1930 – agosto a dezembro
A Ordem”, nº 8, vol. IV (nova série), ano X, agosto de 1930, pp. 83 a 87 Seção Universitária – AUC de São Paulo
Os horrores da Inquisição1
“É preciso ser muito ignorante, para caluniar a Inquisição e para buscar na mentira pretextos com que fazê-la odiosa.” (Voltaire, Ensaio sobre os costumes).
Um dos ataques mais impressionantes que se fazem à Igreja, dos que mais se prestam a explorar certas mentalidades morbidamente crédulas e sensíveis, é, sem dúvida, a chamada Santa Inquisição.
O aparato sinistro de suas execuções públicas, em soleníssimos autos-de-fé, o desenrolar lúgubre e espetaculoso de todas as minúcias e etiquetas peculiares a semelhante gênero de cerimônias, o crepitar das fogueiras, o gemido das vítimas e os sorrisos ferinos e sarcásticos dos inquisidores, tudo, enfim, conspira de modo propício para a formação de um ambiente pitoresco,2 no qual historiadores parciais carregam, à vontade, as tintas, alterando o verdadeiro significado dos fatos e contribuindo com o jorro nem sempre límpido de sua inesgotável imaginação, para a criação das maiores monstruosidades históricas.
Os romances históricos, explorando o natural pendor do público pouco culto pelas cenas teatrais, apresentam sempre a Inquisição sob os mais desfavoráveis aspectos. Assim, os inquisidores são sempre sacerdotes velhos que, tendo passado a vida toda nos vícios e nas intrigas das cortes, mal disfarçados por uma incomparável hipocrisia, desabafam os rancores de sua velhice desiludida sobre aqueles cujas crenças a Igreja condena. E os exploradores da História costumam encarnar nos inquisidores os mais legítimos representantes do espírito de fidelidade à ortodoxia da Igreja Católica. Os inquisidores são tidos, em geral, como membros de escol do Clero, figuras características de indivíduos dotados, em alto grau, do mais acentuado cunho de catolicidade, produtos típicos do espírito da Igreja. E, como “pelos frutos se conhece a árvore”3, tomando-se como fruto os inquisidores, assim pintados, julga-se e condena-se sumária, categórica, solene e definitivamente a Igreja Católica Apostólica Romana, isto tudo com grande exibição de princípios humanitários, frases ocas e sentimentalismo descabido, que sempre encontram terreno favorável. Eis, em suma, as conseqüências que os espíritos independentes e liberais, proclamando-se imparciais e isentos de superstições da Idade Média, tiram da história da Inquisição.
Justifica-se perante o bom senso e a verdade histórica semelhante acusação?
[A violência dos crentes não prova a falsidade do credo]
1) Admitido que fossem verdadeiras todas as acusações lançadas contra a Igreja, a propósito da Inquisição, ainda assim não se teria demonstrado a falsidade do Catolicismo.
De fato, se se pudesse demonstrar a falsidade de uma doutrina qualquer, servindo-se da crueldade com que a defenderam os seus partidários, seríamos forçados a concluir que todas as religiões, e o próprio ateísmo, são falsos, o que é absurdo.
E, quanto a provar que o Catolicismo tem sido vítima das maiores crueldades por parte dos sequazes de todos os credos que lhe são contrários, nada mais fácil. Não será preciso relembrar as perseguições de judeus e romanos, contra o Cristianismo nascente. Não será preciso mencionar a barbaridade dos orientais contra os missionários católicos. Será desnecessário evocar as crueldades com que os ortodoxos, que se separaram da Igreja, perseguiram os católicos. Bastará, apenas, recorrer à História escrita por pessoas insuspeitas de Catolicismo, como sejam Albert Mallet e Isaac, para demonstrar a inominável crueldade de Lutero (em virtude de cujas ordens uma guerra “sem piedade” foi levada a efeito contra camponeses revoltados, e na qual foram queimados, com aplausos do apóstata, dezoito mil revoltosos na Alsácia e dez mil na Suábia), a intolerância fanática de Isabel4 (a respeito de cujas violências contra católicos Mallet publica uma gravura curiosíssima), além de outros numerosíssimos fatos que poderíamos citar.
Quanto aos desmandos sanguinários do ateísmo, será ainda necessário falar nesta série de morticínios que, inaugurada em 1789, e continuada na comuna de 1870, no México de 1924 e na Rússia de nossos dias, parece querer afogar em sangue a idéia de Deus?
Ora, se demonstramos que todas as correntes religiosas praticaram excessos, não podendo elas todas ser igualmente falsas, o que concluímos? Que a violência dos crentes não prova a falsidade do credo.
[Se houve falhas na Inquisição, isto não prova que a Igreja não é santa]
2) Admitidas todas as fábulas com que cercam a Inquisição, ainda assim não estará provado que a Igreja não é santa.
Em primeiro lugar, admitindo que as violências do clero de uma crença qualquer podem demonstrar a falsidade do credo, temos que todas as igrejas são falsas. Por aí vemos que os únicos a quem assiste o direito de se prevalecer da Inquisição, para atacar a santidade da Igreja, são os ateus.
No entanto, a crítica destes não tem razão de ser. De fato, é ponto de Doutrina Católica que os homens, enquanto homens, são criaturas sujeitas a pecado. E esta fraqueza é por tal forma inerente à natureza humana, que só deixa de existir com a morte.
Ora, se entre todos os sacerdotes, se entre todos os dignitários da Igreja, no decurso de dezenove séculos de vida, a Igreja não pudesse apontar alguns indivíduos absolutamente indignos da investidura que receberam, estaria demonstrado que estes indivíduos não eram sujeitos a pecado, donde se segue que seria falsa a Doutrina Católica.
A indignidade de alguns sacerdotes, e até, talvez, de alguns Bispos (sem esquecer Judas) e Papas, demonstra, portanto, não a falsidade, mas sim a veracidade da Doutrina Católica.
A santidade da Igreja não consiste, pois, e não poderia consistir, na santidade do clero, mas sim na santidade da doutrina.
[A influência salutaríssima da Igreja em toda a vida da Idade Média]
3) Admitidas, ainda, todas as lendas relativas à Inquisição, não se poderia demonstrar a conveniência da separação entre a Igreja e o Estado.
Dizem algumas pessoas que, na Inquisição, o Clero já demonstrou aquilo de que é capaz, quando detém alguma parcela do poder temporal.
A afirmação é pueril. De fato, julgar o Clero de nossos dias através dos inquisidores é mais do que uma injustiça, é um absurdo.
Além disto, quem ousará negar a influência salutaríssima da Igreja em toda a vida da Idade Média? Não é princípio indiscutível, em matéria de Direito Internacional, que o Cristianismo, aplicado pela Igreja ao Direito Internacional tanto público quanto privado, constituiu um poderoso fator de concórdia e progresso entre os povos? Antes de se constituírem Ligas das Nações, não tinha a Santa Sé enfrentado o problema da paz internacional, e procurado instituir, com grandes vantagens para todos os povos, a Trégua de Deus?
Não é sabido que a autoridade dos bispos, na Idade Média, era tão suave que os plebeus fugiam do domínio dos senhores feudais, para receber a proteção do clero?
