No Ginásio do Estado
Por fim, depois dos exames no curso da Rua Fortunato, eu tive de prestá-los também no Ginásio do Estado, como todos os alunos dos colégios particulares, os quais eram obrigados a fazê-lo num estabelecimento oficial do governo. Era uma sessão pomposa, presidida por uma banca de examinadores estabelecida pelo próprio governo e constituída, em geral, por homens de boa posição política, às vezes deputados ou senadores.
Então, lembro-me de certo dia, em que passei de manhã pela casa de um irmão de mamãe,1 a fim de buscar um filho dele,2 e irmos juntos para uma prova de Aritmética no Ginásio do Estado.
Uma rotunda “bomba”
Esse meu tio estava tomando o café da manhã, enquanto lia o jornal. Eu entrei e disse:
– Bom dia, titio!
Ele me olhou e fez um gracejo, mencionando o visível medo que eu tinha em relação ao exame. Também dei risada e saí com meu primo.
Quando chegamos ao local,3 percebi que havia duas turmas na mesma sala, prestando exames ao mesmo tempo, sobre matérias diferentes. Enquanto a minha turma fazia a prova de Aritmética, outra era examinada em Trigonometria. Então, o professor disse com muita pompa:
– Os examinandos de Aritmética levantem o braço!
E escreveu de um lado da lousa dois ou três itens com alguns cálculos assim: “Tanto multiplicado por tanto, vezes tanto, quanto dá?” Depois preparou no outro lado os exercícios de Trigonometria, muito complicados, dos quais não entendi uma palavra nem fiz esforço para tal. Eu era tão alheio e displicente em relação àquelas matérias que não percebia bem a diferença entre uma e outra. Tinha a atenção posta em cem outras coisas, e desejava apenas ver-me livre daquela amolação… E o professor ordenou:
– Transcrevam os problemas no papel e resolvam-nos.
Eu me dediquei ao meu exame de Aritmética, mas me atrapalhei em tudo. Ao fazer a verificação, para comprovar se os meus cálculos estavam certos, percebi que estavam todos errados! Tentei refazê-los, mas não conseguia sair do erro… E o pior foi que, completamente desastrado, pensei: “Já que não posso resolver os problemas de Aritmética, vou resolver os de Trigonometria!”
Então, precipitei-me no abismo: copiei os exercícios de Trigonometria e tentei fazê-los, imaginando que seriam semelhantes aos de Aritmética. Um deles consistia num problema de divisão do tempo, em que era preciso levar em conta o número de minutos que tem uma hora. E eu calculei uma hora de cem minutos… Não sei o que deu em minha cabeça para fazer esse cálculo, pois eu sabia perfeitamente tratar-se de sessenta minutos, mas a minha ideia vaga e confusa era a seguinte: “Esses professores são todos adeptos do sistema decimal. Então, vou pôr a hora em decimal, para agradá-los”.
Pode-se imaginar o que saiu!
Por absurdo, fui o primeiro aluno a terminar a prova. Então, saí para passear no Jardim da Luz, no qual havia combinado de me encontrar com meu primo. Eu estava à espera de ele me contar como tinham corrido as coisas, pois possuía certa
consciência de haver errado, mas ainda guardava uma esperança.
Daí a um bom tempo ele veio ao meu encontro e eu lhe perguntei:
– Como é? Qual foi a reação dos professores com a minha prova?
Ele disse:
– A sua situação não está boa.
– Como não está boa?!
– Não sei o que você escreveu, mas, como foi o primeiro a entregar a prova, eles a examinaram logo. O presidente da banca deu-a a um dos professores, o qual olhou-a um instante, riu, pôs uma nota que são sei qual é, e devolveu-a ao presidente. Este a passou a cada um dos três examinadores e depois ele próprio deu a nota. Todos caíram na gargalhada!
Eu me sentia numa situação horrorosa, parecida com aquela em que falsifiquei uma nota,4 Mas resolvi esperar e pensei: “Quem sabe se estou aprovado?”
Entretanto, depois verifiquei o resultado: zero! Eu havia passado em todas as outras matérias, mas em Aritmética levei uma rotunda “bomba”! Foi a única reprovação que recebi em minha vida.
Intervenção do tio Gabriel
Na volta, o meu primo retornou a casa antes de eu chegar à minha, pois a residência dele era mais próxima.5 E disse-me depois que havia contado imediatamente à família que eu estava reprovado. Então meu tio, irmão mais velho de mamãe, receoso pelo desgosto que isso lhe causaria – pois ela se encontrava mal de saúde naqueles dias –, mandou vir um automóvel e foi ao Ginásio do Estado.
