As manhãs de Plinio – 3 – Passeios diários no Jardim da Luz
Passeios diários no Jardim da Luz
Todas as manhãs fazíamos um grande passeio a pé, da nossa casa na alameda Barão de Limeira até o Jardim da Luz, costume ao qual eu me habituei, resignado, pois achava a distância enorme; para mim, um quarteirão era uma imensidade, e eu já era muito inimigo de andar a pé. E a Fräulein, dispondo tudo de modo bem germânico, fazia minha irmã caminhar à direita dela – pois as senhoras devem ir à direita –, eu à esquerda e carregava Ilka nos braços. E andava com passo largo e vigoroso! Rosée e eu a acompanhávamos como podíamos, mas eu sempre ficava para trás… Às vezes, entretanto, a Fräulein nos levava segurando-nos pelas mãos.
Eu detestava aquilo, mas não dizia nada, pois a “opinião pública” da família era muito contrária à moleza. Eu andava e pensava: “Por que não sou pequeno? Assim a Fräulein me carregaria, eu iria olhando tudo e pensaria um pouco sobre as coisas. Eu me sentiria bem! Agora aqui… Esse caminho… Eu detesto andar! E essa mulher tem um passo assim… Meu passo é pequeno e não acerto com o dela! Mas ela não quer tomar isso em consideração, dizendo que um homem tem de saber andar mais depressa que uma mulher. Como poderei dar passos tão grandes?”.
Minha prima, de cima, caçoava de minha preguiça e dizia:
– Anda, anda, preguiçoso!
E eu pensava: “Se ao menos você estivesse ao meu alcance…”.
Hoje sei que essa aversão às caminhadas era causada por um desvio em minha coluna, o qual me tornava o andar muito penoso e desagradável. Eu permanecia sentado muito mais tempo do que os outros meninos, o que, aliás, constituiu um fator muito propício para a calma e a reflexão. Eis como a Providência “escreve direito por linhas tortas”: um defeito físico, permitido por Deus, pôde contribuir para uma vantagem de caráter espiritual.
Dizia-se na família que, no Jardim da Luz, por haver um espaço vasto, o ar devia ser muito melhor do que na rua onde morávamos. Então, esse seria o ambiente mais saudável de São Paulo para as crianças. Existia, na época, certo mito sobre o ar fresco e puro, e os médicos sempre recomendavam janelas abertas e oxigênio. Era uma espécie de remédio universal! E as governantas das crianças, quase sempre alemãs, acompanhavam esse costume com empenho.
Então, os meus grandes contatos com a natureza davam-se por ocasião desses passeios. Eu me encantava com a vegetação apresentada nos romances alemães e, imaginando que esse parque podia dar uma idéia de como ela era, não tinha interesse em conhecer mais do que isso em matéria de arborização.
O diretor do estabelecimento era um austríaco chamado Herr Etzel, amigo da Fräulein Mathilde. Ele morava com sua família numa casa muito bem-arranjada e enfeitada ao estilo alemão, no fundo do jardim. Era um homem de cabelo abundante e bigode à la Kaiser. Parecia-me imponente! Ele falava de modo um pouco retórico e a Fräulein ficava muito admirada. Ambos conversavam longamente sobre política, sobretudo durante os anos da Primeira Guerra Mundial.
Herr Etzel cuidava do parque primorosamente. Mandava trazer flores do Exterior e os funcionários aclimatavam-nas ali, de maneira que os canteiros, às vezes, mudavam de aspecto. Viam-se também bonitas plantas nacionais, como as magnólias. Havia veados, uma gaiola com macacos e uns carrinhos de aluguel puxados por bodes, para as crianças passearem dentro do jardim. Tudo era organizado na perfeição!
Para a mentalidade infantil, os espaços eram enormes. Chegávamos e brincávamos naquelas vastidões, com a inteira despreocupação da Fräulein, pois o jardim, pouco freqüentado, era para nós como uma área particular e nos encontrávamos apenas com três ou quatro grupinhos de crianças das melhores famílias de São Paulo. Eu, dócil a todas as convenções, corria com minha irmã e minha prima, sem nenhum mau humor, mas achando a correria um pouco tediosa. Entretanto, no jardim havia delícias que me causavam verdadeiros frissons [estremecimentos] de alegria e de bem-estar de alma.
Quais eram elas?
Contemplando os gramados do jardim
Havia ali grandes canteiros de grama bem cultivada, que pareciam imensas esmeraldas. Correndo nas alamedas, deparávamo-nos de repente com eles. Não eram horizontais, mas ondulados com muita habilidade, de maneira que a cor verde parecia mudar de tom, como a água do mar… E, em certas zonas para onde ninguém ia, a vegetação fazia sentir seus charmes e seus bons odores, com uma acolhida afável e sorridente. Isso fazia-me pensar em parques de uma outra ordem, numa outra esfera, em jardins etéreos e arquetípicos, que não existiam, mas eram possíveis… Eu passava por ali vendo aquelas ondulações e quase fingia que brincava, enquanto minha alma esvoaçava por outras paragens…
Imaginando esse píncaro de beleza, sentia que era possível a existência de uma outra ordem universal, mais bonita do que esta e para a qual eu tendia. Numa palavra só, eram saudades do Paraíso numa alma inocente.
