A formação e o convívio de Da. Lucilia – 1
Pelo antigo sistema de mando, quem possuía a plenitude do poder – um bispo ou um monarca, por exemplo – não exercia diretamente a autoridade, mas dispunha de um “primeiro ministro”, a quem designava para mover a máquina da instituição que governava. De certo modo, isso se aplicava às famílias de outrora.
O papel de Dª Lucilia no governo da casa
Por outro lado, algumas pessoas, conforme iam envelhecendo, criavam certa distância entre si e os outros, à maneira de um monumento que, colocado em determinado lugar, embora forme um só todo com o ambiente, distancia-se ponderadamente daquilo que o rodeia. Uma senhora da idade de minha avó, por exemplo, estava habitualmente posta em cogitações de uma estatura maior do que as das pessoas que a circundavam, o que não lhe permitia dar uma atenção inteira ao concreto, ao miúdo e ao circunstancial. Normalmente, ela deixava os mais moços cuidarem desses assuntos, e tomava atitude de certa “monumentalidade” que lhe ficava bem, por ser muito compatível com a dignidade própria a sua idade.
Então, nossa vida doméstica, transcorrendo numa residência enorme e com muita criadagem, freqüentada pela parentela e outras pessoas próximas, estava organizada, pelo curso comum das coisas e sem nunca ter havido uma combinação nesse sentido, do seguinte modo: minha avó – dona da casa e do patrimônio – representava o papel de monarca, enquanto minha mãe o de primeiro ministro. Ou seja, tudo quanto não fosse um caso excepcional ou especialmente delicado, era resolvido por mamãe ou passava pelas suas mãos. Ela se mantinha mais informada no dia-a-dia: telefonava para saber como passou tal pessoa, e providenciava telegramas de felicitações para este e aquele, tendo inclusive um especial contato com os empregados. Mas fazia tudo isso com movimentos muito suaves.
Nas discussões que às vezes surgiam durante as conversas, o seu papel natural era o de apaziguar, amenizar e tranqüilizar, o que ela desempenhava apenas pelo modo de olhar e sorrir. Além disso, também deveria evitar que a prosa morresse, de maneira que, quando faltava o assunto, ela introduzia um tema para animar a conversa, o que minha avó não fazia, pela distância monumental que mantinha em relação aos outros.
Em casa havia três níveis de autoridade: vovó, mamãe e, depois, uma figura que representava a ambas: Samaria, a governanta do serviço da casa, filha de português e de japonesa, muito dedicada e capaz. Ela resolvia o miúdo: assuntos relacionados com a limpeza ou as contas, matérias em que minha mãe não entrava.
Alguém estava doente? O recado era levado diretamente a mamãe, para ela escolher a hora do dia em que conviria avisar a minha avó.
Uma empregada desejava sair? Nem vovó, nem mamãe eram importunadas com isso, mas falava-se com a Samaria.
Minha avó acordava pelas nove horas da manhã, ficando deitada até meio-dia aproximadamente, em parte devido à sua idade avançada, mas também por ser aquilo considerado uma forma de governar. A cama dela era adequada para isso: uma espécie de monumento que pertencera à avó dela, feita em estilo colonial, com colunas em espiral e cortinas. E ela, então, muito bonita e majestosa, ali permanecia lendo o jornal, rezando e recebendo os recados que mamãe lhe enviava por meio da Samaria ou alguma outra criada.
Professora de piano
Mamãe não cantava, apesar de ter uma voz muito agradável de ser ouvida, mas tocava bandolim. Entretanto, deixou de fazê-lo quando se casou e, sobretudo, depois de mudar-se para a residência da minha avó e passar a cumprir as obrigações de dona de casa. Por isso nunca a vi tocando o bandolim, mas conservou-o até o fim da vida como uma recordação da qual falava com saudades.
No entanto, ela foi professora de piano – em grau caseiro – para minha irmã e para mim. Nessa época, em muitas casas de família – mesmo em ambientes modestos da pequena burguesia – havia um piano, no qual se exercitavam as crianças. Ela tomou especialmente a sério o ensino de Rosée, pois desejava que esta obtivesse o diploma no conservatório musical, o que de fato aconteceu, tendo sido minha irmã uma aluna muito brilhante.
