Viajando pela Alemanha
Em minha primeira infância, eu sentia uma espécie de harmonia interna, por onde via tudo bem-ordenado e aconchegado, sem lutas interiores. De maneira que tinha, sucessivamente, estados de espírito bem diversos, os quais não entravam em choque uns com os outros, por mais diferentes que fossem. Isso me dava um grande gáudio, parecendo brotar de uma fonte muito mais alta do que eu, inundando-me. E isso já era assim antes dos três anos de idade.
Daí provinha uma grande felicidade de viver. O fato de eu ser eu, dava-me muito contentamento. Não me reputava melhor do que outros, nem teria agilidade intelectual para fazer essa comparação, mas eu me conhecia e me alegrava de haver em mim essa harmonia, essa recíproca coesão e essa diversidade de aspectos de alma. Donde eu ser muito amigo das coisas ordenadas, direitas e bem-arranjadas.
Na praia de Binz
Comecei depois a ter noção de que essa harmonia existia também nas coisas externas a mim. O exemplo mais antigo disso foi nossa viagem à ilha de Rügen, no Mar Báltico.
Por recomendação médica, mamãe deveria passar alguns dias de repouso nesse local, onde havia uma praia chamada Binz. Fomos, então, de trem, até um porto alemão de cujo nome não me recordo, onde um navio nos esperava. O trem entrava na embarcação, com os passageiros permanecendo sentados nos bancos, o que fazia o encanto deles: parecia uma aventura prodigiosa! Isso causou em minha família uma enorme impressão. Não me lembro de mamãe no trajeto, mas recordo a idéia de grandiosidade, um pouco tenebrosa, que tive quando o trem entrou no navio. Os vagões passavam sobre a soldadura dos trilhos e faziam um ruído característico. Todos estavam alvoroçados com aquilo, mas eu senti que tudo ali era pancada e violência, e pensei: “Isso não vai com minha harmonia. Não se fica alegre assim! Se eu me alegrasse dessa maneira, quebraria esta ordem cheia de unção que existe dentro de mim”. Não usava esses termos, mas era o que eu sentia.
Aportamos em Rügen, o trem entrou nos trilhos e foi para o outro lado da ilha, onde estava a praia. Lembro-me dela: que praia linda! A areia era muito abundante, branca e macia, e o mar era imenso. Ao menos parecia-me. Tudo era arranjado de um modo como eu nunca tinha visto: havia círculos fundos escavados na areia, com pequenas cabines e assentos de lona para duas ou três pessoas.
Cada família tinha direito a um espaço na areia, em torno das cabines. Lembro-me de mim mesmo, sentado, brincando ao sol com pazinha e baldezinho. Eu sentia uma enorme coesão interior com aquela areia! Em certo momento, levantei-me e olhei para o mar: um azul fantástico! Senti coesão também com ele e pensei: “Como isto me diz respeito! Como se relaciona comigo! Que coisa magnífica! Que bom é isto, e como é bom eu ser eu!”.
Meu pai, entretanto, gostava de fazer umas brincadeiras comigo dentro daquela cabine. Naturalmente não as fazia com minha irmã, por ser mais frágil. Levantava-me e colocava-me de cabeça para baixo, suspendia-me e fazia-me cair de cambalhota no chão. Entrava-me areia na boca…
Passamos vinte e um dias em Binz.
No hotel de Wiesbaden
Depois disso, estive com a minha família em Wiesbaden, cidade muito bem organizada, onde havia uma estação de águas, recomendada a minha mãe pelo médico, pois naquele tempo usava-se com freqüência a água mineral para tratamentos de saúde.
Íamos todos em grandes automóveis de aluguel e, em certo momento, percebi uma discussão entre meu pai e minha avó. Ela dizia:
– Qual é o hotel?
Meu pai mostrou de longe:
– Vamos para aquele hotel.
Aproximando-nos, vi que sobre ele havia a figura enorme de um bode preto e o letreiro dizia:
“Schwartzer Bock” [Bode Preto]. Ela olhou e perguntou:
– Mas que bode preto é esse?