Admirando as gotas de orvalho
Eu também me encantava vendo as gotas de orvalho sobre as plantas, brilhando ao sol. Eram tão puras e límpidas, e guardavam de tal modo a luz, que esta parecia passear dentro delas, regalando-se por imergir naquela pureza.
Muitas vezes, quando eu estava sozinho – pois não queria passar por extravagante –, aproximava uma folha dos meus lábios e sorvia a gota de orvalho, pois não podia me convencer de que uma coisa tão linda não tivesse um sabor muito gostoso. Ao perceber que não era assim, arranjava um pretexto para conservar a minha ilusão e pensava: “Essa gota não me faz sentir o sabor do orvalho, mas se eu tivesse um copo cheio de orvalho, que beleza e que delícia seria! Um dia, quando for homem feito, irei com um copo numa mata e o encherei de orvalho… Deve ser mais saboroso do que o champanhe!”.
E refletia: “Quem sabe se não há um universo assim, como essa gota? Será que não existe algo que este orvalho representa? O mundo todo poderia ser feito à maneira desta gota de orvalho?”.
O canto e o voo dos passarinhos
Qual era o papel do reino animal dentro disso?
Havia bandos de passarinhos, cantando e saltando de um lado para outro. Eu ouvia um deles cantando ao longe: “Piuuu!” E outro respondia no lado oposto do jardim: “Piuuuu!” Era um som bonito, que cortava os ares como quem diz: “Ouça, pois isto atravessa as maiores distâncias e faz perceber a ordem que coordena tudo, ligando um pássaro ao outro”.
De repente, quatro ou cinco tico-ticos saltitavam, na euforia de pisar a grama, e um deles emitia o assobio característico: “Piu-piu! piu-piu! piu-piu!” Os outros retomavam a melodia e ora se reuniam, ora se espalhavam, tendo uma fantasia do convívio em que eles se procuravam mutuamente, ou se saciavam uns dos outros e cada um ia passear… Eu sentia nisso a palpitação do instinto de sociabilidade.
Às vezes, quando via algum pássaro voando e, sobretudo, levantando vôo perto de mim, eu me sentia inferiorizado, pois ele, ao se elevar da terra e passar para o ar, parecia-me que ia levar uma vida muito superior à minha! E vinha-me a seguinte ideia: “Ele é leve e volátil, vai de um lado para o outro, as distâncias não lhe pesam, está imerso no bem-estar, os ventos o arejam e tudo é tão fácil para ele! Eu gostaria de segurá-lo e dizer-lhe: ‘Quero observar você voando quinhentas vezes, para ver se compreendo o seu ‘estado de espírito’!”.
Encanto pelos cisnes
Havia no parque uma espécie de grande lago, e eu gostava de ficar à beira dele, contemplando os cisnes, o que significava para mim o ápice das delícias do Jardim da Luz! Eles eram muito bem tratados e moravam numas casinhas de porcelana encantadoras, das quais saíam de modo um tanto pesado, antes de entrar na água. Punham-se a nadar e avançavam majestosos, realizando o que eu via como um ideal: mover-se sem fazer esforço.
Num instante se deslocavam de uma ponta do lago até a outra! Eu não percebia que as patas deles se movimentavam, pois nunca fui um bom observador dos aspectos mecânicos da natureza… Notava que eles flutuavam com leveza, gostando da água, mas dominando-a. A posição dos seus pescoços – uma espécie de “S” sublime que se levantava acima da água e olhava de cima para baixo – dava-me a impressão de estarem neles todos os encantos do aristocratismo. Eles mexiam o pescoço para trás e tomavam um ar de superioridade.
De vez em quando, eu notava que um cisne olhava fixamente para certo ponto na água, com atenção especial e com sensação de gula. Eu tentava ver o que era: miséria das criaturas! O cisne, rei das águas, do alto daquele pescoço-torre tinha visto um verme nojento qualquer, que se desprendera do lodo e flutuava sobre as águas, e ia comê-lo… Isso simbolizava a humilhação daqueles que são muito grandes: eles passam por circunstâncias assim, por vontade de Deus, para nos fazer compreender os altos e baixos de todas as situações.
Entretanto, ele não cometia nenhum “erro de boas maneiras”! Havia encontrado o alimento, mas não avançava logo sobre ele: esperava um pouquinho, mergulhava a cabeça no lugar exato onde estava o vermezinho, apanhava-o e saía mastigando. Não havia nenhuma luta: aquilo ia para a garganta dele sem esforço e o almoço estava feito! Eu gostava de ver aquele domínio do cisne sobre o verme e pensava: “Esse cisne deve estar achando essa minhoca uma delícia!”.