Aliás, para que demonstrar a evidência? Para que insistir em uma verdade que ninguém nega?
Chegamos, pois, à conclusão de que, ainda que se admitissem todas as acusações lançadas contra a Inquisição, nem mesmo um único argumento se poderia tirar daí, contra a Igreja.
[A Inquisição era o tribunal mais brando da época]
Reduzamos agora os fatos às suas justas proporções, e restituamos à Inquisição seu verdadeiro caráter.
Já vimos o que pensava da Inquisição o terrível e insuspeitíssimo Voltaire. Segundo Valera, a Inquisição era um dos tribunais benignos da época, pois que, comparativamente, as fogueiras da Inquisição fizeram poucas vítimas. Somos pois forçados a concluir, como Justino Mendes na Igreja e a História que a Inquisição, tribunal secular como outro qualquer, e, portanto, sujeito inevitavelmente aos preceitos do direito penal então vigente, ainda era brando, em comparação com os demais da época. Vemos que é exagero evidente o se lhe atribuir desusada ferocidade e a primazia entre os mais cruéis tribunais da História.
E, ainda assim, estava sua atuação em desacordo com os princípios humanitários da Igreja que, por isto, reagiu energicamente, como adiante veremos.
[Tribunal eclesiástico, subordinado porém aos soberanos temporais]
Vamos agora ao caráter da Inquisição. Se consultarmos os tratados jurídicos do século passado e outros ainda anteriores, veremos a Inquisição sempre classificada como tribunal eclesiástico. É o que faz, entre outros, Pereira e Souza, no seu Dicionário Jurídico. Ora, tribunal eclesiástico não era o que funcionava em virtude da autoridade da Santa Sé, mas sim o que, embora composto por eclesiásticos, estava subordinado, como órgão da administração pública que era, aos soberanos temporais.
Não existe, pois, entre a Inquisição e a Igreja, a solidariedade que liga o mandante ao mandatário. Muito pelo contrário, demonstraremos: a) que a Inquisição independia das ordens do Santo Padre, estando subordinada diretamente aos soberanos; b) que a Inquisição era mal vista e combatida pela Igreja, por causa de sua crueldade.§
A primeira das afirmações, podemos fundamentá-la com as seguintes provas, facilmente controláveis em Justino Mendes, op. cit.: o Papa concedeu certificados de ortodoxia a indivíduos acusados pela Inquisição; esta, longe de acatar respeitosamente, como o faria um tribunal dependente da Igreja, as ordens do Santo Padre, decretou pena de morte a quem se munisse de tais certificados. Onde a obediência que, necessariamente, caracterizaria a Inquisição, se fosse sujeita à Igreja, e considerada mero departamento desta? Em 1482, Sixto IV dirigiu um Breve severo aos reis de Espanha, contra os excessos da Inquisição. Ora, se esta dependesse do Santo Padre, para que dirigiria ele o Breve aos reis, e não aos inquisidores, diretamente? Acresce que aos reis cabia até o direito de demitir os inquisidores, poder este exercido sobre doze dentre eles. Além disto, para corroborar ainda mais nossas afirmações, basta lembrar que a Inquisição estava encarregada de julgar os crimes de contrabando e estelionato. Ora, como poderia um tribunal mantido pela Igreja tomar conhecimento destes crimes?
[Certos excessos da Inquisição foram objeto de sanção dos Pontífices romanos]
Quanto à segunda afirmação, de que a Santa Sé combateu a Inquisição por causa de suas crueldades, basta lembrar os seguintes fatos: em 1482, Sixto IV pedia aos reis de Espanha, “pelas entranhas misericordiosas de Jesus”, que refreassem os ardores criminosos da Inquisição. O mesmo historiador faz menção de indivíduos secretamente absolvidos pelo Papa, depois de condenados pela Inquisição. Em 1519, Leão X excomungou os inquisidores de Toledo, para punir sua crueldade (e é esta a maior pena que um Pontífice possa aplicar a um católico). Paulo III aliou-se aos napolitanos, para impedir que se instalasse em Nápoles a Inquisição. Pio IV e São Carlos Borromeu opuseram-se à sua introdução em Milão. Logo, a Inquisição, sempre desaprovada pela Igreja, não foi produto do espírito católico de alguns elementos clericais, mas, muito ao contrário, um fator das mais censuráveis revoltas contra o intangível poder dos Pontífices Romanos, aos quais, pois, não cabe a menor responsabilidade quanto aos horrores da Inquisição.
Temos, pois, chegado ao fim que tínhamos em vista, que era de demonstrar que: 1) a Inquisição não se presta para demonstrar a indemonstrável falsidade da Igreja; 2) a Inquisição não pode servir de fundamento à separação da Igreja e do Estado; 3) a Inquisição, comparada aos demais tribunais contemporâneos, não foi cruel; 4) a Inquisição não era um tribunal sujeito à autoridade da Igreja, e independia das ordens do Santo Padre; 5) a Inquisição, rebelde aos Pontífices, foi por estes combatida e punida muitas e muitas vezes.
Plinio Corrêa de Oliveira
(5º ano da Faculdade de Direito de São Paulo)
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“O Legionário”, nº 64, 24/8/1930, pp. 1 e 3
Quid est veritas?
Certos estudiosos das coisas da pré-história presumem poder reconstituir, baseando-se em um simples osso, o esqueleto de animais mortos há muitos séculos.
Não sei se as tentativas de reconstituição de corpos de animais antediluvianos, tendo por fundamento tão-somente um osso, são aceitas pelos cientistas mais ponderados, e duvido muito de que estas ousadas tentativas tenham grande número de admiradores.
No entanto, somos freqüentemente tentados a imitar os pesquisadores das coisas da pré-história, no terreno psicológico. De fato, temos muitas vezes a tentação de reconstituir a nossos olhos toda uma mentalidade, baseando-nos simplesmente em uma frase, um dito.
Assim, ainda que não tivéssemos as narrativas evangélicas a nos mostrar eloqüentemente a sinuosidade de inteligência e de caráter de Pilatos, poderíamos fazer uma idéia bastante segura de sua mentalidade através do seu imortal “quid est veritas?”5
[Retrato psicológico de Pilatos]
Abstraindo da feição religiosa do diálogo entre Nosso Senhor e Pôncio Pilatos, não podemos deixar de considerar a beleza histórica da cena rapidamente relatada pelos Evangelhos.
O diálogo entre o pretor romano e a inocente vítima de sua covardia representa o diálogo entre uma época que se extinguia, nos últimos lampejos de uma civilização decadente, e outra época que nascia no sangue e na aparente infâmia da Cruz, mas que, dentro de alguns séculos, desabrocharia numa aurora suave de doce vitória, trazendo aos homens desvairados o doce lenitivo de uma doutrina de salvação.
O pretor romano é pintado ao vivo pelo “quid est veritas?” com que quis confundir a Nosso Senhor.
