1931 – janeiro e agosto
“O Legionário”, nº 72, 11/1/1931, p. 2
Os padres e o casamento [I]
Entre os inúmeros e eternamente infrutíferos ataques dirigidos à Igreja Católica, os mais violentos, os mais arrebatados e mais declaradamente contrários ao Cristianismo nem sempre são os mais maldosos, nem os mais perniciosos.
Quanto mais o mundo desliza pela rampa terrível da sensualidade e do desregramento total das paixões, quanto mais os homens se libertam das leis santas da moral, para se escravizarem ao jugo pesadíssimo dos vícios, tanto mais fascina o olhar humano, desiludido por tantas desgraças e tantas esperanças desenganadas, o brilho inconfundível da imaculada pureza da Igreja.
Em vão o jato lodoso dos sofismas se tem arremessado contra Ela, em vão têm investido contra sua estrutura o furor cego de todos os ódios criminosos, de todos os caprichos insensatos. Sempre altiva, sempre invencível, a Igreja vai assistindo à morte de todos os adversários que pretendiam matá-la, a Ela!
Como ocultar, então, ao olhar humano, esta luz que aponta aos homens os males em que se debatem, com a mesma nitidez com que o farol aponta ao nauta o escolho em que poderá naufragar? Como privar a humanidade deste último e supremo recurso para sua salvação temporal e espiritual? Verificada a inutilidade do esforço das ondas que se quebram contra a impassibilidade e solidez do farol; verificada a inutilidade dos esforços dos ventos, que se conjuram para extinguir o foco luminoso que sempre continua a brilhar, a neblina, a traiçoeira neblina, aparentemente tão inofensiva, se insinua lentamente na atmosfera, e consegue em silêncio, quase imperceptivelmente, o que nem o embate das ondas encapeladas, nem o furor dos ventos, que gemem por não prostrar a torre, conseguiram: interpõe-se entre o foco e o nauta, ao qual corta quase por completo a possibilidade de se utilizar da luz.
O efeito do insulto que não se diz, mas que se insinua, da calúnia que [não] se arremessa ao contendor, mas que se embebe silenciosamente no espírito público, de uma tolerância aparente, que é a caricatura da justiça, são como a neblina, que vence imperceptível e brandamente onde os elementos revoltados, em luta declarada, fracassaram deploravelmente.
[Autor de romances imorais parece advogar a abolição do celibato eclesiástico]
Isto tudo nos veio ao espírito quando vimos, publicado no “Estado de S. Paulo”, um artigo assinado por Pierre Mille, e intitulado Os Padres e o Casamento.
Tanto para nós quanto para o público em geral, o Sr. Pierre Mille não é conhecido senão através dos artigos que habitualmente publica no “Estado”.
Ao ler seu último artigo, veio-me ao espírito uma questão: quem será o Sr. Mille?§ Algum moralista pundonoroso que, escandalizado pelos desmandos de alguns sacerdotes, parece advogar a abolição do celibato eclesiástico? Alguma vestal da literatura moderna, a manter com suas mãos puríssimas sempre aceso o fogo sagrado da moralidade pública?
Não, informa-nos cruelmente um pequeno dicionário bibliográfico. Não, trata-se apenas de um autor de diversos romances reputados imorais, sobre cujo valor literário, aliás, o dicionário mantém muitas reservas…
[À espera de informações seguras sobre os casos alegados, não faltam elementos para refutação]
Não quero entrar na discussão dos fatos citados pelo Sr. Mille. Não disponho, para isto, dos elementos necessários, porquanto não tenho fontes seguras junto às quais me informar com absoluta certeza. Alguns sacerdotes franceses aqui residentes disseram-me que conheceram de nome os padres Gratry e Pereyve. Do primeiro, disseram-me que, salvo engano, havia até um processo de beatificação no Vaticano, o que faz supor, é claro, que os fatos apontados pelo Sr. Mille são inexatos. Quanto ao segundo, trata-se de um sacerdote de grande valor intelectual, sobre cuja moralidade os padres com que me informei nada sabiam de mau.
São, no entanto, informações pouco seguras, porque nenhum dos informantes deu-me certeza a respeito do que declarava.
Quanto aos outros dois padres mencionados pelo Sr. Mille, nem de nome os conheceram meus informantes.
Repito, portanto, que não discuto os fatos, não porque os tenha como provados e indiscutíveis, mas sim porque me faltam elementos para uma discussão.
O que critico principalmente no artigo do Sr. Mille é que: 1º) tratando de um assunto como “os padres e o amor”, e reproduzindo um escritor que ↓1 qualifica de respeitoso, ele só trata dos delitos de amor dos padres, e não faz a menor referência ao número imenso de padres que não cometem semelhante delito, e antes pelo contrário, edificam o mundo com sua virtude; 2º) tratando dos delitos de amor dos padres, fá-lo de tal modo que quase os justifica; 3º) cita a respeito do celibato eclesiástico na América Latina fatos inverídicos, e a respeito do Oriente fatos confusamente relatados que, por isto mesmo, podem originar opiniões desfavoráveis à Igreja.
[É deslealdade criticar as infrações de alguns indivíduos e não mencionar a maioria que cumpre seu dever]
Nada de mais justo do que a primeira de minhas queixas. Efetivamente, uma pessoa que, ao se referir a um dever de uma classe numerosa como a classe sacerdotal, cita somente as infrações cometidas a esse dever, sem fazer uma única ressalva em abono dos inúmeros indivíduos que o desempenham magistralmente, pratica uma deslealdade.
Que diriam os leitores se, referindo-se alguém ao segredo profissional que os médicos são obrigados a guardar, mencionasse somente os lastimáveis e poucos casos que há, de violação do segredo?
Dir-me-iam que era uma deslealdade iníqua.
Pois bem, o mesmo digo eu do Sr. Mille.
[Tentativa de justificação dos delitos alegados]
Não menos procedente é a segunda queixa. Efetivamente, dos quatro sacerdotes, aquele a quem ele mais justifica foi exatamente quem levou mais longe sua aberração. É o que se casou civilmente, fazendo questão de que constasse do registro civil sua qualidade de sacerdote católico. É o escândalo voluntário, depois do crime; é a prova da inexistência de qualquer remorso, do inteiro naufrágio das virtudes sacerdotais. É o insulto ao sacerdócio que abraçara, a ruptura brutal com o passado santo. É Satanás, depois de Deus.
Os outros, apresentados apenas como vítimas do draconianismo da Igreja, não são colocados na qualidade de infelizes renegados, dignos de compaixão e de desprezo, mas sim de homens de bem que satisfizeram aspirações inocentes.
[É absolutamente falso que os sacerdotes na América Latina têm permissão para se casar]
Vem, por fim, a última de minhas críticas. O Sr. Mille afirma que, na América Latina, é permitido aos padres o casamento. Não hesito em responder categoricamente: é falso. Desafio o Sr. Mille a citar com exatidão o decreto de 1900 que autorizou tal situação para os sacerdotes na América Latina, e em que termos está contida tal autorização.
Quanto ao Oriente, o que se deu foi o seguinte: efetivamente, alguns padres de certos ritos orientais, que regressaram à unidade católica reconhecendo todos os pontos da Fé e sujeitando-se à autoridade papal, impuseram a condição de conservar seus ritos, isto é, de celebrar suas cerimônias religiosas com solenidades e ritual diferente, bem como o de se ordenarem depois de casados.§
Note-se a restrição: o sacerdote solteiro, uma vez ordenado, não pode mais contrair matrimônio. Mas uma pessoa casada pode ordenar-se depois de ter fundado família. Como nota o próprio Sr. Mille, há aí uma questão de disciplina, em que a Igreja transigiu com alguns orientais para evitar uma ruptura, como transigem todos os bons pais nas questões onde a tolerância justa e não contrária à moral lhes pode conservar o afeto dos filhos. Mas esta autorização não é “para os sacerdotes do Oriente”, em geral, mas só para os sacerdotes de alguns ritos orientais, pouco numerosos, e dos quais só podem fazer parte os que já nasceram na região onde o rito é permitido.
Finalmente, mais uma circunstância: estranho que o “Estado de S. Paulo” – jornal que se mostra tão curioso de assuntos religiosos, que chega a publicar amplas notícias sobre a fundação de sinagogas e o movimento religioso hebraico em geral, sendo que se trata de um culto quase sem adeptos entre nós, jornal portanto que não é indiferente ao problema religioso, e que seria de se supor que tivesse pelo Catolicismo um interesse ainda maior que pelo hebraísmo, ao qual tanto se dedica – permita que, através de suas colunas, se procure atestar um fato tão notória e escandalosamente [falso].
Não quero supor que o “Estado” ignore que nossos sacerdotes católicos estão, na América Latina, proibidos de se casar… se até um rabino qualquer sabe disto.
[O bafo da calúnia sopra sobre a Igreja, para lhe empanar o brilho]
Finalmente, uma observação: por que buscar na calúnia e na maldade armas com que combater a Igreja?
É porque não podendo [nossos adversários], apoiados na ciência, quebrar este brilhante fulgurantíssimo, que é a Igreja Católica, o bafo quente e destruidor da calúnia tenta, com perversidade, soprar sobre Ela, para lhe empanar o brilho.
Plinio Corrêa de Oliveira
Nota – Depois de concluído nosso artigo, soubemos que devem chegar em breve, da França, pedidos por um sacerdote, esclarecimentos relativos aos quatro padres de que falou o Sr. Mille. Segundo tudo indica, de dois deles, “ao menos”, só constam atos de virtude, sendo que oportunamente daremos aos leitores as provas do que afirmamos.
Discurso pronunciado na inauguração dos trabalhos
da Academia Jackson de Figueiredo, em 11/1/1931,
e publicado no “Legionário” nº 88, de 11/10/1931, p. 2
O apostolado2
Senhores Acadêmicos
Senhores Candidatos
I – [Nossa tarefa e nossos deveres nos impõem árduos sacrifícios]
Na minha qualidade de Diretor do Departamento de Estudos da Congregação Mariana de Santa Cecília, compete-me presidir aos destinos desta Academia, durante o ano de 1931.
É a mim, pois, que cabe inaugurar os trabalhos da Academia, dirigindo-vos algumas palavras a respeito da tarefa que temos diante de nós, e dos deveres em virtude dos quais nos propomos de a desempenhar, por mais que sejam árduos os sacrifícios que ela nos impõe.
II – [Uma pequena chama de amor de Deus pode atear no mundo um imenso abrasamento de amor pelo bem]
Se falasse, senhores, em um círculo de estudos composto por elementos intelectualmente heterogêneos, se me dirigisse a um auditório não iluminado pelo farol da Fé, ver-me-ia na contingência de vos dirigir as palavras de saudação banais, as promessas sedutoras e enganadoras das plataformas que não se cumprem, a miragem de uma tarefa fácil a desempenhar, a promessa de reduzir ao minimum os esforços, e elevar ao maximum os frutos.
Não é esta, porém, senhores, minha situação perante um auditório que sabe o que é sacrifício, que compreende o que é dever.
Não nos diz o Cristianismo que todos os nossos esforços são inúteis, mas sim que, do mesmo modo por que uma pequena chama pode atear um imenso incêndio, uma pequena dose de amor de Deus pode atear no mundo um grande, imenso abrasamento de amor pelo bem.
E, como se não bastassem estas afirmações, vem o recurso da graça e da oração, que faz de nós até participantes da onipotência divina! De párias que éramos no paganismo, o Cristianismo nos eleva a príncipes e a gigantes! Que magnífica vida, que estupendo destino.
Vemos, senhores, que importância, que mar de felicidades representa para um homem o ser cristão. § E em que estupenda época a Divina Providência nos fez nascer! Por toda a parte ouvimos rufos de tambor e toques de clarim, a chamar os combatentes para a grande luta que se vai travar. Por toda a parte já se engajam as primeiras escaramuças entre as duas imensas3 hostes do bem e do mal. E as do bem, pequenas, disciplinadas e aguerridas, reeditarão a vitória das Termópilas, em que poucos gregos venceram uma avalanche persa.
Mas, para isto, é preciso que compreendamos que, longe de sermos como os pagãos, não devemos fugir ao sacrifício. O paganismo é a caça ao prazer, no fundo do qual só há sacrifício. O Cristianismo é a caça do sacrifício, no fundo do qual há prazer. § Mas com a admiração cheia de gratidão e unção religiosa de quem contempla um firmamento fulgurante, inundado de raios de sol que cortam o azul do espaço, e despejam sobre o mundo oceanos de luz e de paz.
[Na concepção cristã, cada homem se encaixa num conjunto ordenado de seres]
Para tratar de um assunto como este, Senhores, verificamos a impotência do pincel de nossas palavras, para reproduzir a beleza do que nossa mente percebe. Como os pintores antigos, que pintavam de joelhos, rezando, suas madonas tão cheias de unção angelical, assim também, só de alma e corpo genuflexos, o pensador católico olha para estas grandes belezas, pedindo ao Senhor que dê alguma força à sua palavra inerte, alguma vida à frieza tumular de suas frases, para descrever a maravilha de suas obras.
Assim como o que distingue a noção de casa da de um monte de tijolos, é que a casa é o monte de tijolos dispostos com ordem, tendo em vista o fim da habitação, assim também o que distingue o mundo cristão do mundo pagão, é que este é, aos olhos de seus sequazes, um monturo de criaturas, e aquele, o cristão, é, para seus crentes, um conjunto admiravelmente ordenado de seres, com o fim determinado da eterna felicidade.
