Doenças e dificuldades
Apesar de ser um menino forte, eu tive todas as doenças a que estão sujeitas normalmente as crianças, exceto varíola. Apanhei mil gripes, catapora e rubéola. Quando eu me resfriava, mamãe já ficava preocupada ao perceber os primeiros sintomas.
Resfriado e com febre, aos cuidados de Dª Lucilia
Ela se aproximava de mim, punha a sua mão muito alva, fresca e macia sobre a minha testa, percorria as têmporas calmamente, comunicando-me certa estabilidade e tranqüilidade, e dizia:
– Você está com febre.
E tinha razão. Mas essa era a única circunstância em que eu não gostava que ela me tocasse! Não queria que descobrisse a minha febre, pois já sabia qual seria o decreto: eu teria de permanecer na cama durante horas. Ela então dizia a uma empregada:
– Mande vir o termômetro.
Eu tentava dissuadi-la:
– Não, meu bem! Não tenho febre, pode desistir.
– Vamos ver, vamos ver…
Chegava o termômetro. Era inexorável! E a febre era sinônimo de cama: catástrofe para uma criança! Eu então queria iludir-me, afirmando não ter febre, para poder ver-me livre. Mas ela não permitia objeção: eu tinha de trocar de roupa, pôr o pijama e ir deitar-me. Ela então dizia:
– Não chore, pois será uma bobagem. Você vai ser muito bem cuidado por mamãe.
Isso já me consolava. Nessas ocasiões ela ficava mais afável e brincalhona; para entreter-me, mandava vir brinquedos que deixava especialmente guardados para esses casos, punha-os sobre a minha cama e brincava comigo, ensinando-me a aproveitá-los de vários modos. Então, ela tomava um bloco de papel e escrevia os nomes dos medicamentos homeopáticos: “Tantas horas: dulcamara. Depois: hopatorium”. E ia tomando nota a cada vez que eu ingeria o remédio. Preenchida uma folha, recomeçava a anotação em outra, pois queria ter a certeza de não haver se distraído.
Ela entrava no meu quarto exatamente na hora marcada, se já não estivesse ali conversando ou brincando comigo. Aparecia sempre sorrindo, tão afável, tão bondosa, tão comunicativa e tão carregada de promessas de que o remédio me faria bem, que eu ficava encantado. Nunca em minha vida conheci alguém que sorrisse com tanto afeto e entrasse nos problemas da vida de uma criança como ela sabia fazê-lo! E parecia dizer: “Vamos atravessar juntos esta dificuldade”.
Trazia um copo de água coberto por um pires, e uma colher. Pingava várias gotas no copo, mas com tanto carinho que eu nem prestava atenção no remédio, mas apenas em mamãe. Lembro-me do modo de ela introduzir, com cuidado, a colher na minha boca e só retirá-la depois de se ter certificado de que eu havia tomado tudo. E eu queria conversar enquanto bebia…
Mas o regime era severo: eu não podia levantar-me da cama enquanto tivesse febre. E, quando esta passasse, ainda devia permanecer um dia inteiro no quarto, só podendo sair no dia seguinte. De maneira que o resfriado era uma verdadeira pequena tragédia, conduzida com a maior boa vontade possível e com toda espécie de delícias espirituais para mim, mas eu ficava trancado mesmo! Pois ela era categórica e irremovível, e fazia o que julgava necessário para nossa saúde.
Tudo isso acontecia inclusive quando eu já era um “meninão” de sete anos. E eu percebia que aquele transbordamento de carinho não estava condicionado ao fato de eu ser um bom filho, pois se fosse mau ela procederia igualmente. Se eu notasse que sua atitude era condicional, não seria para mim o mesmo. Quem foi objeto desse trato, acredita ser possível o afeto na vida; pelo contrário, para quem não o recebeu, a vida perde um dos seus sentidos e a pessoa permanece desgarrada, como navio sem leme, por ser levada a acreditar que esse afeto não existe.
Plinio com caxumba
Recordo-me de haver chorado de aflição na ocasião em que tive caxumba, aos seis ou sete anos.
Como é freqüente, a inflamação começou num lado do pescoço e, quando já havia sarado, perguntei:
– Eu me levanto amanhã, mamãe?
Ela, dubitativa, não quis responder afirmativamente, mas no dia seguinte disse:
– Vou ver se deu a mesma coisa no outro lado.
– Como? Do outro lado?!
Ela não me tinha dito que isso sempre acontece nos casos de caxumba. Pôs a mão em meu pescoço e concluiu:
– Está vendo? Olha lá, deu do outro lado.