O romano civilizado, cujos sentidos já se haviam maravilhado em todos os deleites de uma sociedade que vivia para o prazer, o romano instruído, cuja inteligência inquieta havia percorrido ansiosamente todos os sistemas filosóficos que cientistas medíocres expunham no mercado literário de Roma, tal qual os modistas quando expunham os últimos tecidos exóticos chegados do Oriente, o homem vencido pelo prazer, incapaz de se desvencilhar de sua sensualidade, cuja personalidade soçobrava num mare magnum6 de doutrinas confusas e imperfeitas, no relaxamento de seus sentidos insatisfeitos, o pobre romano, triste vítima da pestilência de uma época prestes a morrer, exala através do “quid est veritas?” todo o azedume de quem sente ao redor de si somente as ruínas nascidas dos próprios desvarios de sua razão e de seus sentidos.
E o humilde Nazareno, que passara uma vida de privações e de abnegação, e que, jovem, belo e formoso, iria morrer pelos seus algozes, sustentando uma verdade de que se dizia a encarnação, representa exatamente o pólo oposto.
É o contraste magnífico entre o abismo cheio de umidade, de trevas e de frio, e o cume elevadíssimo de uma montanha cheia de luz, de harmonia e de beleza.
Não venceu o pretor orgulhoso. O sibarita cético que, entre ansioso e indiferente, parecia ter procurado a verdade infrutiferamente, foi estrondosamente vencido pela vítima humilde, que regou com sangue suas próprias doutrinas, e substituiu o sistema de dúvida e negação de Pilatos por um sistema de afirmação e construção que, durante tantos séculos, a humanidade civilizada admirou!
E o dito do pretor cético foi relembrado pela Igreja, durante séculos inteiros, aos povos prosternados nas góticas catedrais, por ocasião da Semana Santa, como o brado de insensatez e desespero de uma civilização prestes a naufragar. O “quid est veritas?” de Pilatos, pronunciado na agonia da civilização romana, equivale ao “vicisti tandem, Galilæu, vicisti”7, que Juliano, o Apóstata, legou ao mundo ao morrer, como último desabafo de um coração revoltado.
São ambos gritos de revolta e de desespero, diante da vitória da Verdade, que vai surgir.
[O grito de Pilatos repercute no cientismo desbragado de nossos dias]
Mas o grito de Pilatos não foi proferido sem eco.
Hoje, novamente, repercute em nossa sociedade repaganizada, em nosso mundo restituído aos horrores de um cientismo desbragado, quase exclusivamente formado por doutrinas fracassadas e explorações científicas.
Quando observamos o atual estado da ciência, tal qual a pode considerar um cético, lembramo-nos insensivelmente de nossas florestas virgens. A vegetação é por tal forma luxuriante, são tantos os parasitas, os cipós, as plantas de toda a sorte, é tal o emaranhamento louco das redes verdes formadas pelas trepadeiras que, à primeira vista, em certos trechos, custa descobrir árvores formosas que, em uma reta impecável, ergam bem alto suas copas frondosas.
Assim, também, o mundo científico moderno. Tal é o embate das doutrinas, tal a confusão dos sistemas, tais as contradições entre as descobertas de hoje e as leis ainda ontem tidas por verdadeiras, que a árvore reta e frondosa da Verdade, o magnífico jequitibá dos conhecimentos eternos, que resistem a todo o exame e são superiores a todos os parasitas científicos, custa para ser descoberto.
Mas, por que existe em nossa época a vegetação perniciosa que procura encobrir a verdade? Por que há tantos derrotados, tantos indivíduos que consideram a verdade como uma bolha de sabão que, mal se tem na mão para examinar, desaparece?
Por causa da repaganização do homem. Por causa da revolta da própria razão contra a revelação, que no entanto a lógica nos obriga a aceitar. Por causa, principalmente, do orgulho e desregramento dos sentidos, rebeldes a todo o freio, a toda a lei.
[Livro do Dr. Franco da Rocha repete a exclamação de Pilatos]
Ainda agora tivemos uma manifestação patente do que acabamos de afirmar. Um cientista ilustre, o Dr. Franco da Rocha, ao publicar um livro sobre a psicanálise, repete e endossa a exclamação de Pilatos.
Mas o que mais espanta é que um notável jornalista, o Dr. Plinio Barreto, comentando o livro do citado escritor, não só aprova, como reforça, com as autoridades, indiscutíveis, aliás, no assunto, de Anatole e de Loy, o brado multi-secular de Pôncio Pilatos.
Então, estudar, esforçar-se por granjear conhecimentos vários e notáveis, para chegar à falência integral da inteligência humana diante dos problemas os mais imediatos da vida! É isto sadio em matéria de lógica?
Depois, se a inteligência é incapaz de perceber qualquer verdade, força é confessar que, ainda mesmo para afirmar a relatividade de todo o conhecimento, ela é suspeita.
Nada há de menos lógico, ainda mesmo para os que querem declarar a falência do espírito na procura da verdade, do que a imagem de Anatole, de um disco com cores diversas, representando as diversas verdades, e que, girando, produzisse o fenômeno da superposição das cores, dando em uma verdade branca, superposição de todas as verdades. Dizer que a verdade pode ser a superposição de uns tantos conceitos contraditórios é um insulto ao bom senso. Assim, duas pessoas que afirmassem, uma estar, e outra não estar uma jóia em um quarto, poderiam obter a verdade real… superpondo ambos os conceitos!!!
Não menos absurda é a alegoria do Dr. Loy. Segundo este, a verdade é um sol diante do qual se tivesse colocado um prisma. A decomposição dos raios solares no prisma faria com que, em cada região do globo, a verdade aparecesse com uma cor.
Segundo o referido Sr., a aritmética é uma na Índia, outra na Groenlândia, uma no Japão, outra na Hungria. A nós, não nos consta esse fato, aliás deveras singular.
Devemos concluir com melancolia nossas despretensiosas ponderações. Vemos que o neopaganismo de nossa época infiltrou-se na ciência por tal forma que o bom senso é conspurcado, e que os próprios conhecimentos os mais elementares são altivamente negados por pessoas de incontestável renome e valor intelectual.
E não poderia deixar de ser assim! Negaram os filósofos do século XVIII a Fé católica em nome da razão, cujo culto a Revolução Francesa quis estabelecer. A evolução do mesmo movimento revolucionário fez com que se acabasse negando a própria razão, para ficarem… escombros, que é o que vemos por quase todos os lados.
Plinio Corrêa de Oliveira
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“O AUC”, ano I, nº 1, outubro de 1930, p. 1
Manifesto Aucista
[Defesa e difusão dos princípios católicos]
Está fundada a Ação Universitária Católica de São Paulo, entidade que se propõe à afirmação, à difusão, à atuação e à defesa dos princípios católicos, não só de estudante para estudante, mas de estudante para a família e para a pátria.
Aos universitários em geral e aos estudantes católicos em particular é dirigido este manifesto definindo o escopo da AUC. Muitos já têm uma noção deste belo movimento de restauração espiritual na sociedade brasileira. Os que o acolheram com simpatia têm, por certo, guardadas na sua consciência estas palavras que são um brado: momento decisivo. Os que, céticos, indiferentes e ateus, receberam-no com a frieza natural, sabem, porém, mais do que os crentes, que há um momento decisivo, e este é justamente quando a convicção do homem oscila entre as duas extremidades: o erro e a verdade. Este é o momento atual da civilização.
