O Primeiro ano
Pouco tempo depois da minha chegada ao Colégio São Luís, faleceu o Conselheiro João Alfredo Corrêa de Oliveira, tio de meu pai1. Era um homem célebre, entre outros motivos por ter promovido a libertação dos escravos, no tempo do Império.
Dias de luto
As regras de educação eram muito estritas: apesar de tratar-se neste caso de um tio-avô quase desconhecido por mim, um personagem “nas nuvens” que nunca vinha a São Paulo, julgou-se que eu deveria pôr luto. Então, vesti o traje Eton da minha Primeira Comunhão e, pela primeira vez em minha vida, tive de usar uma fita preta no chapéu palheta e outra no braço esquerdo, além de uma gravata da mesma cor.
Fui para o colégio, sentei-me junto a minha carteira e esqueci-me do Conselheiro. Entretanto, em certo momento, o padre que dava a aula disse:
– Hoje vamos tratar de um assunto diferente: ocorreu no Brasil algo de muito importante, pois acabou de falecer um homem que teve profunda influência na história do País, em acontecimentos da época do Império. Então, para orientar os senhores e assim saberem o que pensar sobre ele, é preciso dar uma explicação a respeito de quem foi esse homem e do que ele fez.
Os jesuítas do São Luís tinham o hábito de fazer alguns comentários de caráter político sobre temas históricos ou atuais, durante as aulas. Para minha surpresa, o padre continuou:
– Trata-se do Conselheiro João Alfredo Corrêa de Oliveira.
Alguns alunos tinham ouvido falar vagamente do personagem, mas não sabiam que eu era sobrinho-neto dele. Porém, quando era mencionada a família de um menino da classe, em alguma narração feita pelos professores, aquilo imediatamente produzia um mexe-mexe e uma “eletricidade”, e as brincadeiras se expandiam pela sala, em relação ao concernido. Então, quando foi pronunciado o nome “Corrêa de Oliveira”, começou um sussurro e todos olharam para mim. Eu permaneci calmo,
como se não tivesse nada a ver com o assunto.
O padre narrou a história do João Alfredo, censurando-o a mais não poder, pelo fato de ele ter ajudado muito na perseguição contra o Bispo Dom Vital2. Por fim, contou também a conversão do Conselheiro: ele entrou para a Ordem Terceira do Carmo e faleceu como carmelita.
Naquele mesmo dia, durante as várias aulas a que eu assisti, os padres criticaram o Conselheiro, sabendo que eu era sobrinho-neto dele. Fiquei quieto, pois nem entendia bem do que se tratava.
Minha filhinha querida! Recebi teu telegrama portador de boas noticias tuas e de teu irmãozinho, o que muito me alegrou! Estou muito contende de ver que vocês estão tão bonzinhos e ajuizados… Que Deus os abençoe e os faça muito felizes! penso a todo momento com muita saudades em vocês, mas espero seguir depois de amanhã sem falta! – para abraças os queridinhos do meu coração. Abraça-te com imenso afeto, tua mama~e extremosa Lucilia
Cartões postais enviados por Da. Lucília a seus filhos, do Rio de Janeiro, onde ela se encontrava, possivelmente para a Missa de 7o. Dia do Conselheiro João Alfredo Corrêa de Oliveira, em março de 1919
Voltando do colégio, uma “batalha”
Afinal, terminaram as aulas daquele dia. Os alunos saíam pelo portão do São Luís formando grupos. Alguns iam a pé, outros tomavam o bonde que passava em frente, e uma parte deles seguia pela Rua Bela Cintra, ao lado do colégio, para apanhar o bonde “Avenida Angélica”, na Rua Maceió.
Por razões de que não me lembro, naquele dia eu tinha resolvido voltar a pé para casa, o que raras vezes acontecia. Então, estava andando pela Rua Bela Cintra, com alguns colegas. Os mais moços iam atrás, enquanto os mais velhos caminhavam na frente. Em certo momento, alguns moleques da rua, vendo-me com os sinais do luto, começaram a vaiar-me. Isso não era por causa do Conselheiro João Alfredo – do qual eles não deveriam ter nenhuma ideia – mas por estar eu vestido daquele modo, o que para o ambiente deles parecia muito estranho.
Nem compreendi bem por que me vaiavam. Eles vieram correndo atrás de mim e pensei: “Vão me agredir! Devo tomar alguma atitude, mas não posso manifestar medo diante dos colegas”.
Entretanto, quando aqueles meninos se aproximaram de mim, imediatamente todos os alunos com quem eu caminhava tomaram a minha defesa: formaram uma barreira, voltaram-se contra os moleques e começaram a bater neles.
O episódio ia se transformando numa batalha, quando três dos meus colegas mais aguerridos, sem dizer nada, entraram num armazém que havia ali perto. Eram bem apessoados, com ar de pernambucanos e muito altos, bem maiores do que a molecada.
Ninguém percebeu o que eles estavam fazendo: compraram umas pequenas bombas embrulhadas em papel ordinário e, quando voltaram, começaram a atirá-las com uma pontaria impressionante. Ao bater nos moleques, a pólvora estralava e eles fugiam de medo.
Sem embargo, a investida dos três meninos não foi violenta: eles eram muito calmos, um tanto dorminhocos e jogavam aqueles projéteis como quem enxota mosquitos ou como quem diz: “Cachorros bravos! Devem ir embora, pois estou com sono!”
Eu não podia lutar, por ser muito pequeno, e nem sequer tinha vontade de me vingar da molecada. E, percebendo que os três alunos tomavam o meu partido, permaneci muito digno, sem me mover.
