Uma Via-Sacra controvertida
Uma Via-Sacra controvertida
No correr do ano de 1928 houve um fato na vida de Plinio que muito alegrou Dona Lucilia, pois, de algum modo, representava a realização por especial dom do Sagrado Coração de Jesus, de seus mais entranhados anseios em relação a seu filho: foi o ingresso dele nas Congregações Marianas(1). Dentro em pouco, tornar-se-ia inconteste “leader” católico, e chegaria a ser eleito deputado pela Liga Eleitoral Católica.
Essa ascensão não se faria sem duros e renhidos combates, durante os quais Dona Lucilia, por sua presença e por seu apoio discreto mas quão eficaz, prestaria ao filho valioso auxílio.
A primeira batalha foi contra o respeito humano. A algumas pessoas pode parecer não apresentar tantas dificuldades essa luta, pois não exige argumentos nem estudo. Oh, ilusão! O instinto de sociabilidade e a tendência a imitar os semelhantes é tão forte no homem que, em muitos casos, ele prefere enfrentar em combate a própria morte a fugir, para não ser tachado de covarde pelos colegas e amigos.
Ora – como se disse no capítulo anterior(2) – na sociedade de então a prática da Religião era tida como fraqueza de espírito, própria a mulheres e crianças. Apresentar-se como católico praticante era considerado vergonhoso para um homem, razão pela qual bem poucos (principalmente nas classes elevadas) tinham coragem de fazê-lo.
A adesão de Plinio ao Movimento Católico deu-se nessa atmosfera. Em certo momento, decidiu ele tomar de público uma atitude através da qual manifestasse a irreversibilidade do rumo por ele encetado. Para isso escolheu a Missa das 10:00 hrs de domingo em Santa Cecília, igreja naquele tempo frequentada pela alta sociedade. Boa parte do seleto público estava ali por mera conveniência social.
Apenas iniciado o Santo Sacrifício, Plinio – que já tinha cumprido o preceito dominical na Missa anterior – percorreu uma a uma as quatorze estações da Via-Sacra e, terminada esta, ajoelhou-se em lugar bem visível, tirou do bolso um tercinho azul que comprara expressamente para a ocasião e passou a rezá-lo. Obviamente, entre seus conhecidos os comentários não se fizeram esperar: “O Plinio virou carola!” Porém, ninguém teve coragem de lhe fazer direta ou indiretamente a mais leve insinuação. (v. II, p. 85)
Uma revolução convulsiona o Brasil
Às profundas transformações nas mentalidades e nos costumes, que abalavam o mundo naquela quadra histórica, seguiram-se revoluções políticas. Contudo, se em outros países minorias revolucionárias se inebriaram de sangue, em nosso imenso e pacato Brasil a vontade de não lutar sobrepujou quase sempre a vontade de vencer. Na maioria dos casos, hábeis jogadas políticas evitaram confrontos cujas conseqüências poderiam ter sido trágicas.
Até 1930 o Brasil viveu sob um regime conservador, de base rural e com traços aristocráticos, mas que afirmava sua adesão doutrinária a uma democracia liberal, representativa, fundada no sufrágio universal(3). Era notória a contradição entre a inspiração e a prática política. A História qualificou este regime de República Velha.
A situação internacional, a partir de 1918, exerceu efeitos desestabilizadores no Brasil. O mundo vivia numa atmosfera de triunfo do liberalismo democrático, otimista e nivelador. Os três grandes impérios da Europa – Áustria-Hungria, Alemanha e Rússia – vistos como os grandes bastiões do conservadorismo, haviam desaparecido. Subia ao zênite de seu poder o sistema político norte-americano, reputado em largos círculos como modelo de democracia, sustentáculo principal do apogeu econômico daquela nação e da irradiação de seu “way of life”.
No Brasil começou então uma onda de protestos em vários setores, exigindo a coerência da prática política com a inspiração doutrinária(4).
No sulco de uma intensa exacerbação de ânimos assim criada, a Revolução de 1930, feita sob o signo da Aliança Liberal, derrubou a República Velha. (v. II, pp. 104-105)
Eclode em São Paulo a Revolução de 1932
Não transcorria tranqüilo o ano de 1932. A consolidação da ditadura Vargas levantava em todo o País descontentamentos, que caminhavam rapidamente para a confrontação armada.
Em São Paulo a reação estava mais acesa. Neste estado, em 9 de Julho, iniciou-se um levante militar com apoio quase unânime da população, a chamada Revolução Constitucionalista. O movimento eclodira oficialmente para exigir eleições livres, o fim da exceção ditatorial e a reconstitucionalização do País. Apresentava-se com todas as aparências de revolução liberal, e realmente o era. Porém, revelava outrossim uma insatisfação da chamada aristocracia do café, e das forças que ela agrupava, contra a nova situação reinante no Brasil, submetido desde 1930 a uma democratização revolucionária. Sob este ângulo, a sublevação de 1932 foi um movimento conservador contra um governo que já apresentava tendências populistas, cristalizadas posteriormente.
Porém, enquanto em outros países como por exemplo no México e na Espanha, os confrontos se faziam em torno de posições ideológicas bem definidas, e assim caracterizavam guerra de religião entre católicos e anticatólicos, no Brasil esse aspecto estava muito distante no panorama dos acontecimentos políticos, salvo uma ou outra exceção, jogando-se na maior parte dos casos interesses das mais diversas ordens, desta ou daquela facção.