Enquanto na concepção pagã do mundo somos apenas um pó miserável, perdido na imensidade, na concepção cristã somos uma das partes de um maquinismo quase perfeito, onde cada peça tem sua função, cada elemento seu valor.
A inauguração de nossos trabalhos não deve ser, portanto, Senhores, a Cápua lasciva em que os cartagineses se preparavam para levar a Roma seu último golpe, mas a vigília austera do cavaleiro medieval, que passava a noite inteira na capela a orar, a pedir ao Senhor que lhe desse as forças necessárias para enfrentar os perigos que sua missão lhe traria.
Ergamos nossas preces ao Céu, para que nos tornemos fortes perante os inimigos, e olhemos com serenidade o campo em que teremos de lutar.
III – [A perplexidade do homem diante dos mistérios do imensamente grande e do imensamente pequeno]
Uma das mais consoladoras revelações que o Cristianismo veio trazer ao mundo foi a noção exata do homem no universo, na natureza, na humanidade.
O que é o homem, naturalmente falando, no conjunto das coisas? O globo terrestre é dos menores astros da abóbada celeste. Por toda a parte, vê-se ele imerso em um conjunto de outros astros, de outros sistemas, que constituem como que um manto de mistério, a desafiar nossa argúcia.
Mais próximo de nós está toda a larga escala de criaturas animadas e inanimadas, racionais e irracionais que nos cercam. E depois de ter nossa inteligência fracassado no exame dos insondáveis abismos que separam os astros, depois de ter nossa imaginação verificado a impossibilidade sequer de representar a imensidão que de toda a parte nos cerca, vai o homem sentir sua deprimente impotência no estudo dos seres pequenos, nos problemas insolúveis que desperta em nós a vida de uma simples célula, sua incapacidade completa em decifrar as origens da vida nos seres ainda os mais elementares em sua estrutura e organização.
Depois de nos sentirmos como que aniquilados diante do imensamente grande, tropeçamos nos obstáculos intransponíveis do imensamente pequeno.
Tão misterioso é o astro que cintila no céu, quanto o verme que rasteja no pó.
IV – [Problemas de nossa existência animal e de nossa vida intelectual]
E se os mistérios que [se] divisam no mundo dos seres inanimados e irracionais são tão grandes, que dizer das trevas que cercam nossa razão no estudo dos seres dotados de inteligência?
Não só os problemas os mais cruciantes de nossa existência animal nos são desconhecidos, como também as questões as mais dolorosas de nossa vida intelectual.
V – [A desilusão do paganismo ante o espectro da dor]
E, efetivamente, Senhores, desde os seus primeiros instantes, vê o homem erguer-se diante de si o espectro da dor.
Não há escritor, por mais profundo ou por mais banal, que não tenha descrito, entre atônito e temeroso, o terrível combate entre o homem e a dor. A existência humana nada mais é do que uma luta entre o homem e a dor. Luta trágica, luta terrível, em que a dor sempre vence o homem.
Lutando com o polvo do sofrimento, mal consegue o homem desenvencilhar-se de um dos tentáculos que o oprimiam, logo outro se apodera dele, infligindo-lhe as mais dolorosas contorções.
Muito conhecido é o vulto mitológico que, condenado pelos deuses a viver com sede, via subir até seus beiços as águas de que estava rodeado. Mas mal ia beber um gole apenas, que lhe refrescasse a boca ressequida pela sede, o nível das águas descia, e ele ficava impossibilitado de beber.
Era, seguramente, um mito inventado pelo paganismo desiludido, que mal via aproximar-se de si o fantasma da felicidade, este se afastava, deixando apenas a ferida incandescente de uma dolorosa desilusão.
A banalidade é uma espécie de consagração. As figuras e as imagens, quando se tornam banais, recebem a consagração que lhes presta este conjunto anônimo de inteligências que se chama senso comum.
Por isso, julgo-me no direito de lançar mão de uma figura tão usada, que já é de domínio comum: os prazeres pagãos são como as praias de areias movediças. Na atraente beleza de sua alvura sem nódoas, são como que um convite mudo para o infeliz que ousa pisar sobre ela. Mas o solo se abre a seus pés e, sem ponto de apoio, ele está irremissivelmente perdido. § Dentro em pouco, o indivíduo está inteiramente sepultado, e a superfície da areia se unifica e recompõe, a sorrir alva e maldosamente para outro incauto.
Os prazeres são para o homem o que a água do mar é para o náufrago sedento: quanto mais bebe, mais tem sede. E à força de beber… morrerá de sede.
Quem no-lo diz não são austeros heróis de mortificação cristã, são desiludidos das agruras do paganismo.
Se quisermos colher no velho paganismo romano uma prova disto, teremos Petrônio, o elegante sibarita, que depois de gozar de todos os prazeres do corpo e do espírito, suicidou-se ainda jovem, rico, belo e saudável… porque não valia a pena viver.
E Anatole France, o grande corifeu do ultrapaganismo moderno, já no declínio de sua vida, depois de ter esquadrinhado com o compasso poderoso de sua inteligência todas as ciências, dizia em um livro: “Rien n’explique la tragique absurdité de vivre.”4
E, afinal, o que é este espectro da dor, de que tanto fugiam os pagãos, e que tanto os perseguia?
VI – [Falta à humanidade hodierna a luz da verdadeira Fé]
Eis-nos chegados aos alicerces do Cristianismo, eis-nos em face das questões básicas que a filosofia pagã encarou como um tenebroso antro ↓, e a filosofia cristã admirou como quem depara, não com dificuldades impenetráveis, grutas negras de pensamento onde nem os incautos se atrevem ↓5 [a] penetrar.
A humanidade hodierna se contorce por falta da luz dos verdadeiros princípios do verdadeiro Deus. O desencadeamento das paixões precipitou a humanidade sobre a areia movediça dos prazeres, e milhares e milhares de homens arrastam hoje, como a uma cadeia pesada, a grinalda de rosas de suas vidas de festim. Os lares são dissolvidos, o amor casto dos esposos bruxuleia como luz prestes a se apagar. Os suicídios e as moléstias oriundas dos vícios roubam diariamente, a milhares de mães, milhões de filhos. A mulher, tornando-se hiena, não quer mais sentir amor materno, e entrega-se de corpo e alma à infernal bestialidade pagã. §
Os chefes de família são os leaders do escândalo em suas casas. Os Estados, combalidos, vacilam sobre suas bases, e ameaçam esmagar com o peso de sua queda povos e povos. Ao pudor se opõe a luxúria infrene. À honestidade, se substitui a mais torpe ganância. Ao amor se substitui o egoísmo, e à solidariedade se substitui o individualismo. A mulher passa a um simples instrumento de prazer. E o comunismo, enfeixando estas infâmias, pretende aglomerá-las em sistema, com os laços frágeis dos mais evidentes sofismas.
[Se amamos o próximo, demos-lhe a Fé, nosso maior tesouro]
Temos uma Fé. Temos também um coração. Se queremos ver cessar esse estado de coisas, saibamos sujeitar-nos ao sofrimento, que exige de nós o apostolado. Tirarmos ao Cristianismo o sofrimento é tirar ↓6 a um corpo a espinha dorsal.
Nosso Deus, coroado de espinhos, não indica que a realeza de Deus é a realeza da dor? Aceitemos o sofrimento; o sofrimento por toda a sorte de humilhações; o sofrimento por toda a sorte de vantagens de que desistimos; o sofrimento pelo esforço infatigável pelo bem; o sofrimento pela abnegação que não conhece limites. Privar o Cristianismo do sofrimento é injuriar a Cristo, que quis que fosse de espinhos sua coroa; ser católico e ter medo de sofrer por Deus é fazer deste um mero banqueiro, que nos fornece prazer ao sabor de nossos caprichos, ou lacaio a quem se encomenda felicidade, como se lhe pede um copo de água. É amizade o ter medo de sofrer por um amigo? Não. Logo, não é Cristianismo o ter medo de nos sacrificarmos por Jesus, nosso maior amigo. Não cometamos a atrocidade de abandonar Jesus no Calvário. Não demos a bofetada de um pecado no rosto que Ele nos apresenta chagado por amor de nós. Não sejamos atrozes, não sejamos hienas, sejamos mites et humiles corde7 como Ele.
Tudo isso evidencia a necessidade do apostolado. Se amamos a Deus sobre todas as coisas, imolemo-nos por Ele. Se amamos ao próximo como a nós mesmos, demos-lhe a Fé, nosso maior tesouro.
***
“O Legionário”, nº 73, 25/1/1931, p. 1
Às armas
Quero comentar hoje o excelente artigo que o Sr. Michel d’Arnoux publica hoje no “Legionário”.
Quando uma região é cortada por um rio caudaloso, costumam os agricultores fazer pequenas derivações que levem as águas fertilizantes a regiões que, de áridas que eram, se tornarão férteis e cheias de vida.
Assim também, quando ouvimos a doutrina cristã, este rio caudalosíssimo, cujas águas são suficientes para tornar férteis de virtudes e cheias de vida as almas mais áridas, devemos fazer pequenas derivações que conduzam as águas dos princípios ao terreno prático das conseqüências particulares.
O congregado Michel d’Arnoux, com o talento que lhe é peculiar, publica hoje um artigo excelente sobre As três ordens de caridade. E aproveita a oportunidade para nos lembrar que teremos que prestar contas ao terrível Dominus Deus Sabaoth8, dos talentos que não empregarmos na caridade ao próximo. É daí que pretendo tirar uma modesta derivação que, como delgado filete de água, deverá regar e tornar cheia de frutos a vida prática do católico.
[Louva-se a caridade material e censura-se a espiritual]
Hoje em dia, uma das manifestações mais deploráveis do crasso materialismo que por toda parte vemos reinar, é que não só a virtude se acha completamente abolida em muitos corações, mas também truncada, mutilada, caricaturada em muitos outros que, no entanto, se reputam muito bons.
Por toda parte vemos imperar o terrível corrosivo que é o individualismo. Por toda parte assistimos ao triunfo brutal da carne sobre os sentimentos nobres. Por toda parte, enfim, a vitória da matéria sobre o espírito, da paixão sobre a razão, do mal sobre o bem.
No entanto, é-nos grato constatar que ainda existe o fogo da caridade, [que ele] ainda crepita em muitos corações bem formados.
Mas nas próprias pessoas nas quais o egoísmo ainda não é soberano absoluto foi tão difícil escapar ao contágio do ambiente, que a caridade se acha como que deteriorada por uma certa infiltração de materialismo: compreende-se, pratica-se e louva-se a caridade feita em benefício do corpo. Foge-se, censura-se, condena-se a caridade feita em benefício do espírito. É uma espécie de filantropia materialista, que vê no corpo o fim último do homem, e no espírito apenas um acessório destinado a registrar benevolamente as delícias de que o corpo deve gozar.
[O Episcopado e o Clero: pastores de almas e não do corpo]
Uma ótima ocasião para reagirmos contra esse estado de coisas se nos apresenta agora, com as reivindicações feitas pelos elementos católicos os mais representativos, com relação à vida política do povo brasileiro.
Se se tratasse de fundar um grande hospital onde recolher doentes de toda a espécie, que entusiasmo não despertaria a atitude do Episcopado paulista, a reunir-se para tratar do alívio dos corpos! Quantas e quantas mãos generosas não se abririam para concorrer com um óbolo em benefício dos doentes do corpo! De que glória e de que auréola de santidade não se cercariam eles se tomassem uma atitude de meros pastores do corpo!!
No entanto, não foi essa a missão de que os incumbiu o Divino Mestre. O Episcopado, e em geral o Clero, não são uma falange de pastores do corpo, mas sim de pastores de almas. Não é para salvar a matéria, que cedo ou tarde perecerá, que o Messias veio ao mundo. Não é para alívio dos corpos que a Igreja foi constituída: “Ide e pregai a todos os povos.”9 A grande caridade é portanto a pregação, e não é a caridade do corpo, a caridade da matéria.
[Move-se a Igreja, movem-se seus inimigos]
Move-se agora a Igreja. Reivindica, reclama garantias que lhe permitam exercer com mais eficiência o seu pastoreio de almas.
Movem-se, também, os maçons disfarçados, que querem fazer ao Brasil o presente de um cavalo de Tróia – o laicismo – que traz em seu bojo o comunismo, a imoralidade, a dissolução dos costumes, o impatriotismo.
Movem-se os protestantes (sucursal da Maçonaria para serviços secundários), que afirmam cinicamente que a Igreja Católica não é nacional. Que brasileira é apenas uma certa Igreja Independente do Brasil, seguramente governada em Washington e amamentada com o leite nutritivo do ouro norte-americano.
Movem-se os comunistas, acobertados pela proteção covarde de elementos que não ousam manifestar-se ostensivamente, como certos leprosos que escondem sua enfermidade porque sabem que a simples vista de suas chagas afugentará seus companheiros.
É necessário que nós, católicos, nos lembremos mais do que nunca da caridade do espírito. Que preguemos, que discutamos, que propaguemos por toda parte as idéias salutares das quais depende o sucesso de nossa causa, o sucesso do Brasil.
