1934 – Introdução histórica
Introdução histórica
Extratos de conferência realizada em 10/3/1979, publicados na “Dr. Plinio”, nº 78, setembro de 2004, pp. 21-25
O panorama católico na
São Paulo dos anos 30 e 40
Atendendo à solicitação que me foi feita, prossigo na descrição do ambiente social e de outros aspectos que cercavam a prática da religião em São Paulo, agora nos fins dos anos 30 e início da década seguinte.
Para nos situarmos melhor naquele contexto, é preciso dizer que, entre 1938 e 1940, embora estivesse prestes a participar da Segunda Grande Guerra, o Brasil era ainda um país de importância relativa no cenário internacional. E São Paulo, sempre uma das nossas principais cidades, contava aproximadamente 1 milhão de habitantes.
Por outro lado, no meio eclesiástico brasileiro, e de modo particular no paulista – onde se deram os fatos sobre os quais falarei – prevalecia o ambiente que reinava na Igreja antes do primeiro conflito mundial. Por causa da guerra, as comunicações da Europa com o Brasil estavam muito amortecidas, e as notícias nos chegavam com bastante atraso. Convém lembrar que não existia aviação ligando o continente europeu e o americano, mas apenas navios comerciais ou de passageiros que gastavam perto de vinte dias na travessia do Atlântico. Portanto, ida e volta, mais ou menos quarenta dias. Compreende-se, pois, o quanto isto nos distanciava do Velho Mundo, assim como dos Estados Unidos, situados também no hemisfério norte.
É nesse panorama que veremos como se caracterizava o ambiente social – mesclado ao religioso – daquele tempo, e a presença de um certo fator sobrenatural que o impregnava.
Atualizados com a Revolução, mas presentes nas igrejas
Tal fator, procurarei defini-lo da seguinte maneira. Naquela época, no centro antigo de São Paulo, além do comércio comum, havia o de luxo, os melhores médicos, dentistas, advogados, engenheiros, os cinemas mais famosos, os lugares aonde todos iam para ganhar ou gastar dinheiro, o que o transformava no grande núcleo de circulação monetária.
Ora, quando se transitava por ali – de ônibus, bonde, táxi, de automóvel particular – tinha-se a impressão de que o ambiente, as mentalidades, os gostos, as conversas, as atitudes, etc., eram fortemente neopaganizados.
Entretanto, as mesmas pessoas que pareciam assim tão atualizadas com a Revolução (no estágio em que esta se apresentava), dirigiam-se com freqüência às igrejas. Além disso, em todas as residências havia, não propriamente capelas, mas pequenos oratórios com imagens, diante das quais se rezava; em algumas casas mais piedosas existia uma pia de Água Benta, esta ou aquela pessoa da família possuía o Rosário, livro de Missa, etc.
Respeito pelas pessoas religiosas
Em geral, o familiar mais religioso pertencia ao clã dos sexagenários, num tempo em que se envelhecia e morria mais depressa do que hoje, e os indivíduos com 50 anos já eram considerados como tendo atingido uma idade provecta.
Lembro-me do idoso Arcebispo Dom Duarte Leopoldo, que faleceu aos 72 anos de idade. Eu o achava velhíssimo, e uma ou outra pessoa se atrevia a lhe dizer:
– Senhor Arcebispo, como está V. Ex.cia? Vai vivendo bastante…
E ele, ereto como uma bengala retilínea, olhava de cima e respondia com sua voz em majestoso falsete:
– É, até lá eu vivi; vossemecê viverá?
Ponderação muito razoável, pois tendo ele alcançado os 72, nenhum dos seus interlocutores, mesmo com 71 anos, tinha certeza de atingir aquela idade. Isso mostra, porém, como os velhos eram vistos naquele tempo. Conforme assinalei acima, constituíam eles – sobretudo as senhoras – a parte mais religiosa da família, e essa sua característica agradava ao resto dos parentes menos afeitos às práticas piedosas.
Cumpre ressaltar, a esse propósito, o que já tive oportunidade de comentar: os homens, jovens ou maduros, apesar de afastados do catolicismo, respeitavam muito a religião. A alma deles era como uma espécie de violão quebrado, em que uma ou outra corda ainda vibrava, embora as demais estivessem enroladas e não soassem. Ou seja, neles havia um resto de religião católica, e os mesmos que a atacavam, admiravam-na no fundo do coração.
Recordo-me de dois tios de minha mãe – meus tios-avós, portanto – que eram irmãos, ambos ateus declarados. Um deles sofreu derrame cerebral, e fui visitá-lo no hospital. Cumprimentei-o, etc., e em seguida lhe disse:
– Tio Augusto, o senhor precisa agora se preparar para a morte.
Ele, vendo que se aproximava o fim de sua vida, respondeu:
– Meu filho, tenho esperança de salvar minha alma porque nunca deixei de ter devoção a Nossa Senhora das Dores.
Esse era um homem que, diante dos outros, podia até falar mal da religião, porém no íntimo de sua alma rezava à sua Padroeira, sem dizê-lo a ninguém. E quando se sentiu mal, logo apelou para o socorro da Virgem Dolorosa.
Já o irmão dele viria a falecer poucos anos depois. Adoeceu, e mamãe, com seu zelo pela salvação do próximo, preparou cuidadosamente a conversão dele. Telefonou para um padre no qual tinha confiança e combinou de trazê-lo ao apartamento do tio, para atendê-lo em confissão. O sacerdote esperaria na porta do edifício por um sinal dela, e só então subiria.