E já me preveniu:
– Às vezes, dá também no estômago.
Então, chorei caudalosamente. Fiquei desolado, sobretudo quando a previsão foi cumprida! Minha avó, que fora criada no interior, quis curar a caxumba com um processo dos antigos tempos: mandar comprar uma colher de pau numa loja próxima, introduzi-la no sebo quente e aplicá-la na região inchada. Mas mamãe, já conhecendo o meu modo de ser, chegou ao meu quarto, sentou-se na minha cama – com risco de apanhar aquela doença, que ela nunca tivera – e disse:
– Filhão, sua avó está querendo fazer um tratamento antigo para essa caxumba sua, que não passa mais. Se isso der certo, você se levantará logo. Você quer fazê-lo?
Eu perguntei:
– O que é?
Quando ela falou do sebo e da colher de pau, eu exclamei:
– Isso nunca, absolutamente! Não quero essa coisa comigo! Diga a vovó que não, de nenhum modo!
Aquilo dava-me idéia de sujeira. Já a caxumba não me parecia limpa, mas aplicar sobre ela uma colher de pau e deixar um sebo em cima de mim, era grotesco! Lembro-me do risinho de mamãe. Apesar de ela ter esperança no tratamento, não insistiu e disse:
– Não, você fará o que quiser.
Mas, nessa circunstância, apresentou-se diante de mim uma opção: mamãe não podia permanecer por muito tempo junto a mim, pois devia receber as pessoas que visitavam vovó continuamente. Então, punha-se uma pergunta: quem iria cuidar de mim, no tempo de duração da caxumba? Mamãe, ou certa senhora conhecida da família, que freqüentava nossa casa? Parecia mais simples e conveniente a segunda hipótese.
Minha mãe era alguns anos mais velha do que ela e ambas tinham o modo de ser característico de duas épocas históricas diferentes. Mamãe representava o tempo de vovó, enquanto a outra estava nas origens da modernidade. Lembro-me de que elas apareceram no meu quarto: a mencionada senhora entrou dando risadas e achando tudo muito engraçado, enquanto mamãe permanecia séria. A primeira explicou:
– Sua mãe está muito cansada e não é conveniente que trate de você, mas eu estou disposta a assisti-lo com todo o carinho.
E mamãe disse:
– Meu filho, é claro que se você preferir tratar-se comigo, terá tudo o que quiser. Você prefere ser tratado por quem?
Olhei para as duas e pensei:
“Se eu abrir minha alma para a outra, terei talvez uma doença muito mais alegre e sararei mais cedo. Aqui está um modo de enfrentar a doença com gargalhadas e brincadeiras: ela certamente vai comprar-me um palhaço de pano ou um gramofone para me divertir, mantendo assim um ambiente de alegria em torno de mim. E entrarei num sistema de vida, pelo qual esta senhora parece mais feliz; pois, se mamãe fosse despreocupada, leve e espirituosa, os negócios de papai possivelmente andariam melhor. Mas ela, sendo como é, atrai sobre si uma série de dificuldades.
“Se, pelo contrário, eu escolher mamãe, haverá em torno de mim uma atmosfera de muita seriedade, gravidade e tranqüilidade, com um afeto que me ajudará a enfrentar todas as possibilidades penosas que podem ser previstas nesta situação. Mas essa previsão parece provocar as próprias circunstâncias desagradáveis. O que é melhor para sarar logo? A alegria ou a seriedade e a tranqüilidade? Eu preciso escolher uma atmosfera propícia à minha cura. A quem devo seguir?”.
Aquele dilema pôs-se diante de mim à maneira de uma opção para o futuro. Ficamos os três quietos, enquanto eu olhava para as duas. Por algum lado, sentia-me muito levado a optar pela amiga da família. Mas, por outro lado, minha mãe me atraía incomparavelmente mais.
O tratamento continuou com mamãe.
Horror ao óleo de fígado de bacalhau
Naquele tempo davam-se muitos remédios às crianças como, por exemplo, óleo de fígado de bacalhau ou Emulsão de Scott, reputado remédio muito prestigioso. Vinha num vidro de formato triangular e era servido misturado com vinho tinto francês, para amenizar o sabor. Aquilo formava uma espécie de arquipélago de gotinhas de óleo com vinho, que era preciso engolir.
