Introdução Histórica aos Artigos, Entrevistas e Discursos
Extratos de conferência realizada em 18/10/1980,
publicados na “Dr. Plinio”, nº 76, de julho de 2004, pp. 22-25
O panorama católico na São Paulo de 19281 – I
A época da minha mocidade e a de hoje são muito diferentes. Entretanto, por alguns lados continuam sendo semelhantes.
Para abordar o assunto que me foi proposto, começo por traçar um quadro geral do que era o aspecto religioso da São Paulo de 1928, para em seguida mostrar como se desenvolveu, dentro dele, o movimento católico.
Catolicismo e sociedade se condicionavam
Este, na verdade, representava uma gota de azeite no interior da sociedade de então. Quando se verte um pouco de azeite num copo d’água, ele toma uma determinada forma – a qual imagino esférica – em virtude da pressão que a água imprime, de todos os lados, sobre a bolha. Assim também as minorias se configuram em geral, não pela pressão que fazem sobre a maioria, mas por aquela que a maioria exerce sobre elas.
Ora, o movimento católico constituía uma minoria, e era a pressão da maioria que em boa parte o conformava. Não in totum, porque, como era católico, tinha de dentro para fora um certo dinamismo. Porém, era circunscrito e condicionado pelo dinamismo de fora para dentro. E do encontro desses dois dinamismos opostos resultavam muitas das características do movimento católico. Assim, não posso descrever bem a sua vida e atuação internas, sem explicar aquilo que de fora para dentro o condicionava.
No momento em que ingressei no movimento católico, este influenciava pouco o conjunto da sociedade brasileira. Mas, já em 1943, quando se completavam 15 anos de minha participação nos fatos, a situação havia mudado e o movimento católico condicionava em larga medida o ambiente brasileiro, embora fosse, por sua vez, condicionado por este último.
Tradições que existiam por hábito
Deitemos um rápido olhar sobre a situação religiosa do Brasil, e mais especialmente de São Paulo, naquela época.
As tradições e os hábitos católicos existiam em proporções muito maiores do que hoje. Por exemplo, em 1928, nas classes alta, média, e mesmo nas camadas mais modestas da população, toda moça solteira era pura, e quando se unia a seu esposo, estava íntegra. Não se cogitava na possibilidade do contrário. Claro, havia as pessoas extraviadas, mas essas constituíam um mundo completamente à parte, com ruas e lugares de perdição próprios, aonde iam aqueles que desejavam freqüentar maus ambientes e, portanto, perder-se. Era o bairro horroroso da cidade, separado dos demais por barreiras invisíveis. E nesse bairro a perdição se ostentava com uma brutalidade e uma radicalidade espantosas. Esse mundo, porém, significava uma mancha pequena na metrópole grande.
Quanto às senhoras casadas, a quase totalidade permanecia fiel a seus maridos. Falava-se, na altíssima sociedade, de uma ou outra que tomava alguma atitude escandalosa, e, apesar da fortuna, da situação prestigiosa, etc., passavam a ser vistas com horror. Não eram recebidas nas casas de famílias sérias, e ao se encontrarem com pessoas conhecidas na rua, apenas se dirigiam uma pequena saudação, sem se deterem para conversar. Elas mesmas sabiam em que conta eram tidas. Quer dizer, senhora de família é fiel ao marido, e a tal respeito não havia dúvida nenhuma.
Ademais, quase todas as senhoras de boa formação freqüentavam os Sacramentos, iam às Missas aos domingos, e muitas comungavam de três a quatro vezes por ano. Outras até mais. Para se ter idéia de como era a assistência às Missas naqueles tempos, tomemos em consideração o seguinte: no grupo de bairros em que eu me movia, existiam as igrejas do Coração de Jesus, de Santa Cecília, do Coração de Maria e de Santa Teresinha. Nessa área a população era muito menor do que agora, pois não havia prédios de apartamentos. Além disso, muitas casas cultivavam grandes jardins, e portanto a parte habitada era pequena.
Nos domingos comuns, na hora da Missa, essas igrejas se enchiam a ponto de, às vezes, ser preciso abrir os tapaventos para facilitar o cumprimento do preceito às pessoas que não conseguiam entrar. Hoje, a população se multiplicou nessas áreas: não se construiu nenhuma igreja nova e as antigas já não se enchem como outrora. Isso nos torna palpável como, naquela época, os templos católicos eram mais freqüentados do que nos dias atuais.
Uma religiosidade irrefletida
Qual era a mentalidade dessas senhoras face à religião?
Feitas as exceções de estilo, a maior parte desse público feminino era o que eu chamaria de católicas irrefletidas. Ou seja, eram católicas porque tinham nascido católicas. E assim como se nasce com cinco dedos na mão, elas como que nasciam com fé. E nunca se tinham posto o problema se se podia não ser católico. Considerava-se feio o fato de alguma mulher não praticar a religião. A esse propósito, conta-se que Cândido de Figueiredo, autor português de um famoso dicionário, ao ser perguntado sobre qual era o feminino de ateu, afirmou: “É à-toa.” Para ele, portanto, a mulher atéia é uma estouvada.
Então, essas senhoras levavam uma vida tranqüila, despreocupada, poucas trabalhavam, vivendo normalmente o seu quotidiano no lar. Não havia ainda televisão, e poucas eram as estações de rádio, o que reduzia as recreações caseiras ao gramofone tocado à mão, às prosinhas, duas ou três que saíam para conversar ou algo semelhante. Aliás, as senhoras casadas nunca eram vistas sozinhas na rua, mas acompanhadas por alguém da família, e as moças saíam sempre com uma pessoa mais velha. Distraíam-se também em casa na leitura de romances, na elaboração de pratos e de doces, aprendendo a tocar algum instrumento musical, bordando almofadas, cuidando de um pássaro, etc., preenchendo com isso o seu tempo. Claro, sobrava-lhes espaço para a recitação do Rosário e outras orações.
Não se podia afirmar, entretanto, que elas tivessem uma estrutura de espírito definidamente católica, nem que soubessem explicar porque criam na sua religião ou definir qual o espírito da Igreja Católica.
Então, imbuída dessa religiosidade superficial, uma senhora se dirigia à igreja para rezar pelo marido que estava resfriado ou cujos negócios iam mal, para pedir por ela mesma que sentia uma dor e acordava à noite: se não passasse aquele transtorno, teria de ir ao médico durante a semana, etc., etc. Ela levava essa vidinha assim, na irreflexão completa. Era raro, portanto, que uma senhora tomasse a deliberação de praticar ações contrárias ao hábito e modo dominantes, em obediência a um princípio ditado pela Igreja.
A idéia de um ensinamento doutrinário oriundo do catolicismo, que é norma de pensamento ou de ação à qual se deve submeter, ainda que não se entenda ou não se queira – essa idéia estava afastada da cabeça delas. Julgava-se que a correnteza geral dos bons hábitos, dos bons ambientes, dos bons costumes, levava lenta e molemente para o Céu. Se é que molemente se pode alcançar a bem-aventurança eterna…
De maneira que essas senhoras proporcionavam a mesma formação às filhas, mas viam-nas se modernizarem sob a ação do cinema, e tomarem atitudes de liberdade com os rapazes, embora se mantivessem ainda na linha da pureza. Porém, não era mais a super-pureza que as mães tinham aprendido. Estas sorriam, porque não possuíam essa idéia dos limites postos pela moral: “Até aqui se vai, até lá não.” Tudo era habitual, consuetudinário. O que os costumes mandassem fazer, se fazia; o que considerassem bom, era bom. E os costumes faziam as vezes de religião. Então, quando o marido era ateu – o que se verificava na maioria dos casos – elas não se afligiam. Quando um filho concluía o curso secundário, entrava para uma faculdade e se tornava igualmente ateu, elas também não tomavam esse fato como drama.
Os homens… livres-pensadores
Por seu lado, o homem em geral era um livre pensador. Assim como ficava feio para uma mulher não ser religiosa, pois dava idéia de masculinizada e, portanto, desagradável, era mal-visto para o homem mostrar-se religioso, porque passava a impressão de efeminado. Justificavam- se, alegando que a religião era uma coisa de mulher.