[A mocidade católica universitária abraça a Igreja]
Uma vista panorâmica sobre o que se passa no Brasil, leva-nos à convicção inelutável de que já não é mais possível vivermos no regime de separação entre a consciência religiosa e a consciência cívica, como se esta não se devesse inspirar naquela; entre a consciência universitária e a consciência religiosa; entre a consciência do professor e [a] do crente católico; entre a consciência dos que governam os homens e [a] dos que devem governar-se a si próprios, como se toda vida social não sofresse os males conseqüentes ao abandono dos princípios imortais que deram à humanidade as diretrizes que até hoje a têm norteado.
No Brasil operou-se, infelizmente, o mal, desde que o exagero da separação entre a Igreja e o Estado se transformou num perigoso preconceito contra o Catolicismo.
Desde a proclamação da República, ↓8 o Catolicismo tem sido afastado da consciência dos cidadãos e dos governantes, em conseqüência deste ruinoso preconceito de que o bom cidadão é aquele que se forma no laicismo dissolvente e dele faz a sua bandeira na vida pública.
Nisto reside a causa de toda essa dissolução de caracteres e todo o perigo de uma próxima desagregação da nossa unidade espiritual, o fator mais decisivo da coesão nacional.
De dentro deste ambiente frouxo, descaracterizado e ameaçador, levanta-se hoje, com a consciência católica despertada pelas desilusões e capitulações vergonhosas que presencia em todos os setores da vida social, a mocidade católica universitária, para declarar, apoiada que está na autoridade vinte vezes secular da Igreja Católica Apostólica Romana, que abraça, em toda a sua plenitude, os seus dogmas, sem nenhuma restrição; e que não só jamais seguirá outro caminho que não seja o da Fé católica, como também oporá a sua ação enérgica contra aquela doutrina e aquelas pretensões que constituem a outra face do problema que inquieta e ameaça o Cristianismo: o bolchevismo e as suas formas mitigadas.
[Guerra ao indiferentismo religioso]
Ao mesmo tempo que nos defrontamos com esta situação periclitante, apresentando-se, de um lado, a consciência de toda a humanidade civilizada ainda inerte e, de outro, a mais trágica experiência de uma coletividade inteira, firmamo-nos na convicção de que há um mal nosso, muito nosso, produto do abandono criminoso de nós por nós mesmos.
Este mal é o recalcamento, no setor da vida pública, das mais imprescindíveis afirmações de Catolicismo em todos os departamentos onde a atividade do Estado se exerça na formação das novas gerações. Obrigado a manter a aparência de um organismo perfeitamente adaptado às nossas condições morais, o Estado agnóstico tem sido um laboratório de perniciosas hipocrisias político-religiosas.
A AUC vem demonstrar, com atos inequívocos, com normas de ação invariáveis, que o Catolicismo deve estar acima de todos os partidos com cuja contingência não se imiscui, mas que, por isso mesmo, deve ser a norma imprescindível dos que pretendem lutar nas refregas nobilitadoras pelo bem da coletividade. Por isso, onde quer que funcione um órgão coletivo, aí estará a consciência católica, intransigente ante as transações com o erro e com os interesses subalternos. Visamos especialmente a mocidade, a cujo indiferentismo declaramos guerra de morte. E guerra declaramos aos petulantes e abúlicos mentais; aos que se dizem católicos mas fazem dos Wilde, Anatole, Ibañez e tantos outros preparadores do anarquismo um programa de vida; desconhecemos o pessimismo e o temor do sacrifício, males outros que as preocupações egoístas da mocidade opõem às tendências aproveitáveis de tantos moços de formação católica e de reservas morais que não podem continuar inertes, pois ou somos católicos integrais ou somos traços de união entre o Catolicismo e o bolchevismo.
Com este manifesto, a AUC tem em vista chamar a atenção dos tíbios para o ambiente de ilusões idealistas de que estão sendo cúmplices; dos universitários católicos que ainda não se resolveram a agir, para que se definam de vez, e dos que já estão prontos para a luta para que dêem a sua adesão inadiável à AUC, devendo para isto assinar as fórmulas de compromisso que serão urgentemente distribuídas nesta Escola.
Não estamos sozinhos. Estamos com as diretrizes que nortearam a nossa formação espiritual. Estamos com a religião contra a qual jamais prevaleceram os erros e o orgulho do homem. Estamos, portanto, com os mais altos interesses da civilização e [da] Pátria brasileira.
Os interessados poderão dirigir-se aos seguintes senhores nas respectivas escolas: Adolpho de Mello Junior, Alberto Maricato, Archimedes Barros Pimentel, Clovis Siqueira, Guilherme Lyra, Henrique Chabassus, Luiz Lins de Vasconcellos, Svend Kok, Tasso de Moraes Junior e Telemaco van Langendonk (Politécnica); Ângelo Simões de Arruda, Augusto de Souza Queiroz, Edgard Pinto de Souza, José Pedro Galvão de Souza, Joaquim Paes de Barros Netto, Milton de Souza Meirelles, Roberto Caldas, Plinio Corrêa de Oliveira e Walter Torres (Fac. de Direito); Arthur Wolf Netto, Altenfelder Silva, Hugo Ribeiro de Almeida, João Noel von Sonleitner, Oswaldo Pedroso, Paulo de Carvalho e Castro, Pedro Moncau Junior e Vasco Ferraz Costa (Fac. Medicina).
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“O AUC”, ano I, nº 1, outubro de 1930, pp. 1 e 3
O programa da AUC
Plinio Corrêa de Oliveira
Com o formidável lastro de idéias de que dispõe a AUC, não nos faltam iniciativas úteis e patrióticas a tomar.
Entre elas, como ponto capital, está o apostolado entre os colegas. O aucista é essencialmente um ardoroso propagandista dos princípios católicos, quer pela palavra, quer pelo exemplo. Aproximar da Igreja os colegas que dela estão afastados, dissipar certas dúvidas, oriundas, quase sempre, da grande falta de cultura religiosa, propagar a moral católica, tão sublime na sua inflexível rigidez, eis aí as principais ocupações do aucista, em suas relações com os colegas.
No entanto, não pára aí a sua tarefa. O aucista, estendendo ao terreno jurídico os clarões da Fé, deverá orientar sempre seus estudos de acordo com suas convicções católicas, fazendo com que as sábias e numerosas diretrizes jurídicas da Igreja sejam conhecidas e, portanto, aceitas e apreciadas por todos os colegas. Para isto, providenciará a AUC a respeito da importação de livros jurídicos católicos, que procurará divulgar o mais possível.
[Imprimir à vida acadêmica um cunho nitidamente católico]
Além disto, procurará o aucista imprimir à vida acadêmica um cunho nitidamente católico e, para isto, longe de se afastar das manifestações coletivas e da vida acadêmica, intervirá em todos os debates que interessem à classe, e será um ardoroso e dedicado sócio do Centro [Acadêmico XI de Agosto]. Terá sempre, no entanto, como preocupação capital, os princípios e os interesses católicos, pelos quais pugnará com ardor e espírito de disciplina.
