As noites de Plinio
Todos os dias, ao entardecer, eram acesos os lampiões a gás das ruas e os bonitos lampadários que iluminavam discretamente a entrada das casas, os quais, em geral, eram fabricados na Europa. Lembro-me de um, cor-de-rosa, que me fascinava!
Sentia-se um aroma de jantar proveniente das residências e percebia-se que os pratos servidos eram “de bon aloi” [de boa qualidade], semelhantes aos de nossa mesa. Depois, aquilo ia se diluindo aos poucos e, mais ou menos às dez horas da noite, fazia-se o silêncio nas ruas. Apenas, de quando em quando, ao longe, um cão ladrava.
“A velhice do dia”
Sendo o jantar em casa muito cedo, começando às vezes às seis e meia da tarde, era preciso comer alguma coisinha meia hora antes de dormir. Então, os empregados traziam docinhos e bolinhos, e colocavam-nos sobre a mesa. Eram alimentos leves e de gosto muito discreto, que preparavam um sono agradável: broinhas de fubá, ligeiramente temperadas com anis, biscoitos de polvilho e um pouquinho de “curry”. As pessoas se punham a comer e, nessa hora, deixavam-se os assuntos sérios e conversava-se sobre temas amenos. Os adultos brincavam com as crianças e até com o cachorrinho da casa… Depois todos se despediam e cada um ia para o seu lado.
Esse momento era chamado “a velhice do dia”.
Penetrando no mistério da noite
As crianças tinham o defeito de quererem ficar acordadas até muito tarde, mas em certo momento a “Fräulein” dizia:
– Plinio! Acabou a brincadeira! Suba!
Não tinha choro nem rezinga… Eu devia ir para a cama. Naturalmente, antes de eu dormir, ela me lavava bem.
Eu me ajoelhava e fazia a oração da noite diante de um quadrinho de Nossa Senhora em esmalte, e de algumas pequenas estampas alemãs. Uma delas era a de “Jesu gaudium angelorum” – o que a Fräulein pronunciava “anguelorum” – [Jesus, alegria dos anjos] e representava o Menino Jesus sorrindo, em pé numa pradaria de florzinhas coloridas, com os anjos segurando-Lhe os bracinhos e olhando entretidos para Ele. E, quando eu já estava deitado, ela me explicava:
– Está vendo agora? Você está se sentindo bem, lavado e deitado. Sinta como a sua cama está agradável! É um prazer, por ter sido obediente. Agora, goze o seu sono.
Eu, sempre muito cordato, pensava: “Levantar-me? Não posso! É uma batalha que não estou disposto a travar… Ela tem razão: o sono tem os seus atrativos”.
Mamãe entrava no quarto para se despedir de mim e, após fazer-me sentir a delícia dos afagos maternos, ela mesma apagava o abajur. Às vezes, entretanto, tendo já adormecido, eu acordava quando ela estava me acariciando e fazendo o sinal-da-cruz na minha testa antes de ela mesma ir dormir. Então eu sentia como se um óleo descesse e escorresse sobre mim, ungindo-me e fazendo-me bem, vindo das altas paragens onde mamãe sempre estava. Aquela sensação “perfumada” e suavizante penetrava em mim como o azeite no papel… E isso eu notava também tocando na sua mão, cuja pele era macia e sedosa, reflexo da sua alma!
Ela se recolhia muito mais tarde e, no seu desvelo para conosco, às vezes permanecia até as duas ou três horas da manhã fazendo brinquedos para nós, pintando figurinhas de papel e coisas semelhantes, com enorme cuidado e esmero.
Aquela hora dava-me uma impressão diferente da sesta, durante a qual eu não estava cansado. Eu tinha a sensação de afundar numa espécie de mistério da noite, sobre o qual pairavam as asas do meu Anjo da Guarda, a proteção de minha mãe e o conforto de casa. Mas, apesar de toda a comodidade, era “quand même” [mesmo assim] um mistério. Por outro lado, eu também sentia que muitas coisas haviam se passado e estava com a mente cheia de idéias e impressões, as quais era preciso acalmar e pôr em ordem.