Rosée, e sobretudo eu, por ser muito magro, éramos obrigados a tomar grosas daquele líquido e, evidentemente, o achávamos horrível. Eu não fazia protestos sonoros, como os meus primos, filhos do tio Gabriel, mas afirmava não querer bebê-lo. Razão? Não gosto. Está definido!
Entretanto, a Fräulein Mathilde, que já me conhecia, tinha uma solução: punha os dedos nas minhas faces e dizia:
– Abra a boca! Feche! Engula!
Eu fazia o cálculo: “Isto vai me dar um esforço sem fim! É melhor engolir o remédio do que ‘engolir’ este dragão… Vou abrir a boca e, pelo menos, tenho esta coisa tão apreciável que é o sossego”.
Depois de ter bebido, eu não brigava nem fazia fisionomia de desagrado, e logo depois estava brincando contente. O incidente era minúsculo: uma rejeição intelectiva e gustativa, seguida de uma capitulação completa. Além do mais, eu queria fazer a vontade de mamãe; e também pesava na balança o fato de que, de modo muito formativo, ela nos dava o prêmio de ir à Casa Lebre para comprar brinquedos se, durante seis meses, bebêssemos o óleo de fígado de bacalhau sem recalcitrância.
No dentista, incômodos e maravilhamento
Mamãe era muito cuidadosa e mandava-me ao dentista a cada seis meses, ainda que fosse apenas para arrancar-me um dente de leite que tardava para cair.
Eu era inimigo nato dessas visitas, pois elas constituíam então um sofrimento temível para as crianças, tanto mais que o meu dentista, um norte-americano chamado Dr. Crook, utilizava anestesia apenas para extrair os dentes, mas não para outros tratamentos mais modestos.
Ao sentar-me na fatídica cadeira do consultório – lugar do tormento –, eu já ia dizendo:
– Ah, doutor! Eu estou muito bem.
– Vamos ver.
Ele tomava o famoso espelhinho, passava pela minha boca e eu pensava: “O que esse homem vai encontrar aí? Eu me sinto perfeitamente bem e ele vai inventar um tratamento! Mas minha mãe e meu pai acreditam nele e tenho de permanecer aqui sentado”.
Em certo momento, ele deixava o espelhinho de lado e apanhava um instrumento de metal, fino como um fio de cabelo, introduzia-o num ponto dolorido dos meus dentes e dizia:
– Aqui tem uma cárie!
Eu pensava: “Já conheço o resto! Não tenho de dizer nada”.
Ele vinha com aquela broca e a operação de chumbar os dentes doía… Era um horror!
Um dia, nos intervalos daquela aflição, eu olhei pela janela e vi o muro do pátio interno do consultório, no qual havia um afresco muito popular representando Veneza, da qual eu tinha uma vaga idéia. Percebi que as suas ruas eram “calçadas” de água, através da qual os barquinhos faziam a comunicação entre os homens e onde se miravam palácios magníficos… Fiquei extasiado e pensei:
“Como será Veneza? Um dia conseguirei visitá-la? Essa pintura, até que ponto mostra a cidade como ela é realmente? Ela é menos bonita do que está aí, pois isso é lindo demais e, portanto, não existem coisas tão belas? Ou, pelo contrário, Veneza é muito mais bonita do que isso?”. Eu começava a me perguntar o que se podia acrescentar de mais belo na fachada de tal igreja, de tal palácio ou de tal casa. A partir desse dia eu tive longos “solilóquios” com Veneza. O Dr. Crook podia remexer na minha boca como quisesse que eu não reclamava! Mas, quando ele, com fisionomia pouco atraente, apanhava um alicate, a minha atenção deixava Veneza e se voltava para aquela “batalha”. Depois de ele ter arrancado o meu dente, eu tomava um pouquinho de fôlego, sentado na cadeira e, enquanto a dor me permitia, eu ficava novamente pasmo, olhando Veneza e imaginando-a, não como estava pintada lá, mas “arquetipizada”. E já entrava ali uma idéia sobre a mentalidade dos homens que tinham inventado aquilo e que moravam naquela cidade.
Obrigado a praticar ginástica sueca
Como eu era magro e franzino, os médicos aconselharam mamãe a que eu fizesse ginástica. Então, ela mandou a Fräulein Mathilde me levar ao instituto de uma senhora da Suécia chamada madame Leo, na avenida Higienópolis, para receber aulas de ginástica sueca. Desejosa de proporcionar-me apenas boas companhias, mamãe me fazia comparecer a essas aulas sem outros alunos ou alunas.