Daí a pouco, os atacantes voltaram à carga e pensei: “E agora? Os meus companheiros terão dinheiro para comprar mais bombas?”
Mas os três haviam guardado algumas, pois sabiam que, depois da primeira ofensiva, viria a segunda. Então, continuaram a lançá-las, dizendo:
– Fiquem quietos! Não queremos mais amolação!
Os moleques não tinham recursos para comprar bombinhas, de maneira que venceu o dinheiro: em pouco tempo eles foram enxotados e se dispersaram. Continuei meu itinerário normal, conversando com toda a calma, e nem tive a ideia de agradecer àqueles três meninos, embora eles fossem vagamente parentes meus.
Aquela união repentina dos alunos – os quais, em geral, eram desunidos, especialmente a meu respeito – me fez perceber que o interrelacionamento dos meus colegas constituía um mundo com regras próprias. Por mais diferenças que houvesse entre eles, em caso de ataque ou de briga eles se uniam, formavam uma frente única contra os meninos alheios ao nosso colégio, e eram capazes de dar-lhes uma sova…
Atitude de Dª Lucilia
Chegando a casa, contei a papai e mamãe o acontecido na sala de aula, apresentando a menção ao Conselheiro João Alfredo como uma falta de respeito à família, apesar de não ter entendido bem o que os padres diziam. Mamãe imediatamente fez-se solidária comigo e disse que papai deveria ir ao colégio para fazer uma forte reclamação. No dia seguinte, na hora do café da manhã, ela levantou o tema novamente e disse:
– Como é, João Paulo, você não diz nada?
– Senhora, vou dizer e estou dizendo: irei lá hoje, sem falta.
Passou-se o dia e ele não foi.
Um ano perdido
Eu fui uma criança em extremo apta para contrair doenças. Em geral, era eu quem as apanhava no colégio e as trazia para casa, contagiando minha irmã e minha prima.
No ano de 1919, antes de completar onze anos, adoeci. Não me lembro qual foi a doença – talvez escarlatina –, mas ela me impediu de continuar o curso no São Luís, de maneira que concluí apenas o primeiro semestre e perdi o ano escolar. Esse fato trouxe para mim um benefício, porque quando fui matriculado no colégio, era dos mais moços de minha turma. O ensino era exigente e eu o acompanhava com certo esforço; além disso, mamãe fazia muita questão de que obtivesse boas notas. Então, eu sentia uma espécie de peso acachapante sobre mim, pela resistência que devia fazer ao ambiente somada à dificuldade do estudo, mas não sabia explicar isso para ela.
No ano seguinte, quando voltei ao Colégio São Luís, eu era um dos mais velhos da sala de aula. Já havia cursado parte da matéria e me sentia muito mais à vontade para seguir os estudos, o que me ajudava a carregar o peso e me dava mais condições de enfrentar as adversidades. Por causa dessa facilidade, passei a ser desde logo um dos melhores alunos da turma, fazendo um bom papel: o que os padres perguntavam eu sabia responder e, inclusive, fazia muitas perguntas a eles.
Tudo isso me dava, em relação aos outros meninos, uma certa superioridade que eu sabia explorar em favor da minha posição. A esses fatores se acrescentava a segurança do mais velho em relação aos mais moços, na confrontação. Portanto, agradeço a Deus pela doença que sofri e que me obrigou a repetir um ano escolar, pois ela me ajudou a estabelecer o equilíbrio necessário naquela situação, e a batalha que eu deveria travar foi adiada.
Por outro lado, apesar do grande choque com o ambiente que eu tivera no primeiro ano, não imaginava que a degenerescência dos costumes fosse tão irremediável e definitiva, e possuía a vaga ideia de que se tratava de um problema passageiro. Tudo se definiu para mim no segundo ano.
Acredito ter sido providencial o meu retorno ao colégio, pelas vantagens que me traria o relacionamento com a obra de Santo Inácio e com a lógica jesuítica. Entretanto, naquela época eu não tinha tal intenção, pois nem sequer havia percebido esse benefício.
Além do mais, algo de muito natural concorreu enormemente para minha volta ao São Luís: lá estavam os meninos que eu conhecia, sobretudo os meus primos e especialmente Pinho e Reizinho3, aos quais eu queria como irmãos, apesar de termos pouco convívio no colégio, por sermos de idades diferentes.
O Pinho era um menino excelente, com bastante propensão para o mundo sobrenatural e muito chegado a mim. No ano em que me ausentei do colégio, porém, ele teve um grande sucesso escolar, recebendo prêmios e elogios, e, a partir de então, começou a afastar-se de mim. Além do mais, como ele estava numa divisão superior à minha, não podíamos brincar juntos durante o recreio.
O Reizinho, pelo contrário, passou a procurar muito mais a minha amizade nesse período, por recomendação do próprio pai, Dr. Gabriel.
1 O Conselheiro João Alfredo Corrêa de Oliveira faleceu no dia 6 de março de 1919, na cidade do Rio de Janeiro.
2 Dom Frei Vital Antônio Maria Gonçalves de Oliveira OFMCap, Bispo de Olinda, Pernambuco. Participou de episódios ocasionados por certos atritos entre a Igreja Católica e autoridades do Império Brasileiro, no período de 1872 a 1875.
3 Apelido familiar de José Ribeiro dos Santos. Último filho do Dr. Gabriel Ribeiro dos Santos, ingressou no Colégio São Luís no ano de 1920, como aluno do Curso Elementar, matriculado com o nº 103.
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