Contando sempre com a possibilidade de morrer cedo, por causa do seu estado de saúde, mamãe partia da idéia de que os dias eram muito inseguros e minha irmã poderia de um momento para outro ficar em situação de necessidade. Era conveniente, então, que ela tivesse condições de exercer uma profissão honesta, mas não burocrática, na qual não fosse preciso tratar com homens. Naquele tempo, inúmeras moças aprendiam a tocar instrumentos musicais, principalmente o piano, e esses cursos eram em geral dirigidos por senhoras, fazendo portanto parte do mundo feminino. Como ainda o rádio não era freqüente, um dos modos de tornar atraente uma casa era haver nela pessoas que cantassem e tocassem algum instrumento musical para entreterem a vida de família, num ambiente não profissional. Portanto, essa atividade era ideal, do ponto de vista da moralidade.
Mamãe até comprou um metrônomo e obrigava minha irmã a seguir o ritmo, o que ela fazia muito bem. Eu apenas “datilografava” o piano… Tocava de boa vontade, conscienciosamente, mas sem nenhum talento, e o auge do meu “virtuosismo” foi muito insignificante: cheguei a tocar uma partitura de Rubenstein chamada “Sous le feuillage”. Eu imaginava estar executando-a bem, mas percebia que ninguém me pedia que a repetisse quando concluía, enquanto minha irmã tinha de tocar certas peças quatro ou cinco vezes, por solicitação dos que ouviam. Eu notava também que o entusiasmo de mamãe para com a minha música era dos mais limitados e, por isso, escapei do estudo musical quando pude…
Entretanto, apesar de não ser um bom executor, eu ouvia com muita atenção o som do piano, pois tinha o senso da interpretação das melodias e do seu significado moral e psicológico. Procurava refletir sobre a música e, nas horas em que não havia ninguém na sala onde estava o piano, eu entrava escondido – pois se me perguntassem o que iria fazer, não saberia explicar – e, clandestinamente, realizava furtivas expedições no terreno da música.
Eu tentava produzir harmonias com jogos de teclas, para obter sons agradáveis e expressivos, sem ter entretanto a menor pretensão de fazer uma composição, por estar convicto de me faltarem completamente engenho e arte para isso. Dentre as várias conjugações de sons, a que me parecia perfeita era a de Dó-Mi, mais do que, por exemplo, Mi-Sol ou Sol-Si. O acorde de Dó-Mi-Sol-Dó era o mais alto “vôo” que eu conseguia fazer em matéria de harmonia. Eu não apreciava o Fá-Lá-Ré e pensava: “Dó-Mi-Sol representa as coisas como devem ser, enquanto Fá-Lá-Ré dá-me a impressão de uma pessoa que usa muletas”. O acorde Dó-Mi-Sol dava-me um bem-estar no qual parecia-me que a alma e o corpo se encontravam na mesma harmonia e no mesmo equilíbrio. De tal maneira que, tendo sido meu corpo feito para minha alma e esta para aquele, os dois, se encontrando, diziam a palavra “Plinio”.
Eu me via a mim mesmo posto nessa posição de equilíbrio e sentia um gáudio tranqüilo semelhante a uma brisa bem fresca, que me ajudava a manter-me sério e sem agitações, mas aproveitando o que a vida tem de bom nessa “clave” e refletindo: “Isto é bom: eu percebo que o maravilhoso também se encontra na música!”.
Por outro lado, certas pessoas adultas da família cantavam e tocavam ao piano algumas peças musicais, sempre de origem européia, de maneira que as obras de muitos compositores europeus do século XIX passaram pelos meus ouvidos, no convívio familiar. E as letras das músicas, na sua grande maioria, eram francesas. Uma vez ou outra, muito raramente, cantava-se em espanhol, italiano, inglês ou alemão… Era a velha Europa, da qual eu ouvia falar sempre nas conversas caseiras, que tocava música aos meus ouvidos e da qual eu conservava na retina, na imaginação e no coração, alguns aspectos fugazes do tempo em que lá estivera.