Eu via apenas a luz do quarto de mamãe e papai, que se comunicava com o meu e cuja porta ficava aberta. Para mim, as sombras eram amigas e, nessa idade, eu já não tinha mais medo da escuridão.
No sábado à noite, a roupa de cama limpa: um reflexo da pureza
Nos sábados à noite, seguindo um hábito estabelecido por mamãe, trocava-se a roupa de cama, lavada em casa pela Magdalena. Essa criada descia à lavanderia carregando pilhas de lençóis e colocava-as numa mesa, para serem depois levadas pelas empregadas das várias pessoas às respectivas camas. Mamãe também descia à lavanderia nessas ocasiões e eu a acompanhava. Ia vendo peça por peça e comentava com ela, elogiando o quanto as roupas estavam bem lavadas. Naquela época, nenhuma lavadeira digna de sua profissão apresentaria uma peça apenas branca de tão limpa, mas deveria saber aplicar nelas um produto que as deixava um tanto azuladas… e deliciosas.
Lembro-me até hoje de que algumas roupas eram colocadas num bonito armário de mogno, alto, bem torneado e pesadíssimo, a respeito do qual havia um particular muito curioso: ele havia pertencido à minha bisavó, Dª Bibila, a qual, numa ocasião qualquer, mandou consertá-lo pois tinha uma parte quebrada.
Veio então uma meia dúzia de empregados para transportá-lo e, quando o trouxeram de volta, só dois homens carregavam-no. Corria então na família a história de que um antepassado havia escondido nele muitas moedas de ouro, que foram roubadas nessa ocasião pelo marceneiro. E como não existia documento algum provando a existência desse tesouro, ninguém pôde fazer nada e o tal marceneiro ficou riquíssimo. Isso marcou a história da família e dava ao armário mais valor histórico.
A cama parecia-me ser inteiramente nova. Antes de dormir, eu contemplava o tecido e tinha o costume de tentar descobrir qual era o ponto do lençol ou da fronha em que a cor azulada aparecia mais nitidamente. Depois de tê-lo encontrado, deitava-me, passava a mão embaixo do travesseiro – tinha o costume de dormir assim – e sentia aquele frescor do pijama, dos lençóis e da fronha com rendas, ligeiramente engomados, percebendo que aquilo era bom e devia ser assim. Esse conforto, acentuado pela boa categoria do tecido, dava-me um gáudio reto e ordenado, mas o que me causava mais satisfação era ver exatamente que tudo isso tinha uma relação com a inocência e a santidade. Aquela roupa de cama parecia-me nimbada de alguma coisa, que era, no fundo, a pureza. O deitar-me ali causava-me um bem-estar físico, corolário desse prazer espiritual.
Mas essa pureza tinha, como eixo, mamãe! Pela sua própria condição de mãe de família e… por ser ela! Para mim não era uma mãe qualquer, mas a mãe arquetípica e perfeita, a ordem do Universo que se debruçava benévola sobre mim e me olhava dizendo: “Tu és conforme a mim”.
Pensando no dia seguinte, eu concluía:
“Como me sinto bem e estou contente! Vou ter amanhã um dia inteiro de repouso. Irei à Missa, depois farei um passeio e voltarei a casa para brincar com os soldadinhos de chumbo. Depois terei um super-almoço… À tarde, irei ao cinema e começarei um desfile pelas confeitarias. Posteriormente haverá o jantar. Como é agradável deitar-me agora, na previsão desse dia! Valeu a pena lutar durante a semana. Serei feliz em meio às lutas da vida!”.
O canto dos grilos, matéria para uma meditação
Nossa casa ficava numa esquina, e os fundos do jardim eram contíguos a um terreno baldio, do qual se exalava um bom odor de vegetação. Havia ali uma cabana que diziam ser do tempo dos índios, e umas mamonas nativas que cresciam no meio de um capinzal. E, quando chegava a noitinha, aquilo era uma “hospedaria” de centenas de grilos que começavam a cantar ritmadamente: “cri-cri, cri-cri”, todos ao mesmo tempo. Minha irmã e eu ouvíamos pela janela – sempre aberta, por ordem da Fräulein! – aquele barulho. Em certa ocasião, perguntei:
– Que bicho é esse?
Responderam-me:
– Chama-se grilo!
