Da França ao Brasil – 3 – Festa de aniversário no Hotel Royal
Festa de aniversário no Hotel Royal
O dono do hotel em que estávamos hospedados chamava-se Monsieur de Dedrines. Era um homem respeitável e de sangue nobre, proprietário de vários outros hotéis, e que ocupava todo o andar superior do Hotel Royal com sua família, vivendo muito confortavelmente.
Querendo nos distinguir, ele mandou convidar toda a criançada – uma horda grande, efervescente e “tropical”! – para a festa de aniversário de um de seus filhos. Depois, saímos várias vezes junto com esses meninos e guardamos muito boa recordação deles. Esse episódio era narrado por minha mãe, de maneira a mostrar que Monsieur e Madame de Dedrines não faziam isso habitualmente com os hóspedes, pois não podiam pôr os filhos em contato com qualquer um, mas que, bem impressionados pelo aspecto de vovó, eles se sentiram flattés [lisonjeados] em recebê-la e, querendo de algum modo manifestar-lhe especial consideração, mandaram convidar todos os netos dela para a festa, pois achavam sermos nós boa companhia para seus filhos.
Uma princesa russa pedindo auxílio
Há pessoas que são de natureza muito própria a consolar, enquanto outras são naturalmente aflitas. E aquele que é apto para consolar, estando perto do aflito, deve oferecer-lhe ajuda. Isso é uma regra a cujo cumprimento convida o mais simples dos relacionamentos. Um fato ocorrido em Paris ilustra bem essa afirmação.
No mesmo andar do Hotel Royal em que estávamos, em frente ao nosso apartamento, hospedava-se uma princesa russa com sua família. Não me lembro bem dela, mas parece que era uma bonita moça. Não pertencia, entretanto, à família imperial, cujos membros eram riquíssimos e não se hospedariam ali, mas iriam talvez para o Hotel Ritz. E todas as manhãs ela ia passear a cavalo no Bois de Boulogne. Minha mãe e a princesa não chegavam a cumprimentar-se, apesar de verem-se com freqüência, pois as duas famílias não se conheciam. Mamãe apenas a olhava e a admirava…
Um dia, essa princesa foi bater à porta do quarto de mamãe e disse em francês, chorando muito:
– Madame, a senhora me permite? Desculpe-me, mas a senhora tem uma fisionomia de tanta bondade que, apesar de eu não ter nenhum direito de me dirigir à senhora para expandir a minha dor, pois não nos conhecemos, peço licença para entrar um instante aqui e chorar um pouco. Tenha paciência comigo e vou expor-lhe uma grande mágoa, uma verdadeira tragédia!
Mamãe logo se encheu de compaixão, deixando imediatamente abertas as portas de seu coração:
– Entre, faça o favor. Sente-se e vamos conversar.
A princesa sentou-se e chorou o quanto quis… Então mamãe perguntou:
– Mas o que há?
– Percebo que a senhora é uma pessoa tão boa e compassiva! Há dias tenho notado que a senhora saberia muito bem me consolar e portanto poderia procurá-la se precisasse. Eu queria que me resolvesse um caso. Estou desolada e necessito de um favor…
Como mamãe, a princesa estava em viagem fazendo um tratamento de saúde e tinha ido visitar um grande médico em Paris, o qual lhe dera uma notícia terrível, deixando-a muito aflita e apavorada. E concluiu:
– O médico diagnosticou-me um câncer! É uma doença incurável. Estou desesperada, pois não sei o que fazer. Apenas sei que estou irremediavelmente perdida! Madame, veja se a senhora me encontra um meio de escapar desta situação! A senhora tem um conselho para me dar?
E chorava convulsivamente… Pode-se imaginar se mamãe atendeu o pedido! Ela era feita para aquilo! Apesar de não possuir um senso clínico especial, ela contava com a experiência de uma dona de casa, atenta ao cumprimento do seu dever. E nesses casos entravam os seus jeitinhos… Ela ouviu tudo, prestou muita atenção na princesa e perguntou:
– Mas o médico deu à senhora a certeza de tratar-se de um câncer?
– Sim, Madame…
– Olhe, o conselho é o seguinte: os médicos podem se enganar. A senhora precisa procurar fazer um exame mais severo, pois quem sabe se é um engano e, analisando melhor, descobre-se que não tem câncer? A senhora vai submeter-se a uma operação horrorosa, por ter ouvido apenas uma opinião? Essa opinião é muito abalizada, mas um homem pode errar… Eu sei que na Suíça há grandes hospitais, mundialmente famosos, e lá existe um certo médico, o qual pode fazer um exame melhor… A senhora pede uma consulta e, se houve engano, a senhora evitará a operação em tempo oportuno. Essa seria talvez uma possibilidade.
– A senhora acha…?
