As manhãs de Plinio – 2 – Histórias infantis contadas por mamãe
Histórias infantis contadas por mamãe
Evidentemente, nessa época ela narrava contos infantis que qualquer senhora sabe contar para seus filhos: As Botas de Sete Léguas, Branca de Neve, Cinderela ou o Gato de Botas. Ela os embelezava e desenvolvia fantasticamente, reproduzindo diálogos, perguntas e respostas, mas tendo sempre uma coerência absoluta, até na fantasia. Eu tinha entusiasmo por aquilo, mas gostava muito mais de mamãe do que das histórias… Ela as repetia de modo exímio, primorosamente, com muita clareza e harmonia, sem nenhum erro de português, com grande comunicatividade e facilidade de expressão.
Era uma narradora esplêndida, como nunca vi! Possuía uma memória privilegiada e tinha um dom extraordinário para fazer sentir o que ela mesma sentia sobre os acontecimentos, através dos pormenores matizados que contava, o que me parece muito adequado para uma senhora. Eu tinha em relação a mamãe uma atenção respeitosa e enormemente sôfrega de haurir tudo o que ela dizia.
Todas as histórias narradas por ela constituíam verdadeiros teoremas, do princípio ao fim. Constavam de uma tese e de uma série de fatos que a justificavam, sem que as crianças percebessem, a não ser no fim. De maneira que aquilo era agradável de ouvir e não tinha o enfadonho de uma explicação cujo ponto final já se percebe. Ela era muito imaginosa, sendo exímia no fazer sentir todo o sabor do essencial nos detalhes.
Então dizia:
– A pessoa entrou e estava vestida assim…
Eu interrompia:
– Mas, mamãe, como era o chapéu?
Ela imediatamente “engendrava” um chapéu…
O Gato de Botas e o Marquês de Carabás
Nenhuma história infantil me impressionou tanto quanto a do Gato de Botas, se bem que o próprio gato me interessasse pouco. Os meus primos entusiasmavam-se com ele, mas, para mim, aquele animal fazia coisas que me pareciam mais ou menos banais e nada extraordinárias: falava, tinha um passo muito grande, era bem esperto em assuntos insignificantes e, afinal, não passava de um gato sem importância. Aliás, eu gostava das botas, pois como me custava andar e a Fräulein me obrigava a isso – no que fazia bem –, eu, às vezes, pensava: “Que coisa bem achada! Não seria bom pedir a mamãe que mandasse fazer uns sapatos grandes, assim? Desse modo, eu andaria depressa e alcançaria a Fräulein facilmente!”. Então, eu pedia:
– Mãezinha, conte-me a história do Gato de Botas.
Para mim, o elemento central da narração era um personagem pelo qual eu me sentia enormemente atraído: o Marquês de Carabás. Esse era o grande protagonista do caso, para o qual o Gato de Botas era um pretexto… Ela contava as coisas mais inverossímeis sobre o gato, mas eu não fazia muitas perguntas, pois ficava à espera do momento em que entrasse o marquês na história e então começava:
– Mas, mamãe, como era o Marquês de Carabás? Ele tinha um chapéu assim, de tal modo?
– Tinha.
– O chapéu tinha uma pena?
– Tinha.
– E a pena era de tal cor?
– Era.
Ela dava todas as informações que eu quisesse sobre o marquês, o qual era exatamente como eu estava imaginando! Falava do traje, das mangas e dos punhos de renda… Descrevia um “grand seigneur” [nobre senhor] do “Ancien Régime”! Com a intuição afetiva das mães e, além disso, sendo muito psicóloga, ela ia fantasiando a história de acordo com minha curiosidade e pintava todas as coisas do modo mais maravilhoso possível. Então acrescentava:
– O Marquês de Carabás tinha um castelo belíssimo, com vastidões enormes.
E diante dos meus olhos “reluzia” o castelo… Eu imaginava um palácio imenso, ao estilo de Versailles.