Então, sentia o contraste entre minha casa e o terreno baldio. Para mim, o capinzal e a mamona eram coisas desarranjadas, formando um mundo separado do meu, no qual eu não deveria nem pensar, para não introduzir uma desarmonia no meu ambiente. E eu me dizia:
“Esses grilos devem ser animais feios, morando numa terra úmida! Pelo contrário, minha cama é limpa, branca e cômoda! Como eu, sendo homem, sou mais do que esses grilos! Estou separado desse mundo inferior e colocado num ambiente superior, cheio de delícias e de coisas que são como devem ser. O pecado deve ser semelhante ao grilo e à terra úmida, enquanto a virtude é semelhante à minha cama…”.
Era o início da idéia do mal.
Entretanto, eu gostava de escutá-los, pois achava o ruído interessante, apesar de não ter propriamente beleza… Eu imaginava o grilo semelhante a um leãozinho, e a simultaneidade daquele som parecia-me como um latejar de vida, pelo qual certos seres vão e vêm, abrem-se e fecham-se… Sentia a vida animal apoiada na vida vegetal, o que me dava a idéia de uma grandeza relacionada com o sobrenatural. Eu sabia ser aquele som inteiramente natural. Todavia, achava que ele de certo modo tocava em Deus, pois era emitido por uma criatura que tinha qualquer participação na majestade d’Aquele que dá vida a todos os seres da ordem vegetal e da ordem animal.
Aquilo me dava a sensação curiosa de uma espécie de pulsação universal, harmônica com a vida de todos os animais e o desenvolvimento de todas as plantas. Parecia-me que tudo quanto era vivo, no mundo inteiro, pulsava daquela maneira. Os grilos eram apenas um acidente dentro disso, sintoma de algo muito maior.
Para mim, o sentido do sono era exatamente este: deixar de pulsar. Sentia que o ato de dormir era como um simulacro da morte e pensava: “Quando eu morrer, provavelmente será deste jeito: vou afundar na morte como afundo agora neste sono. A morte é uma treva que me circundará e dentro da qual sumirei. E depois haverá o Céu”.
E continuava refletindo: “Como é agradável me sentir vivo! Mas agora vou dormir e a vida continuará a pulsar aos meus ouvidos, chamando-me de fora para dentro. E, quando eu acordar de manhã, ela me tomará novamente e serei um ‘grilo’ a mais dentro da grande pulsação. Assim são os homens diante de Deus. Fazem ‘cri-cri, cri-cri’ e Deus lhes dá atenção na sua misericórdia. Eu, então, me ponho nessa posição: aos olhos d’Ele, sou menos do que um desses grilos é para mim”.
Pensava também em minha irmã, um pouco parecida comigo e muito diferente de mim, e refletia: “Quanta coisa há na cabeça dela, que não está na minha! Isso porque ela é mulher. Ela também faz ‘cri-cri’ diante de Deus e Ele a olha… Existem milhões de meninos da minha idade começando a pensar e a andar pela vida, todos dizendo para Ele: ‘cri-cri, cri-cri’. No fundo, tudo é ‘cri-cri’… Em comparação com Deus, não somos nada, mas Ele olha para mim e para cada uma dessas crianças, como se apenas existisse um de nós. Como Ele é infinito! Então, deixe-me, por minha vez, fazer ‘cri-cri’ diante d’Ele!”.
Mas eu julgava que o meu “cri-cri” se dava apenas nas horas em que rezava o Pai-Nosso e a Ave-Maria. Não me dava conta de que nessa reflexão eu emitia o meu “cri-cri”… E eu meditava longamente sobre isso, extasiado diante da idéia de harmonia suprema, altíssima e abarcativa de tudo, em função de Deus.
Eu pensava: “Agora vou rezar para o Anjo da Guarda me proteger”. E recitava uma pequena oração alemã:
“Heiliger Schutzengel mein. / Lass mir dich empfohlen sein, / Diesen Tag und jede Stund, / Bis meine Seele in dem Himmel kommt. Amen”.
[Santo Anjo do Senhor, / eu me recomendo a vós, / hoje e a todo momento / até que minha alma vá para o Céu. Amém.]
Rolava na cama e dormia como um rei.
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