Assim, a maior parte dos homens se dizia ateu. E mesmo se um deles se afirmasse católico, não freqüentava os Sacramentos, porque isso se considerava medonho. Portanto, o homem também não rezava; ter Rosário era inimaginável, ainda que guardado na gaveta de sua mesa de cabeceira. Acima da cama dele havia, geralmente, um crucifixo que a mãe mandava fixar na parede, e que ele deixava ali ficar. Talvez, antes de se deitar à noite, ele enlambuzasse uma pequena oração, porém não o faria todos os dias.
Quanto aos rapazes, os da classe média para cima, quase diariamente freqüentavam bares suspeitos e muitas vezes saíam destes para visitar os antros de perdição. De maneira que era comum um rapaz chegar em casa às três ou quatro horas da manhã. E, não raro, bêbado.
A mãe não podia ignorar onde o rapaz se encontrava àquelas horas tardias. Se lhe restasse qualquer dúvida, perguntava ao esposo. E ela tinha de saber que aquilo era pecado. Vendo o filho abandonar as orações, os Sacramentos, ela deveria rezar, a exemplo da mãe de Santo Agostinho, chorar como Santa Mônica chorou e orou para que seu filho se convertesse. Sem embargo, no total elas não se incomodavam muito com os desmandos dos filhos.
Entretanto, os mesmos homens libertinos também achavam horrível a mulher ser impura. Se a esposa, a filha ou a irmã cometesse alguma infidelidade, a censura e a indignação podia chegar até o uso do revólver. Portanto, eles tinham em alta conta, para as mulheres, certas virtudes que não apreciavam para si próprios…
Continuação da conferência realizada em 18/10/1980,
publicada na “Dr. Plinio”, nº 77, de agosto de 2004, pp. 20-25
O panorama católico na São Paulo de 1928 – II2
Como descrevi em ocasião anterior, a maioria dos homens da camada social mais alta da São Paulo de 28 não praticava a Religião. Diziam-se ateus e procuravam evitar qualquer manifestação de apreço à vida de piedade.
Por outro lado, boa parte deles era honesta em seus negócios. Se alguém os chamasse de ladrões ou algo semelhante, reagiam com a força física. E naquele tempo empregava-se muito mais o uso das bofetadas e bengaladas, como vagos restos do duelo que chegou a existir no Brasil, embora à nossa maneira nacional…
Vestígios de Fé sob a aparência anticatólica
Cumpre mencionar, aliás, que esses indivíduos se apresentavam com um tônus peculiar aos de sua classe: porte ereto, decididos, os mais velhos usando bigodes retilíneos ou à la Kaiser, com as pontas viradas para cima. Os cabelos primorosamente penteados com fixadores franceses, norte-americanos ou argentinos – era famoso um produto portenho chamado Gomina –, formando uma espécie de capacete lustroso sobre a cabeça. Poucos dividiam o cabelo ao meio, muitos o penteavam inteiramente para trás, outros faziam uma risca de lado. Em qualquer desses estilos, o cabelo era sempre rigorosamente engominado.
Essa forma de se cuidar estava de acordo com os atores de cinema hollywoodianos, os quais ditavam a moda no tempo. E o perfil dos homens era bastante varonil, mesmo dos mais moços, que ora usavam bigode, ora não, conforme as tendências em voga. Estas, é claro, variavam: houve o período dos bigodes pequenos e ralos, horrendos, estendendo-se ao longo do beiço superior, sem subir até o nariz; já segundo costume diverso, o bigode era cultivado como um tufo, algo à la Hitler, outras vezes à la Adolphe Menjou (artista do cinema americano que bancava o aristocrata francês decadente), com um tufo grande e pontas compridas, considerado distinto.
Entretanto, analisando as fisionomias de certos homens assim, eu notava que eles se faziam de mais anticatólicos do que realmente eram. No fundo, conservavam resquícios de Fé. Muitos deles se envergonhavam e até sentiam horror da sua má conduta. Porém, não ousavam enfrentar a exigência absoluta do ambiente social de que o homem fosse impuro, sob pena de ser tido por efeminado. Além disso, eles caíam na vida imoral e se habituavam. Para vencer um mau hábito de dez, vinte, trinta anos, sem a oração e o auxílio da graça não é possível. Ora, eles não rezavam nem aproveitavam as graças devido à sua debilíssima generosidade. Resultado, iam rolando…
Na sua covardia espiritual, esses homens riam do puro, mas eu percebia que, com o escárnio nos lábios, havia a inveja no olhar, como se pensassem: “Se eu pudesse ser como aquele que é puro!…”
Os padres: respeitados, mas isolados
Nessa sociedade orientada por tais costumes, como era visto o padre?
Quando se encontrava um sacerdote, tratavam-no com respeito. As vocações, em geral, provinham do meio operário e da camada menos elevada da burguesia. Para algumas dessas famílias era bonito ter um filho padre, pois este se tornava mais importante do que um simples operário, podendo até chegar a ser Bispo. Era, mais ou menos, como para um rapaz de classe alta tornar-se cardeal. Julgavam feio ser padre, mas o cardinalato lhes sorria como uma posição de tanta influência que poderia valer a pena.
Assim, excetuando os ambientes onde surgiam muitas vocações, o estado sacerdotal não desfrutava de grande prestígio. Todos os que conheciam um padre, cumprimentavam-no, mas ninguém o visitava nem mantinha relações com ele, a não ser de modo discreto, quando a isto os obrigava determinados compromissos sociais.
O beatério
Agora, já no âmbito dos fiéis, em cada paróquia havia as chamadas beatas. Eram, em geral, senhoras de nível social mediano. Nas paróquias de classe mais alta, eram as criadas, com freqüência mulheres de cor. Essas beatas assistiam à Missa cedo, confessavam-se assiduamente e comungavam todos os dias. Rezavam muito, não escondiam sua imensa admiração pelo padre, e constituíam o bloco que marcava presença nas cerimônias religiosas. De maneira que, excetuando a Missa de Domingo, a Via-Sacra à tarde, a bênção do Santíssimo Sacramento e o mês de Maria, quem movimentava a vida nas igrejas eram as beatas.
Essas devotas, porém, ardiam como pimenta dentro das respectivas famílias, porque chegavam em suas residências e discutiam assuntos de moral e religião. Além disso, o modo de elas serem e viverem representava uma explosão dentro da casa, pois ninguém concordava com elas, relegando-as a uma posição de quase isolamento no próprio lar. Às vezes elas venciam o ambiente e acabavam levando para a igreja o marido, as filhas, uma cunhada, e até os filhos, os quais tomavam um certo ar de sacristãos, saudavelmente salpicados pela influência materna.
Contudo, o que mais se via era a gente caçoar das beatas. E estas, por uma coincidência que não analiso aqui, eram em geral mal apessoadas, feias, esquisitas, não raro diferentes de todo o mundo. Circunstância que não me impedia de gostar muito dessas senhoras e de elas gostarem de mim.
Lembro-me ainda de uma beata famosa, baixinha, mirradinha, com um guarda-chuva de cabo de latão sempre sob o braço, qualquer que fosse o clima, carregando uma cesta ou trouxa. Ela usava roupas escuras, e tinha ligeiramente a aparência de espanhola: olhos pretos que reluziam, penetrantes, os quais por modéstia ela mantinha baixos, mas quando se levantavam, iam certeiro a determinado ponto. Entretanto, causava pena observá-la, pois trazia constantemente um véu azul ocultando-lhe o resto da face. Percebia-se que não tinha nariz; ou nascera sem ele ou o perdera em virtude de algum acidente, uma operação, etc. Então, usava aquela faixa com segurança, mas ao mesmo tempo era tão infeliz, tão isolada, tão pobrezinha e abatida pelos ventos opostos, que eu tinha vontade de lhe dizer: “A senhora sabe que a considero muito e tenho muita simpatia pela senhora?”
Entreolhávamo-nos, e o meu olhar comunicava algo a ela bem como a uma série de outras beatas das quais eu tinha pena, pois eram sofridas mas fiéis. Dessas que a Revolução não quisera arrastar e que, sem perceberem, realizavam um pouco de Contra-Revolução empoeirada. Trocávamos olhares, e elas viam na consideração de um moço normal, bem constituído, um apoio que nunca recebiam de ninguém procedente da minha classe social.
Esse era um dos modos empregados por mim para soprar toda e qualquer forma de apoio à Contra-Revolução.