D. Lucilia fez várias visitas ao tio, conversava com ele, etc., predispondo-o para aceitar a presença do padre. Esse senhor, aliás, antes de ficar doente, era um homem muito bem-apessoado, um bon-vivant que empreendia freqüentes viagens à Europa, mas também muito rabugento. Em certos dias, caía em depressão e se punha a resmungar. Nessas horas, mamãe tinha angelicais paciências com ele, e em razão dessa solicitude, o Tio Américo, indiferente ao resto da família, manifestava uma espécie de xodó por mim. Isso, por sua vez, fazia com que minha mãe se inclinasse ainda mais a ajudá-lo.
Então, no dia e hora marcados com o sacerdote, ela foi à janela do quarto do tio, e disse-lhe:
– Tio Américo, veja que coisa curiosa. Daqui de cima estou vendo o Pe. Fulano lá embaixo. Seria tão fácil ele vir fazer uma visita ao senhor, e faria bem à sua alma…
Ele percebeu perfeitamente tratar-se de uma confissão. E disse:
– Bom, faça um sinal para que ele suba, é um homem de bem.
Dali a pouco o padre entrava no quarto dele. Cumprimentaram-se, etc., enquanto D. Lucilia já deixava uma cadeira junto à cama do doente. Ela se retirou, e o sacerdote fechou a porta. Quando este saiu, algum tempo depois, disse a mamãe que o Tio Américo havia se confessado.
Ou seja, como a maioria dos ateus daquele tempo, ele não o era seriamente. No fundo, acreditavam em Deus, e quando se encontravam à beira da morte, recorriam à religião católica. Com o Tio Américo não foi diferente, a tal ponto que, às vésperas de render o último suspiro, confessou-se…
As várias espécies de público das igrejas
Esses exemplos concorrem para conferir realce ao que passarei a comentar sobre o ambiente nas igrejas paulistanas de então. Existiam várias espécies de público que compareciam às Missas, sobretudo aos domingos. As pessoas elegantes assistiam, em geral, às celebrações das onze horas e ao meio-dia, na igreja de São Bento (a de assembléia mais distinta) e nas paróquias dos bairros de bom nível, como Santa Teresinha e Coração de Jesus. Já as Missas na igreja do Coração de Maria eram muito freqüentadas por domésticas, governantas de casa, jardineiros, pequenos comerciantes, etc.
É curioso notar que, quanto mais matutinas as Missas, menos finas as pessoas que as assistiam. E, a meu ver, eram estas as celebrações eucarísticas com maior unção e piedade.
Não raras vezes, eu estudava até as quatro, cinco horas da manhã, e, antes de me deitar, aproveitava para ir ao Coração de Jesus assistir à primeira Missa do dia. Podia observar, então, umas mulheres sofridas que se arrastavam pela bruma, rumo à igreja. Eram senhoras pobres, abandonadas pelo marido, viúvas, ou com o esposo doente, dos quais tratavam. Torturadas pela dor, elas usavam chapéus que tinham perdido a forma, vestidos cujas cores haviam desaparecido, sapatos igualmente disformes, gastos; bolsas enormes, porque nelas deveriam caber os legumes comprados na quitanda, o pão, remédios, o caderno do filho… Assim essas mulheres iam para a igreja. Era comovedor.
De manhãzinha, as ruas ainda escuras, o templo com as luzes acesas e pouca gente. Aquelas senhoras, espalhadas no recinto sagrado, às vezes sussurrando o terço, com um murmúrio que mais parecia um gemido, ou então todas silenciosas.
Em geral, o celebrante era o padre mais jovem da paróquia, que suportava o ônus de levantar cedo. Via-se então o sacerdote moço, há pouco vestido de preto, e agora com os paramentos, voltando-se para os fiéis, dizendo:
– Dominus vobiscum.
E o sacristão, cujo tipo humano deixava um tanto a desejar, respondia:
– Et cum spiritu tuo.
E o padre continuava a Missa:
– Orate fratres…
No final do Santo Sacrifício, ele dava a bênção, e os presentes começavam a se retirar, saindo para mais um dia de sua laboriosa existência. Naquelas circunstâncias, chamava-me a atenção a diferença entre o jovem ministro do altar e as velhas devotas, a mocidade dele florescendo entre as anciãs. Quer dizer, uma juventude que iniciava a caminhada no meio da velhice, do vestido preto, e, portanto, afastado dos falsos prazeres do mundo. Isso incutia um imenso respeito ao sacerdócio.
Uma atmosfera santa
De outro lado, mesmo nas Missas freqüentadas pelas pessoas mais mundanas, verificava-se o fato curioso de que a bondade existente no fundo da alma delas vinha à tona. E a manifestação desse lado bom dos presentes formava um todo que, em contato com o ar sobrenatural do edifício, o ambiente de oração, de recolhimento, as imagens, os vitrais, o órgão e, sobretudo, os Sacramentos, elevava o nível da igreja e constituía uma atmosfera propriamente santa. Refletida, é claro, nos diversos atos de piedade ali praticados.
Por exemplo, as confissões. Uma pessoa sensível aos imponderáveis, como eu, podia passar diante de um confessionário e, sem precisar ouvir nada, facilmente perceber que o padre estava apertando o penitente. Terminada a confissão, o modo de o fiel se retirar dali era característico: levantava-se com fisionomia compungida, olhava discretamente para os bancos e se dirigia a um deles, onde se ajoelhava para cumprir a penitência que o padre havia imposto.