Daí a pouco ele continuava a se deslocar sem ruído, sempre branco e perfeito, sem esforço nem mancha, calmo, dominador e com muita sobranceria: agitava a massa de água com as patas, discreta e agradavelmente, e deslizava sobre aquela superfície fresca, cristalina e bonita… Então, vendo o cisne num perpétuo bem-estar, repousando em si mesmo, sem ter de andar e sem precisar estudar ou aprender a ler, eu tinha às vezes uma sensação fugaz e pensava: “Pobres de nós, homens! Por que não posso ser cisne? Como seria gostoso estar na água e deslizar como um cisne! Se eu pudesse me cisnificar, fá-lo-ia imediatamente!”.
Ele era puro e limpíssimo! De vez em quando, eu o via arranjar-se: abria uma asa e enfiava a cabeça por debaixo dela, para limpar o bico remexendo-o em alguma penugem mais delicada. Depois, retirava a cabeça e continuava distintíssimo sobre as águas, como quem não tivesse feito nada de prosaico…
Ele parecia possuir consciência de tudo isso, com uma profunda noção do que devia ser e das distâncias que tinha de manter em relação às outras criaturas. Era como se dissesse o seguinte: “Sou assim, pois tenho um teor especial de relações com Deus, que é a alegria da minha vida”.
Eu saía do parque com uma série de impressões a respeito da ordem universal, vista sob certo ângulo. Era, evidentemente, uma contemplação da natureza com olhos de batizado e inocente, mas que me conduzia ao desejo de certa super-inocência ou super-virtude. Um menino sem inocência talvez tivesse vontade de matar os passarinhos, perseguir os cisnes ou quebrar suas casinhas. Eu, entretanto, via tudo aquilo como reflexo de um Absoluto que, no fundo, era Deus.
Recordo também que, tendo sete ou oito anos de idade, fui a uma quermesse no Jardim da Luz, promovida por pessoas da alta sociedade de São Paulo e na qual estavam expostas coisas realmente boas – comestíveis franceses, por exemplo – que deviam ser pagas em libras esterlinas de ouro.
Entusiasmo pelos bombeiros… com certo medo
Às vezes passávamos pela rua Barão de Piracicaba, não muito longe de casa, onde havia um corpo de bombeiros, o que era considerado como coisa importantíssima na São Paulo daquela época.
Em certa ocasião, tinha havido uma ameaça de incêndio no quintal de casa e os bombeiros compareceram, tocando cornetas. Perguntei quem eram esses homens e alguém me disse:
– São bombeiros.
Não indaguei mais nada sobre eles, mas a condição de bombeiro causou-me entusiasmo. Parecia-me a mais alta que um homem pudesse ter! Era um herói mítico! Não compreendia por que meu pai e meus tios não se tinham tornado bombeiros… Entretanto, inexplicavelmente, passei a ter também terror daqueles homens… O fogo não me havia atemorizado, mas eles me causavam pânico! Eu tinha uma espécie de temor reverencial por causa das cornetas e do capacete, feito de uma matéria preta muito lustrada, tendo no centro uma espécie de crista de metal dourado. Aquilo me parecia muito impressionante e deixava-me apavorado! Mas a Fräulein Mathilde curou-me desse medo obrigando-me a passar perto deles.
De vez em quando passeávamos com nossos primos e a Fräulein deles. Quando íamos chegando perto do corpo de bombeiros, eu já percebia o que ia acontecer: as duas alemãs se olhavam e cada uma me segurava por uma mão. Eu começava a espernear e elas diziam:
– Não, não! Tem de passar, parar em frente aos bombeiros e olhá-los, pois esse medo não tem razão de ser!
Às vezes, eu tinha tanto pavor que encolhia as pernas e ficava pendurado no ar, sem encostar os pés no chão. Era preciso carregar-me! Eu percebia bem que era pesado e balançava-me para atormentar as duas, como protesto… Mas elas me obrigavam a dominar aquela vivência desarrazoada, mostrando-me o quanto ela era ilógica, o que me fez muito bem, pois assim se formam os homens…
Durante os passeios, contemplação e admiração
Lembro-me muito bem de que eu ficava encantado com coisas as mais diversas, durante esses passeios. Era, por exemplo, o cacarejar de uma galinha ao longe. Aquele ruído tinha qualquer coisa de materno, doméstico e civil… De outro lado, vinha uma criança cantando sozinha: eu via aquela inocência que passava, até sumir no horizonte… Depois cruzávamos com dois homens que conversavam sobre negócios, tratando-se como amigos. Pouco mais adiante eram três senhoras do povo – enormes matronas – andando devagarzinho pela rua e comentando a loja em que tinham conseguido um cetim ou uns botões mais baratos, a farmácia que vendia tal remédio, ou então contando um caso de algum filhinho delas. As três paravam para dar risada e depois continuavam…
Recordo-me de uma pobre senhora francesa, amiga da Fräulein Mathilde, casada com um austríaco, o qual havia perdido toda a minúscula fortuna que possuía. Ela morava perto da Igreja do Coração de Jesus e ostentava uma joia muito vistosa, feita de vidro com fundo de pano vermelho, mas que eu achava linda!