Eu pensava: “Não tem conversa. Elas estão conformes à lei de Deus, são devotas de Nossa Senhora e filhas da Igreja. Contrariam a Revolução a ponto de esta zombar delas. Pois vou lhes dirigir um sorriso, a fim de ajudá-las a não ceder e continuarem assim.
“Tudo quanto estiver ao meu alcance, ainda que me custe o maior esforço e redunde num mínimo de prejuízo ao mal, isso eu farei, incansavelmente!”
A Guarda Imperial da Igreja
O conjunto dessas senhoras era chamado de beatério. Pelo próprio som da palavra e o modo de pronunciá-la, percebe-se que vinha carregado de desprezo ou admiração. Beatério parece dizer beatalhada. Pois esse beatério enchia os templos sagrados nos dias de novenas e demais atos litúrgicos. E a Igreja Católica, a bem dizer, funcionava na base do beatério.
Para me valer de uma comparação ousada, essas devotas correspondiam ao que seria a Guarda Imperial para o exército de Napoleão. Conta-se que em Waterloo, a grande batalha em que este General foi esmagado por Wellington, a Guarda recebeu ordem de se render, senão seria dizimada. E os soldados franceses responderam: “A Guarda morre mas não se rende.” Então receberam rajadas e rajadas, morrendo um a um.
Aquelas mulheres eram, pois, a Guarda da Igreja Católica. Elas mantinham a vida diária nos templos, que só por causa da presença delas não permaneciam fechados a semana inteira. Elas animavam os pequenos e grandes eventos na paróquia, na diocese, as reuniões nas sedes das associações religiosas, as quermesses, as festas de aniversário do Vigário, a promoção deste a Cônego, a Monsenhor ou a Bispo, etc.
Podia-se fazer idéia de como era um beatério ao se observar uma procissão, sobretudo a de Corpus Christi que percorria o centro da cidade, saindo da Catedral, passando pelas ruas adjacentes e retornando àquela. Do alto da escadaria da igreja ainda em construção, o Arcebispo D. Duarte Leopoldo dava a bênção do Santíssimo Sacramento. O largo da Sé se enchia dos beatérios da cidade inteira e estes formavam o desfile. Então, aquelas intermináveis fileiras de velhas senhoras, com o Apostolado de Oração, a Liga de Santa Edwiges, a Irmandade tal, a Confraria tal, as Filhas de Maria, novo rebento do beatério que nascia, todas cantando e envolvendo com suas vozes as de alguns poucos homens – os beatos – que as acompanhavam.
Temos assim uma idéia do mundo onde era preciso começar a lutar pela Igreja. E eu levava comigo a seguinte impressão: “Toda essa situação de reticência montada em torno dos padres, o isolamento em que se encontram, existe porque não foi ensinado à gente católica enfrentar seus adversários. Eu vejo que a Revolução é mentirosa, arma castelos imensos, porém no fundo conta apenas com três ou quatro paus para sustentá-los. Portanto, se essa gente souber onde está o pau e meter o pontapé, a armação toda treme ou cai. Porque a boa senhora simpatiza, o senhor que leva remorsos na alma fala mal, mas simpatiza também; aquele que se diz ateu e incrédulo, no íntimo da alma crê. E se eles todos virem a coragem de um, muitos se armarão igualmente de bravura.”
A bem da verdade devo dizer que, quando entrei na Congregação de Santa Cecília, esse quadro principiava a se alterar um pouco pela presença das Congregações Marianas em algumas paróquias. A Revolução passou a notar que em algo ela começava a ser enfrentada, embora fingisse não percebê-lo. Era preciso dar a minha contribuição para que esse élan, já iniciado, se tornasse mais forte e obrigasse o monstro a ver de frente que surgira em seu caminho um contendor à altura dele, capaz de fazê-lo recuar, capaz de vencê-lo.
Extratos de conferência realizada em 23/11/1990,
publicados na “Dr. Plinio”, nº 13, de abril de 1999, pp. 6-10.
A profissão pública da Fé3
Pertencentes a essas altas camadas da sociedade, as pessoas de meu círculo de relações ignoravam tudo a respeito da progressiva influência da Igreja sobre a juventude da minha época. Eu mesmo, antes de participar do Congresso da Mocidade Católica, nunca tivera notícia da existência de rapazes fervorosamente católicos na cidade onde nasci.
Quando as pessoas de meu meio social viram emergir do chão um vigoroso movimento de jovens católicos, pouco noticiado pelos jornais, mas do qual eu lhes dava conhecimento em nossas conversas, ficaram espantadas.
E eu com muita ufania contava:
– Sabem, fui a um congresso eucarístico em Taubaté, e ali havia um colossal desfile de moços. Amanhã vou fazer uma conferência no Pari. Convidaram-me também para fazer uma conferência no Belenzinho, e em ambos os locais (eu insistia sempre neste ponto) há pujantes Congregações Marianas, com muitos moços católicos…
Cientes de minha retidão moral, essas pessoas se davam conta da veracidade de tudo o que eu lhes narrava, entendiam bem o significado dos termos moços católicos, e compreendiam que a era das mentiras havia terminado.
Lembro-me de que, por ocasião de um feriado, reuniu-se uma roda de parentes e amigos em minha casa. Em certo momento, levanto-me e digo: “Com licença, vou agora a um auditório do Pari.” Minhas palavras causaram não pequena surpresa, porque o Pari era um bairro desconhecido para eles, no qual nunca haviam posto o pé. Eu ainda completei: “Vou fazer uma conferência lá…”
Via-Sacra e tercinho azul
Minha nova conduta e atividades eram sobretudo notadas, não tanto por meus parentes – os quais, afinal, tinham comigo a intimidade da vida de família – mas pelos conhecidos, colegas de faculdade, amigos do tempo do Colégio São Luís. Estes, por exemplo, me viam surpresos entrar na igreja junto com os congregados marianos os quais, com poucas exceções, pertenciam a classes mais modestas. Eu com o distintivo, uma fita azul, cantando no meio dos congregados, dirigindo-me aos bancos reservados a eles.
Certo dia, na Missa de domingo da Igreja de Santa Cecília – freqüentada naquele tempo pelo creme da sociedade paulistana – quando soou o sino anunciando o início da celebração, as pessoas viram-me sair da sacristia levando na mão um pequeno livro de orações. E enquanto se desenrolava o Santo Sacrifício, puderam notar que me entreguei ao exercício da Via-Sacra, percorrendo uma a uma as estações que recordam a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo.
A prática dessa devoção era tida como uma carolice do outro mundo! Ao mesmo tempo em que eu rezava, percebia as reações pelas fisionomias.
Quando terminei, a Missa ainda não havia acabado. Fui então me colocar diante da Capela do Santíssimo Sacramento. Ajoelhei-me, tirei do bolso um tercinho de porcelana azul claro e comecei a rezar.
Atitudes dessas tornaram notório em pouco tempo, para a sociedade de São Paulo, que eu tinha mudado completamente de vida e me encontrava encaixado em outro ambiente.
Liderança nos meios católicos
Vem a propósito considerar, agora, algumas particularidades do meu comportamento na Congregação Mariana.
À medida que eu a freqüentava, amadureceu em minha alma este projeto: “Vou me relacionar muito bem com todos os congregados; entretanto, se aparecerem rapazes do meu nível, os quais percebo constituírem minoria aqui, e uma minoria desambientada, trabalharei especialmente para fixá-los no Movimento Católico. Pois não há razão para fazermos uma guerra de classes. Pelo contrário, devemos ser todos irmãos e convivermos da melhor maneira possível.”
Esse meu desejo resultava da constatação de que alguns desses rapazes, ao se defrontarem com as dificuldades que eu mesmo conhecera, passavam no máximo um mês na Congregação Mariana e não retornavam mais. Esforcei-me, portanto, especialmente em estabelecer uma boa relação com esses. E aos poucos fomos constituindo um grupo.
Havia, infelizmente, uma reduzida parcela de congregados que implicava conosco, no fundo por espírito de luta de classes. Não tardei em me dar conta de que esses descontentes eram sustentados na sua animosidade por pessoas estranhas aos quadros da Congregação Mariana. Seja como for, eram muito poucos. A grande maioria dos moços, de todas as classes sociais, mostrava-se muito amiga minha. Ademais, tinha eu certa facilidade de me exprimir em público, fazer discursos, etc., e isso trazia como conseqüência reiterados convites para falar. Desse modo, tornei-me rapidamente muito popular entre o conjunto dos congregados, sendo visto e tomado por eles como um verdadeiro leader.