É um sacrifício que a Igreja tem o direito de exigir de nós, é um serviço que nós temos o dever de lhe prestar.
[Quem não é apóstolo é apóstata]
Para terminar estas rápidas considerações, cabe-me somente reproduzir uma expressão cara ao nosso Dr. Paulo Sawaya: nos tempos de hoje, quem não é apóstolo é apóstata.
Se tivermos sempre em vista estas considerações, se soubermos cumprir com um de nossos maiores deveres no momento, a Igreja vencerá. E assim como os tanques que, durante a guerra, esmagavam indiferentes os maiores obstáculos, a Igreja se sobreporá a todos os seus inimigos com a serenidade majestosa de quem, há perto de dois milênios, está habituada a lutar com pigmeus.
Plinio Corrêa de Oliveira
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“O Legionário”, nº 74, 8/2/1931, p. 1
Nossas reivindicações políticas
Pilatos passou à História, indelevelmente marcado pelo ferro em brasa da censura dos Evangelistas, como o tipo característico do homem que não é cruel, por medo da crueldade, não é assassino, por indolência, e não é feroz, por inércia. Escravo da preguiça e do medo, cede a todas as infâmias, submete-se a todas as baixezas, pela força de inércia que é como que a base de sua mentalidade. E a mesma indolência que o preserva dos acessos coléricos de um Nero, atira-o às traições vis de um Judas, ou às transigências abomináveis de um ser indigno do nome de homem, de uma alma indigna da própria carne que ela vivifica.
[Não seremos outros tantos Pilatos?]
Qual foi o crime de Pilatos? Foi o de ter sido fraco. Não foi ele autor de uma condenação categórica, como a de Herodes. Mas sua culpa nem por isso foi menor. Porque o pecado não está somente em não atacar a Jesus. Está também em não O defender. Está também em não ter a coragem de O preservar, de O resguardar contra o ódio das multidões. Está na covardia de não lutar.
Descendo agora ao terreno de nossas consciências, este terreno onde somente dois olhares penetram, o de Deus e o nosso, perguntemo-nos desassombradamente: não seremos nós outros tantos Pilatos?
Confessar, comungar, pedir a Deus inúmeras graças, na sua maioria temporais, dinheiro, saúde, felicidade, e também um pouco de virtude, como uma gorjeta que se faz a Deus, isto tudo não é possuir na sua plenitude o espírito cristão, todo feito de luta e de sacrifício.
Ser cristão não é só ser um crente, é ser também um soldado. É saber descer à arena da luta de opiniões, ostentando com firmeza nossos princípios. É não ter medo de adquirir inimizades, se for necessário. É não ter medo de atrair sobre si antipatias. É, em suma, sacrificar-se.
[A Igreja espera que cada um cumpra seu dever]
A Igreja reivindica, no atual momento, diversas garantias que lhe facilitarão o desempenho de sua divina missão. Todos os católicos têm a obrigação de lutar incessantemente por estas reivindicações. E o católico que se mergulhar na deliciosa inércia de quem, muito humildemente, pergunta “quem sou eu, que posso eu fazer, se sou um mero particular, sem posição de destaque que me permita exercer uma ação eficiente?”, que se lembre de que, se todos os católicos brasileiros, em suas conversas, em suas discussões, em toda a sua vida, enfim, soubessem reivindicar os direitos da Igreja, nunca teria nossa Constituição (pesado jugo de quarenta anos de República) sido deformada por um positivismo ridículo, obsoleto, como aquele com que pretenderam fazer de nós a caricatura cruel de um povo civilizado.
Combatamos. A Igreja espera que cada um cumpra o seu dever.
Congr. Plinio Corrêa de Oliveira
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“O Legionário”, nº 76, 8/3/1931, p. 1
Deus e a Constituição [I]
Conta-se que um célebre professor de escultura ateniense deu certa vez a seus alunos, para concurso, a tarefa de esculpirem uma mulher que fosse um modelo consumado de beleza física.
Apresentados os trabalhos, dois se salientaram dos demais pela habilidade de sua composição. Um era de autoria de um persa que concretizara no mármore o ideal de beleza de seus conterrâneos: uma formosa e riquíssima mulher, adornada com fazendas maravilhosamente ricas, estofos preciosos e jóias sedutoras. O grego apresentou uma obra simples: dotada da serenidade clássica de seus traços helênicos, uma ateniense majestosa no porte, altiva no olhar, formosa em todos os detalhes de sua beleza impecável. Era seu traje apenas uma simples túnica que a cobria até os pés.
Depois de muito pensar, o professor concedeu ao grego o prêmio da vitória. E ao persa, que lhe perguntara indignado qual a causa da preferência, respondeu apontando-lhe sua obra: “Se a esculpiste rica, é porque não a soubeste fazer bela.”
[Para formar opinião sobre assuntos complexos é preciso a força de vontade de ler artigos áridos]
Em matéria de questões doutrinárias, sigo integralmente o modo de ver do professor ateniense. Quando procuramos envolver nossos argumentos na roupagem suntuosa de eloqüentes imagens, ou nos fazemos compreender mal ou alongamos sem necessidade um trabalho que em menos tempo se leva com igual proveito.
É certo que há pessoas que só lêem artigos devidamente açucarados por meia dúzia de floreios de imaginação. Não podem suportar a aridez de certas questões.
Estas pessoas lembram certos meninos preguiçosos que, sem se darem ao trabalho de estudar, se julgam com direito a todos os prêmios. Quem não tem a força de vontade de ler um artigo árido sobre uma questão também árida, e recorre infalivelmente aos trabalhinhos adocicados em que o sentimentalismo mutila os raciocínios, e a brevidade e superficialidade da argumentação deformam as idéias, não tem o direito de formar opinião sobre assuntos complexos. É quase uma questão de probidade intelectual.
Se a exposição que passarei a fazer parecer muito árida, julgo que estou no meu direito. Não penso que devemos fazer com questões importantes o que fazem certos tratados de física para moças, que à força de quererem tornar amena a matéria, vão tão longe que perdem algo de seu caráter científico, para se aproximarem um pouco da prestidigitação.
[As três atitudes possíveis diante do problema da existência de Deus]
Vamos diretamente ao assunto. A questão é a seguinte: trata-se de saber se a futura Constituição brasileira deve ser promulgada em nome de Deus.
Em relação ao problema da existência de Deus, pode o homem tomar três atitudes: ou o homem afirma, na plenitude de sua certeza, que há um Deus; ou nega com certeza não menor que Deus existe; ou duvida, perante a complexidade dos argumentos apresentados pró e contra a existência de Deus, e neste caso, ou é positivista (abandonando completamente a esperança de encontrar a verdade em matéria religiosa) ou está em um período de formação, e espera que mais cedo ou mais tarde resolverá a questão. Mas, em qualquer caso, ou afirma, ou nega, ou duvida.
De cada uma destas posições decorrem atitudes absolutamente diferentes na orientação geral que cada qual dá à sua vida. Se o homem crê em uma religião, conforma sua existência inteira com esta crença. Se um homem não professa religião alguma, conforma todos os seus atos com sua descrença. Se duvida, conformará com sua dúvida todo o seu proceder.
[O Estado deve plasmar as instituições segundo a opinião religiosa da maioria dos seus habitantes]
Se tivéssemos um Estado todo composto por indivíduos pertencentes a uma mesma religião, claro está, portanto, que todas as instituições, todas as leis, toda a vida da nação seria orientada de acordo com estas crenças. E podemos dar como exemplo não somente os Estados medievais, profundamente imbuídos de Catolicismo, como também os Estados unanimemente pagãos (todos os países da Antiguidade, excetuadas a Judéia e certas regiões do Oriente e da África de hoje).
Se tivéssemos um Estado unanimemente ateu, toda a vida pública seria orientada (ou desorientada…) pelo ateísmo. Temos como exemplo a Rússia de nossos dias.
Se tivéssemos um Estado unanimemente positivista, teríamos uma nação tal e qual o Brasil hodierno.
O Estado não pode deixar de tomar uma atitude qualquer, em face do problema religioso.
Efetivamente, ou ele introduz a invocação a Deus na Constituição, o ensino religioso nas escolas, o caráter de sacramento no casamento, etc., e neste caso ele age como um Estado crente; ou ele considera falsa a Religião, põe como preâmbulo de sua Constituição uma afirmação solene de ateísmo, etc., e procede como um Estado ateu; ou ele silencia a respeito do problema religioso, ladeando-o sem o negar, e sem o afirmar, e procede como um Estado onde impera a dúvida.
Qualquer uma das atitudes que ele adota, será sempre contrária ao modo de ver de uma parcela mais ou menos importante da opinião pública, nos nossos Estados modernos, esfacelados na sua unidade moral e religiosa. Esta afirmação é tão compreensível que dispensa demonstração.
Ora, dado que o Estado é forçado, pela natureza das coisas, a tomar uma atitude qualquer (seja ela de crença, descrença ou dúvida) em face do problema religioso, é evidente que a única solução admissível é plasmar as instituições do país segundo a opinião religiosa da maioria de seus habitantes.
Claro está que, em caso algum, se justifica a opressão manu militari10 ou outra qualquer atitude violenta em relação às minorias dissidentes, que merecem toda a brandura que a caridade lhes outorga, desde que elas não ultrapassem os próprios limites traçados pela lei e pelo Direito Natural.
[Em um país como o nosso, as instituições devem ser católicas]
Conseqüentemente, em um país como o nosso, em que o povo é católico, catolicíssimo até, em que a Igreja Católica é a única força organizada existente, no dizer do insuspeito Dr. Plinio Barreto, no “Estado de S. Paulo”, as instituições devem ser católicas, o ensino deve ser católico, o casamento religioso deve ter, para os católicos, valor jurídico, tudo enfim deve ser católico11.
Provado isto, está provado, é claro, que ao menos a elementaríssima invocação do nome de Deus, pedida, segundo dizem, pelos Rev.mos e Ex.mos Srs. Arcebispo e Bispos de São Paulo, se justifica plenamente.
Congregado Plinio Corrêa de Oliveira
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“O Legionário”, nº 76, 8/3/1931, p. 3
A verdadeira caridade
Nunca será suficiente insistir sobre as idéias que meu prezado amigo Michel d’Arnoux vem desenvolvendo nos seus excelentes artigos sobre a caridade.
[A verdadeira caridade se eleva até Deus, e de lá desce sobre todas as criaturas]
Assim como a água verdadeiramente pura não é aquela que nasce nos vales sombrios, mas aquela que, saída do mais profundo das entranhas da terra, se eleva até o cume dos montes, de onde brota em veios cristalinos, assim também a verdadeira caridade não é o sentimento que tem sua origem nas afeições naturais, transitórias e caprichosas, dos homens uns pelos outros, mas sim o amor que, saído do mais profundo do coração humano, se eleva a Deus, e de lá, em veio límpido e cristalino, desce, como do alto de uma montanha, sobre todas as criaturas.
A primeira caridade, portanto, a caridade verdadeira e isenta do lodo dos afetos humanos, é a que se eleva diretamente a Deus.
Mas o amor de Deus, quando bem entendido, não se limita a uma adoração inerte e exclusiva, mas se reflete sobre os homens, criaturas do próprio Deus.
São estes os dados que nos fornece a Fé. E a observação direta dos fatos que nos cercam confirma claramente a Fé, porquanto o verdadeiro amor ao próximo só se encontra nas criaturas que tiverem verdadeiro amor a Deus.
Nunca se viu um ateu beijar, num delírio de amor, as chagas repelentes de um leproso, como fez São Francisco de Assis.
E nunca se conseguiu manter um hospital com enfermeiras sem fé, com o zelo e a perfeição com que o mantêm as Irmãs de Caridade.
O verdadeiro amor ao próximo, portanto, só pode ser compreendido como um reflexo do amor de Deus.
[A importância da alma é muito maior que a do corpo]
Mas os homens são animais racionais, dotados de corpo material e mortal, e de alma imaterial e imortal. A importância da alma, evidentemente, é muito maior do que a do corpo. O corpo sadio nada é, para uma alma infeliz, senão uma insuportável prisão, cujos grilhões são tantas vezes quebrados pelo suicídio.
Conseqüentemente, os males da alma, os pecados, as infelicidades de toda a ordem, constituem para o indivíduo um peso muito mais sério e muito mais terrível do que as moléstias físicas.
Efetivamente, enquanto o corpo morre, e com ele desaparecem todas as enfermidades, a alma não morre, e pagará seus pecados eternamente. Por isto é que todo o Cristianismo denota o imenso desejo que teve Deus Nosso Senhor em salvar nossas almas. Não foi para salvar corpos que o Redentor veio ao mundo, e que um Deus se fez imolar, em expiação de pecados de suas criaturas. Não foi para salvar corpos que a Igreja foi instituída, nem ↓12 [é] para salvar corpos que os Sacramentos existem. Almas, almas e sempre almas, eis o que deseja Jesus. ↓13 Se cura corpos, é sempre com o escopo principal de salvar almas. E, pelo contrário, muitas vezes dá a certas pessoas pesadas moléstias físicas para atraí-las, por meio do sofrimento, à penitência. O que significa que chega a fazer adoecer corpos para que as almas se salvem!
Por conseguinte, na vida ativa, as verdadeiras obras de caridade não são somente as que se destinam ao alívio dos sofrimentos físicos, mas sim, e de um modo especial, as que curam as almas.