No velho bairro dos Campos Elíseos, passávamos junto às mansões dignas e tranquilas, representando a fartura e a segurança de vida. Víamos grandes jardins, primorosamente bem tratados, pois cada residência tinha o seu jardineiro. As janelas das salas ficavam abertas para serem arejadas e, então, eu olhava certas casas que não conhecia por dentro e via bonitos lustres, quadros e bons móveis. Um, dois ou três automóveis no fundo da garagem, e o chauffeur acabando de pôr o quepe ou apertar as botas, à espera do dono que ia sair…
Tudo era tranqüilo! O ambiente de vida de família, cheio de calma e de alegria, difundia-se pela rua.
Encantava-me ver na avenida São Luís – uma das mais belas de São Paulo – certas árvores que produziam pequenas flores azuis, tão abundantes que cobriam o leito da calçada como um verdadeiro tapete. Gostava também de olhar uma luz acesa na vitrine de certa casa comercial, escutava uma música ao passar em frente a uma residência, onde havia alguém cantando ou tocando piano… Às vezes, eu via um tapete dentro de uma residência e o achava bonito. De vez em quando encontrava um cachorrinho lulu branco, com uma mancha bege a certa altura do corpo e com as orelhas da mesma cor. Eu gostava muito daquela combinação, mas perguntava-me a mim mesmo: “Por que gosto disso? Por ser bonito… Mas, por que é bonito?”.
Era uma tendência, característica da graça batismal, de querer admirar, respeitar e maravilhar-me, a qual me fazia instintivamente formular a seguinte pergunta, que é própria ao verdadeiro inocente: “Poderia haver algo mais belo no gênero? Tal pessoa me parece boa, mas se ela fosse o padrão perfeito da categoria à qual pertence, como seria? Tal vitral, tal pinturinha de propaganda, se chegassem até o seu último ponto de perfeição, de que modo seriam?”. E sempre imaginava algo de mais belo. Isso me trazia muitas consolações espirituais, pois vinha-me a ideia de que todas essas coisas boas constituíam reflexos de um outro universo onde tudo era incomparavelmente melhor, mais nobre, mais bonito, mais elevado e com outra sublimidade, para o qual eu iria um dia. Portanto, todas as maravilhas que eu contemplava estimulavam na minha alma o desejo do maravilhoso, o qual, por sua vez, despertava o anseio do Céu.
A benquerença brasileira
Nós víamos senhoras nos portais das casas, ou empregadas varrendo os jardins e as calçadas. Elas paravam, olhavam para nós e sorriam. Depois cumprimentavam a Fräulein, que respondia com certa cortesia e continuava o seu “Parademarsch” [marcha de parada]… Eu sentia naquelas pessoas tanta boa-vontade, tal transbordamento de benevolência, gentileza e desejo de proteger-nos, por sermos crianças – não sei contra o quê, pois havia uma enorme segurança –, que eu ficava encantado!
Quando entrávamos numa loja, por exemplo, encontrávamos uma série de caixeiros desocupados e eu, sempre muito loquaz, dirigia-me a qualquer um deles e começava a conversar. Ele, que estava à espera de alguém – pois eram proibidos de falar um com o outro, pelo regulamento da loja –, começava a tagarelar, contando-me casos e fazendo-me perguntas. Todo o mundo tinha tempo, afeto, bons nervos, sossego, afabilidade e benquerença.
Esse tom amável e essa calma, tão característicos de qualquer região do Brasil, não comportavam a pressa de progredir nem de construir edifícios cada vez mais altos… Para quê? Tudo era tão natural e tão bem organizado, causando tanto bem-estar!
Durante as caminhadas, educados pela governanta
A partir de certa idade, durante os passeios, eu ia entre minha irmã e minha prima, enquanto a Fräulein caminhava atrás, como comandante do “batalhão”, para ver se estávamos andando direito. Mas eu era tão distraído – por viver com a atenção posta nessas coisas que me atraíam – que cheguei, em certa ocasião, a bater com a cabeça num poste! E minha irmã Rosée, prática e positiva, era muito mais vigilante e esperta do que eu. Às vezes, tinha de me segurar pela mão para atravessar as ruas pacatas de São Paulo! E dizia:
– Plinio! Olha o automóvel! Olha o bonde!
Mas eu pensava em tudo, menos naquilo… E a Fräulein, então, comentava:
– Está vendo? Que vergonha! Ela é mulher e devia ser protegida por você. Na hora de cruzar a rua, o normal é que o menino diga à menina: “Vamos, eu te protejo”. E aqui acontece o contrário: a menina protege o menino!
Eu, então, pensava: “Não é pelo fato de ela ser mulher e eu ser homem que vou me preocupar com essas coisas, às quais ela está atenta. E, aliás, para que vou prestar atenção, se ela já o faz? Sei como aproveitar melhor o meu tempo! Prefiro parecer bobo a abandonar essa minha posição de alma, porque isso eu não deixo!”.