A formação da Liga Eleitoral Católica
Algum tempo depois, passada a Revolução Constitucionalista de 1932, Getúlio Vargas decidiu convocar eleições para a formação da Assembléia Nacional Constituinte, que devia estabelecer as novas leis do Brasil. A Hierarquia estava interessada na aprovação de leis segundo a Doutrina Católica, e por isso resolveu criar um organismo capaz de eleger deputados que trabalhassem pelos objetivos da Igreja.
Eu tinha lido haverá pouco, numa revista católica francesa, que o General de Castelnau – um dos famosos militares que ganharam a Primeira Guerra Mundial, e muito católico – fundara uma liga, com a finalidade de fazer eleger exclusivamente, ou quase, deputados católicos na França. E a revista explicava como era o mecanismo dessa liga. Julguei a idéia magnífica.
Por essa época, já me tornara amigo do Alceu Amoroso Lima, líder católico do Rio de Janeiro, recém-convertido, que usava o pseudônimo de Tristão de Atayde. Conversando com ele, levantei a idéia de se fazer no Brasil o que o General de Castelnau realizara na França. Ele me ouviu, e disse:
– O Cardeal Leme (Arcebispo do Rio de Janeiro) estava pensando precisamente em constituir uma organização desse gênero para o Brasil inteiro. E ele queria que você, eu e o Dr. Heitor da Silva Costa (o arquiteto que construiu a imagem do Cristo Redentor) formássemos uma comissão para pôr em prática essa idéia. Sua sugestão, portanto, vem ao encontro dos anseios do Cardeal. Você aceita fazer parte da comissão?
– Sim, aceito.
Sendo eu o único advogado dos três, fui encarregado de redigir os estatutos. Uma vez elaborados, foram apresentados a D. Leme, que os aprovou e enviou a todos os Arcebispos e Bispos do Brasil, estimulando-os a fundar Ligas Eleitorais Católicas (LECs) nas respectivas dioceses.
A LEC de São Paulo
Atendendo aos apelos de D. Leme, o Arcebispo de São Paulo, D. Duarte Leopoldo e Silva, formou sua Liga Eleitoral, convidando-me para ser o Secretário-Geral. Esta função vinha a ser, na realidade, a do homem mais atuante da Liga, aquele que lhe dava verdadeiro impulso. O presidente era apenas uma figura de proa.
Aliás, por meio do seu Vigário-Geral4, D. Duarte consultou-me acerca das pessoas que eu julgava aptas a ocuparem os demais cargos da LEC. E para presidente indiquei um senhor muito representativo, a quem conhecia somente de vista. Pertencia ele a uma das melhores famílias de São Paulo, e era muito piedoso, indo comungar todos os dias na Igreja de Santa Cecília, onde eu o encontrava.
Diga-se de passagem que me causava admiração uma atitude muito bonita da parte dele. Comungávamos na mesma hora, na Capela do Santíssimo, ele, eu e uma preta velha, que tinha uma das pernas inchadíssima! Razão pela qual era-lhe bastante penoso descer os três degraus que iam da capela para a nave da igreja. Sabendo disso, o Dr. Estevão de Souza Resende – era o nome dele –, bem vestido, fino, sempre se levantava e dava o braço a ela.
A mulher, encantadíssima, aceitava o convite e o Dr. Estevão a ajudava. Ela descia se apoiando na porta de ferro da igreja, de um lado; e, de outro lado, deixando-se apoiar no braço do neto do Marquês de Valença…
Por que eu não me adiantava para auxiliá-la? Por receio de decepcionar a pobre senhora. Tão encantada de ser objeto das atenções daquele homem, ela ia considerar-me um intruso!
Tinha eu presente no espírito a figura desse distinto cavalheiro, quando o Vigário-Geral me disse: “Escolha uma pessoa de muita representação.” Logo pensei no Dr. Estevão e mencionei seu nome. O Vigário-Geral comentou: “Homem! Está muito bem escolhido! E quem mais você aconselha?”
E assim fui fazendo indicações para os outros cargos, de homens dedicados, sérios, direitos, e que foram do agrado do Arcebispo.
Constituída assim a direção, abrimos um escritório da LEC no centro da cidade, e a organizamos em todas as Dioceses de São Paulo, dando início ao alistamento de eleitores. Em pouco tempo estava formado um movimento colossal, em grande parte devido ao apoio do clero, e em certa medida também à imensa popularidade de que eu gozava junto aos católicos militantes.
A escolha de Dr. Plinio como candidato
As forças políticas paulistas haviam resolvido arquitetar uma ampla frente anti-getulista, compondo a Chapa Única por São Paulo Unido, e convidaram a Liga Eleitoral Católica a apresentar seus próprios candidatos.
Como é natural, os grandes diretores dos partidos políticos não procuraram um jovem de 23 anos, como era eu, para os entendimentos. As conversações foram com o Dr. Estevão, que as transmitiu a D. Duarte, sem nada me dizer.
O Arcebispo exibiu uma lista de quatro nomes, o que exprime a força da LEC. Nascida há poucos meses, pôde indicar o mesmo número de candidatos que os partidos mais antigos.
Passados alguns dias, encontrava-me no escritório da Liga, quando o Dr. Estevão me procura, dizendo:
– Plinio, haverá uma reunião da diretoria da LEC, mas D. Duarte espera um ato de confiança da sua parte. Ele quer que você não compareça… Entretanto, peço que você fique aguardando no corredor, até o término da reunião.
Não me foi difícil perceber o que ia se passar: D. Duarte certamente indicara meu nome para candidato a deputado, e desejava consultar a diretoria. E para os diretores terem toda a liberdade de opinar, ele queria que eu não estivesse presente. Assim, fiquei do lado de fora, rezando meu Rosário.
Afinal, o Dr. Estevão abriu a porta, esboçando um largo sorriso:
– Plinio, entre aqui. A diretoria quer fazer um convite a você. Entrei, e todos se levantaram, me abraçaram e me felicitaram: “D. Duarte mandou recomendar você como candidato, perguntou o que nós achamos, e vamos indicá-lo.”
Eu pensei: “Estou disposto a combater pela Causa Católica. Se eu não aceitar, serei acaso substituído por outro que queira lutar tanto quanto eu? Não sei. Por via das dúvidas, topo a parada!” Disse que aceitava a indicação, e logo foi feita uma comunicação à imprensa de que eu e mais três outros éramos candidatos.
Preocupações de D. Lucilia
Pus-me a imaginar qual a reação de minha família e dos de minha classe, quando vissem sair pelos jornais que um rapaz de 23 anos era candidato a deputado em meio a mais de vinte celebridades, concorrentes da mesma Chapa Única por São Paulo Unido. Era o tempo em que só pessoas já maduras, muito experientes, com o nome bastante conhecido, arriscavam-se na carreira política. Mas agora, um pimpolho desses no meio de tão seleto grupo?
Revelei apenas a mamãe que eu me tornara candidato, recomendando-lhe guardar segredo. Ela se tomou de apreensão, uma vez que – assim como eu – não fazia idéia da força do eleitorado católico. Ambos julgávamos, ademais, que sendo eu supostamente desconhecido fora dos círculos das Congregações Marianas, os católicos votariam nos três outros candidatos cujos nomes lhes eram familiares, deixando-me na rabeira. Por isso, dávamos como certo que o resultado seria a minha derrota.
Se estávamos de acordo quanto a este ponto, discordávamos em outro. Eu pensava comigo: “Para mim é melhor ser indicado, concorrer e perder, do que não ser indicado. Um revés, portanto, é melhor do que não aparecer. Qualquer rapaz de minha idade pagaria o que fosse necessário para ter o nome incluído nessa lista da Chapa Única. Eu, portanto, topo a parada!”
D. Lucilia, porém, se preocupava. Disse-me: “Meu filho! Onde é que você vai se meter?! Nós não temos eleitorado!” E, numa mostra de seu alheamento em assuntos de política, completou: “O único eleitorado de que dispomos são os empregados do Hotel Parque Balneário em Santos…”
Quer dizer, no máximo cem pessoas, a respeito das quais não se podia ter certeza alguma de que votariam em nós. Eu julguei a apreciação dela de uma ingenuidade, de uma candura a toda prova!