Meu pai disse:
– Não sei por que se chama assim, mas é um bom hotel.
– Eu não entro em hotel com bode preto! João Paulo, isso é estranho, você não pensou!?
Ele era muito amável com ela, mas queria hospedar-se ali e, dando risada, afirmou:
– Mas, Dª Gabriela, isso não tem nada! É um bode qualquer que puseram aí…
– Não! Eu sei bem como são as coisas… A esse não vou! Vamos para outro hotel.
Wiesbaden Estação ferroviária de Wiesbaden
Eu nem entendia a discussão, mas não gostei do bode. Como não tinha voz ativa nesse “capítulo”, não disse nada e fiquei quieto. Entretanto, mamãe interveio em favor de minha avó e fomos então para outro hotel, chamado Nassau. Lembro-me que este era enorme, imponente e pomposo. Tinha uma sala de jantar comum para todos os hóspedes – crianças inclusive – ao fundo da qual havia um cortinado com uma mesa muito bem posta e arranjada, sobre um estrado de vários degraus, alto e bonito. Ouvi meus pais perguntando ao garçom o que significava aquilo e para quem era a mesa. Ele respondeu:
– Quando o Kaiser vem a Wiesbaden, hospeda-se neste hotel. Ele não almoça ou janta no mesmo nível dos outros, mas aí em cima, com as pessoas da corte imperial. Quando ele chega, abrem-se as cortinas e é tocado o hino Deutschland über alles [Alemanha acima de todos]. Depois ele se senta, batem palmas e ele agradece.
A atenção dos empregados estava toda voltada para a idéia de que o Kaiser podia aparecer de uma hora para outra, pois estávamos em período de férias. Fiquei muito entusiasmado! Eu passava as minhas refeições olhando para aquele estrado e achando-o magnífico. Como seria o Kaiser? Eu nem sabia bem o que significava “Kaiser”, mas todo o mundo falava dele como sendo uma pessoa quase onipotente. Era chamado “Senhor da Guerra”. E eu o imaginava cercado de raios, achando aquilo uma coisa linda!
Infelizmente, ele não esteve lá e o estrado ficou vazio… Eu teria ficado encantado de ver o Kaiser entrar com a Kaiserine, com todos de pé, fazendo reverências e ouvindo o hino alemão. Mas o Kaiser não tomou em consideração que uma criança brasileira desejava vê-lo, e não apareceu no hotel durante esse tempo…
“Pimbinchen”
Lembro-me de alguns fatos nesse hotel. Devido à influência de Fräulein Mina, eu já sabia algo de alemão e, sendo muito comunicativo, abordava qualquer um e falava com todo mundo, contra todas as regras…
Um dia serviram pombinhos no almoço e eu – sempre muito interessado em assuntos gastronômicos – comi vários deles tendo manifestado uma alegria enorme. Nos dias subseqüentes, quando o garçom entrava, eu já ficava esperando de longe, para ver se apareciam os pombinhos e, quando de fato vinham, eu dizia em voz alta:
– Mamãe, mamãe, olhe lá! Pombinhos!
– Sim, meu filho, está bem. Deixe o pombinho chegar e você o come.
Mas eu continuava:
– Mamãe, pombinhos! – e batia palmas… Ela fazia sinal para cessar o ruído, pois estávamos num hotel de muita solenidade. Afinal de contas, eu festejava demais os pombos… Mas à força de tanto gostar deles, começaram a prepará-los com mais freqüência e mandavam-nos logo à minha mesa, deixando-me contentíssimo! Eu comentava os pombinhos com o copeiro, o qual, naturalmente, também gostava de conversar comigo, mas o meu alemão era “macarrônico”! Pombo em alemão se diz Taube, e eu deveria dizer Täubchen, pois “chen” é o diminutivo. Mas fazia uma confusão: compunha “pombo” com “chen” e dizia pombinchen, o que não era alemão, nem português! Era uma mescla de sub-alemão e de nulo-português…
Esse garçom, quando entrava, já me fazia um sinal de longe: estendia o braço com uma travessa cheia de pombinhos assados, dando um sorriso muito afetuoso e amigo, procurando falar português comigo. Mas em vez de dizer pombinchen, como eu, ele dizia:
– Pimbinchen!
