toda parte.
Mamãe verificou que uma das criadas de casa embrulhasse bem os presentes em papel de seda, e os amarrasse com barbante de fio dourado. E ela mesma também nos explicou, à minha irmã e a mim, como devíamos nos aproximar da janela do trem onde os Príncipes estivessem, na hora da partida, e com quais palavras deveríamos entregar-lhes as lembranças.
Entretanto, no momento de fazê-lo eu estava um tanto distraído, pensando em outras coisas, de maneira que Roseé me cutucou:
– Ofereça a caixa!
– Ah, a caixa!
E dei-a a D. Pedro Henrique, o qual a recebeu também com certa indolência. Não sei que efeito essas lembranças produziram nos principezinhos, nem se eles comeram todos os marrons naquela noite…
Assim, eu fiz muito boas relações com os filhos mais velhos das duas linhagens, D. Pedro Henrique e D. Pedro Gastão. Este último passou a vir ao Brasil frequentemente e, por isso, eu o conhecia muito mais do que o primeiro. Entretanto, D. Pedro Henrique e eu ficamos bastante amigos e ele respondeu às primeiras cartas que lhe escrevi, mas depois não o fez mais. Deixamos cair a correspondência e ele se tornou para mim apenas uma recordação, mas eu me perguntava: “Será que ele caiu na Revolução? Essa pepita de ouro terá se esfarelado na ponta dos meus dedos…?”
Uma discussão no bonde
Certo dia, bem cedo de manhã, depois que a família imperial tinha viajado, eu estava indo para o colégio, quando o bonde parou num ponto do trajeto, na esquina da Rua Maria Antônia com a Rua da Consolação, e eu vi entrar mais um aluno do São Luís. Era um menino muito vivo, mas sem grande cultura.
Ele ia ocupar um outro banco, mas, quando me viu, voltou-se para trás, veio sentar-se ao meu lado e disse:
– Plinio, como vai você?
Estranhei o cumprimento, pois o conhecia apenas de longe, uma vez que ele era uns dois anos mais velho do que eu – o que, no colégio, fazia muita diferença –, mas respondi:
– Bem, e você como está?
– Diga-me uma coisa: você andou muito com esses rapazes da família de Bragança? Eles estiveram em sua casa?
– Sim, estive com eles várias vezes. E você, também esteve com D. Pedro Henrique?
– Dom, não! Sim, brinquei com o Pedro Henrique. Esses tais Príncipes…
– “Tais”, não. Os Príncipes.
– Que Príncipes, nada!
Ele fez uma pequena pausa e me disse:
– Já estou vendo, pelo seu jeito, como você o tratou! Garanto que o chamava de Dom Pedro Henrique!
– É exatamente o que eu dizia!
Percebi que ele estava armando uma caçoada por cima de mim e pensei: “É uma boa ocasião para fazer-lhe uma provocação”. Voltei-me para ele e disse:
– A visita deles foi uma honra.
– E você também os fazia passar na sua frente, não é?
– Ah! Naturalmente!
– Isso são coisas que já acabaram!
– Vão recomeçar!
– E você também os tratava de Alteza?
– Sim, senhor! Alteza! Pois são Príncipes! Como é que eu ia chamá-los?
Ele deu uma risada de escárnio e eu lhe perguntei:
– E você, como os chamou? Tratou-os de Alteza, também?
– Eu? Nunca! Nada disso! Não os chamei de Dom, nem de Alteza, nem de nada! Tratei-os de você.
– Pois fez muito mal.
– Eu não reconheço, absolutamente, que eles sejam altezas!
– É fácil dizer isso em relação a um príncipe deposto. Mas, se ele estivesse no trono, você o trataria de Alteza, não é?
– Não me amole!
– Amolo, sim, pois essa é a lógica.
– Eu acho que é uma falta de brio chamar esses Príncipes de Alteza!
– Isso é com você. Trate-os como entender, e eu os trato como o meu dever me manda.