Ao chegar, pediu para falar com os professores, mas disseram-lhe que não podia, pois a banca ainda estava corrigindo provas e deliberando sobre os exames, e a lei não lhes permitia receber visitas nesse momento. Mas meu tio, homem muito mandão, deu ordem ao bedel para abrir a sala. Este sentiu-se inseguro e deixou-o entrar. Um dos professores, ao vê-lo, disse:
– Oh, Doutor! O que há?
Ele respondeu:
– Eu vim aqui por causa do exame de um sobrinho meu. Já sei que não está bem, mas, afinal de contas, a mãe dele – minha irmã – encontra-se num estado de saúde muito delicado e, se souber que o filho recebeu uma nota baixa, poderá piorar. Eu peço que o aprovem!
– Como se chama seu sobrinho?
– Plinio Corrêa de Oliveira.
Eles tomaram o maço das provas, mostraram a minha e disseram, dando risada:
– Veja se o senhor conseguiria dar outra nota que não essa.
Meu tio viu e percebeu que a minha posição era indefensável. Então agradeceu a atenção deles e voltou a casa decepcionado.
Esse casinho é bem característico do interesse afetivo e da enorme dedicação que um irmão podia ter para com sua irmã naquele tempo, e da sensibilidade que as pessoas tinham em relação ao sofrimento alheio. Tal compaixão era muito natural no trato familiar e se estendia facilmente aos parentes mais distantes, concorrendo para a união das famílias.
A comiseração de Dª Lucilia
Qual foi a atitude de mamãe, quando soube de minha nota de Aritmética?
Por ocasião dos exames, ela não me forçava a estudar, mas apenas entrava na minha sala de vez em quando e dizia:
– Filhão, você está estudando? Está muito tedioso?
Entretanto, nesse dia ela se sentiu muito chocada, pois considerava aquela nota como uma vergonha e se preocupava com o futuro. Certamente pensou: “O que vai dar esse rapaz, se com essa idade faz tal bobagem com a Trigonometria? Quando tiver trinta anos estará dirigindo negócios, terá um escritório de advocacia… Como ele fará qualquer coisa?”
Naturalmente, eu esperava uma repreensão e uma ameaça de ir ao colégio Caraça,6 mas mamãe percebeu logo que tinha havido de minha parte um estado nervoso que explicava isso. Além do mais, ela me tinha visto estudar bastante e sabia de minha boa vontade e de minha retidão, razão pela qual a sua atitude foi inteiramente diferente da que ela tomou por ocasião do caso da minha nota dez.7 Falou um pouquinho sobre o assunto e depois me disse:
– À tarde você vai com o Reizinho8 tomar um sorvete na cidade, para se distrair um pouco.
Eu caí das nuvens!
Depois fiz outro exame de Aritmética e passei com nota bem regular, sem ser ótima. Mamãe não me elogiou, mas me disse que agora estava contente, e o assunto terminou em boa paz. Era o carinho dela, muito brasileiro, evitando o castigo. E esse episódio me aproximou ainda mais dela.
Documentos de certidão dos exames prestados por Plinio no Ginásio do Estado, entre os anos 1921 e 1924:
1 Dr. Gabriel Ribeiro dos Santos, irmão de Dª Lucilia.
2 Procópio Ribeiro dos Santos, chamado familiarmente de Pinho, colega de Plinio no Colégio São Luís.
3 O Ginásio do Estado funcionava na Avenida Tiradentes, onde está hoje situada a Escola Estadual Prudente de Morais.
4 Em certa ocasião, Plinio corrigiu no seu próprio boletim uma nota de comportamento em Geografia, a qual havia sido anotada de modo errôneo por um funcionário do Colégio São Luís. Esse episódio e suas consequências marcaram profundamente a vida do Autor. Cf. Volume III desta coleção, p. 170 ss.
5 A residência do Dr. Gabriel situava-se na Avenida Rio Branco, nº 58, no Bairro dos Campos Elíseos.
6 Por ocasião do episódio mencionado acima, na nota da p. 99, Dª Lucilia ameaçou enviar seu filho como aluno interno ao famoso Colégio Caraça, no Estado de Minas Gerais. Cf. Volume III desta coleção, p. 179 ss.
7 Ver nota nº 58.
8 Apelido familiar dado a José, filho mais novo de Dr. Gabriel.
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