Via-se que, quando entrara no confessionário, ele como que se enfurnara num outro mundo. E ao sair, sua alma se encontrava de fato lavada. “Asperges me hyssopo et mundabor, lavabis me et super nivem dealbabor” – Vós me aspergireis com o hissope e serei purificado; vós me lavareis, e me tornarei mais branco que a neve. Dessa frase eu me lembrava, ao observar certas pessoas deixando o confessionário. Retiravam-se realmente purificadas.
Aliás, tenho o testemunho de minha própria experiência. Eu entrava no confessionário, e tudo se passava de maneira muito séria: o padre perguntava, re-perguntava, com cortesia, afabilidade, etc., de sorte a fazer o penitente se confessar em regra. O resultado é que este aliviava o peso que podia estar agravando sua alma, e se sentia profundamente reconfortado com a absolvição recebida no tribunal da penitência.
Todos esses fatores concorriam para causar uma impressão da qual o homem de hoje não faz idéia. E o melhor dos melhores era esse algo de sobrenatural que pairava sobre todas as coisas, mais ou menos como um raio de sol pode pousar numa flor e avivar as suas cores. Assim também, quando se entrava nas igrejas, percebia-se que nas almas ali presentes pousava a graça divina.
Razão pela qual eu, ao freqüentar uma igreja, sempre o fiz com veneração e bem-estar inexprimíveis em palavras. E não só ao penetrar nos edifícios sagrados, mas também nos conventos, nas casas paroquiais, etc., pois em tudo isso há um transbordamento dessa atmosfera santa da Igreja Católica Apostólica Romana.
***
Extratos de conferência realizada em 10/3/1979, publicados na “Dr. Plinio”, nº 79, outubro de 2004, pp. 16-21
O dia-a-dia no Movimento Católico
Em anterior ocasião, evoquei o ambiente sobrenatural que pairava nos edifícios sagrados, influenciando de forma profunda as almas.
Harmonia entre as congregações religiosas
Esta ação da graça tinha como resultado que entre todos os fiéis, participantes da vida interna da Igreja – não só quando se encontravam no templo, mas nas sedes das associações religiosas, ou mesmo na rua e se tratavam enquanto membros dessas entidades – havia concórdia, harmonia e respeito extraordinários. Demonstrava-se, na verdade, uma gentileza e uma generosidade das quais hoje não se tem idéia.
Por exemplo, se eu, congregado mariano, estivesse andando de bonde e alguém de outra associação se sentasse ao meu lado – digamos, um vicentino –, embora não me conhecesse, ele logo iniciava uma conversa amigável. Apesar de serem instituições diversas, ambas promoviam a grandeza da Igreja e a conversão das almas, as duas favoreciam o bem: a Irmandade São Vicente de Paulo angariando esmola para os pobres, a Congregação Mariana propagando a devoção a Nossa Senhora.
A mesma amabilidade se verificava quando um congregado mariano entrava em qualquer paróquia e, reconhecido como tal pelo seu distintivo na lapela, era convidado a se dirigir à sacristia. Se precisasse falar com o padre, era levado até a casa deste, onde o recebiam com uma cortesia toda familiar. Pouco importava se não soubessem a que paróquia ele pertencia. Era congregado mariano!
A par dessa harmonia, uma completa ausência de politicagem e rivalidade. Na hora de eleger os diretores das associações religiosas, não se fazia conchavo, agia-se despretensiosa e naturalmente. Por causa de tudo isso, havia imensa facilidade para se ajudar essa gente na prática do bem. Podia-se freqüentar qualquer desses ambientes religiosos e neles tratar dos temas mais requintados e tonitruantes da doutrina católica, que todos ficavam contentes, todos demonstravam grande abertura de alma para o nosso apostolado.
O grupo do exemplo
Comecei então a formar na Congregação Mariana de Santa Cecília um grupo – antes mesmo de pertencermos ao “Legionário” – que era expressão disto e trabalhava a favor dos assuntos da fé, para que andassem mais depressa. Esse grupo era muito bem visto e recebido em toda parte, exercendo uma imensa influência que ultrapassava os limites de São Paulo, e pouco a pouco se estendia pelo Brasil inteiro. Era considerado o grupo do bom exemplo.
Em tudo isso havia um excelente senso de hierarquia e do dever. Por exemplo, nosso grupo se reunia no terceiro andar de um prédio, já demolido, situado na Rua Imaculada Conceição, e constituíamos o núcleo dos rapazes das famílias mais tradicionais na Congregação Mariana. Contudo, nos dávamos bastante bem com os outros membros dessa entidade. Em certas horas íamos conversar na sala de visitas, no andar superior do prédio, e convidávamos sempre algum deles para participar do nosso convívio. Tudo feito na maior concórdia possível.
Projeção do “Legionário” no panorama nacional
Nessa atmosfera de ardente ortodoxia, o “Legionário”, do qual eu era diretor, atingiu rapidamente o zênite, tornando-se não o maior jornal católico do Brasil, mas a folha religiosa que os outros liam para temperar os periódicos por eles elaborados. Ou seja, aquele que ditava a moda para os demais jornais, era o nosso. A tal ponto que qualquer estrangeiro católico distinto, de passagem por São Paulo, não deixava de fazer uma visita ao “Legionário”.