Avenida Higienópolis
Era uma hora de sessão, que eu detestava de toda alma! Eu era um péssimo aprendiz e executava aqueles exercícios de abrir e abaixar os braços apenas para fazer a vontade de mamãe, mas aquilo dava-me a idéia de movimentos que não correspondiam a nenhuma atitude da alma. Os músculos se retesavam quando a alma estava completamente frouxa e desinteressada, o que me parecia contrário à boa ordem do homem.
Entretanto, eu percebi que o estímulo fazia parte da índole da ginástica sueca. Obrigavam-me a fazer determinadas movimentações, esperando que elas estimulassem certas potencialidades do meu organismo, as quais, depois, deveriam agir para corresponder aos elementos bons que recebessem. Por exemplo, durante o exercício de respiração – o mais suave de todos, do qual até gostava, pois podia fazê-lo sem andar, correr ou tomar sol, bastando estar em pé e respirar! –, eu pensava: “Essa sueca que está aí me manda inspirar e expirar… Mas a assimilação do ar que ela me manda pôr aqui dentro tem um papel. Se eu não tiver bons pulmões, não adiantará fazer isso!”.
Terminados os exercícios, a Fräulein dirigia-se ao canto da sala de ginástica, onde havia uma escrivaninha, pagava a aula e permanecia às vezes tagarelando um pouco com a sueca. Eu não me interessava por aquela conversa, em que minha irmã prestava atenção: eram temas de senhoras, relacionados com compras e outras coisas que não me importavam. Eu ficava sobrando e, como não tinha nada para fazer, olhava para os objetos da sala.
Feliz reencontro com Veneza
Um dia, observando a mesa de Madame Leo, os meus olhos caíram sobre um pesa-papéis muito comercial e comum, de vidro arredondado, com uma fotografia embaixo. Prestei atenção: era Veneza. Fiquei encantadíssimo! Aquilo foi um ravissement [fascinação]! Se pudesse, compraria aquele pesa-papéis por qualquer preço! Lembrei-me do quadro que tinha visto no dentista, comparei uma representação com a outra e, nos primeiros olhares, dei-me conta inteiramente da sublimidade de Veneza.
Aspectos de Veneza
A idéia da beleza estava presente, mas de modo secundário: tratava-se de um estado de espírito e uma elevação moral. Os edifícios que se refletiam na laguna indicavam um estilo de vida levado por personagens que possuíam os sentimentos e o modo de ser que me agradavam. Eles seriam de trato aprazível e atraente, sérios, graves, elevadíssimos, afetuosos e dignos, e os seus palácios seriam como oratórios, nos quais eles viveriam numa clave inteiramente superior àquela em que eu estava. Como eu teria mais facilidade em ser “eu mesmo”, se morasse em Veneza! Que enorme vontade de entrar em contato com certo mundo que satisfaria uma parte de minha alma da qual eu não tivera consciência antes de ver aquela representação de Veneza!
Parecia-me existir um universo acima do nosso, para o qual eu deveria tender com toda força, a fim de ser como aquelas coisas sublimes. E pensava: “Quem estivesse em Veneza não poderia imaginar algo que, na mesma linha, fosse tão mais belo do que essa cidade, quanto ela é mais bonita do que este objeto?”.
Viver naquela cidade, compreender que aquela ordem de coisas era muito mais conveniente e mais bela do que a avenida Higienópolis ou a alameda Barão de Limeira, onde eu morava; perceber que as pessoas se elevavam a outra categoria, morando naquele ambiente; tudo isso significava para mim um passo rumo à santificação. Não no sentido de que aquelas casas e aquela água me levassem diretamente para a santidade, mas elas me preparavam para querer e admirar tudo quanto é sublime e, com isto, desejar a sublimidade de alma. De tal maneira que, insensivelmente, eu ia conformando a minha alma com aquele ideal e notava que ele me modelava. Assim nasceu em minha alma o desejo da santidade.
Reconheço, hoje em dia, que desejava uma ordem de coisas adequada não tanto ao mundo dos anjos, mas a certas criaturas que poderiam ter sido criadas. A Veneza que eu tanto admiro não seria nem sequer um arrabalde em comparação com a arqui-Veneza com que eu sonhava! Era a graça tomando a minha alma de criança batizada e fazendo-me ver algo além da mera natureza, o que me dava uma espécie de nostalgia do sobrenatural. E Nossa Senhora me protegeu muito, dando-me forças para resistir contra a tendência – que seria natural em muitos meninos – de perguntar-me: “Em qual dessas barcas eu estaria? Como seria uma gôndola para mim? Se eu fosse senhor de Veneza, qual seria o meu papel?”.