E eu batia palmas, de novo repetindo:
– Pimbinchen, pimbinchen!
Mamãe ficava contente de vê-lo agradando-me. Ela me deixava utilizar essa palavra e não me corrigia, pois todo o mundo na família achava graça. E vem daí o apelido com que ela começou a me chamar: “Pimbinchen”, dando a entender que a inocência do filho dela era como a de um pombo.
Ela se encantava de contar esse fato, no fundo, para dizer que o garçom gostava de mim… Então, quando queria lembrar aquele tempo de especial afeto, tratava-me assim e escrevia nas cartas: “Meu Pimbinchen”, para dar a entender que ela continuava a querer-me bem com a mesma maternalidade do tempo em que eu tinha três ou quatro anos. Uma vez ou outra ela traduzia para o francês e escrevia: “Meu Pigeon querido”.
A casa das curas
Até hoje me lembro do lugar das águas de Wiesbaden: chamava-se Kurhaus [Casa das curas] e nela estava a Kursaal [Sala das curas], onde se cruzavam duas enormes galerias com arcadas, em cujo centro havia uma rotunda com uma grande cúpula, a qual me causava uma impressão extraordinária. Ali havia um dispositivo em forma de T, cujo ponto de interseção era muito alto, e dele jorrava um grande jato de água quente e sulfurosa.
Cada pessoa pagava e recebia um copo numerado, que era guardado numa caixeta. Tudo organizado na perfeição! Todos se aproximavam da fonte e entregavam seus copos a um homem que tinha uma vara, em cuja ponta havia um grampo para pendurá-los. Ele então enchia-os de água borbulhante e devolvia-os às pessoas. Depois um outro empregado lavava os copos e guardava-os.
O odor daquela água mineral, o calor do sol que batia no teto todo feito de cristal, aqueles casais opulentos passeando de um lado para o outro e cumprimentando-se, aquilo tudo constituía uma atmosfera de luxo, de boas maneiras, de distinção e de saúde, que me comprazia muito.
A estação de curas era longa: tínhamos de permanecer vinte e um dias ali. E como a medicina do tempo afirmava que aquela água fazia muito bem, então a família inteira precisava bebê-la, inclusive as crianças. Íamos todos os dias à Kurhaus, bem mais cedo do que minha mãe; e a Fräulein levava-nos pelas mãos e andava ao modo militar; mas minha irmã e eu não tínhamos o passo bastante grande para acompanhá-la, e então ela dizia:
– Depressa, depressa!
Íamos correndo como podíamos… e eu sempre para trás. Então ela dizia:
– Pliniôô, schnell [depressa]!
Eu fazia o possível…
O jardim da Kurhaus
Eu me encantava com aquela Kurhaus, aquelas arcadas, aqueles vidros coloridos e aquela organização. O estabelecimento tinha também um parque maravilhoso e colossal para a minha ótica de menino, onde passeávamos e brincávamos todas as manhãs, sob a direção de Fräulein Mina.
Olhando aqueles gramados enormes, lindíssimos e muito bem cortados, eu pensava: “Não sei se essa grama já nasce assim, ou se eles a cortam. Não calculo quantos homens devem ser necessários para cortá-la, nem em que momento eles o fazem. Eu chego, sento-me aqui e não vejo ninguém cortando-a. Os jardins que conheço não são assim… Neles, os tufos de grama são desiguais e não têm essa ordem. E eu fico contente vendo isto aqui!”.