Pela narração de mamãe, o marquês possuía também uma carruagem linda, na qual saía todos os dias, a certa hora, e passava pelos trigais de suas terras, que estavam dando as suas melhores espigas…
– Mamãe, como era a carruagem do marquês?
Ela descrevia então o coche, com pinturas e sedas, tendo postilhões e lacaios com chapéu tricórnio, penachos e alamares, que guiavam várias parelhas de cavalos. Talvez ela o compunha assim, pois notara o meu encanto pelas carruagens de Versailles… Eu me lembrava delas e dizia:
– E tinha plumas em cima?
– Tinha.
– Eram azul claro, cor-de-rosa ou verde claro?
Depois imaginava os trigais de ouro sendo percorridos pela carruagem, também toda dourada, com um sol muito bonito incidindo nos cristais bombeados e emitindo reflexos, o que me deixava delirante… Eu nunca tinha visto um trigal e, então, queria saber como era e perguntava:
– Mamãe, o trigal era bem dourado?
– Sim, meu filho, era bem dourado o trigal.
– Espere um pouquinho: como era? Quando batia o vento, todas as espigas se curvavam assim?
– Faziam exatamente assim. Você adivinhou perfeitamente.
Ela então descrevia trigais míticos e maravilhosos: tão extensos que o olhar humano não os podia abarcar e agitados pelo vento numa e noutra direção, dando-me a impressão da lã de um tapete macio… E dentro da carruagem ia sentado, sozinho, com chapéu de três bicos e plumas, o Marquês de Carabás. Eu considerava aquelas informações de mamãe preciosas para as minhas elucubrações e, no dia seguinte, quando ela me perguntava: “Filhão, que história você quer hoje?”, eu sempre respondia: “O Gato de Botas”.
Sendo eu tão pequenino, nem sabia explicar que o meu grande interesse era o Marquês de Carabás! Ouvia tudo mais uma vez e fazia novas perguntas sobre outros pormenores:
– Os postilhões tocavam trompa quando a carruagem andava? E como eram ajaezados os cavalos? Como era a roupa do marquês?
Mamãe nunca deixava de incutir-me a caridade e apresentava o personagem com uma bolsa toda dourada pendente da cintura, cheia de moedas de ouro para dar aos camponeses que o saudavam no caminho, vestidos com roupas de cores claras, gorduchos, alegres e muito agradecidos, pois o marquês lhes dava o ganha-pão e eles o admiravam e veneravam, enquanto ele os cumprimentava com grande nobreza e bondade. Nessas horas eu participava da compaixão dela em relação aos camponeses. Então, indagava:
– Mamãe, descreva um pouco como era a bolsa dourada do Marquês de Carabás.
Ela “inventava” uma bolsa bordada a ouro, e eu às vezes retificava:
– Mas não era de tal modo, mamãe?
– Pensando bem, era assim…
– Mas, diga-me uma coisa: a bolsa tinha umas franjas de metal, que pendiam assim…?
– Tinha, meu filho, exatamente. Você adivinhou bem.
– Como eram as franjas?
– Eram também de ouro.
– De que tamanho eram?
E ela adaptava a bolsa à minha imaginação, quando eu não imaginava um absurdo… E, a cada vez que ela me contava a história, eu queria saber mais um pormenor das franjas da bolsa do marquês… Eu era insaciável! E assim a narração continuava pelos “terrenos” da fantasia afora, mas com muita lógica. Em outras ocasiões, eu inquiria:
– Mamãe, como era a saudação do camponês? Ele fazia reverência? Como era?