O receio de um fracasso intimida alguns parentes
Dias depois, estando a família reunida à mesa do jantar, chegaram os jornais publicados naquela tarde. E neles veio estampada a lista dos candidatos da Chapa Única, aprovada por São Paulo inteiro para atuar na Constituinte. Era a nossa chapa. Um dos circunstantes se pôs a ler em voz alta os nomes, relacionados em ordem alfabética. Tendo por primeira letra o “P”, o meu ficou quase para o fim. De repente: “Plinio Corrêa de Oliveira”.
Foi tal a surpresa que, em vez de se levantarem para me abraçar, mandarem abrir uma garrafa de champanhe, etc., permaneceram soldados nas cadeiras sem esboçar a menor reação. Um choque cujo motivo fundamental só cheguei a perceber dali a alguns instantes. Com efeito, terminado o jantar, notei uma irmã de minha mãe chamá-la de lado. Ela disse: “Lucilia, que loucura de Plinio aceitar de se pôr nessa chapa! Ele é ainda um menino, desconhecido! O único meio que temos de atenuar o fracasso é mover o nosso eleitorado! Quer dizer, precisamos falar com o Sr. Fracalore (exatamente o dono do Hotel Parque Balneário…) e pedir que faça seus empregados votarem no Plinio!”
Mamãe achou a idéia brilhante. Foram para o telefone, chamaram o Sr. Fracalore, que as atendeu de modo muito amável, e lhe fizeram o pedido. Ele reagiu como o faria qualquer dono de hotel: “Ah, claro, não tem dúvida! Fiquem sossegadas porque aqui todos votarão no Dr. Plinio.” Resposta que, evidentemente, deve ele ter dado a quantos tenham se lembrado de lhe solicitar votos. Mas, senhoras de família viam essas questões por outra ótica. De minha parte, considerei com indulgência a cândida atitude delas, e ainda pensei: “É melhor que elas peçam. Afinal, talvez obtenham cinco ou dez votos por esse meio, que podem ser decisivos.”
Na seqüência deste relato, viria agora – se lhes interessar – a preparação para o pleito, sua realização e minha vida de deputado. Mas já é um assunto a respeito do qual, se Deus quiser, trataremos em outra ocasião.
Extratos de conferência realizada em 22/6/1973,
publicados na “Dr. Plinio”, nº 14, de maio de 1999, pp. 20-24.
Na política, em defesa da Igreja5
Dois acontecimentos pareciam-me propícios para modificar a política laicista imperante no Brasil nas primeiras décadas de nosso século. Até aquela época, quase só as mulheres freqüentavam os sacramentos. Contudo, a partir mais ou menos de 1928, o afastamento dos homens da religião começou a sofrer profunda mudança, em virtude do enorme desenvolvimento do Movimento Católico no País inteiro, marcado sobretudo pela expansão das Congregações Marianas.
De outro lado, o governo revolucionário baixara um decreto estendendo o direito de voto às mulheres. Como até então apenas os homens votavam, a mentalidade a-religiosa reinante entre eles fazia com que o laicismo saísse sempre vitorioso em todos os graus da hierarquia política.
Quando sugeri a criação da Liga, eu notava que, dessas transformações, podíamos tirar imensa vantagem em favor da Igreja.
“Agora ponha a LEC em movimento”
Tive grande regozijo no dia em que o Arcebispo D. Duarte mandou me chamar e disse: “Bem, agora ponha a LEC em movimento.”
Entreguei-me com entusiasmo à instalação e organização da Liga, trabalhando de manhã à noite nisto. Dei início a uma série de conferências pelo Interior, o que representava um sacrifício para mim, pois detesto viajar, ainda mais em trens noturnos, como era na maior parte dos casos. E foram muitíssimas viagens em todas as direções.
No meio dessa propaganda eleitoral é que se deram os episódios de minha indicação para candidato a deputado, conforme já contei.
Primeira reunião com os candidatos da Chapa Única
Pouco após tornar-se público ser eu um dos candidatos, recebi, em meu escritório, um telefonema. Uma voz pomposa perguntou:
– De onde fala?
– Escritório do Dr. Plinio Corrêa de Oliveira.
– Ele está?
– Sim, senhor, é ele quem está falando.
– Fala aqui Alcântara Machado.
Político famoso e experiente, havia ele sido indicado para líder da Chapa Única por São Paulo Unido, da qual faziam parte os candidatos da LEC. Certamente julgava que saía das nuvens para falar com este pobre rapazola de 23 anos. Não devia se lembrar de que eu fora seu aluno na Faculdade de Direito, tanto mais que ele lecionava Medicina Legal, matéria na qual eu não sobressaía, pois nunca havia me interessado por ela.
– Oh! Dr. Alcântara, como vai o senhor? Está passando bem? O senhor foi meu professor há alguns anos na Faculdade de Direito.
– Eu queria lhe avisar que vai haver uma reunião da Chapa Única, na sala da Ordem dos Advogados, na Rua São Bento, para discutirmos o programa. O senhor, como nosso mais jovem colega, está convidado.
Não me perguntou se eu podia ir. Era a hora marcada para o Benjamin, que tinha de acertar o passo com os outros.
– Pois não. O senhor esteja certo de que estarei lá.
Compareci à reunião, no prédio da Ordem dos Advogados, onde nunca tinha ido. Era uma construção antiga, onde residira outrora o Conselheiro Antônio Prado. A reunião se realizava na antiga sala de jantar, com papel de parede bonito, móveis de duvidosa beleza, uma mesa enorme, e todos conversando em um ambiente de politicagem, antes de começar a reunião.
Entrei, e alguns já me conheciam; outros fingiam que me conheciam. Mas, sendo eu de longe o mais moço, não era difícil distinguir o Plinio entre eles:
– Ô, Plinio, como vai você?!
– O senhor me conhece?…
– Ora! Você mora lá perto de casa; eu vejo você desde pequeno!
– Ah, está muito bem!
Eu, de fato, nunca tinha visto aquele homem.
Veio conversar comigo o Prof. Cardoso de Melo, grande amigo do Alcântara Machado, e que fora meu professor de Economia Política. Sua família se dava muito com a minha, de maneira que ele me tratou como quem fala com um sobrinho.
– Plinio, vem cá, eu quero te apresentar para este, para aquele, para aquele outro, etc.
Era hora de se iniciar a reunião, e nos sentamos.
Intervenção inopinada do Benjamim
Coloquei-me no último lugar da mesa, bem em frente ao líder. Assim, estando vis-à-vis6 do chefe, se houvesse qualquer problema, eu me destacava muito, podendo impor o ponto de vista da LEC com maior facilidade. Ele disse:
– Bem, convoquei os senhores porque temos de apresentar um programa para os nossos eleitores. E o programa é o que eu vou ler aqui, para ver se os senhores aprovam ou não. Primeiro ponto: Separação da Igreja e do Estado. Segundo ponto: isto, aquilo…
Eram coisas de política, que não vêm ao caso. Constavam as reivindicações da LEC, que quebravam o laicismo do Brasil, entre as quais: proibição do divórcio, ensino religioso nas escolas, capelanias nos hospitais e nas prisões do Estado e nas Forças Armadas.
Terminada a leitura, diz o Alcântara Machado:
– Os senhores querem fazer alguma objeção?
– Eu quero, Dr. Alcântara. Quase todos os olhares se volveram para mim.
– Eu tenho um ponto em desacordo quanto ao primeiro tópico: separação da Igreja e do Estado. Não é desejo do Episcopado restaurar a união da Igreja com o Estado, mas nós não podemos afirmar que seja um regime bom. É um mal menor.
Um homem de barba grisalha era dos poucos que não se haviam voltado quando eu pedira a palavra. Mas ao ouvir-me agora, afastou com estardalhaço a cadeira e fechou a carranca, como a querer dizer: “Eu estava vendo que admitir esses carolas aqui ia dar em encrenca no primeiro momento!” Eu sabia perfeitamente quem era ele, pois o encontrara diversas vezes na casa de meu tio, o antigo Secretário da Agricultura.