E não se diga que os assuntos debatidos no Centro não interessam aos princípios católicos. Debatem-se freqüentemente, é certo, assuntos que, como católicos, nos deixam indiferentes. Assim as moções relativas à maior parte dos problemas políticos externos, etc. Assim, também, algumas questões referentes às relações que, entre si, mantêm as agremiações políticas da Faculdade. Mas muitas outras questões há em que os interesses católicos estão diretamente em jogo, e nas quais a AUC intervirá certamente.
[Nos problemas políticos, só interessam à AUC os que apresentem algum caráter religioso]
E, por esta razão, bem se compreende o empenho que tem a AUC em manter cordiais relações com o Centro, e também o interesse que desperta a eleição para certos cargos de sua Diretoria.
Está claro que o Presidente, o orador, ou um membro da comissão de redação muito nos podem auxiliar ou prejudicar. Por esta razão, resolveu a AUC intervir nas lutas eleitorais, encaminhando os votos de seus membros para os candidatos mais simpáticos para o programa aucista.
I) a AUC só pleiteará, para seus membros, os cargos de interesse para a realização de seu programa.
II) embora, naturalmente, entre de acordo com um dos partidos, para facilitar a conquista dos cargos pleiteados, não se fundirá com nenhum deles, nem firmará acordos que ultrapassem a luta eleitoral e certos pontos da administração do candidato apoiado.
III) este acordo, a AUC só o firma com um dos partidos, depois de ter estabelecido a superioridade deste, sob o ponto de vista católico.
IV) a AUC intervém nas questões políticas, mas, desde que se possa estabelecer um modus vivendi9 que lhe garanta por tal forma os interesses que ela não mais precise intervir, ela, desde já, se compromete a desistir de toda e qualquer atitude em relação à luta política.
V) Embora apóie alguns candidatos, a AUC não constitui, portanto, um partido:
a) porque a sua influência no Centro constitui para ela apenas um meio e não um fim.
b) porque, nos problemas políticos, ela só se interessa pelos que possam apresentar algum caráter religioso, enquanto o partido devidamente organizado deve se ocupar de todos os problemas que afetam a coletividade.
c) por conseguinte, enquanto os partidos da Faculdade costumam exercer certa disciplina partidária em relação aos problemas coletivos todos, exceto os de ordem religiosa, a AUC exercerá sua disciplina nos problemas de caráter religioso, e dará toda a liberdade a seus membros, nos de caráter estritamente político.
As vantagens
Na França, não há partido católico, mas a Ação Social Católica resolveu, nas últimas eleições, que os seus membros só votassem nos deputados contrários à Escola Única. Com esta tática, subiu a 277 o número de deputados contrários ao projeto, total este que, do contrário, nunca se teria.
Vem a propósito, agora, uma pergunta: se os católicos brasileiros tivessem agido sempre assim, teríamos nós tido a série de medidas iníquas com que, no Brasil, tem sido vexada a Igreja?
Um ponto a esclarecer
É possível que alguns dos partidos da Faculdade, apesar da inteira cordialidade que, com eles, deseja manter a AUC, entendam que não podem continuar nas suas fileiras estudantes que assumam o compromisso de votar em candidatos indicados pela AUC, e não pelo Partido. Não os censuremos; estão no direito de agir de acordo com os seus interesses. No entanto, poderia parecer que a AUC estaria induzindo os seus membros a quebrar compromissos partidários, anteriormente assumidos.
Expliquemo-nos. A AUC é uma agremiação nova. Os rapazes, quando entraram para os outros partidos, não a conheciam. Apareceu agora uma nova agremiação; pergunto: não teriam eles o direito de se filiar a ela, desde que preencha seus ideais mais completamente, do que a agremiação em que anteriormente estavam? É claro que sim. Do contrário, ainda estaríamos nos partidos Liberal e Conservador da Monarquia.
Conclusão
Está aí, lealmente exposta, a nossa atitude. Não pensamos que alguém contra ela se possa insurgir.
Temos por nós nosso passado; nada se pode dizer dos rapazes que ora fundam a AUC. Teremos também por nós o futuro. Dai tempo ao tempo, e compreendereis melhor nosso programa, vendo que ele será executado com leal sinceridade.
Resta-nos apenas afirmar, mais uma vez, que temos toda a simpatia para com todos os partidos. Não temos fusão com nenhum deles. Não combatemos a nenhum.
Combateremos por ideais bons, contra ideais maus. Não conhecemos pessoas, conhecemos idéias.
E, firmes na resolução e na diretriz que aceitamos, só nos resta uma coisa: agir, sob as bênçãos de Nossa Senhora Aparecida, Padroeira do Brasil, e São Luís Gonzaga, símbolo da Pureza e da Mocidade Católica, confiantes no futuro da Igreja e de nossa Pátria, a quem entranhadamente estimamos.
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“O AUC”, ano I, nº 1, outubro de 1930, p. 3
As Congregações Marianas
Constatamos com júbilo que o movimento católico da juventude paulista inicia hoje mais uma de suas grandes realizações.
No dia de hoje, em todas as Escolas Superiores de São Paulo, estão sendo lançados manifestos aos colegas, convidando-os a aderir à Ação Universitária Católica, organização nova que deseja arregimentar em suas fileiras todos os estudantes católicos.
A Ação Universitária Católica não representa uma atitude inopinada e isolada de alguns estudantes: é o fruto de uma longa atividade exercida sobre a mocidade paulista, por intermédio das Congregações Marianas, com o êxito admirável que todos podem constatar.
Assim como as árvores frondosas estendem seus galhos em todas as direções, assim também a Igreja, na sua imensa sabedoria, estende sua influência em todos os campos da atividade humana.
Passou o tempo dos católicos que se lembravam de Deus para pedir graças quase sempre temporais, e que se esqueciam do Criador, quando, entre amigos, ouviam placidamente as maiores acusações contra a Igreja.
[Todo católico deve ser um combatente, e todo combatente um herói]
Hoje o católico é, por definição, um combatente. Numa cidade, quando o inimigo está às portas, todos os habitantes se põem em pé de guerra. Combatem todos como podem, e traidor será aquele que, fugindo aos azares da luta, se refugiar covardemente em sua casa.
Quando Santo Agostinho se referia a duas cidades, uma a Cidade de Deus, a outra a do demônio, que se combatiam constantemente, não lançava mão de uma figura senão para pintar melhor a realidade. Protestantes, espíritas, ateus, teosofistas, maçons, ortodoxos, judeus, muçulmanos não são mais que soldados de diversos batalhões pertencentes a um mesmo exército. Realmente, pouco se combatem uns aos outros. Estão, porém, sempre unidos para combater a Igreja.
Ora, neste combate que, hoje mais do que nunca, tende a assumir proporções ciclópicas, todo o católico deverá ser combatente, e todo o combatente deverá ser herói. O católico de hoje deve ser um Bayard do Catolicismo, um Chevalier sans peur e sans réproche10.
E assim como os fidalgos medievais, antes de serem armados cavaleiros, procuravam se destacar no manejo das armas, assim também todo o católico de hoje tem a obrigação de se preparar para as lutas, nas Congregações Marianas.