Era sempre como eu queria… E, sem eu perceber, ela ia adestrando o meu espírito para uma certa criatividade e fazia de mim o autor de um “Marquês de Carabás” sui generis, modelado pela minha imaginação. Eu ia “fabricando” o marquês e tinha um verdadeiro entusiasmo por ele, por seus adornos, por seus lacaios e postilhões, vendo-o como um personagem colossal, que vivia numa situação maravilhosa, e pensava: “Esse homem sabe viver! Assim devem ser as coisas, à maneira do Marquês de Carabás”. Compreende-se que, na hora de entrar o gato, eu pensava: “Vem aqui agora esse animal, para me impedir de prestar atenção no marquês!”.
Segundo a narração de mamãe, o gato era muito bem tratado e recebia um saco de moedas de ouro. Então, eu ficava encantado pelas mesuras do marquês o qual, enquanto superior, não se deixava dominar pelo animal. Pelo contrário, era este quem se curvava diante do marquês.
– Mamãe, o gato fazia uma reverência?
– Fazia-a, meu filho.
No fim havia um episódio no qual ambos entravam no castelo e era servido um banquete. Eu queria saber se havia maionese e se tomavam vinho… Com tudo isso, eu ia criando padrões internos que me ajudavam a formar uma visão cultural das coisas e me preparavam para a contemplação do esplendor de que a minha alma era sedenta.
Essas narrações, feitas por mamãe com um encanto extraordinário, não foram estéreis. Creio que o Marquês de Carabás teve um papel remoto para a elaboração de uma série de artigos que eu escreveria depois, denominada “Ambientes, Costumes e Civilizações”. E, até a velhice, mamãe às vezes se lembrava das minhas perguntas sobre o Gato de Botas, comprazida e divertida…
Com pena da Cinderela
Cinderela é um bonito nome, mas é preciso dizer que o “Cendrillon” [Cinderela] francês leva a primazia, com encantos inenarráveis… Essa história também me interessava, não tanto pela infelicidade da Gata Borralheira no meio daquelas cinzas, mas porque mamãe descrevia a madrasta e, sem ela perceber, eu prestava atenção e fazia a comparação entre a madrasta e ela. E, ao menos para o meu afeto, mamãe era a não-madrasta por excelência! Então, o mais importante ao longo da história era “passear” por dentro do seu olhar e das suas carícias enquanto ela narrava. Então eu perguntava:
– Mamãe, a madrasta batia na menina?
– Batia, meu filho. Ela era muito ruim!
– Então, como era?
E dava toda a explicação, de maneira que ela ia falando e eu ia tendo pena da Gata Borralheira, por não ser filha de mamãe…
Recordo-me, sobretudo, da parte do conto que tratava do sapato de cristal. A madrasta dizia: “Ela não pode calçá-lo!”, mas os oficiais do príncipe quiseram que a Cinderela o experimentasse e, então, ela saiu de uma enorme humilhação para ser glorificada. Aquilo me dava uma ideia das boas reviravoltas da vida e dos encontros felizes… Depois vinha o principal: a descrição do príncipe perfeito e do castelo para onde ele ia levar a Gata Borralheira. Mas também essa ideia da madrasta muito ruim me fazia pensar: “Então, existem grandes maldades na vida… Eu pressinto que vou ter de encontrá-las e nem tudo na minha existência será como estar junto a mamãe…”.
Uma das minhas tias possuía um bibelô comprado na Europa, representando um sapato de cristal em tamanho pequeno.
E eu, quando podia, entrava furtivamente no quarto da tia para vê-lo, pois me diziam que ela guardava ali o sapato da Cinderela… Eu olhava depressa e via um pesa-papéis comum, mas gracioso, de cristal um pouco embaçado e de um colorido entre verde e azul claro. E eu pensava: “Que coisa bonita! Mas isso no pé deve ser um caso sério… Que tamancos duros essa Gata Borralheira tinha de carregar! Enfim, não resolvamos o caso e admiremos o sapato…”.