Ali havia árvores estupendas e uma espécie de cercado reservado às crianças. A nossa brincadeira era um pouco triste, pois só estávamos minha irmã e eu, já que os nossos primos haviam ido para a Suíça. Duas crianças sozinhas naturalmente brincam com pouca animação, mas ficávamos horas nesse jardim, andando de um lado para outro. Havia também algumas lagoas com cisnes, patos e uns gansos enormes e gordíssimos. Um homem vendia pacotinhos com pedaços de pão muito bem cortados e nossa melhor brincadeira consistia em dar de comer a esses animais.
Os encarregados de guardar os cisnes viam que éramos crianças inofensivas e deixavam-nos fazer o que quiséssemos. Então entrávamos pelo gramado, chegávamos até a beirada da lagoa e os cisnes ficavam esperando. Jogávamos o pão e um deles vinha majestosamente, pondo o bico amarelo dentro da água e comendo. O pão se molhava, naturalmente, e entrava muito mole na boca do cisne, o qual não tinha dificuldade em engoli-lo. Ele levantava a cabeça de novo, com a calma de quem não estivesse mastigando nada e deixava aquilo ir passando pela sua garganta enquanto nadava. Às vezes, ele molhava o bico e ficava um pouco de água escorrendo na ponta. Então sacudia a cabeça para secar o bico e depois continuava a nadar. Eu gostava muito de olhar o cisne, pois seus movimentos tinham um ar aristocrático.
Também havia ali pombinhos muito engraçados: pequeninos e gorduchos, com asas de cor cinzenta, misturada com verde e prateado, o que formava uma combinação muito bonita. Eram totalmente inofensivos e não seríamos crianças brasileiras se não levássemos pão para eles também, o que mamãe aprovava.
Mordido por um ganso
Eu era muito amigo dos gansos. Eles vinham comer em nossas mãos e se aproximavam desajeitadamente, dando-me a impressão de serem muito saudáveis! E eu, que era, pelo contrário, um menino débil, pensava: “Esse ganso parece uma seringa. Se pudesse apertar essa seringa e fazer a saúde dele passar para mim…!”.
Ao dar-lhes de comer, tínhamos de se ágeis, pois eles às vezes bicavam as mãos das crianças. Um dia, demorei para tirar a mão e um deles me bicou. Talvez o pedaço de pão que lhe havia dado fosse menor do que ele queria… Mas aquela bicada, inesperadamente forte para mim, violava as “regras do jogo”! Não encontrei nada melhor do que chorar, ato contínuo. Queixei-me do ganso – ao que ele foi inteiramente indiferente – e fiquei furioso; mas, previdente sempre, não ousei uma contra-ofensiva, pois eu era tão pequeno que ele poderia dar-me um empurrão e derrubar-me no chão. E eu não queria saber de desastres!
A Fräulein examinou meu dedo, para ver se tinha alguma lesão. Como não havia nenhuma, também foi inteiramente indiferente ao meu infortúnio e, além do mais, repreendeu-me por ter deixado o ganso bicar meu dedo e… porque chorei:
– Homem não chora!
Pensei: “ainda mais essa?”, achando que a Fräulein e o ganso eram muito ruins…
Um casal de condes poloneses
Nesse jardim da Kurhaus encontramos um casal de condes poloneses, idosos e riquíssimos, os quais também estavam passando uma temporada ali. Tomados de curiosidade, em certo momento eles perguntaram à Fräulein:
– De que parte do mundo são essas crianças?
Ela explicou que éramos de Brasilien.
– Ah, do Brasil! Onde é isso?
– Na América do Sul.
– E essas duas crianças são irmãs?
– São.
– Mas como se explica que ele seja louro, com pele muito clara, e a irmã seja morena e de cabelo preto?
Não sei que resposta ela deu, pois nem entendi. Mas isso no Brasil é uma coisa explicável: meu pai era de Pernambuco, estado outrora muito habitado por holandeses e de vez em quando acontece de emergir um louro nas famílias pernambucanas.