Então, pregadores famosos, expoentes do catolicismo em seus respectivos países – como o Almirante Yamamoto, vencedor das guerras entre o Japão e a Rússia – e outros personagens do gênero vinham conhecer o “Legionário”, estabelecido no andar térreo daquele edifício da Rua Imaculada Conceição.
Com esse prestígio, poder-se-ia dizer, sem exagero, que o nosso jornal era a alma do movimento católico em São Paulo, o qual, por sua vez, era a alma das associações religiosas difundidas em todo o Brasil. Essa pujança teve início, exatamente, com a formação e o desenvolvimento desse grupo constituído por nós no seio da Congregação Mariana de Santa Cecília.
Ambiente e conversas no “Legionário”
Convém recordarmos aqui, com mais pormenores, como eram as conversas e o ambiente no “Legionário” nesses primeiros tempos de nossa atuação.
Naquela época, conforme a ordem natural das coisas, meu cabedal de leituras não era tão extenso quanto se tornou com o correr dos anos. Assim, a respeito da Revolução e da Contra-Revolução, possuía algumas idéias gerais que me serviam para analisar os assuntos mais de baixo para cima do que o inverso. Eu comentava os acontecimentos internacionais, nacionais, de caráter político, cultural, religioso, ou fatos que se davam no ambiente social ao qual pertencíamos. Minhas análises, às vezes, geravam saudáveis discussões entre nós, não raro longas. Como os meus argumentos eram sempre baseados na doutrina católica, geralmente triunfavam.
Essas discussões duravam uma, duas horas. Eu elucidava problemas históricos, elogiava os personagens dignos da minha admiração e que haviam sido vilipendiados pelos professores dos meus companheiros. Além disso, invariavelmente exaltava as perfeições da Igreja, narrava episódios da vida dos Santos cuja biografia tinha lido, etc., aproveitando as ocasiões para tirar ensinamentos e formar nossa mentalidade contra-revolucionária. Aos poucos, ao mesmo tempo que censurava o mal, comecei a descrever as figuras, os lugares, as situações favoráveis ao bem e apreciadas por mim.
Desse modo transcorriam as nossas conversas na sede do “Legionário”. Elas foram a semente das nossas reuniões atuais, com seus temas ampliados, elevados, desenvolvidos. No fundo as teses eram as mesmas, aprofundadas e consideradas sob um novo firmamento.
Na volta para casa, convívio com D. Lucilia
Nossas reuniões se iniciavam após o jantar, e às 23 horas, infalivelmente, nos dirigíamos a uma confeitaria muito boa que havia na Rua Sebastião Pereira, chamada “Elite”. Como éramos fregueses assíduos – e todos bons garfos –, os garçons já estavam a postos, com tudo pronto para nos servir.
Naquele tempo não havia Missas vespertinas, somente matutinas, nas quais deviam comungar os que desejassem fazê-lo. Por essa razão, o lanche terminava à meia-noite ou, no máximo, dois ou três minutos depois, limite permitido para se observar o jejum eucarístico. Após essa hora, não se podia ingerir mais nada, nem mesmo água.
Encerrávamos a refeição, nos despedíamos e cada um retornava à sua residência.
Por volta de meia-noite e meia eu estava chegando em casa, onde D. Lucilia me esperava em alguma sala, no seu quarto ou no meu, rezando.
Ao encontrá-la, infalivelmente a beijava, e ela a mim, em certas ocasiões várias vezes. Sentava-me perto de mamãe e começávamos a conversar sobre os assuntos mais diversos, criando oportunidade para ouvi-la contar algo do seu quotidiano de dona-de-casa.
Maravilhava-me ver sua alma reagindo face aos episódios por ela narrados: recebeu fulana à tarde, visitou sicrana, mandou a doméstica comprar certo produto novo, a faxineira limpar o tapete, enfim, pormenores da vida de uma senhora.
Quando alguma circunstância apresentava analogia com situações passadas, ela dizia:
– É como tal fato assim.
E contava alguns casos ocorridos com tios dela, mostrando os aspectos semelhantes. Embora eu não soubesse bem quem eram esses parentes, escutava com muito interesse. Naturalmente, mais por causa de D. Lucilia do que pelo fato em si…
Depois eu a colocava ao par do que sucedera comigo. Não a respeito de tudo, mas de algumas coisas que tinha vontade de lhe participar. Quando o assunto enveredava por comentários e idéias veementes de minha parte, mamãe se chocava, se arrepiava com as afirmações contundentes do filho, e perguntava:
– Mas, isso estará bem pensado?
– Como não, meu bem? Veja isso, aquilo, etc.
Ela prestava muita atenção e concluía:
– Se é assim, você tem razão.
Às vezes, essa prosa durava uma hora inteira, ao cabo da qual nos despedíamos afetuosamente e íamos para nossos respectivos aposentos.
Nem ela nem eu éramos tendentes a deitar cedo, ao contrário de meu pai, que não raro se levantava e dizia:
– Vocês não vão dormir? Que é isso?
– Olhe, papai, já vamos sim. – respondia eu.
Ele já sabia que demoraríamos. E a conversa continuava…
***
Extratos de conferência realizada em 4/3/1989,
publicados na “Dr. Plinio”, nº 61, abril de 2003, pp. 26-30
O “Legionário”,
arma de batalha pela Igreja
Ia dar um balanço [da situação] em que então me encontrava, com referência às possibilidades de desenvolver um apostolado frutuoso. Quais eram [os fatores] positivos e quais os negativos. Como estava o projeto de Ordem de Cavalaria, que era o centro de tudo. Era o centro de tudo, não como um fim em si, mas como instrumento mais idôneo e eficaz para conseguir o que eu queria: a Contra-Revolução1.