Resignação, solidão e valentia
Quando regressamos da Europa em 1913, mamãe estava com a saúde cambaleante e foi obrigada a seguir um regime de vida severo. Eu notava nela, sobretudo, muita dificuldade de caminhar. Os médicos da Alemanha recomendaram-lhe usar palmilhas de metal, para evitar certa flexão dos pés, o que lhe trazia um certo alívio, mas tornava-lhe o andar muito penoso. Ela então movimentava-se pouco e saía de casa apenas para uma ou outra visita, um passeio diário a pé, e a Missa aos domingos. Teatro e cinema eram para ela uma raridade e nunca fazia compras. Portanto, a existência dela transcorria sem grandes prazeres, quase sempre dentro de casa e permanecendo deitada na “chaise longue” durante várias horas. Assim mesmo, havia o risco de ela morrer de um momento para outro.
Às vezes, meu pai voltava cedo do escritório e os dois então saíam para dar uma volta. Ele, homem muito feliz, satisfeito por haver terminado a tarefa do dia e contente com a saúde e a vida… Ela, sentindo a cada passo uma dor, mas, entendendo que não podia irradiar esse sofrimento sobre o esposo, fingia não estar padecendo ou apenas comentava sorrindo:
– Como estão me doendo os pés hoje…
Mas continuava a andar e nunca terminava o passeio antes de ter percorrido toda a extensão necessária para habituar os pés ao esforço adequado. Quando ela voltava a casa, eu percebia tudo quanto ela havia sofrido durante o passeio, pois gemia sorrindo, deitava-se na “chaise longue”, em geral no chamado “quarto de toilette” dela – onde havia armários de roupas e móveis para descansar – e permanecia com os pés imóveis até passar a dor… Então formava-se uma roda de pessoas comentando os assuntos do dia e, por amabilidade, diziam:
– Você está melhor, Lucilia?
– Sim, sim, estou melhorando.
Presenciando todos os dias a mesma cena, eu compreendia o quanto aquele padecimento produzia em seu espírito um reflexo: a seriedade. Ela compreendia bem a sua própria situação e sentia em sua alma uma dor profunda, proporcionada à dor física. Entretanto, em outras ocasiões, eu não entendia por que ela estava sofrendo e então permanecia olhando para ela, “contemplando” aquele sofrimento para o qual eu não via razão especial… Mas notava que isso ia modelando a alma dela.
Em meio a um conjunto de irmãs, de primas e outros parentes levando uma vida social, freqüentando teatros e cinemas, e fazendo viagens como a generalidade das pessoas, criava-se em torno dela um contraste muito forte, pois, evidentemente, ela passava longos períodos de solidão. Havia movimento em casa durante certas horas do dia, mas, no restante do tempo, os membros da família saíam, permanecendo apenas ela e minha avó. Mamãe, então, aproveitava para pensar sobre a vida e, assim, ia formando um cabedal de observações concretas da existência cotidiana.
Ela ia se tornando cada dia mais refletida, por uma meditação profunda daquilo que constituía o campo visual limitado de uma dama daquele tempo: a própria família, os conhecidos, o que ela ouvia contar da sociedade de São Paulo e um tanto do Rio de Janeiro, e algo dos acontecimentos noticiados pelos jornais. Estes davam notícias sobre os horrores da Guerra Mundial e as pessoas da minha família comentavam, mas eu notava que mamãe tomava, em face disso, uma atitude muito mais pensativa e séria do que os outros. Por exemplo, aos domingos, após o almoço, havia sempre alguém, com espírito especialmente superficial, que, em certo momento, dizia com voz dominadora:
– Meus caros, agora chegou a vez de nos divertirmos! Você vai para onde? E você? Vamos fazer os nossos programas!
Então, enquanto alguns iam passear nos arredores da cidade e outros saíam para fazer visitas, eu percebia no espírito de mamãe a compaixão e a oração para evitar ou aliviar o sofrimento daqueles que estavam na guerra. Era a reflexão sobre o grande, nobre e magnífico tema: a dor. E algo ainda mais bonito: o heroísmo e a coragem.
Por outro lado, ela possuía uma forma de resignação que, apesar de entristecida, não era a atitude de uma pessoa que sofre, aceita a dor e permanece chorando. Pelo contrário, mamãe sabia combater as circunstâncias adversas e procurava tirar proveito daquilo que a vida ainda lhe oferecia, encontrando nisso satisfação e alento.