Era um casal muito amável. Percebendo que falávamos francês e um pouco de alemão, começaram a conversar conosco todos os dias e achavam muita graça em nós. Eu, que naquele tempo era mais falante do que minha irmã – entretanto muito viva, animada e inteligente –, chamei mais especialmente a atenção deles. Pediam-me que narrasse histórias e eu então me punha de pé e contava… Eles davam risadas. Em certo momento perguntaram meu nome e aprenderam a pronunciá-lo. Então disseram:
– Plinio, você gosta de parques como este?
– Gosto muito.
– Você tem isso, lá no Brasil?
– Não, não tenho.
– Você gostaria de morar num lugar onde houvesse parques assim?
– Gostaria.
– O que você quereria que houvesse nesse lugar?
Eu, muito loquaz, logo comecei a descrever um parque ideal, com isso, aquilo e aquilo outro… Eles disseram:
– Tudo isso existe no parque de nosso castelo.
Eu perguntei:
– Mas tem carrinho puxado por cabra, para passear?
– Tem!
– E eu mesmo posso guiá-lo?
– Pode!
Evidentemente havia o que eu quisesse… Eu não percebia que eles inventavam uma boa parte daquilo e, naturalmente, ia ficando maravilhado. Eles continuaram:
– Então, você gostaria de visitar nosso castelo?
– Hum! Se tem tudo isso… Quero!
– Então, vamos!
– Está muito bem, vamos sim!
– Mas diga uma coisa: você quereria morar conosco nesse lugar maravilhoso, na Polônia?
– Quero muito!
– Então, nós o adotaríamos como filho.
Como eles não tinham filhos, queriam adotar-me! Diziam que era só passar uma escritura e me deixariam uma fortuna enorme. Eu não sabia bem o que era isso, mas achei ser algo inócuo, contanto que pudesse me divertir bem… Então disse:
– Ótimo. Está resolvido! Vou falar com mamãe e vamos. Mamãe vai junto, não é?
– Com mamãe, não. Ela não vai. Você terá de deixar a mamãe no Brasil e vir conosco.
– Ah, isso não! Deixar mamãe? Absolutamente não! A condição é ir com mamãe. Se ela não for, eu também não vou.
– Mas você esquece dela…
– Não, não, não, não!
É propriamente como o mundo tenta as pessoas… Então eles disseram:
– Bem, vamos deixar isso para depois e outro dia decidiremos. Agora continuemos falando do parque e do castelo.
No dia seguinte eles retomavam a história e a tentação recomeçava. Inúmeras vezes eles voltaram à carga, cada vez descrevendo o lugar de modo mais bonito. Eu ia deixando-me atrair, mas quando chegava a hora de abandonar mamãe, nunca queria ir para a Polônia… No fim acontecia sempre a mesma coisa: a Fräulein dava o sinal da partida, eu me levantava e dizia “até logo” para os condes.
Certo dia, mamãe apareceu no parque para ver quem eles eram e então disseram-lhe:
– A senhora é muito querida por seu filho! Tentamos convencê-lo de todos os modos a ir conosco para a Polônia, mas não houve jeito!
Graças a Deus, isso foi assim até o fim da vida dela. Alguns considerariam que eu perdi, pela primeira vez – não porém pela última – uma oportunidade de fazer carreira na vida; mas creio que fiz uma escolha fundamentalmente muito boa! Nunca tive a menor dúvida a esse respeito.
Uma meditação sobre a morte
Perto da estação de águas havia falecido, em outros tempos, uma pequena duquesa russa[1]. Ela certamente estava muito doente e foi se tratar em Wiesbaden; mas, infelizmente, as águas não lhe fizeram o bem esperado e ela morreu. Entretanto, afirmara estar tão encantada com a cidade que desejava ser sepultada numa igreja erigida ali. Os seus pais, riquíssimos, mandaram construir uma capela em certa elevação nos arredores de Wiesbaden, a qual depois se tranformou em lugar de turismo. E meu pai levou-me com minha irmã e a inseparável Fräulein, para visitarmos esse local.