O exemplo dos antepassados
Mamãe também costumava contar muitas histórias antigas, dos antepassados dela, que eu nem havia conhecido. Sobretudo fatos da vida de seu próprio pai, por quem ela tinha um entusiasmo extraordinário, considerando-o arquétipo de homem perfeito. Às vezes, eram episódios sobre parentes que ainda estavam vivos, ou de pessoas da sociedade de São Paulo que ela julgava virtuosas. E sempre acrescentava alguma lição de caráter moral e religioso para minha irmã e para mim, explicando:
– Vocês prestem atenção e vejam como uma pessoa deve ser. Olhem o exemplo do tio tal…
Ela possuía muita propensão para recordar o passado, mas apresentando-o cheio de relações com a atualidade. Era uma elucidação do presente, na qual vinha delicadamente enunciado o que havia de rejeitável no mundo atual e de louvável no passado. Talvez tudo isso tenha concorrido para dar-me um certo senso da História.
Um verdadeiro “heliotropismo” europeu, com especial admiração pela França
Nessas ocasiões, ela inclusive aproveitava para despertar em mim a recordação de tudo quanto havíamos visto na Europa e dos pequenos fatos da viagem. Ela receava que eu me esquecesse disso e queria estimular meu sentimento de admiração e de nostalgia, juntamente com o desejo de retornar ao Velho Continente. O que, evidentemente, fazia parte de uma educação que comportava um verdadeiro “heliotropismo” europeu, pelo qual eu tinha encantos!
É preciso notar que a formação de mamãe, em sua mocidade, tinha sido feita em função da França, como sendo a “terra da luz”, de onde provinham os padrões de pensamento, de elegância, de distinção e de “maintien” [compostura] para o mundo inteiro.
Por causa disso, através de livros, jornais ou revistas e, sobretudo, depois da nossa visita a Paris, ela possuía uma ideia muito viva da França, cuja influência estava presente até nos trajes que mandava confeccionar. Percebia-se que ela só se exprimia inteiramente, no que tinha de mais significativo, pondo-se dentro do contexto francês. Sem tomar, entretanto, os ares de uma francesa, mas de uma pessoa que hauriu o espírito e a cultura dessa nação.
Eu analisava muito as reações de mamãe no tocante à França, querendo saber o que essa nação representava no horizonte pessoal dela, e logo o descobri. Era algo que, por excelência, tinha para ela o maior valor: a delicadeza de sentimentos.
Mas o que era para ela “delicadeza de sentimentos”? E como ela via isso na França?
Ela discernia os aspectos mais sutis e requintados dos povos, por onde eles estariam mais expostos a sofrer os golpes da maldade, da dureza e da crueldade humanas. Daí vinha, então, a ideia de que certas pessoas possuem alguns lados de alma muito tenros e preciosos, mas por isso mesmo mais sujeitos a sofrer pela brutalidade inopinada, pois, por sua bondade, são normalmente desarmadas e, portanto, precisam de auxílio. Isso despertava nela uma forma de afetividade que facilmente se transformava em carinho, em desejo de sacrificar-se, ajudar e favorecer.
Em conseqüência, ela sentia que a cultura francesa punha essa doçura da alma humana em muita saliência e criava um tipo humano que atingia, sob certo ponto de vista, a sua perfeição. E também um convívio humano perfeito, pelo senso da cordialidade e da suavidade. Ela era muito sensível ao charme francês, o qual ocupava na sua vida um enorme papel. E, a meu ver, ela possuía um mar de charme!
Encantos pelas histórias de “Bécassine”
Tudo isso, naturalmente, levou-me desde pequeno a interessar-me por histórias francesas, sobretudo as de “Bécassine”, publicadas por uma revista infantil chamada “Semaine de Suzette”, da qual eu era ávido leitor. Às vezes mamãe as lia para mim, ajudando-me a entender a língua, e eu acompanhava com ela as figuras, o que me encantava!
Aqueles desenhos assinados pelo Pinchon e os ambientes que eles apresentavam constituíam, a meu ver, verdadeiras lições de sociologia. Neles estava insinuado o bem-estar do povo, por exemplo, na família Labornez, na Marie Quillouch, na aldeia de Clocher-les-Bécasses e na cidade de Quimper, com as destilações francesas presentes até na rudeza do trabalhador manual.