– Não é que eu pretenda que a Chapa Única por São Paulo Unido deva restaurar a Idade Média… (Hipótese cujo simples enunciado já os deixou espantados!) Mas declarar que a separação da Igreja do Estado é um bem, isto eu, enquanto representante da LEC, não posso subscrever. Prefiro renunciar ao meu lugar na Chapa Única… – concluí.
Enquanto eu falava, o Alcântara Machado, com um lápis e um papel na mão, me olhava reflexivo. Logo interveio em tom conciliador:
– Bom, vamos dar um jeito nisso.
Havia um suspense na sala, pois parecia que ia estalar a Chapa Única, perdendo os políticos o apoio tão cobiçado do eleitorado católico.
– Façamos uma redação que contente todo mundo – continuou ele. – Em vez de simplesmente “separação da Igreja do Estado”, fica escrito assim: “Mantida a separação da Igreja do Estado…” Isso quererá dizer que a separação vai ser mantida, mas pode também querer dizer: “Uma vez que seja mantida…” Poderá ser interpretada como tendo um caráter condicional. Dr. Plinio então fica satisfeito, e Dr. Fulano também.
– Aí está bem, eu concordo.
Foi o suficiente para se refazer o ambiente de distensão, que durou até o término da reunião.
Um velho tio vem em socorro do sobrinho idealista
Daí a dias, novo telefonema convocando para outra reunião da Chapa Única. Compareci. O Prof. Alcântara Machado diz: “Nós devemos cuidar agora das despesas da eleição. Precisamos ter um secretariado central, e será necessário que os candidatos paguem cada qual um tanto, para fazer face às despesas.”
Saí da reunião sem saber de onde tirar o dinheiro. Meu bolso estava ultra-avariado e meu pai tivera um prejuízo nos negócios enorme, ficando muito endividado. Na hora do jantar, em casa, com a mesa presidida por minha avó, D. Gabriela, e estando presentes alguns tios e primos, eu contei:
– Há tal dificuldade assim, e eu não sei verdadeiramente como conseguir esse dinheiro.
Silêncio geral. Eu tivera a esperança de que alguém propusesse um rateio. Encontrava-se ali também um irmão de minha avó, já bem velho, solteiro e ateu declarado. Ao notar que ninguém se adiantava, ele disse:
– Está bom, Plinio, se ninguém quer contribuir, eu pago tudo! Você me procura depois do jantar para acertarmos.
O problema estava resolvido e retomou-se a conversa. (Dois anos depois, em seu leito de agonia, esse tio se reconciliaria com a Igreja e receberia os Sacramentos, graças à intervenção de D. Lucilia).
No dia marcado, procurei o Alcântara Machado e entreguei minha contribuição. Estava vencida mais uma dificuldade.
Candidatura impugnada, em virtude da idade
Um dia, a “Folha de S. Paulo” trouxe na primeira página: “Inelegível o Sr. Plinio Corrêa de Oliveira…”
Dentro vinha uma notícia explicando que especialistas em Direito Constitucional haviam chegado à conclusão de que, pelo Código Eleitoral, para ser deputado era preciso ter 24 anos. Ora, quando fosse feita a eleição, eu teria 23 anos. A meu ver, aquele assunto que punha em perigo minha candidatura não estava claro. Preparei uma defesa e pedi a um amigo que a levasse ao Rio de Janeiro, para o Alceu Amoroso Lima – o Tristão de Atayde, que naquele tempo era muito amigo meu –, e com ele procurasse o Cardeal Leme para expor a questão.
O caso deveria ser julgado pelo Superior Tribunal Eleitoral, então situado no Rio de Janeiro, a capital federal. Eu me achava mais ou menos perdido. Estava nesta situação, quando recebi um aviso de outro candidato, dizendo que, se eu quisesse, ele obtinha para mim um parecer a meu favor do Dr. Sampaio Dória, professor de Direito Constitucional e uma notabilidade em São Paulo nessa matéria.
Aceitei o oferecimento, e foi acertado um encontro com o Sampaio Dória, que, aliás, havia sido meu professor. Fui ao local combinado e lhe expus a situação. Ele me disse:
– Eu acho que você tem o direito de concorrer.
– Dr. Dória, o senhor poderia preparar um parecer?
– Posso. Você me procura no café tal, às tantas horas; nós conversamos um pouquinho e daí lhe entrego o parecer.
Na hora acertada, estávamos os dois no ponto de encontro. A certa altura da conversa, depois de ele me expor algumas idéias gerais a respeito do Brasil, disse-me:
– Vamos à Secretaria tal. Eu lá lhe dou o meu parecer.
Era feriado, mas numa amostra de sua influência naquele lugar, fez-lhe abrirem todas as portas, até chegarmos a um escritório, onde entregou-me o documento. Agradeci muito e saí. Enviei logo os papéis ao Rio de Janeiro, pedindo ao Tristão que acompanhasse o caso junto ao Superior Tribunal Eleitoral. Graças a Deus, o parecer do Prof. Dória venceu.
As eleições
Apesar de saber que o eleitorado católico era enorme, não tinha eu idéia de qual parte dele que os outros três candidatos da LEC levariam consigo. Nenhum deles me procurou, nenhum me pediu um voto. Julguei que estavam seguros com sua votação. Mas eu, considerando-me o mais fraco de todos, lancei-me de corpo e alma à campanha.
No dia das eleições, já me encontrava bem cedo na Liga, porque tinha a responsabilidade de mandar cédulas dos nossos quatro candidatos para todas as urnas de São Paulo. Esse serviço de distribuição havia sido muito bem organizado. O único episódio a registrar durante esse dia foi um telefonema. Ao atendê-lo, alguém me disse:
– Aqui fala o Arcebispo.
Julguei reconhecer a voz de um congregado mariano com quem eu tinha uma certa intimidade, e respondi:
– Deixe de brincadeira e diga logo o que você quer!
A voz insistiu:
– Fala o Arcebispo!
– Deixe de bobagem, Fulano, e diga o que você quer!
– Fala o Arcebispo!
Será que é o Arcebispo? Ele não tem o costume de telefonar. Se eu tratar essa pessoa como Arcebispo, ele me passará um trote. Mas… Pode ser que seja o Arcebispo… Prefiro passar por um bobo para esse sujeito do que fazer um papel pífio perante o Arcebispo.
– Ohhh! Sr. Arcebispo, perdão, não tinha reconhecido sua voz! – Era ele mesmo.
– Estou recebendo notícias de que toda a eleição católica em Campinas está emperrada porque faltam cédulas.
– Sr. Arcebispo, parece-me que esta informação está equivocada, porque nós enviamos tudo direito, etc. Mas vou telefonar para Campinas e daqui a pouco dou uma informação a Vossa Excelência.
Telefonei para a LEC campineira e me responderam:
– Não nos chegou nenhuma reclamação; a notícia é falsa. Todos os candidatos estão largamente atendidos.
Percebi que, pretendendo me prejudicar, alguém fizera intriga com D. Duarte. Liguei para ele, expliquei a realidade da situação e consegui tranqüilizá-lo.
“Todas as Marias votaram no Plinio”
Um de meus primos trabalhava como mesário numa seção eleitoral, e na hora do almoço, em sua casa, contou ao pai:
– O Plinio está fazendo uma devastação! Eu estou trabalhando na seção da letra “M”. Tudo quanto é Maria está inscrita lá, e elas só querem votar nele. Quando acabam as cédulas dele, ficam na cabine até eu mandar pegar mais no depósito. Todas as Marias votaram no Plinio.
Era 31 de maio. Terminado o trabalho eleitoral, fui calmamente jantar em casa, e depois me entreguei aos exercícios de devoção em louvor a Nossa Senhora, cujo mês chegava ao fim.
Começa a contagem dos votos, e por todo lado meu nome vai aparecendo em boa quantidade. Ao longo dos dias os jornais vão publicando os resultados, com pasmo para minha família, que esperava eleitores para mim apenas no Hotel Parque Balneário…
Para santificar minha alma e estar completamente desapegado do meu cargo, caso fosse eleito, decidi não acompanhar as apurações. Mas minha irmã as conferia dia a dia. Quando, de manhã, eu entrava para tomar café, ela habitualmente estava ali, e me contava as últimas. Eu a ouvia com certa frieza.