[Mais importante do que um hospital é uma universidade católica]
Se estas verdades tivessem sido compreendidas, há muito tempo que teríamos entre nós organizada a Ação Social Católica. E o País, em vez de se debater na mais pavorosa crise moral, daria ao mundo um exemplo do caráter digno do nosso passado.
Mas os fundos destinados às associações piedosas têm sido quase exclusivamente empregados, pelas almas caridosas, em hospitais, em esmolas para os corpos, certamente muito louváveis, mas menos nobres e menos agradáveis a Deus do que as que tendem a propagar o Reino de Cristo.
Construamos uma universidade católica ou organizemos a Ação Social Católica, em vez de edificar, por exemplo, um hospital. E se, por um lado, muitos corpos ficarão privados de saúde, por outro lado, muitas almas não ficarão privadas de fé.
P. C. O.
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“O Legionário”, nº 77, 29/3/1931, p. 1
Deus e a Constituição [II]
Como demonstrei em meu último artigo, aos olhos da razão não se pode justificar o agnosticismo oficial, em um país de imensa maioria católica.
Vejamos agora, nós que consideramos o agnosticismo uma das mais notáveis inovações que nos vieram do exterior, a diferença que há entre o laicismo no mundo civilizado e o que entre nós desde 1889 se tem praticado.
[Lições de fé que temos recebido do povo yankee]
Para tornar palpável o grande ridículo do laicismo brasileiro, recorramos primeiramente aos Estados Unidos, sobre cuja Constituição se tinha modelado a nossa malograda organização política.
Nada mais irrisório do que querer aproximar, em matéria religiosa, nossa Constituição da dos Estados Unidos, porque, como bem observa Eduardo Prado, “um país (os Estados Unidos) onde o Congresso, todos os dias, antes de abrir as suas sessões, prosterna-se à voz de um capelão que abençoa, em nome de Deus, os trabalhos legislativos; um país em que o poder público, em solene proclamação, determina que um dia do ano deve ser de repouso e consagrado a agradecer à Divindade as graças recebidas; um país em que, numa grande crise da nação, o presidente decreta um dia de jejum nacional, para obter do céu a salvação pública, não pode ter nada de comum com o ateísmo vulgar, que é a essência mesma da República Brasileira” (Eduardo Prado, Crítica Republicana, seção “Opiniões”, do Jornal “O Comércio de São Paulo”, de 21-11-1895).
Lição eloqüente no-la ministrou o próprio embaixador americano junto à agnóstica República Brasileira quando, pronunciando um discurso de felicitações na presença de Floriano Peixoto, então Presidente da República, declarou que a República norte-americana e a brasileira eram irmãs, porque ambas “temiam a Deus e amavam a liberdade” (Eduardo Prado, op. cit.).
O que de ironia, o que de censura, não se entrevê nesta simples declaração do representante norte-americano! Que crítica ao passado, que lição para o futuro!
Mas aí não param as públicas lições de fé que temos recebido do povo yankee.
Enquanto uma igreja protestante qualquer ousou censurar o Dr. Getúlio Vargas por ter comparecido, em caráter oficial, a cerimônias do culto católico, o mesmo Eduardo Prado nos informa que o presidente dos Estados Unidos compareceu pessoalmente à inauguração da Universidade Católica de Washington (“O Comércio de São Paulo”, 30/11/1895), embora fosse ele protestante, a despeito de ser a Universidade mantida pelos RR. PP. Jesuítas.
No mesmo artigo, nos informa ainda Eduardo Prado que a proteção oficial é tal, para com as idéias religiosas, que os artigos destinados ao culto não pagam direitos alfandegários.
[A Polônia quer de seu chefe um juramento prestado em nome de Deus]
Aliás, a moderna orientação é, por toda parte do mundo, inteiramente contrária ao agnosticismo. Exemplo palpitante desta tendência universal é a Constituição da Polônia, uma das mais recentes do mundo inteiro, que exige que o presidente, ao assumir seu cargo, preste o seguinte juramento:
“Juro perante Deus todo-poderoso e uno na Santíssima Trindade, e faço um voto a ti, ó Nação polaca, que, nesta função de Presidente da República, que ora assumo, defenderei os direitos da República, e antes de tudo as leis constitucionais, que servirei fielmente e com todas as minhas forças o bem geral, que considerarei uma virtude de primeira importância a justiça para com todos os cidadãos, indistintamente; que Deus me ajude, para cumprir este voto, assim como seu santo mártir! Amém!”§
Este juramento deve ser pronunciado com a mão direita colocada sobre um crucifixo.
Nada há de mais significativo. Nação nova, cuja eclosão no cenário político europeu se deu com a grande guerra, cujos anseios de liberdade, cujo espírito democrático o mundo inteiro conhece, a Polônia não quer ter por garantia da probidade de seu chefe outra arma senão um juramento prestado em nome de Deus!
[Com poucas exceções, os países católicos não conferem à Igreja a posição que de direito lhe compete]
É fato deveras curioso que enquanto a imensa maioria ou a totalidade dos países protestantes considera oficial uma seita protestante qualquer, nos países católicos o protestantismo erga altos brados contra a mesma regalia, concedida ao Catolicismo. E mais singular ainda é que os católicos, longe de se indignar com a inconcebível improcedência das reclamações protestantes, fazem muitas vezes coro com estes!
A Suécia, a Dinamarca, a Noruega, a Holanda, a Inglaterra, que são protestantes; a Bulgária, a Iugoslávia e a Grécia, que são ortodoxas; e a Rússia, que é ateia, oficializam de modo o mais claro possível as concepções religiosas dos respectivos povos.
E, no entanto, em 1914, com exceção da Espanha, da Áustria-Hungria e da Bélgica, nenhum país católico conferia à Igreja a posição de Religião oficial, que de direito lhe competia.
[A muralha chinesa do laicismo francês começa a sofrer as primeiras brechas]
No entanto, com a guerra, muitas mudanças houve. E do antigo bloco dos países agnósticos resta, quase isolada, a França.
É o que o Sr. Guy-Grand, laicista irredutível, declarou em entrevista que concedeu a respeito da paz religiosa, e que se encontra no seu livro Sur la paix religieuse, pp. 28-30: “Os partidários do laicismo percebem perfeitamente que, até agora, a França está isolada. Ela está só: isto explica o espanto, a incompreensão, a reprovação indignada ou triste que, a seu respeito, as nações religiosas manifestam. O anátema mais ou menos insistente que persegue o ‘ateu’, no interior da França, esta o sente pesar sobre seus ombros, no concerto das nações… Leigo, como se pode ser leigo? Os protestantes se unem aos católicos, para nos censurar. Somos reprovados em Roma, e não existe maior afinidade conosco nas democracias puritanas, em Genebra, em Londres, em Washington. Nós o vimos durante a guerra… O laicismo integral é um produto francês”.
Mas a própria muralha chinesa do laicismo francês já começou a sofrer suas primeiras brechas. Assim é que foi o próprio deputado que, antes da guerra, propusera a expulsão das Congregações religiosas, que propôs, há pouco tempo ainda, leis favoráveis ao Catolicismo, sem que – fato curioso – fosse esta mudança de atitude devida a uma conversão, pois que o referido deputado continua perfeitamente ateu.
[Por toda parte cai o agnosticismo; continuará ele no Brasil?]
Quanto à Alemanha, devastada por Lutero, tenho em meu poder uma interessantíssima fotografia: seis ministros do Reich, envergando casaca, com todas as suas condecorações, ajoelhados em uma rua de Berlim, de velas nas mãos, e cartolas colocadas sobre o próprio chão, assistindo, no ano passado, à passagem do Santíssimo Sacramento, em uma procissão na qual eles haviam tomado parte!!
Vemos, pois, que por toda a parte cai o agnosticismo. E o Brasil? Continuará ele a renegar publicamente a Fé que todos os seus membros, particularmente, professam e praticam? Se tal se der, a culpa será nossa. Será nossa tibieza, nossa falta de idealismo, que nos impedirá de seguir os passos de nosso glorioso Episcopado, no caminho bendito de nossas reivindicações. Mas as perspectivas são outras. Com o auxílio de Deus, venceremos. À luta!
Congregado Plinio Corrêa de Oliveira
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“O Legionário”, nº 78, 19/4/1931, p. 2
Os padres e o casamento [II]
Venho cumprir uma velha promessa feita aos leitores do “Legionário”14, relativa ao problema do celibato dos sacerdotes católicos.
Em janeiro p.p., o Sr. Pierre Mille, autor francês apontado como especialmente propenso para a literatura imoral, pelos dicionários bibliográficos, tomou a liberdade de asseverar, em artigo publicado no “Estado de S. Paulo”, que o casamento é permitido pela Igreja aos sacerdotes da América Latina. Além disto, estendeu-se em divagações mais ou menos desinteressantes sobre o assunto, e concluiu apontando diversos casos de casamento sacrílego de ilustres sacerdotes franceses.
[Face à ampla liberdade de mentir, resta ainda a liberdade de desmentir]
Existe, neste país, uma ampla liberdade de mentir, que a tolerância das autoridades vai tornando cada vez mais nociva. Mas ainda existe também a liberdade de desmentir. Usando, pois, desta faculdade (uma das poucas de que os homens de bem ainda gozam), desmentirei agora as afirmações imprudentes do Sr. Mille.
Quatro eram os sacerdotes a respeito dos quais tomou ele a liberdade de lançar as afirmações as mais degradantes. Entre estes estavam os nomes dos Padres Pereyve e Gratry, vultos eminentes do Clero francês.
Segundo o Sr. Mille, teriam eles tido os mais vergonhosos desvios em relação ao celibato. Alguns chegaram a casar-se civilmente. Outros, arrastando durante toda a vida a vergonha de ligações ilícitas, foram o escândalo da Igreja na França.
Dois dos nomes citados, ou se referem a pessoas que nunca existiram, ou se aplicam a sacerdotes tão obscuros que, a seu respeito, não pude obter a menor informação.
[Dois vultos eminentes do Clero francês: os Padres Pereyve e Gratry]
Sobre os outros dois, porém, o infatigável zelo apostólico e a gentileza do Rev.mo Padre de Condé, da Ordem dos Rev.mos Padres de Sion, me forneceu dois livros, editados ambos em 1912, na coleção Les grands hommes de l’Église au XIXe. Siècle. O primeiro é uma biografia do Padre Gratry, por Albert Autin, com prefácio de Denys Cochin, da célebre Academia de Letras da França. O outro é sobre o Padre Pereyve, por J. Riché, com prefácio de S. Ex.a Rev.ma o Sr. Bispo de Versailles. Traz por subtítulo os seguintes dizeres: “Un modèle de vie sacerdotale”.
Ambos os livros e seus respectivos prefácios estão cheios de referências as mais elogiosas aos biografados. Exaltam-se constantemente as virtudes sacerdotais dos dois sacerdotes que, segundo os livros, foram até seus últimos instantes de vida expoentes do Clero francês, tanto no tocante à austera perfeição de seus costumes quanto à brilhante formação de suas inteligências.
O Padre Pereyve morreu em 1862, aos 35 anos de idade, depois de uma carreira sacerdotal cheia de brilho e de méritos.
O Padre Gratry faleceu em 1872, em idade muito avançada.
Ora, não se compreende que, em se tratando de figuras notabilíssimas nas rodas literárias (o Padre Gratry era membro da Academia Francesa), de dois vultos de grande destaque nos círculos religiosos, cujas obras ainda hoje são citadas por muitos escritores, escândalos iguais aos que o Sr. Mille mencionou tivessem passado absolutamente despercebidos aos biógrafos.
Efetivamente, escândalos como estes teriam por tal forma agitado Paris, que seria impossível silenciar sobre eles ainda hoje. Não se concebe que autores de responsabilidade tivessem a audácia de ir escolher sacerdotes indignos, cheios de pecados, para incluí-los numa coleção de Grands hommes de l’Église au XIXe. Siècle. E isto porque receberiam, certamente, o mais formal e violento desmentido dos inimigos da Igreja e das próprias autoridades religiosas, pois que estas não permitiriam de modo algum que se tentasse reavivar escândalos passados e reabilitar com mentiras imprudentes figuras vergonhosas, quando à França não faltam sacerdotes dignos de todas as homenagens.
Ora, o que vemos é muito significativo: um bispo e um membro da Academia Francesa prefaciam os livros, e cobrem de elogios a memória dos biografados.
Diante de fatos tão favoráveis às vítimas do Sr. Mille, está fartamente demonstrada a inocência dos dois sacerdotes.
[Um jornal que se atribui tradições respeitáveis não deveria aceitar artigos como esse]
No entanto, não podemos deixar de, ainda agora, renovar nosso protesto e exprimir nosso sentimento de estranheza ao “Estado de S. Paulo”. Um jornal que está na vanguarda da imprensa paulista, que tem um passado grande, e que se atribui tradições respeitáveis, não deveria nem poderia, de modo algum, aceitar um artigo como o que ora refutamos.
Já não digo que “O Estado” tenha obrigação de conhecer o passado dos Padres Gratry e Pereyve, mas penso que não pode ignorar que, no Brasil, os sacerdotes católicos não se podem casar. No entanto, o Sr. Mille tem a audácia (dizemos audácia, para não dizer mais) de afirmar precisamente o contrário. E “O Estado” tem a leviandade de publicar tal artigo, denotando um desprezo soberano pelos elementos católicos do Brasil.