Uma dessas histórias narrava o seguinte: os pais de “Bécassine saíram de casa e não quiseram levá-la, por ser pequenina. Então, para evitar que ela fizesse alguma estripulia, deixaram-na “emmaiotée” [enfaixada] e pendurada num prego bem alto e firme, na parede.
Nisso, entrou na residência um ladrão para roubar e a “Bécassine” gritou para ele:
–– “Bonjour”! [bom dia!]
Ele olhou em torno, não viu ninguém e fugiu apavorado! As meninas que liam isso achavam engraçado o susto do ladrão, afugentado por uma criancinha, mas eu ficava interessadíssimo por esse sistema de pendurar um bebê num prego e me perguntava como e por que isso era feito. Eu analisava o mobiliário bretão que aparecia nas ilustrações e tinha curiosidade de saber por que aquela família possuía móveis assim, mas nem tinha ideia do que era a Bretanha!
O assunto me interessava pelo aspecto de significação psicológica e social das coisas. Aquilo tudo me parecia tão inocente, risonho e direito, que eu ficava encantado com a vida simples dos pais da “Bécassine”, “Monsieur e Madame” Labornez, cujos tamancos eu analisava longamente…
Havia, inclusive, um pintor de parede italiano chamado “Monsieur” César, muito engraçado. Tudo isso eram aspectos da civilização cristã que me atraíam, através dos quais eu procurava subconscientemente a virtude, para ver, analisar e amar.
Quantas vezes, vendo as figuras da “Bécassine” – por exemplo, aqueles camponeses dançando em torno de uma barrica e tocando flauta, numa festa de casamento –, imaginei como gostaria de morar em Clocher-les-Bécasses! Ou na casinha da modista, que oferecia vestidos da “última moda”, na cidadezinha de Quimper! Seria uma delícia, pois parecia-me que valia a pena experimentar aquela vida simples. Propriamente, o que me agradaria não seria viajar por muitos países, mas “viajar” por muitas condições diferentes de vida. Esse seria o meu turismo ideal!
Mamãe via a Madame de Grand-Air(1) como uma espécie de variante francesa da própria mãe dela, Dª Gabriela. E eu, de fato, notava essa semelhança, pois olhando para a figura de Madame de Grand-Air lembrava-me de vovó!
Por outro lado, eu sentia que todo o afeto expresso nas histórias da “Bécassine” era ultrapassado por mamãe. Por exemplo, Madame de Grand-Air, chegando a uma festa de batizado em Clocher-les-Bécasses, tinha para com a família Labornez um trato que eu sentia multiplicado por mil na benquerença de mamãe para comigo! Não posso me esquecer de que ela me chamava habitualmente de “meu filho” ou de “filhão”, ainda que eu fosse pequenino! E eu a chamava “mãezinha”. Mas até esse modo íntimo de me chamar era muito cerimonioso e no tom de voz havia inflexões nobres e ao mesmo tempo afetuosas. Aquilo de tal maneira penetrava no meu coração que eu pensava: “Isto é um comentário e, do ponto de vista afetivo, uma quintessência do que eu li na “Bécassine”. Pois Madame de Grand-Air não queria bem a sua família como mamãe me quer!”.
Becassine e seus pais Madame Quicou, modista Monsieur César, pintos italiano
Outras histórias francesas
Ela também contava uma história do “Ancien Régime”, da qual apenas recordo um episódio: alguns rapazes comuns, mas bem constituídos, conversam a pequena distância de um “auberge” [pousada] à beira da estrada, quando chega uma carruagem dourada, com postilhões, na qual está sentado um jovem de aspecto magnífico, usando um chapéu tricórnio muito bonito. Um dos lacaios salta para abrir-lhe a porta, enquanto outro puxa uma escada para ajudá-lo a descer e os rapazes comentam:
– Que felizardo, esse que viaja ali dentro!