O primeiro desses meios era o “Legionário”. Podia ser considerado debaixo de dois pontos de vista. Em primeiro lugar, como publicação. Em segundo lugar, como meio de recrutamento de elementos para o nosso grupo.
Mudança no “Legionário”, inspirada em jornal francês
Vamos tratar do “Legionário”, que era o que publicávamos naquele tempo, e que portanto tem mais relação com a história desse tempo. Era um jornal a respeito de cuja influência ou maneira de ação eu tive muitos esclarecimentos analisando um jornal chamado “Sept”, quinzenário francês mais ou menos com tantas páginas quanto o “Legionário”.
Era organizado de um modo muito vivo, com uma paginação muito atraente, tratando de temas muito atuais. Por causa disso, apesar de ser um simples jornalzinho, com poucas páginas – não era revista, circulava na França e na Bélgica daquele tempo, e nem me lembro bem se o jornal era francês ou belga – mas com garra! Intervinha nos acontecimentos, influenciando. Numa palavra, tratava de tudo quanto havia de mais candente e delicado.
Até então, o “Legionário” tinha uma certa tendência para se dirigir ao grande público, no interesse de conquistá-lo. Era escrito, em parte, para converter para a religião católica aqueles que não eram católicos, em parte para afervorar e orientar os que já eram católicos. Lendo o jornal “Sept”, compreendi que isso estava errado, pois um jornal de pequeno formato ou de pequeno tamanho, ou devia dirigir-se para um público especial, influente e não pequeno, e através desse público influenciar todo o conjunto, ou não adiantaria para nada.
O “Legionário”, então, deixou de ser um jornal feito para converter os não-católicos, e passou a um jornal destinado a orientar os católicos. E não quaisquer católicos em geral, mas os do Movimento Católico.
O Movimento Católico
O Movimento Católico era constituído naquele tempo pelos católicos mais fervorosos, que iam sempre à Missa aos domingos, e que em geral pertenciam a associações religiosas. Chamava-se movimento, porque era um conjunto de pessoas que dedicava uma parte de seu tempo, ou todo o seu tempo, a favorecer por sua atuação a Igreja Católica, a expansão da Fé. Tinha um número muito grande de pessoas.
O resultado de minha eleição, em 1934, exprimia bem isso. Fui eleito por essa gente. Eram muitas pessoas, muito unidas, dirigidas por um clero ortodoxo e muito coeso, um episcopado evidentemente muito católico e firme, e um Arcebispo que dirigia com energia, em cujo brasão estava este lema: “Ipse firmitas et autoritas mea” – Minha firmeza e minha autoridade é o próprio Cristo. E mandava!… Dom Duarte mantinha tudo isso coeso.
E eu entendi bem que, agindo sobre esse público, e orientando-o, teríamos uma possibilidade de influenciar o conjunto dos acontecimentos no Brasil. Transformei, então, o “Legionário” num órgão especializado para o Movimento Católico. Não tinha por fim ajudar os católicos a converter não-católicos, mas formar sua mentalidade.
Objetivo: formar a mentalidade dos católicos
Quem tomasse outras revistas católicas e as folheasse, veria que tratavam mais ou menos de tudo: uma notazinha sobre missões no Tocantins; outra informando que morreu um Bispo em Estocolmo; mais adiante, uma notícia de que foi lançada uma missão nova entre os esquimós e que os primeiros foram batizados, etc. Coisas apreciáveis… mas com isso não se formava a mentalidade de uma pessoa.
A formação da mentalidade comportava, na nossa concepção, algumas características. Aqui no Brasil, em geral, dá-se um fato que eu costumo explicar da seguinte maneira: os outros povos crêem na verdade da Religião Católica, quando são tais; o brasileiro não crê, ele sabe que a Religião Católica é verdadeira. Ele crê, porque pesca no ar. Intui. É muito raro ver-se um brasileiro dar uma argumentação contra a Igreja Católica. Se a vida dele não é compatível com a Fé, e não quer emendá-la, abandona a Religião Católica. Quando pensa em converter-se, não vai refletir para escolher qual a religião verdadeira, pois já sabe que é a católica. De maneira que, quando ele volta, regressa ao Catolicismo. A Fé, graças a Nossa Senhora, naquele tempo ainda era muito estável, entre os católicos que pertenciam ao Movimento Católico.
Nós não tratávamos de afervorar um indivíduo sob esse ponto de vista, mas tínhamos a idéia de que o modo pelo qual um indivíduo podia ser extraviado da doutrina católica era no que dizia respeito à apreciação da sociedade temporal, das finalidades, da razão de ser desta. E, neste ponto, mesmo os católicos mais fervorosos tinham idéias esquisitas.
Era preciso fazer lentamente uma apreciação dos acontecimentos que fosse mudando as mentalidades numa determinada direção. Mas, que acontecimentos? E em que direção?
A política brasileira, considerada de um modo geral, tinha muito pouco conteúdo ideológico. Mesmo as correntes representantes de algo que era possível defender ideologicamente, não tinham vontade de fazer uma defesa ideológica. O brasileiro tem preguiça de raciocínios de caráter ideológico.
Por outro lado, nosso povo, que é tão cordato e tão amigo de ser amigo, é muito sensível. Qualquer ataque ao interesse político de alguém, deixá-lo-ia num ressentimento único. Isso, para o “Legionário”, seria muito incômodo, muito desagradável.