Embora os membros da AUC não sejam, todos, congregados marianos, a AUC não cessará de recomendar a todos os estudantes que se filiem às associações da Virgem Santíssima.
Chegou o momento de agir. O dever nos chama à luta. O combate será encarniçado. Por toda a parte se arregimentam os nossos. À batalha! À vitória!
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Publicamos, a seguir, a fórmula do compromisso mariano.
Compromisso dos Congregados Marianos
Santíssima Virgem Maria, Mãe de Deus, eu, ainda que indigníssimo de ser vosso servo, movido contudo pela vossa admirável piedade e pelo desejo de Vos servir, Vos elejo hoje, em presença de toda a corte celeste, por minha especial Senhora, Advogada e Mãe, e firmemente proponho servir-Vos sempre e fazer quanto puder para que dos mais sejais também fielmente servida e amada. Suplico-Vos e rogo-Vos, ó Mãe piedosíssima, pelo Sangue de vosso Filho por mim derramado, me recebais por servo perpétuo, no número de vossos devotos. Assisti-me em todas as minhas ações e alcançai-me de vosso Filho graças para que sejam tais, daqui para o futuro, os meus pensamentos, palavras e obras, que nunca mais ofenda os vossos olhos e os de vosso divino Filho. Lembrai-Vos de mim e não me abandoneis na hora da minha morte. Amém.
E como os Sumos Pontífices têm repetidas vezes condenado a Franco-Maçonaria e quaisquer outras sociedades secretas, eu, obedecendo com amor filial à autoridade do Vigário de Cristo, e nomeadamente aos desejos de Sua Santidade Leão XIII, expressos na Encíclica Humanum Genus, tomo a resolução e compromisso de nunca me afiliar em alguma das sobreditas seitas, sob qualquer denominação que seja, e de, pelo contrário, combater animosamente, em todo o tempo e lugar, as suas tramas, doutrina e influência. Assim Deus me ajude.
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O Código Penal, art. 382, reforça a proibição contida no compromisso mariano. Para se ser bom congregado, basta ser bom católico e bom cidadão.
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“O Legionário”, nº 69, 23/11/1930, pp. 1 e 4
Fora, Sr. Mariani, fora do Brasil!!11
É um dever imperioso de todos os católicos brasileiros auxiliar com todas as suas energias, e com toda a sua alma, a nacionalidade, no momento em que esta envida os mais ingentes esforços para levar a efeito sua reconstrução.
No atual momento, não podemos deixar de lançar um olhar retrospectivo sobre a vida política da situação que caiu12, sobre todas as irregularidades e abusos que um exame imparcial está denunciando.
[Animados por um espírito cristão de serena justiça]
A história de nossos quarenta anos de República se presta, sem dúvida, a considerações mais interessantes do que o ataque impiedoso e sistemático aos homens que a onda revolucionária derrotou. Reconhecemos, com toda a sinceridade, que no meio da podridão que andava pela administração pública havia também alguns idealistas abnegados que, na medida de suas forças, procuraram lutar contra a imoralidade que grassava em nosso funcionalismo. Reconhecemos que, entre os membros do Partido Republicano Paulista, hoje apontado à execração pública, havia pessoas de comprovada honestidade, que se vinham esforçando, em cargos diferentes, por tornar menos intolerável a situação que acaba de ruir. Mas tudo isto, nós o reconhecemos não com a intenção de diminuir os méritos do movimento revolucionário, nem com a idéia de despertar em quem quer que seja qualquer movimento de saudosismo. Nós o reconhecemos, pelo contrário, animados por um espírito cristão de serena justiça, que nem as agitações das massas, nem os delírios da vitória podem vencer.
[Apoio às autoridades em tudo que empreenderem dentro do respeito às nossas sagradas tradições]
Prestamos respeitosa homenagem à legitimidade das autoridades ora constituídas, associando-nos de todo o coração à atitude que, a este respeito, manteve o Episcopado paulista.
Homenagem de reconhecimento àqueles, dentre os vencidos, que procederam bem, homenagem de respeito e solidariedade aos vencedores, dos quais esperamos que agirão melhor do que os vencidos, eis a atitude, ao mesmo tempo justa e razoável, que assume a opinião católica.
É absolutamente incontestável que este movimento teve um grande mérito: foi um movimento de regeneração, que manifestou um grande amor à moral, ao bem, à virtude, e uma grande força de conservação, contra os fatores perigosos que contribuíam cada vez mais para o empobrecimento moral e pecuniário do País. Foi, pois, e isto nunca o podemos perder de vista, um movimento essencialmente conservador.
E nós, brasileiros da Congregação de Santa Cecília, que sobre sermos brasileiros, somos católicos, não podemos deixar de manifestar nossa inteira e irrestrita solidariedade a tudo quanto as autoridades constituídas, no louvável intuito de preservar da ruína a Terra de Santa Cruz, quiserem empreender, dentro das normas de nossos intangíveis princípios e do respeito às nossas sagradas tradições.
Causou-me a mais agradável e profunda emoção o ouvir, na Faculdade de Direito, o Sr. Professor Cardoso de Mello Neto, encerrando as aulas do 5º ano, declarar que, na atual revolução, tudo estaria perdido, se se perdessem os princípios; tudo estaria salvo, se estes se conservassem intactos, na alvura imaculada de seu idealismo.
E é para preservar da corrupção estes princípios, para manter intacto o seu brilho, que levantamos agora nosso protesto indignado contra a conferência pronunciada pelo Sr. Mário Mariani, no dia 14 p.p.
[As revoluções cercam de notoriedade tanto caracteres adamantinos quanto aventureiros]
Assim como as marés que trazem às praias, misturadas com as mais belas conchas, restos imprestáveis de objetos lançados ao mar pelos passageiros, assim também as revoluções cercam de grande notoriedade tanto caracteres adamantinos quanto aventureiros. E o trabalho cuidadoso do País deve consistir em fazer a seleção, dando a cada um o que merece, na estima ou execração pública, conforme suas obras.
É o que vamos fazer com o Sr. Mário Mariani. Este senhor foi expulso pelo Governo do Dr. Washington Luís, sob a alegação de ser comunista. Idêntica punição já tinha o mesmo sofrido dos governos francês, belga, espanhol e, se não me engano, suíço, depois de ter perdido a cidadania italiana. Quando as autoridades quiseram purificar o ambiente nacional, removendo do Brasil o indesejável em questão, levantaram-se diversas personalidades eminentes, desconfiadas de que fosse o Sr. Mariani apenas uma inocente vítima de uma perseguição injusta por parte do Sr. Mussolini.
O habeas-corpus13 impetrado em seu benefício foi rejeitado pelo Supremo Tribunal, depois de ter este cuidadosamente estudado o caso, e de ter pedido mais de uma vez informações ao Ministro da Justiça. Por fim, nosso supremo órgão judiciário decidiu não conceder o habeas-corpus impetrado. E os íntegros ministros Dr. Firmino Whitacker (irmão do atual Ministro da Fazenda) e Dr. Soriano de Souza declararam estar absolutamente convictos de que o Sr. Mariani era comunista.