Por exemplo, eu a via reclinada na “chaise longue”, lendo alguma revista estrangeira: conforme pude observar, ela o fazia de tal modo que muito se entretinha, sabendo desfrutar certo prazer e agradável proveito. Quando a casa se enchia de parentela, o que era muito freqüente, ela participava da conversa com vivacidade e satisfação.
Isso me chamava muito a atenção e, assim, ela me dava uma lição que me foi preciosa para a vida inteira: compreender a resignação enquanto sendo uma atitude de espírito muito sadia, com a qual se recebem os fatos como Deus os apresenta, aceitando com valentia os sofrimentos e degustando os aspectos aprazíveis como elementos para conseguir viver, dando graças a Nossa Senhora. Eu procurei agir desse modo equilibrado e, assim, tive coragem para enfrentar as situações mais críticas de minha vida.
Aprendendo a degustar o repouso e a serenidade
Mamãe não era pessoa de muitas leituras filosóficas ou doutrinárias. Pelo contrário, à maneira das senhoras da época, apenas lia uma vez ou outra, sem grande interesse, um pequeno romance ou algum livro na moda, mas conversava muito com os filhos – sobretudo comigo – contando histórias ou comentando e explicando os fatos que se passavam em torno de nós, com muita seriedade e à luz de princípios muito elevados e transcendentais.
Nessas conversas, ela incutia sempre nas crianças a idéia de que os fatos da vida devem ser objeto de profundas reflexões, não tendo nós o direito de assistir aos acontecimentos sem prestar atenção neles. O suco da existência não é o ter presenciado os episódios, mas o havê-los entendido e relacionado com todas as coisas, numa visão da ordem geral do Universo. Ela não explicitava isso assim, mas era o que estava no fundo da sua mente.
Por causa disso, quando participava das reuniões familiares, às vezes mantinha longos silêncios pensativos, enquanto os outros falavam ou riam. Nessas ocasiões, eu percebia ser aquele o momento em que ela “saía” da conversa para pensar e depois “voltava”.
Com isso, aprendi a apreciar o repouso e a serenidade, a vida tranqüila sem precipitação ou febricitação, tendo agrado de me engajar nos acontecimentos, mas também às vezes “afastando-me” deles e sentindo o meu próprio viver. Assim mamãe me deu o gosto dessa espécie de reflexão viva – ou de vida refletida – que, com o passar do tempo, transformou-se numa das características do meu modo de ser.
A vida iluminada por um “sol” interior
Quem tratasse com ela na existência cotidiana, notava duas realidades. Uma era a vida na qual ela cumpria eximiamente os seus deveres de esposa, de mãe e de filha, com tudo quanto eles têm de árduo, mas também de suave. A outra consistia num certo conjunto de temas que eu não conhecia por inteiro, nos quais ela meditava com freqüência – às vezes rapidamente e em outras ocasiões de modo prolongado – e que constituíam como que o “sol” interior da vida dela. Era uma contemplação dos aspectos imponderáveis, sobrenaturais e religiosos da existência, da criação, de Deus e de toda a doutrina católica. Ela pensava ora num ponto, ora noutro, lenta, doce e tranqüilamente. Aquilo era, de certo modo, a vida da sua vida.
Disso lhe provinha também a confiança em todas as circunstâncias, mesmo nas mais difíceis e arrevesadas, pois Deus haveria de conduzir as coisas de maneira adequada, aprazível e bem-ordenada, e tudo se arranjaria. No fundo, era a Fé em Deus, na sua Mãe Santíssima e na Santa Igreja Católica, Apostólica e Romana.
E assim ela transmitiu a confiança para seus filhos.
Uma “miragem no deserto”
Em certas ocasiões, quando ela rezava ou estava preocupada com algo, fazia-me um sinal para ficar quieto, porém de um modo tão delicado, que nunca parecia dizer: “cale a boca!”. Mas, pelo contrário: “Filhão, fique um pouco ao meu lado que, mesmo quieto, você entenderá alguma coisa”.
Então, eu permanecia junto a ela sem conversar e, olhando-a, notava uma elevação de espírito que me deixava um tanto “interloqué” [desconcertado]. Sentia emanar dela tanta retidão, harmonia, suavidade e firmeza que ela me parecia ser uma imaginação, quase uma utopia! Dava-me a impressão de uma “trans-realidade” maravilhosa, como uma miragem no deserto…
Por exemplo, em certas festas de aniversário, mamãe preparava o bolo: enfeitava-o de modo ultra-cuidadoso – às vezes com bolinhas prateadas – pelo gosto de fazê-lo com perfeição. Mas ela se aplicava a isso de maneira diferente do comum das pessoas.