O jeito era preocuparmo-nos preponderantemente com a política exterior. E com o motivo de cuidar da política dos outros países, formar as mentalidades dos leitores sobre as grandes idéias que havia fora do Brasil.
Através dos fatos, criar interesse pela doutrina
Uma nota muito acentuada do “Legionário” passou a ser, então, a tomada de posição a respeito de questões internacionais. Não estavam incluídas as relações do Brasil com outros países – que eram muito tranqüilas e sem interesse –, mas os problemas internos das outras nações, sobretudo na Europa.
Por que Europa? Porque pela sua cultura multissecular, pela inteligência e pela instrução de seus filhos, mesmo de partidos que execrávamos, davam um tom à vida política que era de pensamento e de ideologia. Esse tom ideológico, nos interessava comentar.
No centro da perspectiva do mundo contemporâneo estava a Revolução Francesa, exatamente o fato que divide a História, dando fim aos Tempos Modernos e começo aos Contemporâneos.
Quem prestar atenção, perceberá que muito disso ainda existe entre nós. Por exemplo, vêem bem a importância da Reunião de Recortes2 na nossa vida. Se ela fosse extinta, ficaríamos reduzidos a um terço ou à metade de nossa vitalidade.
Um modo de ensinar poderia ser: fazer artigos abstratos ou teóricos. Um outro modo seria noticiar os fatos e analisá-los e, a propósito destes, dar doutrina. Interessar na doutrina através dos fatos. Foi o sistema adotado pelo “Legionário”, e que até hoje é o nosso sistema de raciocinar. É um dos fatores que torna a Reunião de Recortes tão importante, e tão característica.
Coerência na idéias
Uma outra característica do “Legionário”, sob esse ponto de vista, era a seguinte:
As idéias do tempo faziam com que a disputa ideológica fosse compreendida apenas no que diz respeito a assuntos políticos, sociais e econômicos. O “Legionário” abriu muito mais o leque. Demonstrou que esses assuntos e essas preferências religioso-filosóficos, sócio-político-econômicos podem manifestar-se em tudo: na forma de um lustre, na cor de um vaso, no modo de ser de um tecido, nos desenhos ou ornatos de um prato ou de um copo, no sabor de uma comida ou de uma bebida… Tudo é portador de uma preferência nesses assuntos.
Portanto, o que cumpre fazer, mais do que tudo, é saber mostrar que não tem uma opção inteiramente correta quem é, digamos, pró-medievalista (no sentido amplo em que tomo a palavra) em matéria sócio-político-econômica, e, ao mesmo tempo, detesta o gótico e gosta da arte moderna. Não pode ser. Este está em contradição consigo. O homem não tem o direito de ser contraditório, mas deve ser coerente.
De maneira que o “Legionário” fazia aquilo que, hoje, se chamaria uma contra-revolução cultural. Por revolução cultural se entende exatamente isto: uma revolução que não é apenas política, mas que envolve uma total transformação em toda a mentalidade, modos de ser e ambiente que cerca o homem.
A contra-revolução cultural é a contra-revolução sofística mais a contra-revolução tendencial; somadas, elas constituem um todo. Então, nesta amplitude temos a noção, a idéia de que a Revolução e a Contra-Revolução abrangem todo o pensamento humano. E que, ou um homem é totalmente uma coisa, ou ele não é nada.
Tudo quanto há de bom na sociedade humana vem da Igreja Católica
Outra coisa muito marcada na orientação do “Legionário” era a seguinte: tudo quanto há de bom na sociedade humana vem da Igreja Católica.
É um erro condenado pela Igreja a afirmação de que, sem apoio da religião, o homem nada faz de bom. O pecado original atingiu, vulnerou a fundo a natureza humana, mas não tão fundo que um homem com as suas simples forças naturais não possa praticar várias ações boas, independente da religião. Mas, sem auxílio da graça, o homem não pode se manter, estável e duravelmente, na prática dos dez Mandamentos.
Segundo ponto: se, numa determinada sociedade se torna habitual que a população viole um ou mais Mandamentos, esta sociedade está caminhando para o seu declínio. Não há remédio. A ordem humana perfeita decorre do cumprimento dos Mandamentos. E se estes não foram cumpridos, esta vai água abaixo. É uma questão de mais ou menos tempo…
Terceiro: pelo contrário, se a sociedade humana toda – salvo as exceções baixas, que sempre há – cumprir estavelmente os dez Mandamentos, a sociedade sobe a um píncaro maravilhoso. Ainda que seja um pequeno país sem recursos econômicos e pobre, se o seu povo tiver muita Fé, sobe, na ordem temporal, ao mais alto grau que lhe é possível.
Mais ainda: quanto mais uma sociedade subir na ordem temporal – pela cultura, pela riqueza ou por qualquer outro fator – tanto mais lhe será necessário cumprir bem os Mandamentos e amar a Deus. Porque essas qualidades naturais, se não forem encaminhadas pela virtude e pela prática habitual dos dez Mandamentos – prática, tanto melhor quanto mais fervorosa – os próprios fatores de grandeza precipitarão sua queda. Quer dizer, a podridão intelectual dos países muito intelectualizados, quando deixam a Fé, é tão alucinante e tremenda, que tende com todo o seu peso para levá-los a desatinos.