Havia muitos cães soltos nas ruas, os quais, às vezes, eram presos por uns homens que os punham numas carrocinhas. Então, quando passava algum cachorro, minha irmã me segurava pela mão e dizia:
– Plinio, olha o cachorro! Olha o cachorro!
– Hã, hã…?
– Você não vê o cachorro?!
– Ah… O cachorro… Sim, o que tem?
– Bobo, você não percebe que ele pode te morder?
– É, quem sabe… Eu estava pensando em outra coisa.
– Ele vai nos morder! Vai nos morder!
– Provavelmente não.
Entretanto, alguns desses cães eram agressivos e, quando eles ladravam, nós ficávamos com medo e queríamos correr, mas a Fraülein dizia:
– Parem! Sobretudo você, Plinio, que é homem. Pare!
Eu me lembro da minha reflexão: “É verdade: eu sou homem e tenho de parar. O que posso fazer?”.
E ela dizia:
– O cão ensina vocês a viverem. Ele morde quem tenta fugir, mas tem medo e não agride os que passam perto dele devagar e sem olhá-lo. Agora, vamos passar lentamente junto ao próximo cachorro.
Essa experiência me ajudaria, mais tarde, a enfrentar grandes dificuldades da vida.
Às vezes acontecia também de a Fräulein fiscalizar o meu modo de andar, pois, se não o fizesse, eu caminharia de qualquer jeito e não me habituaria a tomar um porte adequado. Então, quando eu andava com moleza, ela dizia:
– Plinio!
Eu já sabia o que era: devia entesar o corpo, caminhar ereto e firme. E isso foi desagradável para mim até essa atitude se tornar uma segunda natureza. Em outras ocasiões, eu andava tão despreocupado, que deixava cair meus objetos no chão… Às vezes, minha prima se abaixava e os apanhava para mim! Lembro-me, concretamente, de um caso acontecido no interior da nossa residência, em certa ocasião: ela recolheu para mim um fio de linha que havia caído num tapete. A Fräulein viu a cena e disse:
– O que é isso? Você, sendo homem, é tratado com todas as delicadezas? É para você que as mulheres apanham as coisas no chão? Jamais! De agora em diante, além de elas não apanharem nada para você, quando alguma coisa delas cair, eu vou lhe indicar: “apanhe!”.
Então, durante as caminhadas, quando uma das duas meninas deixava cair ao solo algum objeto, a Fräulein era intransigente: quem tinha de apanhá-lo era eu! Pois ela dizia que o homem deve habituar-se desde pequeno – se quiser ser bem-educado – a mostrar-se atencioso e fino com as senhoras. Eu devia precipitar-me, recolher o objeto e apresentá-lo às “senhoras” para evitar-lhes a humilhação de curvarem-se até o chão… Ela vigiava para ver se eu havia feito isso corretamente, o que supunha, da minha parte, antes de tudo, nenhuma distração! Precisava estar continuamente atento para ver se as meninas tinham deixado cair algum brinquedo… E a Fräulein dizia:
– Plinio! Ali!
– O que caiu? Eu não vi!
– Preste atenção! Olhe! Veja o que está no chão e agora apanhe!
Eu me agachava devagarzinho, apanhava o objeto e o entregava.
Também, nunca poderia acontecer de eu cruzar uma porta na frente de minha irmã ou de minha prima. Tinha de ficar de lado, deixando-as passar antes.
No quarto dos brinquedos
A minha residência era muito grande, com dois andares: térreo e sobrado. A família morava em cima e a criadagem na parte inferior. Do lado de fora, diante da entrada principal havia uma escadaria com uns quinze degraus de mármore branco, a qual eu galgava com certa má vontade e com uma preguiça enorme… Eu me perguntava enquanto subia: “Por que fizeram uma escada tão alta? Não podiam fazer o pé direito do andar térreo mais baixo? Assim teríamos de subir menos…”.
Após o passeio, íamos receber as aulas da Fräulein Mathilde no quarto dos brinquedos, o qual ficava no andar térreo e dava diretamente para o jardim. Essa dependência era destinada apenas para minha irmã, minha prima e eu. Havia ali um grande armário, cheio de livros didáticos, das várias matérias que aprendíamos, e algo que se usava muito naquela época: reproduções baratas e bonitas, vindas da Europa, de quadros famosos dos principais pintores do mundo. As crianças iam a alguma livraria ou papelaria e escolhiam num grande maço o quadro que queriam, enquanto o vendedor permanecia vigiando, para não estragarem nada…
Nesse quarto havia também um quadro representando certos cachorros, de uma raça chamada Dackel. Eram dois ou três cães caseiros, de um marrom claro muito reluzente, com enormes orelhas, semelhantes a cortinas. Eles davam a impressão de um grande bem-estar! Parecia-me que haviam acabado de comer e estavam muito contentes, fazendo uma digestão ultra-agradável, e o próprio modo de eles estarem juntos deixava transparecer uma grande “amizade”. Aquilo fazia bem para as crianças, pois ajudava-as a compreenderem que a alegria e a satisfação não consistem apenas em correr ou fazer barulho e, sobretudo, não se encontram na excitação.