Naquele tempo, era muito malvisto um menino que tratasse um outro de Vossa Alteza, pois creio que nem na Europa existia esse costume. Então, esse meu colega seguia o modelo bem visto, enquanto eu seguia o modelo inconformista. Ele se julgava um herói por negar a D. Pedro Henrique o título que ninguém lhe atribuía entre os meninos, e eu me sentia engrandecido por fazer o contrário, de modo entusiasmado e respeitoso. Então, ele continuou:
– Pois fique sabendo: eles não são mais do que ninguém! Eu os considero iguais a mim, pois não tolero que ninguém seja mais do que eu!
Diga-se entre parênteses que a família dele era muito mais rica do que a minha; dez mil vezes mais. Ele tinha uma vida de luxo, enquanto eu levava uma existência apenas confortável, mas se sentia irritado, por ver que alguém podia ser mais do que ele. Então eu disse:
– Não estou de acordo! Você está muito enganado e, eu, pelo contrário, acho natural que uma pessoa seja superior. Sustento que os Príncipes são mais do que nós, e a eles devemos respeito e amor, com alegria, exatamente porque são superiores a mim e a você também!
– Não, absolutamente!
Éramos dois meninotes, e discutimos tão fortemente a esse respeito, que depois nos calamos para evitar uma briga… Passamos o resto do trajeto – o qual não era pequeno – conversando sobre banalidades ou permanecendo quietos. E, quando o bonde parou em frente ao Colégio São Luís, descemos e cada um foi para o seu lado, sem falar um com o outro.
Eu o havia enfrentado de modo tão combativo, que ele nunca mais ousou me dizer nada, e não conversamos mais na vida. Acabou sendo que ele e eu tomamos caminhos muito diferentes, e nossas vidas se separaram em rumos diametralmente opostos.
1 Clóvis (466-511), Rei dos Francos. Da linhagem merovíngia, foi o primeiro Rei bárbaro convertido ao Catolicismo, pela influência de sua esposa Santa Clotilde e do Bispo de Reims, São Remígio.
2 No início do século XX, a noção de Cristandade ainda era muito viva nos meios católicos, por diversos fatores. As recordações de Dr. Plinio refletem a mentalidade de seu tempo. Com a secularização da sociedade tal conceito perdeu sua força, sendo hoje quase uma reminiscência histórica.
3 Alberto I (1875-1934), Rei dos Belgas.
4 Em francês: “Rei cavaleiro”.
5 Epitácio Lindolfo da Silva Pessoa (1865-1942) foi Presidente da República do Brasil de 28 de julho de 1919 a 15 de novembro de 1922.
6 Elisabeth Gabriele in Bayern (1876-1965), filha de Carlos Teodoro, Duque da Baviera, casou-se em 1900 com Alberto, futuro Rei dos Belgas.
7 Em maio de 1919, o futuro Presidente da República, chefiando a delegação brasileira junto à Conferência de Paz de Versailles, foi à Bélgica e convidou o Rei Alberto I para visitar o Brasil.
8 O Rei Alberto e a Rainha Elisabeth viajaram a bordo do couraçado São Paulo, da Marinha de Guerra Brasileira, chegando ao Brasil em outubro de 1920.
9 A Estação da Luz. Os automóveis vinham pela Alameda Glete na direção do centro da cidade e, portanto, ao virarem à direita na Alameda Barão de Limeira, com destino à Chácara do Carvalho, foram vistos por Plinio de frente e pelo lado esquerdo.
10 Washington Luís Pereira de Sousa.
11 A Condessa Ghislaine de Riquet Caraman-Chimay (1876-1965).
12 Era filha do Príncipe de Chimay, portador do mais antigo título de nobreza da Bélgica, e da Princesa de Chimay, descendente da família Montesquiou Fezensac, uma das mais nobres e antigas da França.
13 Em latim: a unicidade, o bom, o verdadeiro e o belo, temas muito frequentes nas conversas de Dr. Plinio. Afirmava ele a existência de certos sensos na alma humana, os quais se satisfazem na procura instintiva desses quatro transcendentais na criação.
14 Antônio da Silva Prado (1840-1929), filho de Dª Veridiana Prado, advogado e político brasileiro, Prefeito de São Paulo entre 1899 e 1911.