Capelinha russa
Era preciso subir a colina num teleférico e esta foi minha primeira viagem num “trenzinho” assim. A capela, em estilo russo, era da Igreja Ortodoxa, mas eu não entendia nada disso e achava que todas as igrejas do mundo eram católicas. Tinha cúpulas douradas em forma de cebola e, perto dela, cresciam árvores cujas pontas lhe serviam de moldura. Subimos à torre que, em cima, formava arcos e pudemos ver o sino de perto. Essa proximidade com o sino me deixou encantado! Eu não estava habituado a isso, pois os sinos das igrejas de São Paulo eram objetos postos em tais alturas, que os mortais não se aproximavam deles.
Do alto da torre descortinava-se todo o ambiente daquela zona, e lembro-me que meu pai me colocou de modo a poder olhar o panorama através dos arcos. Fiquei deslumbrado, pois era realmente lindo! Alegre, claro, inocente e lúcido… No primeiro plano havia galhos de árvores lindas, através de cuja folhagem de cores claras viam-se os ramos elegantes e harmoniosos de uma vegetação amiga do homem. Eu contemplava ao longe um terreno suavemente ondulado, de um verde vivo mais leve, com vastidões plantadas e ordenadas: hortinhas, riozinhos, casinhas, telhadinhos vermelhos… Parecia um brinquedo! Aquilo para mim era uma beleza: tinha a impressão de que toda a natureza cantava. Olhava e pensava: “Mas que alegria!”. E, logo depois, refletia: “Como seria gostoso comer aqui!”. Mas não propus isso ao meu pai pois receberia uma reprimenda severa… Então ele disse:
– Você agora vai ver a sepultura da duquesa.
– Sepultura? O que faz aqui uma sepultura?
– Uma duquesa veio se tratar em Wiesbaden e morreu. Então, a família dela mandou construir esta igreja para ela ser sepultada aqui. O túmulo esta aí embaixo. Você quer ver?
Eu hesitei, mas ele não esperou – os pais não são como as mães! –, segurou-me pela mão e já foi descendo, pois ele queria ver aquilo. No tampo da sepultura havia uma escultura do século XIX, em mármore branco: a pequena duquesa era representada num gisant, deitada como se estivesse dormindo em sua cama. Pareceu-me muito engraçadinha e encantadora, mas lembro-me da impressão melancólica que me causou aquela atmosfera sepulcral, ao lado da alegria do ambiente. E pensei: “Coitada da duquesa! Como ela sofreu! Como os seus parentes devem ter sofrido também! Que desapontamento! Que contradição! Como é possível sofrer assim, nesta natureza maravilhosa!”.
Mais tarde, a Fé resolveria essa incógnita; mas eu sentira as asas da morte batendo ligeiramente sobre mim e refleti: “Então, as crianças também morrem? Eu posso morrer? Uuuh!”.
Essa terá sido, provavelmente, a minha primeira meditação sobre a morte. Teria permanecido mais tempo ali para concluí-la, mas meu pai já estava com todas as suas reflexões feitas. Levou-me pela mão, tomamos o funicular e descemos.
Dureza de alma
Depois viajamos um pouco pela Alemanha. Descemos o Reno num bonito barco, como muitos o fazem, e nessa excursão encantava-me contemplar a beleza da vegetação.
Lembro-me de que em certo momento mamãe estava na margem, sentada na cadeira de rodas e olhando o rio, enquanto algumas pessoas passavam na rua, paravam e davam risadas de sua situação. Ela via nisso uma dureza de alma da parte deles, e realmente o era…
Um episódio no Reno
Uma das características da Alemanha é ter excelentes restaurantes por toda a parte, pois o alemão traz consigo permanentemente um grande apetite, o que considero uma bela qualidade. Fomos então almoçar num bom restaurante, situado num castelo no alto de um monte, perto do famoso rochedo de Lorelei. Recordo ainda o automóvel que usamos para chegar até ele: um desses veículos feios, anteriores à Primeira Guerra Mundial, lataria barulhenta, que tossia e cuspia gasolina. Eu não gostava! Subimos uma ladeira onde havia uma espécie de gruta, com a estátua de uma mulher, feita de mármore muito branco, sentada sobre um leopardo, o que deveria representar alguma figura mitológica. Não me lembro do resto do castelo, mas muito bem do restaurante no qual almoçamos.