O título desse quadro poderia ser: “Tranqüilidade saborosa”, pois, realmente, os gostos e sabores da tranqüilidade estavam representados ali. A criança que olhava sentia-se propensa a entrar naquele “estado de espírito” dos cães. Então, sob esse ponto de vista, os entes humanos recebiam uma lição, muda mas muito expressiva, da parte daqueles animais.
E eu, que frequentei o quarto dos brinquedos até os meus quinze anos, gostava de olhar aquelas figuras, sem saber por quê. Eu pensava que isso se devia à cor dos cães, mas depois percebi não ser essa a única razão. A cor também me atraía, mas sobretudo agradava-me a calma tranquila e estável que transparecia ali.
Em certas ocasiões eu permanecia sozinho e esse isolamento era para mim uma delícia. Nesses momentos de solidão, eu me divertia com algum brinquedo ou ficava esticado no chão, pensando. No quê? Em tudo e em nada, gozando a tranqüilidade que eu apreciava naqueles cães e sentindo melhor uma certa “zona” da minha própria personalidade: eu ouvia sons, por exemplo, de alguma peça musical que alguém estivesse tocando em minha casa ou numa residência vizinha, ou então sentia um aroma vindo da rua. E eu, além de gostar daquelas impressões, comprazia-me em analisar o efeito que elas produziam, refletindo-se na minha alma.
Estudando com disciplina e pontualidade
Eu não tinha nenhuma tendência para a pontualidade, mas a Fräulein – nossa professora – exigia:
– Chegou a hora do estudo. Deixe o brinquedo ali!
Eu devia parar de brincar e de fazer aquilo de que eu tinha vontade. Às vezes, principiava a hora da aula enquanto estávamos ouvindo mamãe contar histórias… Eu escutava o passo decidido da governanta e já sabia o que aconteceria: ela entrava e aplicava o método germânico:
– Plinio! Depressa! Chegou a hora da aula. Vamos, vamos!
Era a hora de aprender o bê-a-bá e desenhar letras. Como me foi difícil aprender a ler e escrever! Minha ruptura com o analfabetismo foi penosa… Eu tive desde o início uma escrita feia, com a qual nossa professora não se conformava, pois naquele tempo se exigia muito boa caligrafia. Eu tentava melhorá-la e torná-la bonita, mas apenas conseguia desenhar uma letra gorducha e redonda, muito regular – que não refletia em nada o meu modo de ser –, para sossegar a “leoa”… Essa foi uma das primeiras “montanhas rochosas” que tive de galgar! E tinha momentos de preguiça, prontamente censurados:
– Isso não pode ser!
Mas eu era dócil e submisso, e me punha logo “na linha”, recebendo de mamãe um beijo e da Fräulein um sorriso. As coisas voltavam aos eixos e não havia grandes problemas.
Também tivemos de aprender alemão e inglês. Lembro-me de que me chamava atenção o contraste entre o português e o alemão, pois a tendência da língua alemã consiste em dar valor às consoantes, enquanto o brasileiro tende a adoçar as consoantes dentro do eco das vogais; de maneira que a frase portuguesa falada no Brasil parece uma repercussão de vogais, mas a frase alemã é uma seqüência de consoantes, batendo umas nas outras e afirmando a sua verossimilhança. Então, formei a seguinte ideia: quanto mais as consoantes fossem pronunciadas nítida e firmemente, tanto mais bonito seria o alemão.
E, sem perceber, modelei toda a minha pronúncia – inclusive na língua portuguesa – segundo esse estilo.
Encantos pela literatura infantil alemã
A Fräulein Mathilde me fez conhecer a literatura infantil alemã, com a qual eu me regalava. É incomparavelmente sugestiva e exprime muito bem os sabores inocentes da vida, especialmente os do dever cumprido, a consciência limpa e… o estômago cheio. Depois, o prazer do sono ou de permanecer algum tempo contemplando as coisas à claridade da lua.
Essas leituras estimularam em mim o bom apetite, mas sobretudo, pela sua candura, prepararam-me para a prática da castidade. Eu gostava muito dos contos do abade Schmidt, como Rosa de Tannenburg e Genoveva de Brabante, que tinham ilustrações magníficas, mostrando personagens e cenas da Idade Média. Todo o mundo alemão aparecia nesses contos, desenhado de modo encantador e muito interessante. Recordo especialmente um desses romances, que se iniciava assim: Ao pôr-de-sol que baixava meio azulado, uma marquesa estava no pátio interno de um castelo onde havia uma fonte. Ela gracejava e animava sua filha, menina encantadora, que brincava com uma bola e um arco, correndo de um lado para o outro, enquanto um passarinho cantava… Nisso, chegava um homem alto e corpulento, todo coberto de poeira e armado até os dentes, fazia uma reverência e dizia:
– Marquesa, trago-vos notícias de vosso esposo.