Daí a pouco ele sai apoiado em muletas, pois teve um pé amputado… Então aqueles moços caem em si e percebem quão pouco valem o dinheiro e as aparências, pois eles, como possuíam os seus pés, eram muito mais felizes do que o nobre que mancava.
Tudo isso fazia parte de um certo modo – próprio ao século XIX – de considerar a vida, do qual mamãe participava. Aquela história deixou-me pensativo durante algum tempo, pois realmente é muito desagradável perder um pé. Por outro lado… “quand même” [mesmo assim], possuir uma carruagem dourada…! O padeiro da pousada, ainda que trabalhasse a vida inteira, não chegaria a ser como aquele jovem, nem teria aquele coche. Sobretudo seus horizontes seriam limitados, pois não lhe seria possível jogar os grandes lances da vida, enquanto o nobre estava em condições de tornar-se um diplomata, um ministro do exterior ou um grande intelectual, fazendo coisas que movem as nações. Eu me perguntava: “Não é melhor deixar de movimentar a perna, mas mover as nações?”.
Minha infância foi também nutrida pelas narrações de mamãe sobre Tartarin de Tarascon, de Alphonse Daudet. Entre outras coisas, o Tartarin passeava pelos Alpes e contemplava umas auroras magníficas. E ela, muito meticulosa, descrevia de modo feérico todos os ambientes como, por exemplo, os grandes hotéis das montanhas.
Os vendedores ambulantes e suas canções
Havia naquele tempo vendedores ambulantes que traziam doces feitos por senhoras pertencentes à chamada “pobreza envergonhada”, ou seja, haviam perdido a fortuna e, então, mandavam vender esses comestíveis sem dar a conhecer o nome delas, para não humilhar as próprias famílias. As pessoas compravam aquilo de bom grado, pois sabiam tratar-se de doces brasileiros tradicionais, limpíssimos e feitos com muito bom gosto.
Às vezes, o negócio era fiado: não havia troco em nossa casa e, durante um, dois ou três dias, o vendedor fornecia os doces sem ser pago. Em outras ocasiões acontecia o contrário: ele vinha dizendo que não trazia nada, mas queria o pagamento adiantado: as pessoas da casa davam risada, pagavam-lhe e ainda davam-lhe uma gorjeta, com a condição de que cantasse… Então ele cantava canções populares pitorescas, e alguns membros da nossa família iam ouvi-las na copa.
Havia um vendedor, afro-brasileiro, muito franco e com um olhar interessante, que vinha cantando dentro da bruma da manhã. O coitado havia perdido os dentes da frente e não tivera ocasião de substituí-los. A criançada, por brincadeira, chamava-o de “Chico Bonitinho”. Então, enquanto uma criada levava à patroa – que ainda estava deitada – um plateau enorme com os doces, nós dizíamos:
– Canta, Chico Bonitinho!
Ele perguntava:
– O que o senhor quer que eu cante?
– Tal canção.
– “Lá vem a Dª Pulga, vestidinha de cetim, com a sua linda pele de marfim”.
Era a história do casamento de uma pulga com um bicho qualquer… Era para distrair as crianças da casa, que ficavam elétricas de entusiasmo com o casamento da pulga…
Eu tinha certa simpatia com aquele bom homem: gostava de conversar com o Chico Bonitinho, percebia que ele também gostava de mim e, quando eu entrava, ele ficava contente. O polegar de sua mão era muito separado dos outros dedos e, quando nos apertava a mão, parecia-me que o seu polegar iria cair!
A patroa e a família gostavam de ouvir o seu canto e, às vezes, faziam-no entrar e davam-lhe café, pão e outras coisas. Ele continuava cantando dentro da casa…
1 Um dos principais personagens das histórias de Bécassine.
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