– Sim. Consulte esse médico. A senhora sabe? Não devemos perder a cabeça com isto. Eu lhe aconselharia rezar muito ao Sagrado Coração de Jesus e pedir a Nossa Senhora que lhe dê coragem. Tenha confiança em Deus e isso se arranjará!
A russa acabou secando as lágrimas… Mamãe então indicou-lhe o nome de um médico mundialmente famoso, deixando-a gratíssima e inteiramente consolada. E eu creio que houve nisso uma intervenção da graça… Quando chegou o momento de voltarmos para o Brasil, a princesa despediu-se de mamãe, que lhe deixou o nosso endereço. E algum tempo depois, mamãe recebeu uma carta dela, contando o resultado da consulta ao médico suíço:
“Estou escrevendo da Suíça, pois queria enviar-lhe mil agradecimentos pela atenção e a gentileza! Todas as suas previsões confirmaram-se. A senhora não imagina que solução deu o tal grande médico! Ele desmentiu inteiramente o outro diagnóstico e decidiu fazer uma pequena operação. Eu não tinha câncer! Sarei completamente e posso dar o problema como resolvido, graças à sua excelente interferência”.
Mamãe tinha acertado o caso da princesa, afastando aquele pesadelo… Tudo isso devia-se muito ao savoir-faire [habilidade com delicadeza] e à suavidade de alma com que ela “manuseava” os problemas. Essa moça havia sentido, em determinado momento, que poderia receber dela uma ajuda. E mamãe, por dever de caridade, não tinha o direito de negá-la, pois há certas relações de alma a alma que, uma vez estabelecidas, precisam ser atendidas.
Infelizmente, ela depois perdeu a carta dessa princesa.
O médico escravo
Um outro episódio trágico narrado por ela foi a conversa com um jovem médico, desses que prestam serviço nos hotéis, em casos de emergência. Mamãe teve de chamá-lo – provavelmente por causa de alguma indisposição de Rosée ou minha – e ele foi ao nosso quarto com uma fisionomia muito triste. Trocou duas ou três palavras com ela, deu uma receita e, em certo momento, talvez atraído também pela sua fisionomia de bondade, disse:
– Madame, tenho um problema que me afeta muito e, vendo a sua compaixão, quereria abrir-me sobre isso. A senhora me permite?
– Sim.
– Madame vai estranhar muito, pois não conhece os hábitos da Rússia, meu país. A senhora pensa que está falando com um médico? Em parte tem razão, mas não sou um homem livre: sou servo de um conde riquíssimo, dono de muitas terras e das pessoas que moram nelas, o qual resolveu pagar os meus estudos em Paris. Para mim, como simples escravo, era uma grande vantagem vir à França. Estudei aqui, mas habituei-me à vida de homem livre no Ocidente e deixei-me influenciar por estas maravilhas. Entretanto, acabo de receber um telegrama de meu senhor, chamando-me para assumir logo as funções de médico em minha terra, de maneira que vou deixar Paris e partir para a minha aldeia. Se não for, ou não chegar dentro do prazo marcado, meus pais serão duramente chicoteados. Então, um homem, após fazer estudos superiores e conviver com todo este ambiente que estamos vendo, é obrigado a transformar-se num escravo! Vou ter de exercer minha profissão nesse lugar durante a vida inteira! Imagine-se em minha situação…
Mamãe não me contou qual foi a resposta dela, mas creio que somente poderia ter sido de louvor ao amor filial do jovem médico; pois ele poderia, por exemplo, mandar dizer ao conde que as leis da França e de todo o mundo civilizado não reconheciam a escravidão e que, portanto, ele não iria para a Rússia. Poderia, até, nada responder! Mamãe certamente tentou consolá-lo, mas ele estava numa situação consumada…
Ela depois narrava o fato, comentando a dureza do regime social em vigor na Rússia, o qual era realmente brutal! Um homem vai a Paris e leva uma vida de estudante, com tudo quanto isso tinha de deslumbrante naquele tempo – percebe-se que o conde mandava bastante dinheiro para ele –, mas, de repente, recebe uma ordem: “Venha!” E tudo muda… Ele volta à condição de mujique, naquele ambiente de escravidão e nunca mais pode retornar à França.
Quando mamãe contava esses casos tristes que mereciam certa compaixão, percebia-se que ela havia entendido profundamente a situação psicológica da vítima, em todos os pormenores. Ela compreendia bem os problemas dramáticos da pessoa concernida, notava o quanto esta sofria e manifestava-lhe depois uma compaixão afetuosa e “aveludada”. Isso era acrescido, entretanto, de uma certeza que dava a entender o seguinte: “Tudo isto acabará bem, embora à primeira vista pareça terminar num desastre”.