E entregava-lhe uma carta, que denunciava toda uma trama para tomar o castelo. Ela devia, então, cumprir certa missão da qual não me lembro bem, começando, assim, o galopar para dentro da tragédia… Mas esse modo de a marquesa brincar com a filha inocente, junto ao chafariz, numa tarde azul, parecia-me de acordo com padrões dos quais a minha alma era imensamente desejosa.
Havia, também, uma história na qual aparecia um relógio cujos ponteiros eram feitos de espadas. Quando chegasse determinada hora, uma delas cortaria a cabeça de um homem que, estando amarrado no quadrante, ouvia o tic-tac anunciando a caminhada da morte. Ele permanecia ali, exposto ao sol e à chuva; mas existia a possibilidade de vir uma princesa, acompanhada de soldados para libertá-lo, por uma estrada que se perdia na fímbria do horizonte. De maneira que ele via a morte como perspectiva imediata e a salvação como possibilidade remota. Era a própria imagem da aflição!
Outro conto era o da Ave Pegureira, cujo significado nunca compreendi exatamente.
Análises sobre Juca e Chico
Eu possuía um livro infantil da editora “Weiszflog”, escrito em forma de poesia, chamado Juca e Chico, versão brasileira de “Max und Moritz”, com ilustrações coloridas muito típicas. Era um encanto! Tratava-se de uns meninos alemães terríveis, que faziam toda espécie de travessuras.
Havia nessa história um sacristão muito pitoresco, homem feio, magro e alto, em cujo cachimbo eles punham pólvora. O desenho dava a entender ser um homem solteiro, que chegava à sua casinha, de ambiente pobretão, onde havia uns moveizinhos. As Missas do dia haviam terminado, ele atendera a todo o serviço da igreja e agora ia gozar do seu domingo, na fruição dos seus confortinhos e do seu arranjinho, sentado em sua cadeira de balanço para fumar, antes de iniciar um almoço saboroso. Era um sacristão característico!
Ele acendia o cachimbo e, ao dar a primeira baforada, este explodia, deixando-o com a face toda manchada. Entretanto, meu interesse não estava na proeza do Juca e do Chico, mas nos desenhos que apresentavam o pequeno mundo do sacristão de maneira tão deliciosa que eu tinha vontade de trocar meu modo de viver com o dele!
Até hoje, sempre que ouço falar de algum sacristão europeu, lembro-me de “Max und Moritz”.
Depois, aparecia a viúva Chaves, “que gostava de aves”. Era uma pessoa do mesmo nível, que assava frangos e levava uma vidinha ainda mais gostosinha que a do sacristão. Era a viúva por excelência, característica, dando-me inteiramente a ideia da mulherzinha européia, vivendo de uma pensão bem garantida. Ela estava blindada contra qualquer problema e com isso tinha a sua existência arranjada!
Juca e Chico roubavam as galinhas da viúva Chaves. E aconteceu que eles fizeram uma estripulia qualquer, pela qual caíram na máquina de um moleiro e acabaram transformados em pães!
Eu via em tudo isso o mundo da pequena burguesia alemã, com suas características muito definidas, o que me parecia encantador. Era uma sociedade de pessoas típicas, que representavam determinada família. Analisando bem, aquelas figuras eram sempre muito conformes à doutrina católica e viviam segundo a moralidade da Igreja, modeladas segundo ela entendia cada profissão, acrescentados os costumes locais. As cidadezinhas e os burgos eram diferentes uns dos outros, com peculiaridades muito salientes.
Isso acontecia porque, durante muito tempo, uma boa parte da sociedade praticava a virtude e, de outro lado, todos, inclusive os que não a praticavam, entendiam que o tipo humano normal era idealmente católico, e quem destoasse dele seria mal visto. De maneira que a mentalidade católica era aceita por todo mundo e modelava a generalidade das pessoas.
Formados pela Fräulein Mathilde
Eu tinha três reações diferentes em relação à Fräulein. A primeira era de confiança, pois eu pensava: “Se mamãe a pôs perto de mim, tenho nela todas as formas, graus e modos de confiança possíveis. Mamãe mandou? Está bem feito!”.
A segunda era de raiva… Não sei por que, ela não dizia “Plinio” na hora de dar ordens, mas “Pliniôôô!” E o fazia de certo modo pelo qual eu percebia ser seu desejo que eu me levantasse e batesse os calcanhares, como um soldado…
Naturalmente, às vezes eu me indignava e pensava: “Essa mulher me obriga a andar depressa, a resolver tudo logo e a fazer as coisas como não gosto!”. Mas, com ou sem raiva, ela me obrigava a obedecer… Às vezes, eu tinha a sensação de estar sendo formado por um dragão de cavalaria!