Mais de uma vez, vi homens e senhoras deitando todo o empenho em realizar algum trabalho – por exemplo, caligráfico – e tomando uma atitude que se poderia exprimir assim: “Agora não me interrompam, pois vou fazer tal coisa”. Como alguém que se “eriça” para fora e se aplica para dentro, de modo um tanto ofegante. Ela não procedia assim: eu podia interrompê-la durante uma ocupação especial, pois ela era sempre absolutamente igual a si mesma, sem jamais perder o seu fôlego, embora eu, às vezes, percebesse que estava se dedicando quase além das próprias forças. Ela suspendia o que estava fazendo ou então dizia:
– Sua mãe agora não pode atender. Espere um pouquinho.
Mas esse “espere um pouquinho” convidava-me a permanecer junto dela. E tudo isso tinha uma doçura que não sei descrever.
A bondade despretensiosa de uma “boa irmã”
Eu também admirava muitas qualidades de mamãe em si mesmas e não apenas enquanto incidindo sobre mim.
A inocência, por exemplo, que ela possuía em alto grau, consistia antes de tudo na pureza e em outras virtudes próprias a uma boa católica, mas tinha também outra forma que tornava o seu convívio muitíssimo agradável: um desprendimento de si mesma pelo qual a última coisa em que pensava era a sua própria vantagem ou suas próprias conveniências. E, por isso, se alguém desejasse dela algum favor, encontrava imediatamente uma generosidade e um contentamento em concedê-lo, realmente extraordinários!
Além disso, ela ajudava os outros sem nenhuma pretensão, como uma muito boa irmã o faria em relação à outra. Se depois se lembrava que podia dar à pessoa algo a mais, além do que esta havia pedido, ela dizia:
– Olhe, eu me lembrei de que ainda poderia fazer por você tal coisa assim.
E logo o realizava.
Eu tinha a maior admiração pelo afeto, paciência e misericórdia que ela manifestava, por exemplo, em relação aos nossos primos, os quais freqüentavam muito nossa casa e eram tratados por mamãe como verdadeiros filhos. Vendo essa generosidade e bondade cristãs, eu tinha uma impressão de retidão de alma e de abertura de coração, como não tive com ninguém. Por isso, entrando numa sala onde ela estava, a primeira pessoa, para mim, era ela. Naturalmente, se não estivesse em minha residência, eu saudaria antes a dona da casa, mas logo depois dirigir-me-ia a mamãe. Assim eu a punha no primeiro lugar, dando-lhe os primeiros agrados e as primeiras manifestações de consideração e respeito. Com isso, eu tinha também a intenção de fazer justiça a ela.
É preciso reconhecer que, no tempo de minha primeira infância, mamãe era muito respeitada e querida pelos seus próximos. Em diversas ocasiões, quando ela saía de alguma sala, eu ouvia comentários dos parentes dizendo que mamãe era um anjo ou uma santa.
Isso correspondia a uma época em que ainda vivia a tradição católica do afeto e da bondade. O espírito prático não havia entrado no mundo com suas obsessões, e a corrida para obter resultados concretos ou ganhar dinheiro não se tornara ainda um ideal.
Um presente negado
Ela era uma mãe da qual não havia possibilidade de um filho se aproximar pedindo alguma coisa, sem receber algo. Às vezes, não nos dava exatamente o que estávamos solicitando, mas oferecia-nos uma explicação tão doce e afável, seguida de uma carícia em vista de nossa resignação, que ficávamos com a alma mais cheia do que se obtivéssemos o que desejávamos. Disso tive a experiência várias vezes.
Lembro-me de que certa vez lhe pedi – talvez sem propósito – uns soldadinhos de chumbo muito caros, sabendo não estarem no nível comum dos presentes que meu pai e ela me davam. E mamãe me explicou tão encantadoramente a impossibilidade de atender o meu desejo e depois me acariciou tanto, que eu saí pensando: “Valeu a pena…”.
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