Pois nem diante de fatos tão significativos cessou a faina dos defensores do Sr. Mariani! Explorando habilmente o nacionalismo, mostravam-se indignados contra uma intromissão indébita do Sr. Mussolini em nossas coisas. Diga-se de passagem que, para se suspeitar desta intromissão, seria necessário desconfiar que também os governos francês (que acolhe todos os inimigos de Mussolini de braços abertos), belga (na Bélgica, foi há pouco escandalosamente absolvido o autor de um atentado contra o herdeiro do trono italiano e genro dos reis belgas), espanhol, etc., tinham sido influenciados pelo Sr. Mussolini, de modo vergonhoso, e que este tinha comprado os votos dos Drs. Whitacker e Soriano, contra cuja honestidade nada se pôde, jamais, dizer! A opinião pública, ou antes, uma parcela da opinião pública continuou a suspeitar sempre de uma intervenção de Mussolini, e a protestar sempre contra esta intromissão de estrangeiros em nossa política interna.
[A santa e abnegada mãe brasileira]
Pensávamos que o Sr. Mariani, chegando a São Paulo, de permeio com as conchas preciosas que a revolução nos trouxe, procurasse tomar ao menos uma atitude digna. Qual não foi nosso espanto ao deparar com o livro do Sr. Mariani, novamente à venda em nossas livrarias, livro em que o autor diz da própria mãe as piores coisas que se possam dizer de uma mulher! Ainda assim julgávamos que, limitando à publicação do seu livro os ultrajes feitos à moral brasileira, o Sr. Mariani se encerrasse em um silêncio discreto. No entanto, nova desilusão! “O Estado de S. Paulo” publicou, no dia 15, a conferência por ele pronunciada na véspera, e na qual, além de uma inaceitável ingerência em problemas políticos internos nossos, só nossos, e muito nossos, ele se refere desprezivelmente à Mãe brasileira.
Não nos espantou, porém, a sua atitude contra o amor materno no Brasil. A Mãe brasileira é profunda, essencialmente cristã; ela é mesmo a melhor garantia da nacionalidade contra a infiltração yankee, ou a vitória da bandeira de Moscou. Por isto é ela detestada por todos os inimigos do Brasil e de Cristo!
Não quero insistir mais sobre este tristíssimo, deplorável trecho da conferência do Sr. Mariani, senão como o médico que só se refere às chagas para curá-las. Por que, a título de que liberdade, a título de que licenciosidade, se permite que, no Brasil, venham estrangeiros a nos diminuir o cioso sentimento de nacionalidade, o sublime e puríssimo amor de mãe, e o vivaz e sagrado sentimento de Fé? Por que havemos de permitir que elementos considerados indesejáveis em grande número de países civilizados, venham atirar pedras contra nossos altares, insultos contra nossas mães e desprezo contra a independência de nossa Pátria?
O Sr. Mariani sustenta que a Mãe brasileira ama mais o filho do que a própria Pátria! O Sr. Mariani quer reduzir o amor de nossas mães a sentimento quase animal, absolutamente hipertrofiado! Esquece-se, ou desconhece o caso célebre de uma mãe brasileira que, tendo perdido seu oitavo e último filho na guerra, deu um grande baile por ser a mãe de oito heróis? Esquece-se de que, em todas as lutas sustentadas pelo Brasil, nosso país se saiu airosamente, sem que, uma única vez, o braço de uma mãe procurasse reter junto a si seu filho, para satisfazer seu amor e não o deixar partir para a guerra? Esquece-se de que, desde os tempos os mais remotos, a Mãe brasileira, a santa e abnegada Mãe brasileira, tem sido uma das maiores obreiras de nossa nacionalidade e o esteio mais forte de nossas famílias? Onde quer o Sr. Mariani chegar, nesse seu afã incompreensível de destruir toda a moral, todo o sentimento que, por pouco que seja, se eleve sobre o nível comum dos sentimentos meramente animais?
Sr. Mariani! Para mentalidades como a sua, para demolidores como o Sr., para adversários irreconciliáveis de tudo quanto temos de mais caro, interpretando a voz da própria raça brasileira, estribando-me nas memórias majestosas dos nossos grandes homens que se foram, apegando-me com carinho e firmeza ao símbolo da Cruz, e invocando a proteção deste Jesus que o Sr. tanto odeia, só tenho uma palavra a lhe dirigir: Fora, Sr. Mariani, fora do Brasil!
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“O Legionário”, nº 70, 14/12/1930, p. 3
Dr. Plinio Corrêa de Oliveira
Formou-se este ano pela Faculdade de Direito desta capital o nosso congregado Plinio Corrêa de Oliveira, cujo nome é muito conhecido e admirado na juventude católica brasileira. Foi ele o iniciador das lutas pela recristianização da nossa mocidade entre os estudantes das tradicionais arcadas do Largo de São Francisco, tornando-se logo, com sua fulgurante inteligência e o desassombro de suas convicções, traduzidas numa conduta exemplar, o baluarte máximo dos estudantes católicos de São Paulo.
Sua formatura é, assim, motivo de júbilo para todos nós. Felicitamo-lo sinceramente e imploramos a poderosa assistência da Virgem Santíssima em todos os atos de sua vida.
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“O Legionário”, nº 71, 28/12/1930, p. 1
O comunismo no
Rio de Janeiro
Não encontramos palavras suficientemente significativas para exprimir a satisfação de que nos sentimos possuídos, ao ter notícia das medidas enérgicas que as autoridades estão pondo em prática contra o comunismo, no Rio de Janeiro.
Compreenderam perfeitamente os detentores do poder, no Rio de Janeiro, que esta Revolução, cujo fim era abrir diante de nós a perspectiva de dias tranqüilos, em que os cidadãos laboriosos pudessem colaborar com as autoridades probas em prol do engrandecimento da Pátria, não poderia inaugurar em nosso País uma era de liberalismo romântico que nos viesse tirar a tranqüilidade e a estabilidade das instituições, acarretando a desconfiança nos mercados estrangeiros e dificultando a solução dos árduos problemas que temos diante de nós.
De fato, se, em nome do liberalismo, tivessem as autoridades do Rio a insensatez espantosa, ou a criminosa má-fé, de dar aos comunistas uma liberdade de pensamento que lhes serviria apenas de arma para atentar contra nossas tradições mais santas, contra nossos direitos mais caros, contra nossos anseios os mais justos, não encarnariam o espírito da maioria dos revolucionários14, mas sim o espírito de demagogismo, autor das tragédias sanguinolentas, dos crimes em massa que a História catalogou com os títulos de Revolução Francesa e Revolução Russa.
Impondo medidas sábias contra o comunismo, estabelecendo uma profilaxia cuidadosa para salvaguardar da morte o Brasil, as autoridades do Rio acabam de dar uma prova de seu patriotismo sincero, e ao mesmo tempo acabam de afastar de si uma das mais negras responsabilidades que suas consciências poderiam trazer, diante do Brasil futuro: o de, por má-fé ou por utopismo absurdo, haver plantado em nosso país a pior das sementes, a da luta de classes.