Contudo, no fundo, eu tinha admiração. Em certos intervalos, ela permanecia quieta. Por exemplo, minha irmã, minha prima e eu estávamos estudando e ela permanecia sentada fiscalizando-nos, enquanto fazia outra coisa, em geral lendo com muita atenção alguma notícia a respeito da Primeira Guerra Mundial, durante a qual a torcida dela por Deutschland [Alemanha] era enorme. E, desde aquele tempo, eu tinha certa tendência para analisar as pessoas. Então, às vezes, interrompia o estudo e olhava para a fisionomia dela: estava impassível! Eu pensava: “Como ela é lógica e coerente! Como ela se domina a si mesma! Tudo que ela faz é correto! Como ela nunca se zanga comigo sem razão! Quando me repreende, é porque mereço mesmo. E, nessas horas, obedecer é tedioso, mas é bom… Vou acertar o passo!”.
Então, concluía: “Que boa Fräulein é essa! Ela tem bondade e firmeza ao mesmo tempo. Se todos os meninos tivessem uma Fräulein assim, como seria bom! Ela me mostra o caminho do êxito. Eu lhe quero muito bem!”. Por causa disso, tornei-me um entusiasta dela e, até hoje, guardo dela uma recordação de saudade comovida. É preciso dizer que também Rosée e Ilka gostavam muito da Fräulein e assim continuaram até a morte dela.
Entretanto, a formação dada por ela possuía uma densidade religiosa mínima. No que ela ensinava, o papel da piedade entrava muito pouco e o da graça não entrava em nada… Em sentido contrário estava a minha dulcíssima mãe, para a qual a piedade – manifestada na devoção ao Sagrado Coração de Jesus – tinha um grande significado. Porém, ela também não possuía, naquele tempo, uma noção doutrinária exata da vida sobrenatural e da graça, enquanto sendo distinta da força natural do homem.
Então, fui educado na ideia um tanto incorreta de que as nossas relações com Deus eram baseadas no seguinte: Ele era benévolo para conosco e nos amava, desde que déssemos um primeiro passo em direção a Ele, praticando um ato bom. Deus depois completaria isso com muita generosidade, dando-nos favores por meio de uma intervenção em nossas almas, que eu não sabia identificar com a graça. Assim, após cada ajuda de Deus, era preciso corresponder com mais uma iniciativa, e Ele nos recompensaria com novas manifestações de bondade e misericórdia. Se não houvesse essa atitude de nossa parte, Deus se retiraria… Tratava-se de uma concepção um tanto “bancária” de Deus.
Compreendi bem que as influências de mamãe e da Fräulein deviam complementar-se; e daí resultou uma composição: eu percebia que minha mãe havia recebido a educação do tempo do romantismo, no qual a mulher devia ser o encanto da família, afável e agradável. Eu, como homem, tinha de ser combativo; mas entendia que não podia ser uma espécie de leão rugindo no mato… Era preciso ser amável e educado, como um verdadeiro católico deve ser.
Aproveitar o tempo livre, com mamãe
Pouco antes do almoço, dispúnhamos de tempo livre. Mas eu, que tinha a tendência de estar continuamente junto a mamãe, fugia de Ilka e de Rosée quando podia, subia a escada de dois em dois degraus e ia até o quarto dela. Minha mãe sofria muito do fígado, às vezes passando mal à noite e, por isso, permanecia deitada uma boa parte da manhã.
Piedosamente, misturava um pouco as orações com o sono. Creio que os outros membros da família preferiam que eu não estivesse com ela nessas horas, para não perturbá-la, mas nunca me disseram nada sobre isso. Uma criança pequena entende essas coisas muito confusamente e a mim nem me ocorria a ideia de poder incomodá-la.
Então, era freqüente encontrá-la assim e muitas vezes eu não sabia se ela dormia ou rezava. Quase sempre estava adormecida, reclinada em vários travesseiros. Permanecia segurando o rosário, do mesmo modo e na mesma atitude que teria se estivesse acordada.
Em outras ocasiões, encontrava-se totalmente deitada. Nunca a vi numa postura que não fosse correta e agradável de olhar, mas, apesar disso, permanecia inteiramente à vontade. Às vezes, o braço caía um pouco fora do leito, num gesto bonito. Tudo isso correspondia a um certo hábito assumido desde a infância, que havia condicionado o seu modo de ser.
Eu me jogava atravessado na cama dela e imediatamente ela se sentava, dizendo:
– Filhão!
Ela me acariciava e eu pedia:
– A senhora me conta uma história?
Como sempre, eu preferia que a história fosse narrada apenas para mim, mas não o dizia, pois ela não toleraria e imediatamente mandaria chamar minha irmã e minha prima… De qualquer maneira, eu não era obrigado a confessar-lhe isso! Também ela não me perguntava nada a esse respeito, mas apenas dizia:
– Que história você quer?
Eu queria inúmeras vezes a mesma! Ela interrompia as orações e começava a história. Ela possuía um edredom de plumas muito bonito, revestido de seda de chamalote e eu, sempre sensível a cores, punha-o de encontro à luz e passava a mão sobre a seda, que fazia um certo “fru-fru” enquanto ela falava. Era a orquestração com que eu acompanhava a história…
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