Essa atitude fazia o beneficiado sentir-se envolvido por uma benquerença que não estava habituado a encontrar nos outros. E, por isso, freqüentemente, o sentimento interno das pessoas, em relação a mamãe, era o seguinte: “Eu só encontrarei essa consolação aqui”. Eu tive a mesma sensação inúmeras vezes, ao pedir o auxílio dela! E pensava: “Aqui tenho tudo, mas é só aqui! Isto não existe em outro lugar”.
Um desfile de couraceiros
Certo dia, de manhã, brincava eu no chão do quarto dos meus pais, cujas janelas davam diretamente para a avenida Friedland, a qual era muito movimentada. Papai também estava ali, lendo o jornal.
De repente, ouvi um toque de clarim. Nunca havia escutado um som semelhante, e aquilo produziu em mim um frêmito que me tomou por inteiro. Como faria qualquer menino, fui correndo à janela para ver o que era e fiquei boquiaberto de maravilhamento; tive uma verdadeira fascinação!
Era um destacamento de couraceiros de cavalaria. Homens montados a cavalo! Só isso já me pareceu lindo… Eram soldados revestidos de couraças reluzentes, que achei de uma beleza de aturdir! Capacetes de aço, dourados e também reluzentes, com um penacho e uma crina de cavalo que partia de cima, chegando até a cintura deles. Todos levavam um sabre na mão… Alguns corneteiros, com uma categoria única, tocavam uma música militar.
Os cavalos eram grandes e julguei-os belíssimos. Leves e elegantes, com musculatura fortíssima e com as crinas tingidas, desfilavam na avenida Friedland, rumo à Place de l’Étoile e imaginei que iriam marchar sob o Arco de Triunfo, como as tropas que vencem as guerras. Fiquei encantado, achando aquilo fenomenal! Corri até meu pai e lhe disse:
– Papai, papai, venha ver! O senhor não sabe o que está acontecendo aí na rua!
Ele, muito calmo, perguntou:
– Ver o quê?
– Papai, é uma beleza! Venha logo!
– Já vou.
Ele foi muito devagar, com indolência, pois mais ou menos já sabia o que era. Creio que deve ter julgado haver menos esforço em ir logo até a janela – fazendo-me afinal ficar quieto – do que em permanecer sentado na poltrona… Eu perguntei:
– Papai, o que é isso?
Ele era o mais pacifista e o menos militarista dos homens! Olhou e disse com ar desinteressado:
– Ah, é a cavalaria. São os couraceiros. Isso não tem importância.
– Mas papai, como são bonitos!
– É muito bonito. Aqui os soldados usam essas coisas, essas couraças… Você compreenderá isso depois.
O destacamento passou e eu voltei para os meus brinquedos, mas havia notado em mim mesmo um dos primeiros lampejos de combatividade. De que maneira? Naturalmente, eu não possuía noção clara de que pudesse existir um tipo de vida diferente daquela que via em torno de mim, civil e burguesa. Entretanto, por uma instintiva análise de minha própria natureza, algo me dizia interiormente que havia energias, capacidades de ver, de querer e de agir que permaneciam inaproveitadas dentro daquele estilo de vida, à maneira de um braço ou uma perna engessados.
Então, quando vi passar os couraceiros, compreendi que essa minha inaproveitada capacidade se exprimia ali muito bem e que existia uma série de realidades conexas com aquilo, que eu ainda não entendia inteiramente, mas para as quais aquilo abria caminho. Ali, eu não encontraria apenas a plena expansão de minhas potencialidades, mas uma via que me levaria a realizar-me, no sentido de cumprir em mim mesmo a vontade de Deus.
Por que senti isso ao vê-los? Aquelas couraças – o que mais me chamou a atenção – davam-me a idéia de homens que enfrentam um perigo, revestidos de uma armadura que reluz ao sol como metal precioso. Os elmos indicavam não só o risco e a proteção da cabeça, mas a nobreza da fronte, realçada pela crina, que fazia da cabeça o monumento da dignidade humana. Depois, a impressão causada por estarem eles montados em cavalos, ou seja, deslocando-se numa velocidade maior do que a sua própria, de encontro ao perigo… Os gládios, numa posição ereta, ajudavam a compor essa impressão. E as cornetas pareciam cantar a deliberação de enfrentar o risco.
A partir daquele dia fui um “caçador de couraceiros”. Onde soubesse haver um livro, jornal ou revista com estampas representando couraceiros, eu ia vê-los. Poucos anos depois desse fato, fiz a ligação da idéia do guerreiro com a idéia do apóstolo que combate para fazer triunfar a Religião. E entendi que, apesar de a guerra feita pelos couraceiros ser muito apreciável, o homem deve travar outras lutas na vida: a batalha da palavra de Deus, a batalha do espírito, a batalha da Fé!
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