***
Extratos de conferências realizadas em 15/1/1980, 4/3/1989 e 18/3/1989, publicados na “Dr. Plinio”, nº 62, maio de 2003, pp. 26-30
O “Legionário”, um jornal vivo
para atrair e persuadir
Estávamos falando do “Legionário”, e dissemos que ele visava um público especial, influente e não pequeno, para, através desse público, influenciar todo o conjunto dos católicos. Para fazer um relato completo, é preciso ver o que era o “Legionário”: uma folha paroquial da igreja de Santa Cecília que se vendia e circulava quase só na paróquia, e que – coisa muito explicável, dada a natureza da folha – dava as notícias da paróquia. Como fazer evoluir esta folha paroquial de maneira a se transformar numa folha nacional? Como fazer com que essa folha repercutisse nos ambientes católicos do Brasil inteiro e, a partir dessa repercussão, desse estocadas nos adversários da Igreja?
Este era o problema.
Como atrair, como persuadir
Dei-me logo conta de que nesse jornal nós deveríamos tratar dos assuntos mais atuais, fazendo uma crítica rigorosamente católica e, portanto, ajudando o público a relacionar com o ponto de vista religioso temas dos quais nenhuma folha católica tratava nessa época, no Brasil. O “Legionário” devia entrar nesses temas e tratá-los com coragem, dando o tom!
Mas, também, uma vez atingido este objetivo, o que fazer para combater a Revolução? Para combatê-la, persuadir. Agora, como persuadir? Pelo raciocínio? Pela simpatia? Como atrair a boa vontade? Quais são os obstáculos que essa boa vontade encontra diante de si?
E, por fim, se não se consegue atrair nem persuadir, fazer o quê?
Estas são perguntas que se faz uma pessoa que dispõe de um jornalzinho católico e quer tirar proveito dele para uma grande missão. Uma pessoa que compreendeu que com tão pouco pode-se fazer muito, e quer aproveitar tudo até o último ponto.
A primeira coisa necessária para persuadir um leitor é tratar de temas que lhe interessem. Se formos tratar de tema que não lhe interessa, não vamos fixar sua atenção para o que escrevemos. Alguém dirá: “Mas ele não se interessa pelos temas de que trato.” Minha resposta é: “Arranje então um modo de expor o tema de maneira a despertar-lhe o interesse.”
Quer dizer, deve-se estudar a psicologia do leitor para descobrir a forma de interessá-lo.
Para isso, é preciso ter uma idéia inteiramente articulada das mentalidades. Temos, pois, de ser observadores de mentalidades. Se não formos observadores de mentalidades, não seremos capazes de nada, nesta ordem de coisas.
A segunda questão era, tendo atraído a atenção do leitor, como persuadi-lo? É preciso apresentar muito bem o raciocínio, com clareza e simplicidade, sem pretensão, diretamente. O argumento deve penetrar na mentalidade do homem que errou como um desinfectante penetra no âmago da ferida de quem tem uma infecção. O ferido pode sentir a dor e espernear, mas o micróbio morre.
Argumentação bela e vocabulário abundante
A argumentação tem de ser o mais possível agradável. Para sê-lo, não adianta só usar palavras bonitas. De vez em quando, uma ou outra metáfora bonita serve. Mas, o mais apropriado é fazer sentir como o argumento, enquanto argumento, é belo. O pensamento sem enfeite, mostrado na sua simplicidade e na sua luz, tem uma beleza própria, que é, por exemplo, a do raio. É preciso fazê-lo sentir.
Para isso, é indispensável ter um vocabulário abundante. Com um vocabulário pequeno, uma palavra para exprimir cada idéia, não vai. Ou temos todo o teclado do vocabulário português – estou dizendo português porque é a nossa língua, mas podia referir-me a outros idiomas ilustres e magníficos – bem estudado e bem aproveitado, ou nada conseguiremos.
Os senhores estão vendo como desço ao concreto. O vocabulário, assim posto, deve saber explorar as qualidades da língua portuguesa, em vez de procurar imitar a linguagem magnífica de outros povos. Se é para escrever para leitores brasileiros, deve ser assim. Se fosse escrever para a França, a Alemanha, a Espanha ou a Suécia, ter-se-ia que arranjar outras maneiras de escrever.
Cada um precisa saber explorar as belezas do vocabulário que tem.
Há um mundo de imponderáveis nisso, que faz com que, na língua portuguesa, haja palavras que estejam a um milímetro uma da outra, a segunda da terceira, esta da quarta, etc. Mas, em que se possa dizer com uma precisão magnífica o que se quer exprimir.
Então, era preciso habituar os redatores do “Legionário” a essa necessidade.
Frases longas ou frases curtas?
A dosagem e pesagem exata de todas essas coisas trazem até problemas interessantes. Por exemplo, devem-se usar frases longas ou curtas?
A frase curta é mais fácil de se entender. Mas isto é dizer muito pouco, porque equivaleria a dizer que, para o mundo dos burros, esta é a única forma de comunicação possível. Ora, isto não é verdade. A frase curta tem uma simplicidade, com uma utilidade e uma beleza próprias. E para dizer tudo de uma vez só, os senhores tomem o Evangelho: não se encontram nele frases compridas. Há todos os graus e formas de beleza possíveis, pois é ditado pelo Espírito Santo, mas nele não se encontram frases compridas. Ora, a frase comprida tem alguma beleza? Tem muita beleza.