Nunca tive esses sonhos, o que me favoreceu a manter uma inclinação de alma muito acentuada: fazer da admiração um dos gáudios de minha vida; gostar de admirar as pessoas e as coisas pelo que são, julgando-as pelo que valem; fazer da alegria de admirar um dos sustentáculos da minha vida.
Visitando a fábrica do pai e analisando as dificuldades enfrentadas pelos adultos
Meu pai era um bom advogado e bastante inteligente; mas, como muitos homens daquele tempo, queria transformar-se num industrial, pois a industrialização estava começando em São Paulo e se tornava uma rápida fonte de riqueza. Então, associado a um contraparente nosso, resolveu comprar uma fábrica de cerâmica para fazer telhas1, nos arredores da cidade.
Ele sempre tinha de tomar o trem para chegar até esse local e, às vezes, me levava consigo. Ele ia no vagão conversando com o sócio, ora sobre qualquer banalidade que viam pela janela, ora sobre os negócios. Eu percebia, no entanto, que o contato entre eles, em cada um desses encontros, era muito cordial e amável no começo; mas que, em certo momento da conversa, se tornava mais tenso e de um “colorido” complicado. Em cada viagem, essas tensões tornavam-se mais árduas e mais complexas. Depois, eles examinavam juntos todas as grandes máquinas da fábrica e muitas vezes se aborreciam com o que encontravam, chamando então o gerente ou o administrador, o qual dava explicações que nem sempre os deixavam satisfeitos.
Com afã de ajudar meu pai, eu comecei um dia a procurar defeitos nas peças da fábrica e, em certo momento, vi sair umas duas ou três formigas de uma máquina que não estava funcionando. Então exclamei:
– Papai, olhe aqui, estão saindo formigas!
Ele me disse, surpreso:
– Isso o que tem?!
– A máquina deve estar quebrada.
– Cale a boca!
Percebi que meu “golpe de gênio” tinha sido o cântico da burrice e pensei: “Está bem, vou ficar quieto”.
Entretanto, em certa ocasião notei que meu pai desejava desfazer a sociedade e vender a fábrica, pois via que esta não rendia lucros. Mas o sócio, com o amor-próprio muito ferido, recusava-se. Eu não percebia qual era a razão; mas, muito tempo depois, descobri: ele, enquanto engenheiro, tinha certas responsabilidades pelo bom funcionamento da sociedade, que um advogado não era obrigado a ter. Então, naturalmente, por uma questão de honra, não queria vender a fábrica, pois isso comprovaria o fracasso dele.
O esposo de uma irmã de mamãe, que morava em nossa casa, era parente de um dos associados de meu pai e isso produzia certas discussões, em parte porque mamãe, preocupada com o futuro de seus filhos e ainda muito mais desconfiada do que papai, preferia que se vendesse a fábrica, mas para ela era dolorido sustentar uma posição contrária à da irmã. Afinal de contas, meu pai – que tinha meios legais para isso – acabou exigindo a liqüidação da sociedade. O engenheiro declarou, então, que daria uma lição a ele, pois daí em diante a fábrica iria prosperar de modo colossal. E meu pai respondeu:
– Dar-me-á muito gosto! Pensa que vou ficar triste por isso? Fique rico à vontade! Será mais feliz do que eu e ambos estaremos contentes!
Um dia, notei que todas as pessoas adultas da casa levantaram-se muito cedo e foram conversar no escritório de meu pai. Entrei também, vi mamãe sentada numa cadeira e, naturalmente, fui logo para junto dela. Ela me acariciou instintivamente, mas estava empenhada na conversa; e eu percebi, então, que o assunto era “quentíssimo”… O que havia acontecido? A fábrica não tinha dado os resultados esperados e, na noite anterior, o engenheiro que fora associado de papai não havia aparecido em sua casa para dormir. A senhora dele, evidentemente muito apreensiva, mandou que o procurassem, mas não o encontraram. De manhã, a polícia informou que ele havia se suicidado nos arredores de São Paulo.
Nesse momento, entendi melhor o drama da vida. Existia a luta entre o bem e o mal; mas, de outro lado, havia também uma enorme quantidade de pessoas que lutavam por seus interesses, os quais se desencontravam e acabavam em desastres ou em êxitos. Isso tornava alguns muito felizes e reduzia outros à infelicidade…
1 A Cerâmica Privilegiada do Estado de São Paulo S.A., em São Caetano do Sul.
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