Só poderia desprestigiar tristemente a obra da Revolução [de 1930] o fato de ser ela, não o movimento moralizador por que a opinião pública ansiava, mas sim o movimento maldito, mil vezes maldito, que nos traria o liberalismo perigoso, causa futura da ruína de nossos lares, da dissolução de nossas famílias, da profanação de nossos tabernáculos, da destruição de nossos patrimônios, acumulados à custa de um trabalho honrado e sagrado.
[Desrespeitando nossos sagrados princípios,
as autoridades encontrarão a irredutível
oposição dos católicos]
Em um de meus últimos artigos15, afirmei que os católicos estariam incondicionalmente ao lado das autoridades legítimas, desde que seus atos visassem alcançar para o Brasil a grandeza que merece, dentro das normas de nossos sagrados princípios, dentro do respeito às nossas intangíveis tradições. Fora desses princípios, fora dessas tradições, não contariam as autoridades somente com a absoluta falta de apoio dos católicos, mas sim com sua invencível, irredutível e heróica oposição. Oposição esta que todos os governos opressores, desde o cesarismo romano até o comunismo de Calles16, não souberam nem puderam vencer.
O Sr. Chefe de Polícia do Rio de Janeiro agiu dentro de nossos princípios, respeitando nossas tradições. Não quis arremessar contra a opinião católica brasileira o mais grave dos insultos, que consiste em dar aos comunistas a liberdade de tramar contra a Igreja, contra a propriedade, contra a Pátria, as urdiduras negras de suas conspirações vis. Não teve a fraqueza criminosa de nos entregar, indefesos, aos agentes de Moscou. Não quis ser um Calabar17. Arrostou com todas as antipatias surdas que sua atitude lhe haveria de trazer. Enfrentou as dificuldades imensas que uma repressão séria ao comunismo sempre traz. Arriscou sua própria vida, pois que a história recente do rapto do General Koutiepov bem demonstra o risco que correm aqueles que se opõem ao sovietismo (embora os partidários deste reclamem para si o direito de liberdade, que lhes facilita a perpetração de atentados contra a vida alheia). Agiu como um bravo, como um forte, como um brasileiro. A ele, pois, ao Dr. Getúlio Vargas e aos elementos que não querem que a Revolução seja deturpada por um liberalismo venenoso, nosso entusiástico apoio e nossas calorosas felicitações.
Plinio Corrêa de Oliveira
1) (N. do E.) Este artigo havia sido publicado originalmente em “O Legionário”, nº 52, de 9/2/1930. Revisto pelo autor, foi reproduzido em “A Ordem”, de onde o transcrevemos.
2) (N. do E.) No sentido de próprio para ser pintado.
3) (N. do E.) Mt 12, 33.
4) (N. do E.) Isabel I (1533-1603) – Rainha da Inglaterra e da Irlanda, filha ilegítima de Henrique VIII e Ana Bolena. Ocupou o trono sucedendo a sua meia-irmã Maria Tudor. Anglicana, sustentou o protestantismo contra Filipe II, reorganizou o anglicanismo, submeteu a Igreja ao Estado e perseguiu severamente os católicos. Alegando conspirações contra a sua pessoa por parte de Maria Stuart (Rainha da Escócia, católica e adversária ferrenha da Reforma protestante), fez com que fosse aprisionada, julgada e executada.
5) (N. do E.) “O que é a verdade?” (Jo 18, 38).
6) (N. do E.) O grande mar. Assim denominavam os romanos o Oceano Atlântico. No caso concreto tem o sentido de infinitude, imensidade.
7) (N. do E.) Flavius Claudius Julianus, dito Juliano, o Apóstata (331-363) – imperador romano, sobrinho de Constantino, o Grande. Embora cristão, foi instruído no paganismo e na filosofia neoplatônica, tendo abjurado o cristianismo. Nomeado César, foi enviado por Constâncio II para defender a Gália contra os germanos. As legiões o proclamaram Augusto e com a morte de Constâncio ficou senhor do Império. Apoiou o renascimento do paganismo proibindo o ensino aos cristãos, reservando os altos cargos para os pagãos e favorecendo as obras de caridade pagãs. Ferido mortalmente na guerra contra os persas, conta-se que recolhia em suas mãos o sangue que brotava de suas feridas e o lançava contra o céu, bradando: “Venceste por fim, Galileu, venceste.”
8) (N. do E.) {que}.
9) (N. do E.) Modo de viver.
10) (N. do E.) Cavaleiro sem temor nem mácula. – Assim ficou conhecido, por sua bravura e virtudes, Pierre Terrail, Senhor de Bayard (1476-1524), célebre guerreiro francês.
11) (N. do E.) A respeito deste artigo foi publicada a seguinte nota em “O Legionário”, de 14/12/1930 (p.4):
“Por uma lastimável omissão na revisão do último número do “Legionário”, o artigo a respeito do Sr. Mário Mariani não saiu com a assinatura de seu autor, Plinio Corrêa de Oliveira. O fato em si não acarretaria inconveniente algum, porquanto “O Legionário” assume certamente inteira responsabilidade pelos conceitos contidos no referido artigo. Pede-nos, no entanto, o Dr. Plinio Corrêa de Oliveira esta declaração, porquanto lhe parece que, em se tratando de um artigo com caráter tão pessoal, deve o autor assinar seu nome, por um dever de coragem e lealdade.
“Fica, pois, desfeito qualquer equívoco que nossa omissão involuntária possa ter causado.”
12) (N. do E.) Isto é, o governo de Washington Luís Pereira de Sousa, deposto pelo movimento revolucionário em 24 de outubro; Getúlio Vargas foi empossado no dia 3 de novembro.
13) (N. do E.) Tenhas o corpo, procedimento legal para garantir a livre locomoção em favor de quem sofre ou estiver na iminência de sofrer coação ou violência na sua liberdade de deslocamento por ilegalidade ou abuso de poder.
14) (N. do E.) O Autor refere-se aqui aos que apoiaram a Revolução de 1930, por verem nela um movimento de moralização dos costumes políticos da República.
15) (N. do E.) Cf. “O Legionário”, nº 69, 23/11/1930.
16) (N. do E.) Plutarco Elías Calles (1877-1945) – político mexicano; chefe supremo do Exército em 1920, quando ocupou a capital e empossou De la Huerta como presidente. Ministro de governo entre 1921 e 1923, tendo em seguida sido eleito presidente da República (1924-1928). Seu mandato caracterizou-se por uma sangrenta perseguição aos católicos. Deposto por uma revolução, exilou-se na Europa. De regresso ao México, foi presidente do Banco Nacional, Ministro da Guerra e Ministro da Fazenda, tendo, novamente, sido desterrado em 1935.
17) (N. do E.) Domingos Fernandes Calabar (c. 1600-1635) – militar brasileiro, educado por jesuítas. Foi um dos primeiros a se apresentar para a resistência contra os calvinistas holandeses, tendo sido, inclusive, ferido na defesa do Arraial de Bom Jesus, em 1630. No entanto, em 1632 passou-se para o lado protestante. Grande conhecedor do terreno, sua colaboração mudou os rumos da luta, ampliando a penetração holandesa no Nordeste. Em 1635 foi aprisionado e enforcado por traição.
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