15 A Chácara do Carvalho era uma das mais importantes mansões de São Paulo, no Bairro dos Campos Elíseos.
16 Antiga carruagem de quatro rodas. O termo provém da cidade do mesmo nome, na Renânia (Alemanha).
17 Em francês, literalmente: enraivecida. Expressão utilizada para designar uma pessoa partidária de certa ideia, de modo convicto e irredutível.
18 Augusto e Américo Ribeiro dos Santos.
19 Cf. Volume I desta coleção, p. 173 ss.
20 Filha do último Imperador do Brasil, D. Pedro II, e da Imperatriz Dª Teresa Cristina.
21 Expressão antiga para designar a festa de Ano Novo.
22 Bairro de Paris onde residia a Princesa Isabel.
23 Dr. Gabriel Ribeiro dos Santos.
24 Em francês: um sábio distinto.
25 João Alfredo Corrêa de Oliveira (1835-1919), Conselheiro do Império, que assinou o decreto de libertação dos escravos (1888), juntamente com a Princesa Isabel.
26 A República foi proclamada no Brasil no dia 15 de novembro de 1889.
27 O banimento da família imperial foi revogado pelo Decreto n° 4.120, de 3 de setembro de 1920.
28 D. Pedro II faleceu em 1891.
29 No dia 8 de janeiro de 1921 chegaram ao Rio de Janeiro os despojos dos Imperadores do Brasil.
30 O Príncipe D. Gastão de Orléans, Conde d’Eu (1842-1922), esposo da Princesa Isabel.
31 D. Pedro de Alcântara de Orléans e Bragança (1875-1940), filho primogênito da Princesa Isabel e do Conde d’Eu.
32 D. Pedro de Alcântara esteve no Brasil pela primeira vez após o exílio, de janeiro a fevereiro de 1921.
33 A Princesa Isabel faleceu em 14 de novembro de 1921.
34 Samaria era a empregada que exercia a função de governanta dos demais criados, em casa de Dª Gabriela. Cf. Volume I desta coleção, p. 330.
35 Dª Elisabeth Maria Adelheid, Condessa de Dobrzensky, na atual República Tcheca (1875-1951).
36 Em francês: muito bem comportados.
37 D. Pedro Gastão de Orléans e Bragança (1913-2007).
38 Dª Isabel de Orléans e Bragança (1911-2003), filha primogênita de D. Pedro de Alcântara e de Dª Elisabeth de Dobrzensky, e futura Condessa de Paris, por casamento.
39 A pequena Isabel devia ter então onze anos.
40 Em francês: encantadora.
41 Dª Maria da Graça Pia de Bourbon-Duas Sicílias (1878-1973).
42 D. Luís Maria Filipe de Orléans e Bragança (1878-1920), filho da Princesa Isabel e do Conde d’Eu, já havia falecido quando foi revogado o banimento da família imperial.
43 Dª Maria da Conceição Manso Sayão, esposa do Presidente da República Epitácio Pessoa.
44 Anna Paulina de Lacerda, Condessa Álvares Penteado (1862-1938), filha dos Barões de Araras e casada com Antônio Álvares Leite Penteado, o qual recebeu do Papa São Pio X o título de Conde, em 1909.
45 O palacete dos Condes, conhecido como Vila Penteado, ocupava o quarteirão delimitado pela Avenida Higienópolis e pelas Ruas Itambé, Maranhão e Sabará, no Bairro de Higienópolis.
46 Em suas conversas, Dr. Plinio utilizava com frequência a expressão “analogado primário” – de uso corrente na filosofia escolástica – no sentido de um padrão ideal ou modelo perfeito em determinada ordem de seres, em relação ao qual os inferiores se assemelhariam, na medida em que tendessem à perfeição.
47 D. Pedro Henrique de Orléans e Bragança (1909-1981).
48 D. Luís Gastão de Orléans e Bragança (1911-1931).
49 Dª Pia Maria de Orléans e Bragança (1913-2000).
50 Localizado na Avenida Tiradentes, no Bairro da Luz, onde se encontra atualmente a Pinacoteca do Estado.
51 Trata-se da Fräulein von Ziegler.
52 Em francês: castanhas açucaradas.
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