Qual é a beleza dela? A construção da frase longa, permitindo o encaixe de várias idéias harmoniosamente, apresenta os conjuntos de pensamentos. Enquanto tal, habitua o espírito a considerar mais os conjuntos do que as coisas simples, e neste sentido desenvolve o espírito de síntese. Não no sentido de abreviar, mas de agrupar, de aglutinar, de classificar, que é uma qualidade eminente do espírito humano.
Então, nós devemos olhar um pouco para a nossa própria tendência. Individualmente, tendemos para a frase longa ou para a breve? Considerando a nossa tendência, devemos saber tirar dela o máximo possível.
Não sei se dá para notar – talvez dê enormemente – mas eu sou muito tendente às frases longas.
A arte de conversar dá vida à arte de escrever
De onde vem isso? Eu peguei, quase expirante, a arte de conversar. Mas, conheci-a e admirei-a enormemente. Procurei desenvolvê-la um pouco em mim, tanto quanto as minhas qualidades naturais permitiam. Muito antes do “Legionário”, quando eu tinha dez ou onze anos… E procurei, tanto quanto possível, fazer-me a mim mesmo conversar de um modo que eu achasse interessante, porque eu compreendia que, a partir do momento que eu achasse interessante o que estava dizendo, eu daria vida ao que dizia, e assim passaria a interessar aos outros.
Essa arte de conversar dá à arte de escrever uma vida extraordinária. O leitor deve ter a impressão de que o escritor está conversando com ele. Talvez os senhores notem um pouco disso em algum artigo meu.
Era preciso, então, desenvolver a arte de conversar entre os redatores do “Legionário”. De onde havia à noite, no período em que os rapazes estavam trabalhando e escrevendo, uma interrupção em que era servido um cafezinho. Nessa hora, eu saía da minha sala e entrava na de redação. Puxava uma prosa com todos. Eu estava certo de que, indiretamente, estava ensinando-os a escrever.
O nexo entre o pensamento e a ação
Para que a ação dê resultado, é preciso pensar. Em segundo lugar, como é interessante pensar a propósito da ação!
Toda a vida, tive muito mais interesse em pensar sobre aquilo que era matéria de ação apostólica, do que em pegar num livro e ler uma coisa qualquer no ar. Acho que uma das coisas que mais faz falta à geração dos senhores é esse nexo entre a ação e o pensamento. Creio que poucos professores se deram ao trabalho de mostrar aos senhores como não convida ao pensamento o fato de simplesmente abrir um livro e começar a ler. Mas, ler sobre aquilo que é objeto imediato da ação, habituar-se a pensar, a analisar aquilo que se faz, isto sim, intelectualiza o homem, aprimora o intelecto.
A sala de redação do “Legionário”
Os colaboradores do “Legionário” iam todas as quartas-feiras à noite à redação do jornal. Era uma sala com umas mesinhas muito baratas que eu mesmo tinha mandado fabricar por algum carpinteiro, apenas um pouco envernizadas por cima, porque o dinheiro era escasso. E cadeiras dessas que se encontravam nas copas de residências particulares.
O jornal rendia, mas pouco. A paróquia não contribuía com um tostão sequer. Era, aliás, um princípio até certo ponto compreensível: cada associação tinha de viver daquilo que produzia. Pode-se discutir um tanto o princípio, mas, em linhas gerais, tem um lado sensato.
Havia também luzes muito fortes na sala, para fazer o combate ao sono. Eu distribuía os recortes de jornal que tinha coletado durante a semana daqui, de lá e de acolá, os quais eram utilizados para redigir as notícias, que eram de quatro tipos: as nacionais, de caráter sócio-político e eclesiástico; notícias internacionais, mais ou menos a mesma coisa; assuntos doutrinários; e artigos históricos – História da Igreja, vidas de santos, História da Civilização, etc. Portanto, a matéria era variada.
Havia uma seção intitulada “7 dias em revista”, que era escrita por mim. Foi inspirada pela idéia de que nosso povo gosta muito de novidades e aprecia as novidades com um pequeno comentário. O desastre, para nós, seria ter poucas notícias e comentários grandes.
Sobretudo, era preciso que cada comentário fosse de per si um acontecimento. Quer dizer, diante de tal coisa o pensamento católico faz tal crítica. E a crítica é uma seta que se crava no alvo, para criticar ou para elogiar. O público brasileiro é muito torcedor, e gosta muito de caso pessoal. Onde entra uma discussão pessoal, a disputa doutrinária pega fogo! Se a discussão é puramente doutrinária, ela está exposta ao risco de causar bocejos. Então, na seção “7 dias em revista”, tomar tudo que tinha acontecido na semana e dardejar, mas no duro! Fosse quem fosse!
Já o artigo de fundo, que também era redigido por mim, se publicava na segunda página, que naquele tempo era considerada a página preferencial. Nesse artigo de fundo vinha uma exposição mais doutrinária da linha geral que inspirava o jornal.
Como disse há pouco, na hora do cafezinho eu aparecia e conversava com os redatores, formando com eles relações pessoais que era indispensável estabelecer. Desta forma, tudo corria muito bem, formando assim uma espécie de ala jovem que ia continuando o nosso grupo nas gerações mais moças.
***
1) Este termo deve ser entendido no sentido empregado por Dr. Plinio em Revolução e Contra-Revolução.
2) Reunião semanal, baseada em notícias recortadas de jornais, na qual Dr. Plinio analisava os acontecimentos mundiais à luz dos ensinamentos do Magistério da Igreja.
Deixe uma resposta