Que ao menos este protesto veemente se erga contra tão indefensável atitude.
Congregado Plinio Corrêa de Oliveira
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“O Legionário”, nº 79, 10/5/1931, p. 1
O triunfo de Cristo-Rei nas escolas
É com o coração transbordando de alegria que recebemos o decreto instituindo o ensino religioso nas escolas públicas brasileiras.15
Os próprios ataques que a insensatez dos laicistas tem arremessado contra o ato do Ministro Francisco Campos denotam que o agnosticismo, vitorioso em 1891, não passa hoje de doutrina desacreditada, pobre em argumentos e em adeptos, e vigorosamente rejeitada pela imensa maioria da nação brasileira.
[O absoluto fracasso da moral leiga]
Não compreendo como se possa ser, ainda hoje, agnosticista sincero.
Se não bastassem as fragorosas derrotas que tem sofrido no campo científico a famosa moral leiga, se não fossem suficientes os numerosos repúdios que tal doutrina tem sofrido de seus próprios partidários, o exemplo, o triste e doloroso exemplo do Brasil hodierno seria suficiente para evidenciar o quê de falso, o quê de cruel se encerra nas vãs ideologias do agnosticismo.
O espetáculo que atualmente oferece o Brasil, pobre país que se examina a si próprio com pavor, assustado pela deficiência de caráter de tantos de seus filhos; a incerteza angustiosa que se lê em todos os olhares, que procuram por todo o País, ansiosamente, elementos numerosos, fortes e moralizados que sejam capazes de [lhe] fornecer ↓16 os enormes contingentes para o imenso exército de funcionários honestos de que precisa para viver; a instabilidade da nação, que oscila até em seus mais profundos fundamentos; e a causa de todos estes males, isto é, uma crise de caráter tremenda, deveriam constituir para os agnosticistas impenitentes uma prova suficiente do absoluto fracasso da moral leiga.
[O bom odor das virtudes evangélicas é como um frasco de perfume que se abre e se expõe à ação do ar]
Se expusermos à ação do ar um vidro de perfume, este se evaporará dentro de algum tempo. E, muito tempo ainda depois de completamente evaporado, continuará a sala impregnada pela suavidade de seu aroma. Ao cabo de mais algum tempo, o próprio odor terá desaparecido, e do delicioso perfume só ficará a lembrança.
Logo que a vitória dos cristãos abriu para a humanidade o frasco de essências morais preciosíssimas que é a Igreja Católica, o bom odor das virtudes evangélicas se começou a alastrar dia a dia pelo mundo, vencendo o cheiro acre da barbárie franca ou germânica e as exalações insalubres da civilização romana, já então em franca decomposição. E o bálsamo da sabedoria evangélica, fundindo raças, erguendo nações, foi a seiva fecundíssima que alimentou e fez crescer uma nova e magnífica civilização.
Irrompeu depois a Reforma protestante, golfada de orgulho de um monge apóstata, que lançou a humanidade no caminho da perdição. E a fúria anticatólica de Lutero, que engendrou o rancor ateísta e anticristão de Voltaire, ligou-se a este para impedir que a Igreja continuasse a espalhar sobre o mundo, com a profusão de outrora, o mesmo perfume moral salvador, do qual Ela é fonte inesgotável.
Durante muitos anos, no entanto, o bom odor evangélico continuou a embalsamar parcialmente o mundo paganizado, “como o vaso que conserva por algum tempo o perfume das flores que dele tiraram”.
Aos poucos, porém, o perfume se foi diluindo completamente, cedendo lugar à fermentação crescente de paixões malsãs, suscitadas pelas heresias que o mundo não soube nem quis dominar.
[Agora que a civilização ameaça ruína, sentimos falta do aroma das virtudes católicas]
Só agora, porém, quando a civilização ameaça ruína, é que sentimos, num terrível despertar, a falta das virtudes católicas que aromatizavam amenamente a vida de nossos maiores.
Agora, que o americanismo cinematográfico invadiu, como onda de lodo, a família, o club, as escolas e a sociedade, começamos a perceber que desapareceu completamente aquela doce honestidade de nossos avós; que nossos chefes de família não são mais o patriarca venerável de outrora, mas apenas o mais velho dos companheiros de rapaziadas de seus filhos; que as mães das últimas gerações já não são, em geral, os anjos de dedicação e amor que a Providência colocava como protetoras de nossos berços, mas sim educadoras implacáveis e indiferentes de seus filhos, aos quais querem sacrificar a menor parcela possível de suas comodidades e gozos pessoais; que os filhos só vêem nos pais meros administradores da fortuna, e nas mães simples governantes de casa que se arrogam atribuições julgadas verdadeiramente desmedidas, que é preciso, a todo o custo, restringir; que a Pátria nada mais é do que um aglomerado de cidades que o acaso agrupou sob uma mesma autoridade política, e que as vantagens financeiras ou outras poderão, a qualquer momento, desagregar sem inconveniente algum de ordem moral; que a humanidade, enfim, é constituída exclusivamente por concorrentes nocivos do uso e gozo da natureza, que é necessário, a todo o custo, afastar como vizinhos incômodos e demasiadamente numerosos.
Dir-nos-ão que exageramos. Mas tome cada qual o trabalho de arranhar um pouco o verniz das convenções, e verifique se, na grande maioria das pessoas, não predominam exatamente os conceitos que enumeramos, dos quais um só é suficiente, quando generalizado, para prostrar por terra uma nação.
E que muitos também arranhem corajosamente o verniz, incomparavelmente mais sensível, com que se cobrem aos olhos da própria consciência, e que vejam, que tenham a coragem de ver sincera e virilmente, se não se poderiam muito bem espelhar no retrato que acabo de fazer.
Ora, com o predomínio de tais princípios, que sociedade pode viver? Que país pode ser honesto na administração pública, quando não existe patriotismo corajoso na guerra, quando não existe idealismo exemplar na família, quando filhos e pais nada mais são do que indivíduos que se disputam as partes mais aproveitáveis do patrimônio comum?
[“Não nos fale em moral leiga, mas sim em imoralidade leiga”]
E agora mudem-se os quadros. Suponha-se um país em que, desde o chefe da nação até o mais modesto contínuo, desde o pai até os filhos, desde o patrão até os operários, predomine a prática rigorosa dos princípios católicos.
E imediatamente surgirão, a nossos olhos, estadistas abnegados e diligentes, funcionários probos e esforçados, pais moralizados e respeitáveis, generais valentes e disciplinados, filhos obedientes e amorosos, mães dedicadas e respeitadas.
Comunismo ou Catolicismo, eis o dilema a que não se pode fugir. Ou a dissolução atual continua sua marcha, e nos arrasta ao comunismo pelo apodrecimento de toda a organização política e social do país, ou voltamos atrás e, recorrendo à seiva do Catolicismo, que já uma vez salvou uma civilização que também estava podre, pomos Deus nas escolas, nas constituições, nos lares, nos clubs e principalmente nos caracteres.
Pelos frutos se conhecem as árvores. Compare-se o fruto amaríssimo da fase de agnosticismo que atravessamos, com o fruto dulcíssimo, cheio de suavidade, de uma nação radicalmente católica. E quem tiver a coragem de optar ainda pelo agnosticismo, que tenha ao menos a hombridade de defender também suas funestas conseqüências!! Que não nos fale em moral leiga, mas sim em imoralidade leiga.
[O decreto de instituição do ensino religioso encerra o período mais triste de nossa História]
Por isto, felicitamos calorosamente ao Dr. Francisco Campos e ao Governo Provisório, que com um simples decreto acabam de encerrar o período mais triste de nossa História. E que o Dr. Francisco Campos seja indiferente a seus inimigos. §
O característico dos grandes homens é de suscitar, simultaneamente, amizades ardentes e ódios implacáveis. Porque todo homem de bem, além da amizade fervorosa dos bons, tem de lutar contra o ódio rancoroso dos maus.
Felicitamos, portanto, o Dr. Francisco Campos, pelos inimigos que acaba de adquirir, assegurando-lhe também que seus amigos saberão ser, se necessário, tão ou mais implacáveis ↓17 [que] seus próprios inimigos.
Dr. Plinio Corrêa de Oliveira
Congregado
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“O Legionário”, nº 80, 24/5/1931, p. 4
Departamento de Estudos
No mês de abril p.p. foram consultadas 26 obras da nossa Biblioteca, sendo 5 em francês e 21 em português.
O bibliotecário arrecadou a quantia de sete mil réis, proveniente das multas aplicadas aos que se atrasaram na devolução dos livros retirados.
Neste momento está se procedendo à organização dos jornais e revistas assinados pela Congregação, bem como à catalogação dos novos livros adquiridos. Publicaremos brevemente uma relação destes últimos.
Está substituindo interinamente o nosso bibliotecário, Dr. Itibran Marcondes Machado, o congregado Camillo Marchetti.
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“O AUC”, 6/6/1931, p. 2
Dr. Plinio Corrêa de Oliveira
Fugiríamos a um imperativo dever de justiça e de gratidão, se não viéssemos render, por estas colunas, um preito de homenagem a Plinio Corrêa de Oliveira, pelo término feliz de sua brilhante carreira universitária, assinaladora entre nós do início de um período áureo de afirmações católicas integrais e de luta ardorosa em prol do triunfo redentor do ideal cristão.
Plinio Corrêa de Oliveira ingressou na Faculdade de Direito com aquele espírito despreocupado que é a disposição espiritual de todos os que [não] sofreram a influência deprimente e desanimadora dos preconceitos laicistas e do liberal-confusionismo que tiraniza e desorganiza a mentalidade nacional.
Felizmente, já então, graças ao apostolado de precurssores como José Carlos de Ataliba Nogueira, José Vianna, Joaquim Dutra e muitos outros, o ambiente da Faculdade de Direito apresentava-se propício ao florescimento dos ideais católicos. Faltava, porém, o apostolado sistematizado.
Desde logo, a inteligência penetrante e clarividente de Plinio Corrêa de Oliveira se afirma na ortodoxia católica, certo de que o mundo contemporâneo só encontrará salvação na restauração integral do reinado de Cristo sobre as consciências e sobre as relações sociais e políticas.
A afirmação de inflexível ortodoxia católica de Plinio Corrêa de Oliveira, num ambiente intelectual nebuloso, debatendo-se num confusionismo em que naufragava toda a capacidade de distinguir e de restaurar o ser, essa afirmação desassombrada teve o condão de, servida por um zelo apostólico intenso, trazer a inquietação espiritual a muitos de seus colegas. Só isto bastaria para marcar a sua passagem pela Faculdade de Direito.
Mas não parou aí a sua missão como intelectual e católico. Fundada, no Rio, a AUC, sob inspiração de Tristão de Athayde, Plinio Corrêa de Oliveira foi o primeiro a pôr-se à frente do movimento em São Paulo. E a sua atividade se desdobrou proficuamente, sempre no sentido de firmar uma ortodoxia inflexível no terreno da Ação Católica nas escolas superiores. Aqui ficam estas expressões de justiça e de gratidão para esse aucista fervoroso que acaba de ingressar na vida profissional.
Deixando a Faculdade de Direito, Plinio Corrêa de Oliveira ingressa, porém, neste grêmio esperançoso que é o Centro D. Vital de S. Paulo onde continuará a exercer, com o brilho do talento que possui, o seu mister de apóstolo e de servidor da causa sacrossanta de Cristo.
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Manifesto escrito no dia 4/6/1931
Católicos! Brasileiros!18
A injusta campanha de silêncio que a maior parte da imprensa tem movido contra o ensino religioso deixou no espírito da população paulista a falsa idéia de que o decreto estabelecendo o ensino religioso nas escolas torna obrigatória a aula de Religião Católica para os alunos de todos os credos.
É necessário que a consciência católica e brasileira reaja energicamente contra esta falsa suposição, restituindo aos fatos seu verdadeiro alcance e seu significado exato.
[O verdadeiro alcance do decreto sobre o ensino religioso nas escolas]
O referido decreto apenas faculta o ensino religioso nas escolas públicas, para cada grupo de vinte alunos pertencentes ao mesmo credo, seja este católico, protestante ou muçulmano.
Em um colégio em que haja, portanto, 20 alunos protestantes, 20 muçulmanos e 20 católicos, haverá aulas de Religião Católica para os católicos, protestante para os protestantes, muçulmana para os muçulmanos.
Em quê, portanto, ficam violados os direitos de todas as confissões religiosas, mesmo das que mais têm protestado contra o recente decreto do Governo Provisório?
Os próprios pais que não queiram para seus filhos ensino religioso algum terão o direito de pedir que não lhes seja ele ministrado.
[As outras religiões se prevalecem de análoga medida nos países em que são maioria]
Trata-se, no caso do decreto em questão, de uma medida de que outras religiões se prevalecem, nos países em que estão em maioria, como na Inglaterra, Estados Unidos, Suécia, Noruega, Dinamarca, etc.
Por que consideram elas, portanto, como ilegítima e iníqua uma [análoga] medida no Brasil, quando são elas próprias as primeiras a reconhecer, nos demais países, sua necessidade e sua absoluta compatibilidade com a liberdade de consciência?