Acontece que, durante a viagem, eu tinha ouvido comentários de meu tio, o qual entendia muito sobre vinhos:
– Agora vamos tomar o famoso vinho do Reno, junto ao próprio Reno. Os vinhos, longe de seu país de origem, se deterioram um tanto, mas o verdadeiro sabor se sente ao tomá-los na própria região onde eles são feitos. E é um vinho tal, que combina com qualquer alimento. É extraordinário!
Aquilo me deu uma idéia mítica e legendária, e tomei, então, a resolução interior de experimentar aquela delícia chamada “vinho do Reno”… no próprio Reno. E desde essa primeiríssima idade, passei a gostar muito mais dos vinhos brancos do que dos tintos, apesar de nunca ter sido um grande entusiasta de vinhos.
Rio Rhin, AlemaniaEntrei no restaurante antes dos outros e perguntei ao garçom, em alemão, onde estava nossa mesa. Ele deve ter achado graça, mas me indicou. Fui ver como estava preparada e dei a volta nela, contando os lugares e pensando: “Bem, ali vai sentar-se vovó, lá vai sentar-se meu tio, aqui mamãe, aqui papai, aqui Rosée e certamente esse lugar é o meu”. Nisso chegou meu tio e perguntou:
– O que você está fazendo aqui?
– Estou procurando o meu lugar. Onde vou me sentar?
– O seu lugar é aquele.
Olhei e percebi haver nele apenas uma taça de água, enquanto os outros tinham taças de água e de vinho. Voltei-me para meu tio e disse-lhe:
– Está errado…
– O que está errado?
– Está faltando uma taça aqui. Arrumaram mal o meu lugar!
Ele me olhou, deu uma gargalhada e respondeu:
– Não falta nada! É que as crianças não tomam vinho.
Pensei: “Mas como é possível? Que mal eu fiz? Por que essa injustiça? Qual é a razão de eu não poder tomar vinho?”. E disse a ele:
– Isso é uma injustiça! Como não posso tomar vinho?
– Criança não toma vinho! Está acabado!
Ele se retirou e fiquei ali, andando de um lado para outro com as mãos atrás das costas e discutindo interiormente: “Mas por que só eles podem se deliciar com esse líquido tão precioso? Falam tanto do vinho do Reno e não vou tomá-lo?! Não pode ser!”.
Chegaram os comensais, sentamo-nos e a família começou o almoço. Até hoje eu seria capaz de dizer quais as pessoas que estavam à mesa e os lugares em que se encontravam. Minha avó costumava sentar-se ao estilo antigo, sem encostar-se no espaldar da cadeira. Eu era sempre muito falante, ao ponto de ser preciso mandarem-me ficar quieto e deixar os mais velhos conversarem; mas nem sempre estava conformado com isso, pois também tinha o que dizer…
Todos comentavam o vinho do Reno com grandes elogios e eu… bebendo água, mas argumentando interiormente: “Por que fizeram isto comigo? É um absurdo!”. Eu olhava para minha mãe, que não me defendia, e pensava: “Não entendo também por que mamãe está neutra neste assunto…!”. Mas senti que se pedisse vinho, não me dariam…
Terminaram o almoço e ainda tiveram uma prosinha, à boa maneira brasileira. Mas estavam inteiramente distraídos e se esqueceram do menino e da menina… Então, decidi: “Chegou a hora de minha justiça!”. E enquanto se levantavam, esgueirei-me entre eles sem ninguém perceber, fui depressa ao lugar de cada um e bebi o resto de vinho que havia em todas as taças… Eles não notaram, mas eu gostei enormemente do vinho do Reno, percebendo que correspondia ao que diziam!