A Revolução de 32 não fugiu a esta regra. No entanto, a amplitude que ia tomando fazia temer um enfrentamento geral do País inteiro.
Dr. Plinio – que até hoje tem o costume de obedecer rigorosamente às prescrições médicas – guardava então o leito, pois adoecera de grave incômodo digestivo, complicado por forte gripe, quando se declarara a revolução. São Paulo chamara às armas toda a juventude, a qual acorrera em massa.
Como é natural, o mesmo quis fazer ele também, mas seu médico, o famoso clínico Dr. Menotti Sainati, a isso se opôs formalmente em declaração escrita, a qual ele ainda guarda como lembrança daqueles trágicos e gloriosos dias. […]
São Paulo, apesar de se ver sozinho na luta, conseguiu suportar o cerco das forças adversárias até setembro, dando mostras de uma tenacidade própria aos descendentes dos bandeirantes. (v. II, pp. 128-129)
NOTAS
1) Um dia, ao passar de bonde perto da igreja de Santo Antônio, na praça do Patriarca, o jovem estudante Plinio viu, na fachada, um cartaz que anunciava a realização do Primeiro Congresso da Mocidade Católica. Exultante, procurou se inscrever imediatamente. Começava aí sua longa trajetória de lutas em prol da Santa Igreja e da Civilização Cristã. Estávamos em setembro de 1928. O passo imediato seria sua entrada na Congregação Mariana de Santa Cecília.
2) (N. do E.) Eis o trecho em questão:
“Em conseqüência do anticlericalismo reinante no século XIX e que se prolongou século XX adentro, a prática da religião era vista como mais própria às mulheres. Segundo os conceitos então dominantes, não se admitia que uma jovem não fosse recatada e piedosa. Envolta na branca veste da virgindade, ela subia os degraus do altar apoiada no braço protetor de seu pai, para ser entregue àquele que daí a pouco seria seu cônjuge. Não se tolerava que uma esposa fosse infiel ao marido, e havia todo tipo de compreensão para o esposo que, vendo-se traído, lavasse no sangue a honra ofendida. Este era um dos clichês da linguagem do tempo.
“Contudo, embora se exigisse do sexo feminino, com razão, o cumprimento da Lei de Deus, contraditoriamente isto não ocorria em relação aos homens. O modelo de virilidade então na moda, herdado do positivismo caduco e anticlericalismo do século anterior, prescrevia como impróprio a um espírito objetivo e esclarecido – outros termos do vocabulário redundante e vazio da impiedade em voga – a prática da Religião Católica, incluída no rol das superstições que a ciência acabaria por derrubar com seus progressos deslumbrantes. Como decorrência dessas idéias, havia todas as complacências em relação àqueles que, antes ou depois do casamento, não conservassem a castidade segundo seu estado. Era isto tão difundido que alguns pais chegavam a favorecer, e por vezes até a impor veladamente, que os próprios filhos passassem a frequentar casas de perdição.
“Bem podemos calcular a aversão de Dona Lucilia a essa mentalidade anticristã e o quanto procurava formar seu filho em sentido diametralmente oposto.
“No que diz respeito às filhas, as mães procuravam precavê-las de modo discreto. Mas até quando os usos sociais manteriam as regras de moralidade em relação às moças? De qualquer modo, assim como para evitar que uma criança se machuque não se lhe pode proibir de andar, correr e saltar, também era inevitável o ingresso da juventude na vida de sociedade, ainda que com o risco de extraviar-se.” (v. II, p. 65)
3) Desde a proclamação da República, a representação política tinha como base o prestígio social dos grandes proprietários rurais, que se traduzia em força eleitoral. A presença do Exército na vida pública, que fora muito notável no fim do século XIX, decaíra. A partir da presidência de Campos Sales (1898-1902), o poder civil se exprimiu através da chamada política dos governadores, que consistia no seguinte: um candidato a deputado ou senador federal eleito só podia tomar posse se seu nome fosse reconhecido pela Câmara anterior. O governo federal prestigiava o reconhecimento daqueles que fossem indicados pelos governantes dos Estados, e estes, em troca, apoiavam a União em todos os assuntos relativos à política geral do País. Os Estados tinham, portanto, muito mais força do que hoje, e as forças políticas situacionistas, sustentadas pela aristocracia rural, tendiam a perpetuar uma orientação estável. No bojo desta estrutura partidária, a aliança habitual dos dois Estados mais populosos – São Paulo e Minas Gerais – que detinham as bancadas mais numerosas na Câmara, assegurava seu predomínio nos negócios do Estado: era a política do café-com-leite.
4) Formou-se uma corrente de opinião, não muito definida, mas que era o desaguadouro natural de alguns segmentos do público:
– Aqueles que antipatizavam com o caráter aristocrático da República Velha e queriam acabar com o poder dos coronéis, vistos como oligarquia anacrônica;
– Aqueles que exigiam eleições idôneas;
– Governos estaduais desagradados com a duração da política do café-com-leite;
– Veios de opinião impressionados com as contínuas denúncias de corrupção, qualificada de endêmica, mas quase nunca comprovada.
Esta fermentação revolucionária foi a força-motriz da revolta dos tenentes (Forte de Copacabana, 1922), da qual nasceu o tenentismo, que teve marcada influência na formação do Brasil moderno. Dela nasceu também a revolta do Gen. Isidoro Dias Lopes (São Paulo, 1924), ponto de partida da Coluna Prestes (1924-1927).
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