Aliás, a situação em que se encontrava o Brasil, antes da instituição do ensino religioso, era inadmissível perante os postulados da ciência pedagógica moderna, dado que a grande maioria dos países europeus, hoje na vanguarda do movimento pedagógico, admitem o ensino religioso facultativo em suas escolas. Como exemplo será suficiente citar a Alemanha, a Itália, a Romênia, a Polônia, a Inglaterra, a Espanha, a Holanda, a Suécia, a Noruega, a Dinamarca e a Áustria.
[Os partidários do agnosticismo de Estado não têm o direito de acusar de ilegítima a atual medida]
Também não se pode afirmar que o presente decreto viole o direito da Nação de se pronunciar diretamente sobre assuntos da relevância deste. Efetivamente, segundo a interpretação da maioria de nossos constitucionalistas, entre os quais Ruy Barbosa e Pedro Lessa, a Constituição de 1891 não proibia o ensino religioso nas escolas públicas.
Aliás, se os partidários do agnosticismo do Estado nunca acusaram de abusivo o decreto do Governo Provisório, presidido por Deodoro, que estabeleceu a separação entre a Igreja e o Estado, antes de convocada a Constituinte, por que acusarão eles de ilegítima a atual medida, que tem o mesmo alcance, com a única diferença que, agora, prejudica seus preconceitos?
[Que todos os católicos se tornem ardorosos propagandistas do ensino religioso]
A consciência católica, absolutamente obrigada a cerrar fileiras em torno das autoridades eclesiásticas, na campanha em prol do ensino religioso, não pode deixar de prestar à Igreja, neste momento de luta, sua adesão entusiástica.
Que todos os católicos se tornem, portanto, ardorosos propagandistas do ensino religioso; que atendam às considerações que aí ficam expostas, para sustentar sempre que a liberdade de consciência brilha, agora, com um fulgor que nunca teve sob o agnosticismo opressor; eis a tarefa que a cada católico incumbe em nossos dias.
É, pois, cheios de ardor e confiança que lembramos um brado glorioso que nos é caro: A Igreja espera que cada qual cumpra o seu dever!
Divulgando cuidadosamente este manifesto, vós tereis prestado um bom serviço à Religião e à Pátria.
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“O Legionário”, nº 82, 28/6/1931, p. 2
Academia Jackson de Figueiredo
A Academia Jackson de Figueiredo permaneceu durante o ano de 1930 quase inativa, devido a contratempos, surgidos então.
Com a saída do Pe. Roque Pinto de Barros, que a dirigiu desde a sua fundação, ficou a Academia acéfala por algum tempo. Foi então nomeado para seu Diretor o Pe. Arthur Ricci. Devido a seus múltiplos afazeres, o Pe. Ricci não pôde realizar a sessão marcada para março do ano passado. Logo depois, em maio, era nomeado Vigário de Jundiaí, retirando-se de São Paulo. Sem dirigentes permaneceu a Academia até o fim do ano. Nesta época foi fundada a “Seção de defesa da Igreja”, que veio reavivar entre os congregados o gosto pelo estudo religioso.
Aproveitando esta oportunidade, o congregado Dr. Plinio Corrêa de Oliveira lembrou à Diretoria da Congregação a possibilidade da fusão daquela seção com a Academia.
Aceita a idéia, ressurgiu então a Academia Jackson de Figueiredo.
Aprovados os estatutos deste centro de estudos, foram nomeados, para os cargos de presidente e secretário da Academia, os congregados Dr. Plinio Corrêa de Oliveira e Milton de Souza Meirelles, respectivamente.
Em 11 de janeiro deste ano, realizou-se a sessão inaugural dos trabalhos da Academia, falando então o congregado Presidente, que apresentou notável trabalho sobre o “Apostolado Intelectual”19.
É deveras confortador o entusiasmo que desde então vem reinando entre os acadêmicos. Durante este ano a Academia tem realizado sessões mensalmente (aos segundos domingos de cada mês), e, apesar do pequeno número, relativamente, de congregados que assistem às suas sessões, estas têm sido bastante proveitosas e interessantes, prova da vitalidade da nossa Academia.
Basta, para isso, passar os olhos nos trabalhos e críticas que foram apresentados nas reuniões deste ano.
[Em seguida o artigo enumera as realizações de cada mês.]
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“O Século”, 28/6/1931
A Pastoral Coletiva dos Bispos da Bahia
(Especial para “O Século”) – Dr. Plinio Corrêa de Oliveira
É possuídos da mais legítima satisfação que vimos comentar nestas linhas um acontecimento auspicioso e decisivo na história religiosa do Brasil.
[Quando se está doente, necessita-se mais do que tudo do desvelo de um coração de mãe]
A Pastoral Coletiva dos Bispos da Bahia, documento notável na forma e no fundo, vem satisfazer os anseios da alma católica do Brasil.
Muito se tem falado a respeito dos numerosos males que nos assoberbam. Muitos os diagnósticos, muitos os conselhos que nos têm cercado nesta hora difícil de nossa vida política.
Mas o Brasil brasileiro, isto é, o Brasil católico, a todos estes conselhos apenas tem prestado ouvidos inquietos ou distraídos. Inquietos, diante da terrível diversidade com que os conselhos se apresentam, e diante das constantes investidas do interesse pessoal, quase sempre oculto atrás das previsões falaciosas de um brilhante porvir, ou das previsões desanimadoras de um futuro sinistro e derrotista. Distraídos, diante da banalidade invariável das repetições intermináveis e monótonas.
É que, quando se está doente, mais do que dos cuidados do médico, mais do que do zelo de enfermeiros mercenários, a alma necessita do desvelo incessante e bondoso, da proteção tranqüila e acolhedora de um coração de mãe.
E este coração de mãe, com toda a energia temperada de doçura que caracteriza as mães, com toda a lealdade desinteressada e previdente que só um coração de mãe sabe ter, o Episcopado baiano o abriu de par em par ao povo brasileiro, em uma luminosa Pastoral que ficará perpetuada nos fastos de nossa história religiosa.
[A única voz que pode salvar o Brasil é a da Igreja Católica Apostólica Romana]
Ecoou finalmente, no Brasil, a única voz que o pode salvar. É a voz da Igreja Católica, Apostólica, Romana, que mais uma vez eleva entre nós, para nos corrigir em nossos desvios, nos reerguer em nossos desfalecimentos, nos animar no momento angustioso em que parece que o próprio solo desaba sob nossos pés.
E neste brado que, partido da Bahia, estende suas vibrações por todo o Brasil, as nossas selvas, os nossos rios, nossos campos e nossas montanhas hão de ter reconhecido as mesmas inflexões que modularam a ↓20 [voz dos primeiros missionários quan]do catequizavam os índios, acendendo-lhes nos corações selvagens a chama doce e luminosa da Fé; a mesma voz que morigerou os bandeirantes, exprobrando-lhes a ganância, maldizendo-lhes as rapinas, abençoando-lhes o heroísmo; a mesma voz que, num murmúrio de conforto, meigo como uma carícia de mãe, ou num grito lancinante de alarma, previdente e cauteloso como o desvelo de um pai, soube ligar o negro, o branco e o vermelho, para atirá-los contra um mesmo inimigo comum – o holandês protestante – que queria destruir a raça, atacando-lhe o cerne: a Fé; a mesma voz que, aos ouvidos dos escravos, pronunciava palavras de esperança em uma vida futura, abrindo-lhes uma nesga de Céu em plena noite de cativeiro; e que, aos senhores, murmurava palavras de clemência e de doçura.
Só a Igreja, nas circunstâncias atuais, poderia falar ao Brasil. O que são todos esses partidos que, ↓21 surgidos no ardor passageiro de um instante e a geração de nossos pais não conheceu, e que não conhecerá por sua vez a de nossos filhos? Que são todas estas refregas, todos estes ardores, senão o faiscar de paixões que a ambição suscitou, e que a ambição poderá extinguir? Que credenciais poderá apresentar ao Brasil esta turbamulta de políticos, onde a massa dos interesseiros domina por completo um pequeno escol de abnegados? Pequenos como a vida que vivem, fracos e ilusórios como tudo o que não pode durar, os partidos são instáveis pelo próprio fato de serem humanos.
A Igreja, pelo contrário, mergulha suas raízes no nosso mais remoto passado. Quando, em seu regaço maternal, acolhia os primeiros vagidos de nossa nacionalidade, já quinze séculos de luta lhe davam a respeitabilidade das instituições que o engenho humano não pôde destruir. E hoje a Igreja olha serena para o futuro, certa de que poderão cair as nações, poderão cair as repúblicas e os governos, mas que não cairá Ela, porque veritas Domini manet in aeternum22.
[O Brasil precisa de um remédio de ordem moral]
Com a sobranceria de quem contempla nossa situação, não arrancando-a da haste do passado, da qual brotou, mas tomando a realidade atual como simples desenvolvimento inevitável de fatores anteriores e, de certo modo, superiores à geração atual, a Igreja mais uma vez nos indica o porto a que nos devemos recolher, se não quisermos naufragar nos escolhos em que muitas nações anteriores à nossa, e muitas outras que lhe sucederão talvez, hão de naufragar, se não quiserem reconhecer os princípios básicos em que se têm de estribar.
Não é o câmbio, não é o café, não é a política, que são nossas crises. O câmbio a 3, o café desvalorizado, a anarquia política, são meros sintomas de um mal muito mais geral e muito mais profundo: a crise dos caracteres. É este o ponto culminante da Pastoral, e é esta a verdade fundamental que todos os brasileiros têm de reconhecer.
Se olharmos para o passado, que é que verificamos? É que nossa situação atual é fruto de abusos que se acumularam uns sobre os outros, e que ninguém pôde tolher. Lentamente, as chagas de tantas sinecuras, as úlceras de tantos desmandos se foram gangrenando, até que veio a Revolução de 1930, abscesso terrível em que a nacionalidade quis expelir todos os germens deletérios que a haviam feito sofrer.
E vemos que, lentamente, outras chagas se vão abrindo e generalizando, e que o descontentamento febril da nação indica suficientemente que outro abscesso se vai formando gradualmente no organismo incurável.
É que a terapêutica de que nos servimos não foi adequada a nossos males. Deram ao Brasil um remédio político. E o Brasil precisa de um remédio moral. E este engano fatal inutilizou os esforços que se tinham conjugado para solucionar a crise brasileira.
[O mal excede de muito o simples campo da política]
Dissemos que o remédio foi errado, porque foi político. De fato, o mal excede de muito o simples campo da política, e entra em todos os domínios da vida privada.
Quem acompanhar com atenção os movimentos sociais os mais diversos que têm lugar entre nós chegará facilmente à conclusão sustentada pela Pastoral.
Volvamos os olhos para o sport. Na vida esportiva campeia freqüentemente a desonestidade. É ao menos o que se deduz do que dizem as diversas associações, ligas e federações esportivas que se acusam mutuamente de fraude e deslealdade, com um furor inconcebível. E freqüentíssimos são os jogos em que o povo agride o juiz, suspeito de suborno.
Do sport, passemos às organizações de caráter profissional. Estas, em geral, ou são associações mortas, de que se desinteressam os próprios sócios, ou são apenas animadas por uma política desenfreada, em que a luta de pequenos interesses e pequenas facções se faz a golpes de pequenas intrigas e pequenas infâmias.
Das associações de classe, passemos à família. Quem poderá negar que a família atravessa, entre nós, uma crise profunda, que ameaça destruir o velho edifício social brasileiro com o completo naufrágio da organização familiar? Quem poderá, porventura, fechar os olhos aos profundos dissídios que jogam os filhos contra os pais, considerados como entes molestos e indignos da menor reverência, e que jogam os cônjuges um contra o outro, em lutas que culminam com o desquite ou uma vergonhosa anulação?
Eis aí diversos terrenos absolutamente alheios à política e que sofrem dos mesmos males que nos assoberbam na vida pública.
Vemos, por esta simples inspeção à vol d’oiseau,23 que o mal é muito mais extenso e muito mais profundo do que se pensa. É o próprio caráter nacional que é preciso reerguer, e é só nele que reside a crise.
Tão evidentes são estas verdades, que elas hoje em dia já se impuseram a gregos e troianos, a crentes e descrentes. No entanto, uma inexplicável divergência separa, no formular a receita, aqueles que, quanto ao diagnóstico, foram unânimes.
[Só o catolicismo pode salvar o Brasil]
Só o Catolicismo pode salvar o Brasil, diz a Pastoral. E, efetivamente, qual o outro arrimo para nossa moralidade decadente?
Não se discuta, no momento, o mérito ou demérito da Doutrina Católica. A moral leiga, que se apoderou de nossa nação há quarenta anos, produziu os frutos amargos que ora procuramos eliminar. Só em uma moral religiosa, portanto, se poderá encontrar a salvação. Ora, a moral, como outra qualquer idéia e como outro qualquer princípio, se canaliza e se veicula numa nação através de determinadas instituições, de determinadas associações, que são por assim dizer a base material e concreta das ideologias por elas defendidas.
Ora, o Catolicismo, incontestavelmente, é a força moral e religiosa mais influente, mais antiga e mais apta a realizar este desiderato. É mesmo, afirma o insuspeitíssimo Dr. Plinio Barreto, a única coisa organizada que existe no Brasil.