Numa manhã, cumprimentei-a: “Como vai você?” Ela não me respondeu. Fez uma reverência diante de mim, como se faria assim na corte, e disse:
– Senhor Deputado, meus parabéns!
Levando na brincadeira, sentei-me e quis começar a falar de outro assunto. Ela insistiu:
– Senhor Deputado, meus parabéns! Você não prestou atenção?
– Mas, o que há?
– Hoje você foi proclamado eleito!
Era uma vitória estrondosa que se confirmava, pois eu havia obtido o dobro de votos do afamado Alcântara Machado, candidato que ficou em segundo lugar.
Começava para mim o problema da Constituinte.
Extratos de conferência realizada em 28/1/1990,
publicados na “Dr. Plinio”, nº 18, de setembro de 1999, pp. 6-10.
Na Faculdade de Direito:
vitória sobre o respeito humano7
O que vem a ser o respeito humano? Literalmente, significa uma consideração exagerada pela opinião, pela maneira de pensar dos homens.
Está escrito na Lei ditada por Deus a Moisés, e repetida por Nosso Senhor quando esteve nesta terra, que o homem deve ter fé e ser casto, não deve assassinar nem roubar, etc. São ensinamentos da mais alta qualidade, aos quais devemos tributar um grande respeito, pois o que tem elevada qualidade merece um profundo respeito. Se, por exemplo, nos fosse dado um quadro de muito valor, teríamos respeito por ele, não o jogaríamos pela janela. O próprio da qualidade é, pois, inspirar respeito.
Ora, o Decálogo é sublime. Vem de Deus, que é a própria Sabedoria e a própria Santidade. Um homem que pratique as virtudes em grau heróico torna-se um santo, não porém a Santidade, como Deus. É algo absolutamente distinto e imensamente superior. Portanto, se o Altíssimo nos dá diretrizes, devemos amá-las e observá-las, por respeito a Ele.
Surge, então, a dificuldade: na maior parte dos casos, máxime nos dias de corrupção moral como estes em que vivemos, os homens zombam da santidade e dos ensinamentos de Deus, como também dos que seguem as leis divinas.
Se, por exemplo, no colégio ou na universidade um jovem católico é chamado para uma conversa impudica ou para práticas libidinosas, e recusa: “Não vou!”, retrucam-lhe indagando: “Por que não vai?” Se ele der a verdadeira razão: “Não vou porque o 6º Mandamento da Lei de Deus proíbe pecar contra a castidade”, recebe gargalhadas como única resposta.
O resultado é ele sentir vergonha de ser caçoado, e vergonha de ver que são quase infinitos pelo número aqueles que, em nossos dias, riem dos que praticam a pureza. Então, ele fica com a impressão de que a castidade não é a virtude sublime que de fato é, mas algo de ridículo. A prova: o escárnio que o puro sofre da parte de tantos homens.
Pensar e agir assim, é ter o equivocado respeito à opinião meramente humana dos maus, em vez de respeitar o ensinamento sublime de Deus e reagir contra a opinião debochada dos que riem da pureza.
O respeito humano é um pecado
Essa postura de espírito constitui um pecado muito grave, porque coloca os homens acima de Deus. Antes de Nosso Senhor morrer na Cruz por amor a cada um de nós, deixou-nos maravilhosos ensinamentos de pureza. Não tem sentido, portanto, depois de conhecermos suas lições infinitamente sábias e santas, fazermos o contrário, só porque meia dúzia de cretinos nos diz que é ridículo proceder como Nosso Senhor Jesus Cristo mandou! O verdadeiro é enfrentar a impiedade: “Vocês riem de mim? Pois bem, eu lhes digo que não me juntarei a vocês, porque rejeito a maneira de vocês procederem. A Lei de Deus impõe o contrário!”
Os homens que zombam dos mandamentos divinos são como certos cachorros que investem, mas fogem se o agredido os enfrenta. Assim, se aqueles riem de alguém porque é bom, e este, em vez de se envergonhar, levanta a cabeça e retruca com ufania, os provocadores ficam inseguros. Eles sabem que não têm razão, e ao encontrarem uma pessoa que lhes diz a verdade claramente, titubeiam. Como não têm convicções, fogem diante da firmeza de um católico.
Um propósito: manter-se firme
Posto terem me perguntado sobre a luta que travei contra o respeito humano, exemplifico com minha experiência pessoal no curso universitário.
Há em São Paulo uma Faculdade de Direito que, por sua história e qualidade de ensino, adquiriu celebridade em todo o Brasil. No meu tempo, a moda nessa Faculdade era ser ateu, considerando-se muito feio algum aluno apresentar-se como católico apostólico romano. Avisaram-me que o estudante cumpridor dos mandamentos da Lei de Deus era ali desprezado e tido como um animal antediluviano. Pois eu fiz o propósito de me manter católico declarado até o fim do curso, e de, se pudesse, virar a Faculdade de pernas para o ar.
Quando o jovem entrava na Faculdade, estava sujeito a sofrer o trote, o qual, assim como hoje, podia degenerar em algum excesso.
Eu, rapazinho de 17 anos que ainda não conhecia o Movimento Católico, pensava o seguinte: “É uma indignidade passar por esta situação. É vil ser obrigado a aparecer despido, tomando pontapé e sendo alvo de brincadeiras inconvenientes diante de todo mundo na rua. Não vou me submeter a isto.”
Não compareci às aulas no período em que durou o trote. Uns 20 dias depois de aberto o curso, fui à Faculdade pela primeira vez e temi que começassem a me fazer provocações. Na entrada, perguntei a um bedel: “Onde é a aula do primeiro ano?” Ele me disse: “Lá no fundo.” Era-me necessário atravessar todo o pátio da Faculdade, repleto de estudantes. Entrei só, com meu chapéu bem posto na cabeça (naquele tempo todos usavam chapéu), passo firme e uma fisionomia de poucos amigos.
À medida que fui andando, de vários lados alguns me reconheceram, colegas do tempo do colégio, etc. De repente, por trás de mim, ouço alguém começar a gritar: “Caloooouuuro! Calooouuuro!” Era um modo de designar um novato que ainda não tinha levado trote. Enquanto caminhava, eu pensava: “Conheço essa voz.” Subitamente me recordei: “É a voz do meu amigo tal! É um tolo amigo meu que faz isso!” Voltei-me e o vi, olhando para mim e sorrindo.
Pensei: “Se eu fizer a ele um sinal para ficar quieto, demonstro medo, e os outros pulam em cima de mim. Também não posso apressar o passo. Vou andar devagar, sorrir para aquele bobo, como se eu estivesse inteiramente à vontade, e ir em direção à sala de aula.” Assim o fiz, entrei na classe, sentei-me e comecei a ouvir o professor. Mas não dei atenção ao que ele dizia. Minha preocupação era: “Como vai ser a saída?”
A mão de Nossa Senhora pousava sobre os meus caminhos. Quando chegou a hora, saí e observei. Estava todo mundo parado, conversando. Muitos fumavam, outros formavam rodinhas, o pátio cheio. “Está bem. Vou atravessar e sair. Veremos o resultado.” Caminhei em passo normal, cumprimentando de longe ou de perto os meus conhecidos, apertando a mão deste, conversando com aquele, etc. Aliviado, não ouvi gritos. “Por hoje foi! Será que amanhã eles vão me preparar alguma?”
No dia seguinte voltei. Era preciso enfrentar, não adiantava fugir. Apareci no pátio da Faculdade, os colegas se mostravam os mais bonachões possíveis. E assim foi nos dias seguintes: graças a Deus, não houve nada.
Formação da Ação Universitária Católica
No meu espírito se delineou a seguinte idéia: “O terreno se verifica mais mole do que eu supunha. É preciso, então, passar à contraofensiva. Vou começar por procurar gente que tenha fé, para formarmos uma rodinha de rapazes católicos.” Não para dizer desaforos aos outros, mas para afirmar a nossa posição. Passei dois anos inteiros sondando um ou outro, sem sucesso.
Perto da Faculdade havia um café onde, terminadas as aulas, os alunos se reuniam para conversar. Lá também ia eu, para puxar prosa e fazer propaganda católica. Como era de esperar, não raras vezes surgiam discussões, e eu sempre defendendo a Igreja. Tais debates começaram a atrair muitos outros, que tomaram o hábito de ir ao café para assistir a eles.