Eu não sabia a que conseqüências isso conduziria… Em pouco tempo o vinho começou a alegrar-me o coração, e passei a sentir-me vivaz… Daí a pouco, o mais loquaz da família era eu! Em certo momento, tomei uma cadeira e fui empurrando-a – pois não tinha forças para levantá-la – até o centro da roda onde estavam conversando. A minha avó, a personagem mais respeitável do conjunto, muito autoritária, olhou de cima para mim e disse:
– Onde você vai com essa cadeira?
– Vou colocá-la aí, no centro da roda.
– Aí não é o lugar para pôr uma cadeira.
– É o lugar! Pois vou subir nela…
– Muito menos ainda! Não se deve subir sobre as cadeiras. Você quer subir por quê?
– Porque vou fazer um discurso.
– Discurso?! Não é hora de discursos!
– Já está concebido e preparado. Vou fazê-lo.
Essa vocação oratória precoce causou desconfianças, mas todos ficaram atentos, perceberam haver algo de estranho e deixaram-me, para ver o que ia acontecer. Pus a cadeira no meio, subi sobre ela e fiz o discurso… Até aquele momento, eu não tivera a possibilidade de manifestar tudo o que via na família, quando analisava cada um dos parentes. Então comecei a fazer observações psicológicas – consideradas não oportunas – sobre os presentes.
“In vino véritas”, diz-se em latim. Ou seja: “no vinho, a verdade”…
Eles foram olhar os copos… Estavam vazios. Mamãe estranhou aquilo e perguntou:
– Meu filho, você bebeu o vinho que estava aí?
Eu, com toda inocência, disse:
– Bebi, sim senhora.
– Mas bebeu tudo, meu filho?
– Sim, bebi. Estava muito gostoso!
Então, ela me explicou que não se deve beber do copo dos outros, pois é uma indignidade. Todos deram gargalhadas e resolveram tomar o episódio com bom humor, mas acho que isso deve ter apressado a minha família a pagar a conta e sair. Eles foram andando e eu fiquei para trás, mas quando vi que eles estavam se adiantando muito, fui depressa para junto deles e a essa altura já estava completamente transtornado: cantando, gritando e dando cambalhotas. Lembro-me de minha avó saindo, muito majestosa. Em certo momento, comecei a bater no braço dela para que prestasse atenção em mim! Ela queria fingir não ter nada a ver com aquele menino e eu, então, batia com mais força, pensando: “Será que ela não sente?”. Então, mamãe me segurou por uma das mãos, papai pela outra, e eu fui contendo a minha alegria tanto quanto possível até o automóvel, onde me deixaram dormindo, até partirmos de navio para o rochedo de Lorelei. Foi a única vez, em minha existência, que ultrapassei os limites da bebida.
Uma decepção em Colônia
O último fato acontecido nessa viagem pela Alemanha deu-se em Colônia, onde chegamos descendo o Reno.
Fomos para um hotel e levaram-nos até os quartos que nos estavam reservados; mas enquanto meus pais se instalavam, eu abria e fechava as torneiras do lavatório e depois as da banheira. Em certo momento, comecei a chorar, voltei-me para minha mãe e disse indignado:
– Mamãe, isto aqui não vale nada!
Ela, já habituada com as minhas tiradas, pensou: “Vamos ver o que o Plinio inventou agora”.
– O que é, meu filho?
– A senhora abra essa torneira. Tem água comum!
– Mas o que você quer, meu filho?
– Que haja água de colônia! A cidade chama-se Colônia; em Colônia, ao abrir a torneira, deveria sair Água de Colônia!
São as decepções que a vida apresenta ao longo do caminho… Naturalmente, todos os presentes riram e eu fiquei desapontado, pensando: “Por que estão rindo?”. Mas ela interveio com seus agrados… e sosseguei.
Mamãe narrava esses episódios ao longo da vida, com tantas saudades e de modo tão encantador, que me parecia reviver aqueles dias.
Aspectos de Colonia
[1] A duquesa Elisabeth Michaelowno.
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