Por que não confiar, portanto, a esta força, o reerguimento da nação? Por que não fazer dela o reduto supremo da nacionalidade periclitante, e o parapeito solidíssimo que nos resguardará do abismo?
Acharão nossos inimigos que é melhor que o Brasil se perca sem o Catolicismo, a que se salve por meio dele? Ser-lhes-á a descrença mais cara do que a Pátria? Colocarão eles suas dúvidas acima de seus mais nobres sentimentos?
Se tal se der, mais um argumento teremos, e poderoso este, contra a moral leiga. Porque se um sistema de negações e de descrença, um sistema todo feito de destruição, como é o agnosticismo burguês que atualmente ataca a Igreja, auxiliado pelo ateísmo comunista, chega a corromper no homem o próprio patriotismo; se os descrentes querem fazer de sua impiedade o sepulcro em que pretendem atirar o cadáver da nação, nós, os católicos, convidamos a todos aqueles que não querem que o Brasil morra, que não querem que nossa Pátria pereça, e que ainda não estejam definitivamente contaminados pelo morbo fatal da dúvida, que voltem a nós.
Porque somente assim é que se salvará o Brasil.
Plinio Corrêa de Oliveira
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“O Legionário”, nº 83, 12/7/1931, pp. 2 e 3
Fides intrepida [II]
Plinio Corrêa de Oliveira
Em janeiro de 1930, escrevi, com este título, no “Legionário”24, um longo artigo em que defendia a luminosa política do Santo Padre contra as acusações que os inimigos da Igreja faziam ao Tratado de Latrão, que selara a reconciliação entre o Vaticano e o Quirinal.
Punha então em relevo a notável profecia em que São Malaquias indicava para cada Papa uma divisa que haveria de sintetizar e resumir a História da Igreja sob seu pontificado.
Para Pio XI, o dístico é: Fides intrepida. E eu justificava este título, enumerando todos os triunfos que cercavam então a Igreja de um ambiente de vitória. E meu artigo interpretava os sentimentos de todos os congregados de Santa Cecília.
Estávamos então no alto do Tabor. De toda a parte subiam aos pés do Santo Padre as manifestações de admiração e alegria pelas assinaladas vitórias da Igreja em todo o orbe terrestre. A solução da questão mexicana, os progressos da Igreja nos países protestantes, o desenvolvimento promissor das missões católicas na Ásia e na África, a crescente invasão da filosofia católica em todos os meios científicos europeus e norte-americanos, cingiam o Santo Padre com um diadema de glórias, entre as quais refulgia, com brilho inconfundível, a reconciliação entre a Igreja e a Itália.
[Do Tabor ao Gólgota]
Do Tabor passamos, agora, para o Gólgota. O diadema de glórias transformou-se em coroa de espinhos. Os murmúrios de admiração se converteram em gemidos, e irromperam perseguições em diversas partes da Terra. Quase simultaneamente, surge um conflito com a Lituânia, explode o anticlericalismo comunista da Espanha, reabrem-se novamente as crateras de impiedade do México, e a estas torturas vem acrescentar-se, com uma amargura penosíssima, a luta do fascismo contra a Igreja.
Mas os companheiros do Tabor souberam seguir o Santo Padre ao Gólgota. E do mesmo modo por que misturamos nossas vozes às que se elevavam ao Trono de São Pedro para felicitar o Santo Padre, queremos que nosso protesto se erga no meio da confusão atual para hipotecar a Sua Santidade a solidariedade respeitosa e filial de todos os congregados de Santa Cecília.
Mais do que nunca se justifica a divisa atribuída a São Malaquias. Na tortura, nas amarguras, na luta, Pio XI tem sabido manter o baluarte da Fé com uma intrepidez digna dos mártires do Coliseu. Não nos abatem nem nos espantam os acontecimentos que fazem sofrer a Igreja, simultaneamente perseguida em tantos lugares.
[O Waterloo da impiedade está próximo]
Efetivamente, nunca as idéias e as instituições meramente humanas estão tão próximas da decadência do que quando atingem seu apogeu. Nunca se aproxima tanto a fruta do apodrecimento do que quando atinge a plena maturidade. A impiedade está chegando a seu auge. O comunismo, que é a nota mais aguda no concerto de blasfêmias que se tem erguido contra a Igreja desde o século XVI, representa exatamente o paroxismo da incredulidade. E nós, católicos, gememos hoje ao peso da opressão de nossos adversários, que nos lançam à face a exclamação de Breno25: “Ai dos vencidos!” Mas a Igreja, que é imortal porque não é humana, lhes devolve a frase, invertendo-lhe o sentido: “Ai dos vencedores!”
Na realidade, para todas as coisas que não participam da indestrutível durabilidade da Igreja, o apogeu nada mais é senão uma etapa brilhante no caminho para a morte. Cada vitória de Napoleão representava, para este, um passo que o aproximava de Waterloo. O Waterloo da impiedade está próximo. Deixemos, portanto, passar estes Wagram e estes Austerlitz da descrença. Seu triunfo não há de durar.
[A Divina Providência permite que a Igreja entre em um túnel da História para encurtar seus padecimentos]
Quando é muito longo o trajeto a seguir por um trem, quando são muito escarpadas as montanhas que ele deve subir, quando são muito longas as voltas a que o obriga a ondulação do terreno, os engenheiros escavam um túnel que, embora sujeite os passageiros a alguns minutos de inteira escuridão, lhes encurta, todavia, as fadigas da viagem e lhes poupa longas horas de trajeto.
Julgamos que a fase de dores cada vez mais acentuadas por que o Catolicismo virá a passar são como que o túnel que, embora nos mergulhe por algum tempo nas mais densas trevas, no negrume da mais absoluta dor, abreviará nosso caminho à vitória final, cortando montanhas e transpondo obstáculos que, sem esse túnel de dores, levaríamos muitos decênios – séculos, talvez – a percorrer. Entra a Igreja, e com ela a civilização ocidental, em um dos túneis da História por que a Divina Providência nos faz passar, para encurtar os padecimentos do Catolicismo. E cada vez, portanto, que sentirmos mais cerrado o ataque, mais terríveis as provações, tenhamos a convicção tranqüilizadora de que estamos progredindo no túnel, e nos aproximamos cada vez mais do momento feliz em que nos acharemos novamente na claridade radiosa de uma civilização plenamente cristã.
[A luta entre a Igreja e o Estado fascista]
A que se cifra, em suma, a luta entre a Igreja e o governo italiano?
O Estado fascista, dotado de um corpo de doutrinas absolutamente novas no campo do direito moderno, atacou o liberalismo político e econômico com uma virulência e uma energia que mereceram elogios calorosos, não somente dos fiéis, como do próprio Clero católico. As agitações socialistas e comunistas, a irreligiosidade, a imoralidade pública foram extintas no seu foco principal: a maçonaria italiana, fechada sumariamente por um simples decreto do governo do Sr. Mussolini.
Não se limitando a esta magnífica série de providências, Mussolini restaurou de certa forma as antigas corporações, tão desejadas e apregoadas pelo imortal Pontífice Leão XIII. E, para coroar este conjunto de tão sábias providências e reformas, realizou ele a aliança com o Vaticano, que veio colocar no ápice da organização social italiana a Igreja Católica, que voltou a informar, com seus santos e eternos princípios, toda a vida de família, as escolas, a instrução e a própria vida pública da Itália.
Contra este estado de coisas, levantou-se um alarido intenso nos arraiais dos incréus e dos agitadores profissionais. Enquanto alguns procuravam ferir o patriotismo italiano, insinuando que Mussolini sacrificara, no Tratado de Latrão, os próprios interesses da Itália, procuravam outros espicaçar o orgulho dos católicos, sustentando que o Santo Padre vendera a Mussolini sua própria independência e liberdade de ação, a troco da soberania territorial do Estado do Vaticano.
Com a luta de hoje, vemos a que ficou reduzida a segunda versão. Quando a hipertrofia cada vez mais intolerável do Estado italiano quis invadir a esfera de ação da Igreja, Mussolini encontrou, a barrar-lhe o caminho, a figura austera e majestosa de Pio XI. Foi sem esforço que Mussolini destruiu o socialismo e todas as doutrinas esquerdistas, que ameaçavam dominar a Itália. E, no entanto, a Igreja Católica, que não dispõe de petroleiros nem de dinamites, lhe faz frente, com uma audácia e uma coragem que a História há de perpetuar, como já perpetuou o feito glorioso do Pontífice26 que, séculos atrás, com a Cruz na mão, barrou o caminho a Átila, salvando assim a civilização.
[A Igreja tem o direito de doutrinar a respeito de Fé e de moral]
Quem estuda lealmente a situação italiana não pode deixar de dar inteira razão ao Papa.
A Igreja tem o direito inalienável de doutrinar a respeito de Fé e de moral, de modo absoluto e soberano. E contra este direito nenhuma pretensão é legítima, nenhum controle se pode erguer. Efetivamente, que seria da doutrina de Deus se sua pregação ficasse sujeita aos caprichos de chefes de Estado, e se sua esfera de ação pudesse ser delimitada pelas intrigas políticas das chancelarias, a serviço de tiranos ou de massas ignaras? Depressa teria sido corrompida a doutrina ensinada por Deus, e caído em completo olvido a verdade que Ele revelou. Desta constatação resulta que: 1) a pregação da Fé e da Moral pertencem exclusivamente à Igreja; 2) conseqüentemente, os limites desta pregação só por Ela podem ser traçados.
Não se compreende que o Estado não adote a moral dos cidadãos. Seria, efetivamente, um absurdo imaginar uma multidão de indivíduos moralizados, mas que, coletivamente, agiriam imoralmente. Não se compreende um Estado de população católica que não seja católico. E isto porque é intuitivo que o Estado, que é um conjunto de indivíduos politicamente organizados, não pode ter atributos e caracteres diferentes das parcelas que o compõem.
Vemos, portanto, quanto é descabida a pretensão fascista de impor à mocidade uma educação acatólica, e portanto anticatólica. Exorbita primeiramente da esfera de um governo, imiscuindo-se em assuntos de ordem meramente espiritual. Em segundo lugar, insulta sentimentos profundamente enraigados no coração da catolicíssima Itália.
[O governo fascista calunia o Papa quando afirma que a Igreja se envolve na política italiana]
Dizer que a Igreja faz política, como sustenta Mussolini, é uma afirmação dúbia. Se por política se deve entender qualquer atividade que diz respeito à vida pública na nação, a Igreja faz política, quando obriga o cidadão a prestar obediência a seu governo, quando obriga cada católico a agir com a máxima honestidade e elevação de sentimentos, quando moraliza as massas e quando combate o crime. E desta política, que tem sido triunfante num longo magistério de vinte séculos, Ela nunca abdicará, por mais forte que seja a pressão dos esbirros do regime fascista.
Mas se por política se quer entender um conjunto de atividades que se exercem na vida pública, em uma esfera que escapa à fiscalização da Igreja, por não ter a menor relação com a Fé ou com a Moral, afirmo claramente que o governo fascista calunia indignamente o Santo Padre quando afirma que a Igreja se envolve na política italiana.
De fato, qual a razão pela qual o violentíssimo Mussolini não reduz a prisioneiro o Santo Padre? É simplesmente o receio da pressão da opinião católica no mundo inteiro. Ora, Mussolini tem atualmente em suas mãos os arquivos de todas as sociedades católicas: dispõe, no momento, das mais reservadas informações relativas à ação católica. Por que não publica ele os documentos comprometedores de que se diz possuidor? Por que não atende ele a um desafio que, neste sentido, lhe lançou o Santo Padre? Não se diga que é o receio que lhe peia os movimentos. Efetivamente, de nenhuma força moral disporia um Pontífice que fosse colhido em flagrante delito de mentira. A publicação de tais documentos seria um golpe mortal desferido pelo Sr. Mussolini na própria cabeça da Igreja, a Santa Sé. Desmentido, desmoralizado, nada poderia Pio XI contra as violências do fascismo.
No entanto, o mundo civilizado não viu um só documento, não contemplou uma única prova, não recebeu sequer uma satisfação. Por enquanto, o fascismo só lhe forneceu meras afirmações destituídas de qualquer credibilidade. E neste silêncio vemos uma circunstância providencial que inocenta o acusado e acusa o próprio acusador!
[Privar a Igreja do direito de educar é privá-la de sua missão]
Vamos agora ao segundo ponto: a educação da mocidade. O Sr. Mussolini pretende monopolizar a educação da juventude. Quem poderá sustentar a liceidade desta pretensão?
Privar a Igreja do direito de educar os povos é privá-la de sua missão. E sem se contradizer a si própria, não poderia ela concordar com semelhante violação.
Vemos, portanto, que são infundados os golpes que o fascismo pretende desferir contra a Igreja, e que são falazes as afirmações que ele lança ao mundo.
E o que faz a Igreja? Defende-se com mansidão e indulgência. Enérgica e inflexível contra o erro, ela levou a cordura até os limites que não poderiam ser ultrapassados sem se transformar imediatamente em cumplicidade e fraqueza. E agora, quando um respeito elementar a si própria a levou a campo, não prega ela a insurreição contra o fascismo, nem pede a restrição dos direitos legítimos do governo italiano. Pede apenas que lhe seja dado o que é seu, e que a seus próprios adversários sejam conservados os poderes legítimos de que podem dispor.