Quando eu já estava no terceiro ano, participei do Congresso da Mocidade Católica e comecei a freqüentar a Congregação Mariana. No ano seguinte, vejo que começaram a aparecer alguns alunos católicos no primeiro ano, identificáveis pelo distintivo de Congregado Mariano que de vez em quando usavam. Eu não os conhecia. Fui procurá- los:
– Salve Maria!
– Ah! Salve Maria!
– Então, você é Congregado? De que Congregação?
Eles ficavam contentíssimos de encontrar um veterano que lhes servisse de âncora ali. Em pouco tempo éramos cinco. Um dia, chamei-os para uma reunião numa sede da Congregação Mariana e lhes disse:
– Somos cinco e vivemos isolados uns dos outros. Vamos constituir um grupo chamado Ação Universitária Católica. Pediremos licença à Cúria para funcionar e formaremos um núcleo de recrutamento de católicos, dentro da Faculdade. Vocês também usarão distintivo (alguns deles nem sempre tinham coragem de usá-lo…).
Assim nasceu a AUC em São Paulo, com a finalidade de fazer propaganda católica na Faculdade de Direito. Partimos para a conquista de novos membros, com escassos resultados…
O jornal universitário católico
Um ano depois, eu me perguntava: “Esses poucos congregados, o que devem fazer para influenciar essa gente?”
Veio-me a idéia de, primeiro, lançar um jornal católico, destinado aos estudantes de direito. Assim foi feito. No dia marcado para iniciarmos sua divulgação, não foi sem preocupação que me dirigi à Faculdade. Estavam lá meus companheiros com os exemplares a serem distribuídos. Eles temiam o encontro com a massa dos estudantes, e eu sentia em mim a mesma apreensão, mas pensei: “Medo só se combate pelo exercício da coragem. Minha obrigação é dar exemplo de coragem aos mais moços do que eu. Ficarei na porta principal, que é o lugar mais perigoso.”
Disse-lhes então: “Dêem-me cá minha parte, que vou enfrentar!” Peguei um maço grande de jornais e fui para a entrada da Faculdade, que dava para uma praça pública. Enquanto os alunos iam entrando, eu os abordava com toda a naturalidade: “Olhe aqui, um jornal católico de estudantes para você. Seus colegas católicos estão lhe oferecendo. É grátis…”
Junto com o exemplar, eu dava uma explicação: por que estudantes católicos organizados na Faculdade de Direito, como era a AUC, como nós entendíamos os problemas, etc. Era tal a audácia que alguns pegavam o jornal e nada diziam. Outros agradeciam amavelmente; uns até paravam e conversavam um pouco. No geral, a iniciativa foi bem recebida. Ninguém se atreveu a falar contra, nem a rir-se, nem a vaiar. E quando terminou a distribuição não havia um só jornal jogado no chão. Foi desse modo que se anunciou, na Faculdade de Direito, a primeira organização de católicos praticantes.
Dias depois eu estava promovendo outras atividades, e dizendo alto: “Sou católico! Isso, aquilo, aquilo outro!” E ninguém ousava se opor.
Profunda influência da AUC
Creio que publicamos uns dois números do jornal nesse ano. Punha-me, então, outra pergunta: “Agora que levantamos o pendão católico dentro da Faculdade, que efeito isso causa?”
Na Faculdade de Direito de São Paulo funcionava o Centro Acadêmico 11 de Agosto, outrora bem mais conhecido do que hoje, o qual congregava todos os estudantes. No fim de cada ano havia uma eleição para designar o presidente do Centro durante o próximo período.
Às vésperas de um desses pleitos, percebi que os candidatos à presidência – eram três, de correntes diversas – começavam a me saudar de modo mais gentil, se detinham na rua para falar comigo, etc. Certo dia, um deles me abordou:
– Olha aqui, quero que você me garanta o eleitorado que lhes é simpático. Há muito indivíduo que não tem coragem de se aliar claramente a vocês, mas tem simpatia pela sua atuação. E se você me garantir o voto desses, é um fator muito favorável à minha eleição. Então, quero lhe pedir esse apoio.
Ouvi e pensei: “Esse peixe eu não vou vender barato.” Repliquei:
– Fulano, tenho de ser neutro entre os três candidatos. Para eu optar por você, preciso saber o que você oferece. Vou ouvir também os dois outros candidatos, para ver se oferecem a mesma coisa ou melhor.
– Bem, diga o que você quer.
– Quero uma bonita carta de elogio à Ação Universitária Católica e uma garantia de que, quando eu quiser, o Centro Acadêmico 11 de Agosto passa um telegrama ao Presidente da República manifestando-se a favor de nossas reivindicações.
No dia seguinte veio a carta! Procurei os outros dois candidatos, separadamente:
– Olhe, Fulano está oferecendo isto. Agora, se você for contrário, vou avisar a todos os nossos simpatizantes que não votem em você.
– Não! Deixe aqui essa carta que eu a copio.
– Está bem.
Nosso Senhor Jesus Cristo reunia em si, de modo admirável, a suma majestade e a suma humildade. Algo dessa maravilhosa junção nos é transmitido pela linda imagem do “Beau Dieu d’Amiens”, ereta no pórtico da célebre catedral francesa dessa cidade. Ali está um Rei digníssimo, um Doutor nobilíssimo, ao mesmo tempo tão sereno, tão manso, tão completamente senhor de si, que seria capaz de receber a pior injúria e se conservar quieto, plácido, sem manifestar nenhuma reação de amor próprio, sabendo-se embora superior a tudo e a todos, Soberano do Céu e da Terra.No dia seguinte, tinha em mãos as três cartas. Quer dizer, eram numerosos os alunos católicos, mas tinham receio de se apresentar como tais. Contudo, no silêncio eles nos apoiavam, e os três candidatos sabiam disso. As eleições se realizaram, eu deliberei: “Votem em quem quiserem.” Em qualquer caso, íamos vencer.
Selando a reviravolta na Faculdade
Quando, afinal, aproximou-se o dia de nossa formatura, um dos membros da comissão encarregada da cerimônia, antigo colega dos tempos de menino, veio me procurar, muito amável: “Plinio, a comissão queria sugestões suas a respeito da parte religiosa da formatura.”
Eu disse: “Dou-lhes uma sugestão magnífica. Vamos fazer a Missa de formatura não numa igreja, mas dentro da própria Faculdade de Direito. Eu consigo que venha fazer o sermão o pregador mais célebre do Brasil, um grande escritor jesuíta, o Pe. Leonel Franca. Essa Missa de formatura ficará célebre.”
Eles concordaram. No dia marcado, ao entrar na Faculdade para assistir à Missa, tive a maior surpresa de minha vida de estudante: encontrei uns estrados armados ao redor de todo o pátio, com diversas cadeiras em que se sentavam os professores da Faculdade, trajados com beca, alunos e seus familiares. Na hora da comunhão, pensei que só uns poucos amigos da AUC receberiam comigo a Sagrada Eucaristia. Estava enganado. Ergueu-se uma onda de rapazes da minha turma para comungar também. E a festa de formatura foi uma celebração com um sinal católico como nunca se dera antes nos recintos da Faculdade de Direito.
Quer dizer, verificou-se uma reviravolta. Por quê? Porque houve um que venceu o respeito humano e depois reuniu outros; esses outros, por sua vez, reuniram outros, e todos confiaram em Nossa Senhora. (Aliás, junto à Faculdade de Direito existe uma igreja da ordem franciscana, e eu tomei o hábito de, após as aulas, entrar ali para visitar o Santíssimo Sacramento e a Virgem).
Para concluir, o meu conselho é que façam vocês o mesmo em seus colégios, em suas faculdades: sejam valentes! Unidos, se forem muitos; e ainda com mais valentia se for um só! Em qualquer dos casos, rezem sempre a Nossa Senhora e caminhem para frente. A vitória será d’Ela e de vocês!
1) (N. do E.) Os subtítulos são da própria revista.
2) (N. do E.) Os subtítulos são da própria revista.
3) (N. do E.) Os subtítulos são da própria revista.
4) (N. do E.) D. Gastão Liberal Pinto.
5) (N. do E.) Os subtítulos são da própria revista.
6) (N. do E.) Face-a-face, defronte.
7) (N. do E.) Os subtítulos são da própria revista.
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