Tomem cuidado, porém, os inimigos da Igreja! Berryer27, o imortal defensor de Ney28, dizia: “A Igreja não retribui os golpes que recebe; tome cuidado, porém, porque ela é uma bigorna que tem desgastado muitos martelos!”
Plinio Corrêa de Oliveira
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“O Estado de São Paulo”, 26/7/1931
O reatamento das relações diplomáticas entre o Brasil e a Rússia29
Circula com bastante insistência a notícia de que elementos profundamente ligados a nossas classes conservadoras, por uma aberração difícil de explicar, pleiteiam nos bastidores do cenário político o reatamento de nossas relações diplomáticas com a Rússia.
Os argumentos invocados em favor de tal medida repousam sobre bases eminentemente comerciais. As vantagens que a Rússia poderia oferecer, como escoadouro para nossa produção de café, o proveito que nos adviria da importação da gasolina e do trigo da Rússia, são as miragens com que se procura, agora, iludir a proverbial boa-fé do povo brasileiro.
Embora se queira atribuir ao reatamento de nossas relações diplomáticas com a Rússia um cunho estritamente comercial, suas conseqüências no terreno doutrinário e político a nenhum observador sensato podem passar desapercebidas.
Examinemos primeiramente o aspecto doutrinário. Se considerarmos o comunismo uma organização social ilegítima, baseada na supressão de direitos inalienáveis do homem, como sejam a liberdade e a propriedade, devemos ver nos produtos fornecidos pelo Estado Russo um mero fruto de extorsões e pilhagens injustificáveis. Permutar tais produtos por nosso café é, pois, dentro da moral atualmente reinante, negociar com objetos ilicitamente subtraídos a seus proprietários. É operar transações que nossas próprias leis privadas proscrevem, como sejam os contratos com os possuidores de coisas indebitamente apropriadas.
Se o Brasil não quiser aceitar esta situação humilhante, deve reconhecer a legitimidade do poderio exercido pela Rússia sobre os bens extorquidos aos particulares. Será o reconhecimento da legitimidade do comunismo, que, de doutrina ilícita, passará a simples doutrina inconveniente. Será privar o atual estado de coisas do anteparo de uma tradição moral milenar, para atirá-lo na arena das discussões econômicas, onde tão facilmente podem ser iludidas as massas por agitadores que, ao mesmo tempo que lhes burlam o raciocínio frágil, lhes favorecem o surto de paixões inconfessáveis!
Por outro lado, a experiência tem demonstrado que todos os agentes diplomáticos do governo comunista, são conspiradores inveterados, que se prevalecem das imunidades diplomáticas, para mais facilmente subverter a ordem social dos países junto aos quais estão acreditados. É este o caso do embaixador russo junto à França, que o governo francês teve de expulsar, por ter apurado que ele havia transformado a legação russa em Paris, em foco de agitações comunistas no exército francês. Foi este o caso da embaixada russa junto à corte de Jorge V, que foi suprimida pelo governo Baldwin depois do varejamento da Associação Comercial Arcos, em que se haviam colhido as provas de que o embaixador soviético era o chefe de um vasto plano revolucionário que se estendia por todas as colônias do Império Britânico. São estes casos notórios, e nos jornais da época em que se deram ocuparam colunas inteiras. Nada é, portanto, mais fácil, do que consultar a este respeito as coleções de nossos jornais, correspondentes àqueles anos.
Vamos agora à documentação que os próprios soviets nos fornecem.
No “Pravda” do dia 15/9/1927 (jornal oficial russo) Stalin declarou que é o partido comunista russo que dirige o governo soviético. Ora, este partido é uma mera seção da III Internacional, que procura incendiar o mundo com as labaredas que devoram a Rússia. Daí se infere que, praticamente, é a III Internacional que governa a Rússia. Seria, pois, de espantar que toda a diplomacia russa não fosse orientada segundo o desejo constante de fazer da Rússia um mero ponto de apoio da revolução proletária mundial.
Eis, aliás, o que declarou Bukharin30, no “Pravda” de 10/1/1926: “Havemos de responder negativamente à pergunta sobre se há de ser eterna a revolução mundial, porquanto nós, caudilhos do proletariado e do socialismo, não podemos existir sem um fim a cumprir. Somos ainda fracos. Temos inimigos como os Estados Unidos e a Inglaterra. É evidente que algum dia explodirá um conflito inevitável. Se a revolução mundial não nos ajudar, pereceremos. Se ainda vivemos e temos vigor é graças aos esforços das classes operárias de todos os países, que estorvam as suas burguesias de dar cabo de nós… Nosso caminho não é, não pode ser outro senão o da revolução mundial” (Revista “Sal Terrae”, abril 1931).
No seu número de 9/9 de 1915, o “Pravda” declara: “A natureza mundial do nosso programa não é palavrório oco, mas sim realidade que tudo abarca e imerge no sangue. Nosso fim último é o comunismo universal, nossas precauções para a luta tendem a uma revolução mundial, a estabelecer a ditadura proletária mundial. Nosso programa visa, abertamente, o mundo burguês, mortífero guante” (idem).
Vemos aí a confissão do réu. Por toda a parte, têm as legações russas sido introduzidas a título de representações meramente comerciais. Por toda a parte, porém, não tardou a fervilhar a luta social, convulsionando os povos que as relações com a Rússia deveriam beneficiar.
E as declarações abertas dos próceres do comunismo nem tentam, sequer, ocultar esta situação comprometedora.
Devemos esperar de nossas classes conservadoras mais esta forma inesperada e triste de suicídio?
1) (N. do E.) {ele}.
2) (N. do E.) Um resumo deste discurso foi publicado no “Legionário”, nº 73, de 25/1/1931.
3) (N. do E.) No pensamento do orador, imensas são apenas as hostes do mal, como logo em seguida ele esclarece.
4) (N. do E.) Nada explica o trágico caráter absurdo de viver.
5) (N. do E.) As duas omissões deste parágrafo: {de trevas} e {de}.
6) (N. do E.) {-lhe}.
7) (N. do E.) “Mansos e humildes de coração” (cf. Mt 11, 29).
8) (N. do E.) “O Senhor Deus dos Exércitos” (cf. Rm 9, 29).
9) (N. do E.) Mt 28, 19.
10) (N. do E.) Com a mão militar, isto é, com a força militar.
11) Claro está que nem por isto devemos proibir aos protestantes e outros acatólicos que dêem, particularmente, aulas de sua religião a seus filhos, que se casem perante um juiz de paz, e não perante o sacerdote católico, etc. No entanto, rejeitamos formalmente a tese de que, uma vez dadas aos católicos as regalias a que têm direito, sejam as mesmas concedidas às outras “igrejas”.
Efetivamente, como demonstramos, o Catolicismo, como Religião da imensa maioria, deve ter uma situação privilegiada no Brasil. Nos países em que a imensa maioria pertença a outra religião que não a nossa, deve esta ocupar uma situação proeminente, que os católicos devem esforçar-se por respeitar. Quer isto dizer que devem as minorias católicas preferir o protestantismo oficial ao agnosticismo oficial, o que, aliás, tem sido escrupulosamente feito.
Já reproduzi, em artigo anterior [cf. A ciência e o indiferentismo religioso, “O Legionário”, nº 61, 13/7/1930] o significativo fato de ter o Cardeal-Arcebispo católico de Londres protestado contra uma tentativa de se desoficializar a “Igreja” oficial protestante da Inglaterra. E o Cardeal dava como razão que [sendo] a Inglaterra país de maioria protestante, justo era que tivesse lá o protestantismo suas garantias e suas regalias.
12) (N. do E.) {foi}.
13) (N. do E.) {E}.
14) (N. do E.) Cf. Os Padres e o Casamento [I], “O Legionário”, nº 72, 11-1-31.
15) (N. do E.) Eis os termos do decreto, publicado no dia 29 de abril, e transcritos neste mesmo número do “Legionário”, na 1ª página:
“Art. 1º – Fica facultado, nos estabelecimentos de instrução primária, secundária e normal, o ensino a religião.
“Art. 2º – Da assistência às aulas de religião haverá dispensa para os alunos cujos pais ou tutores no ato da matrícula a requererem.
“Art. 3º – Para que o ensino religioso seja ministrado nos estabelecimentos oficiais de ensino, é necessário que um grupo de, pelo menos, 20 alunos se proponha a recebê-lo.
“Art. 4º – A organização do programa do ensino religioso e a escolha dos livros de texto, ficam a cargo dos ministros do respectivo culto, cujas comunicações a esse respeito serão transmitidas às autoridades escolares interessadas.
“Art. 5º – A inspeção e vigilância do ensino religioso pertence ao Estado, no que respeita à disciplina escolar, e às autoridades religiosas, no que se refere à doutrina e à moral dos professores.
“Art. 6º – Os professores de instrução religiosa serão designados pelas autoridades do culto a que se referir o ensino ministrado.
“Art. 7º – Os horários escolares deverão ser organizados de modo que permitam, aos alunos, o cumprimento exato de seus deveres religiosos.
“Art. 8º – A instrução religiosa deverá ser ministrada de maneira a não prejudicar o horário das aulas das demais matérias do curso.
“Art. 9º – Não é permitido aos professores de outra disciplina impugnar os ensinamentos religiosos ou de qualquer outro modo ofender os direitos de consciência dos alunos que lhes estão confiados.
“Art. 10º – Qualquer dúvida que possa surgir a respeito da interpretação deste decreto deverá ser resolvida de comum acordo entre as autoridades civis e religiosas a fim de dar à consciência das famílias todas as garantias de autenticidade e segurança do ensino religioso, ministrado nas escolas oficiais.
“Art. 11º – O governo poderá, por simples aviso do Ministério da Educação e Saúde Pública, suspender o ensino religioso nos estabelecimentos oficias de instrução quando assim o exigirem os interesses de ordem pública e a disciplina escolar.”
16) (N. do E.) {ao País}.
17) (N. do E.) {dos}.
18) (N. do E.) Este manifesto foi impresso num volante. Na parte superior de um dos exemplares o Autor colocou a seguinte nota: “Trabalho que escrevi a pedido de Mons. Pedrosa, Vigário Geral interino, no dia 4-VI-31. Foi feita do trabalho uma edição de alguns milheiros. Um aeroplano jogará alguns sobre a cidade. Foi feita uma larga distribuição nas Escolas Superiores.”
A razão de ser do documento era a seguinte: o Governo Provisório havia instituído o ensino religioso nas escolas, levando à reação indignada de protestantes, agnósticos e adeptos de outros credos, que receavam a obrigatoriedade da instrução católica. Era um mero pretexto insuflado pelos adversários da Igreja. Dr. Plinio, então jovem advogado de 22 anos, demonstra a falta de fundamento da objeção e o direito de as crianças católicas estudarem sua religião.
19) (N. do E.) Inicialmente noticiado e resumido no “Legionário” nº 73, de 25/1/1931, foi posteriormente transcrito no nº 88, de 11/10/1931.
20) (N. do E.) {voz da Igreja Católica, Apostólica}. Por erro tipográfico, repete-se neste ponto uma linha do parágrafo anterior, e falta outra que se procurou suprir com o trecho entre colchetes.
21) (N. do E.) Por uma falta no original perdeu-se uma linha de 35 toques.
22) (N. do E.) “A verdade do Senhor permanece para sempre” (Sl 116, 2).
23) (N. do E.) A vôo de pássaro. Em sentido figurado quer dizer: por alto, superficialmente, de relance.
24) (N. do E.) Cf. “O Legionário”, nº 50, 12/1/1930.
25) (N. do E.) Breno, ou Brennus. Sinônimo de chefe. Atribuído pelos romanos ao chefe gaulês que tomou Roma em 390 a.C. Breno consentiu em abandonar Roma sob pagamento de um resgate de 1000 libras em ouro. Enquanto se procedia à pesagem do ouro, os romanos reprovaram os gauleses, acusando-os de usarem pesos falsos. Breno, então, lança seu pesado gládio na balança, exclamando: Væ victis! – Ai dos vencidos!
26) (N. do E.) São Leão Magno.
27) (N. do E.) Nicolas Berryer (1757-1841) – advogado francês, célebre pela defesa que fez do Marechal Ney, quando este foi julgado pela Corte dos Pares, após a segunda Restauração.
28) (N. do E.) Marechal Michel Ney (1769-1815) – Duque de Elchingen e Príncipe de Moscou, cognominado por Napoleão de “o bravo dos bravos” pela bravura demonstrada sobretudo na campanha da Rússia. Tendo sido partidário de Luís XVIII, que o nomeou Par de França, entretanto declarou-se por Napoleão na Guerra dos Cem Dias, e combateu heroicamente em Waterloo. Após a segunda Restauração foi condenado à morte pela Corte dos Pares e fuzilado.
29) (N. do E.) Nota manuscrita do Autor, na cópia do artigo que guardou consigo: “Escripto por mim, com o pseudonymo ‘X’. Publicado na Secção Livre.”
30) (N. do E.) Nikolai Ivanovitch Bukharin (1888-1938), político comunista, redator-chefe do “Pravda”. Apoiou Stalin nos primórdios da Revolução, mas, anos mais tarde, começou a opor-se-lhe, tendo por fim sido condenado em 1938 e executado.
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