A vitória da douçura
Nesse tempo dos meus treze ou catorze anos, sendo ainda menino de calça curta, eu via a vida calma, bem ordenada, tranquila e próspera das pessoas mais velhas de minha família, se desenrolando ainda no estilo da Belle Époque.1
Tudo lhes dava certo, tudo faziam ou lhes acontecia como queriam, e andavam com fisionomias contentes e satisfeitas. Sentavam-se, conversavam, davam risada e contavam fatos em que as coisas haviam corrido normalmente, e até belamente para elas. Era o mundo dos securitários.
Em oposição, eu sentia muito o peso da vida. Percebia que a minha existência seria duríssima e pesadíssima, uma verdadeira batalha, a qual não consistia apenas em subir uma montanha, mas em carregar a montanha! Sentia-me pequeno, fraco, desarvorado diante de uma tempestade e exposto a todas as incertezas,2 enquanto esses mais velhos cobravam de mim – com a melhor das intenções – um sorriso que não convinha ao meu estado de alma. Então, diziam:
– Vem cá! Como vai esse menino? Divertindo-se, hein? Do que você está brincando?
Eu tinha vontade de dizer: “Brincando, não! Estou pensando! Tenho problemas, tenho fraquezas e tenho medos. E não quero entregar os pontos! Não sabe o que é isso?”
Assim, eu notava um contraste entre mim e eles. Ora, eu os analisava e tinha a sensação de que essa segurança deles era menos sólida do que parecia. Então, começou para mim uma fase aguda de desapontamento e de “queda dos mitos”, em que o prestígio dos mais velhos passava por um crivo quando eu os conhecia de perto.
Mitos desprestigiados
Por exemplo, em certa ocasião eu estava num automóvel com um dos meus tios, saindo de Santos em direção a São Paulo. Eu viajava sentado ao lado dele, no meio do banco, e um filho dele também se encontrava conosco. Então, em várias ocasiões ele voltava-se para o meu primo e para mim, e dizia:
– Como se chama essa rua em que nós estamos?
Eu não tinha a menor ideia. Para mim, Santos era a orla da praia, os hotéis, os restaurantes e o mar… Aquelas ruas da cidade não me diziam nada, como se não existissem! Então respondia, com toda inocência:
– Não sei.
Ele se voltava para o filho:
– Como se chama?
– Não sei.
– Estão vendo? Vocês não sabem os nomes das ruas por onde andam! Se agora o automóvel quebrar e tiverem de ir para casa não saberão onde estão! Um homem deve saber os nomes das ruas.
Pensei: “Para isso caber na minha memória eu teria de tirar outras coisas… Este senhor nutre o seu espírito com essas noções? Eu sei perfeitamente o que vou fazer, se o automóvel quebrar: descerei e pedirei para qualquer um: ‘Estou hospedado no Parque Balneário, junto à praia. Quer me dizer como ir até lá?’ Ele me responderá: ‘Tome o bonde vinte, quinze ou zero’. Ou, então, se tiver dinheiro na carteira – o que não me acontecia muitas vezes – chamarei um táxi e direi: ‘Toque para o Parque Balneário!’”
Em certo momento percebi que meu tio nunca perguntava o nome da rua antes de chegar a uma esquina, mas olhava as placas e, um pouco adiante, nos perguntava. Ou seja, também não sabia os nomes e fazia aquilo só para se gabar. Eu não disse nada ao filho dele, mas, para mim, ele era um mito desprestigiado.
Em outra ocasião, fui dizer “bom dia” a minha avó no seu quarto. Majestosa, deitada numa cama colonial lindíssima – quase mítica – que havia pertencido à bisavó dela, perguntou-me:
– Meu filho, o que há de novo?
Eu respondi:
– Que o Brasil vai acabar.
– Como? O Brasil vai acabar?! Onde você leu isso?
Eu então lhe expliquei as razões pelas quais pensava que o País estava em má situação, mas, com isso, lançava nela certa insegurança que a abalava…
De maneira que fui cedendo à tendência de contestar os mais velhos, fazendo certas afirmações que os tornavam inseguros e dando-lhes inclusive algumas respostas atravessadas, por verificar que muito do que eu via neles era um simples mito.
Por outro lado, eu sentia que estava se dando também uma modificação das minhas disposições de alma em relação a minha mãe.
Aridez nas relações com Dª Lucilia
Segundo muitos pedagogos, na evolução de grande número de adolescentes existe certo momento no qual, depois de haverem querido muito bem aos pais, começam a notar defeitos neles e são tendentes a ver essas falhas de modo hipertrofiado, agastando-se com eles de modo também exagerado. Esse período de oposição é muito delicado e exige grande esforço dos pais para se fazerem querer, sem embargo da grande tensão que se estabelece entre eles e os filhos.
Ora, a miséria humana é tal que, apesar de mamãe ser quem era, eu passei por essa fase em relação a ela e também a meu pai.
Eu sempre a tinha querido com o amor, a veneração e o afeto que se sabe,3 e sentia um verdadeiro gáudio em estar com ela, mas, nesse período da adolescência, as impressões que ela me causava não eram as mesmas que eu sentia antigamente.
Embora reconhecesse as suas qualidades, minha admiração por mamãe diminuía. Começou para mim uma aridez e uma insensibilidade verdadeiramente incríveis, pelas quais achava a companhia dela insípida e enfadonha. Apesar de querer-lhe bem e respeitá-la muito, algo entre nós não funcionava, como uma máquina quebrada em que as peças não se adaptassem entre si.
Naturalmente, quando mudam as disposições interiores, altera-se também a atitude externa, ainda mais da parte de um menino, que não sabe ocultar os seus sentimentos.
Objeções e implicância
Assim, essa situação conduziu a um teor de relações muito tenso com minha mãe, e o meu modo de tratá-la mudou completamente. Fugia dela e, quando estava em sua presença, procurava razões de discussão, incluindo-a na atitude que eu tomava diante dos “securitários” da família. Entretanto, ela não merecia esse trato, de modo nenhum!
Em vez de ser afetuoso e carinhoso ao extremo, como sempre havia sido, passei a ser crítico, sem dizer-lhe desaforos ou impertinências, mas levantando objeções ao que ela dizia e pensava, ou fazendo-lhe perguntas que a penalizavam. Mamãe me dava respostas que me pareciam insuficientes e eu então lhe apontava a falta de lógica da argumentação, deixando-a aflita e abalada. A minha implicância com ela foi num crescendo e as nossas relações foram se deteriorando cada vez mais.
Porém, durante todo esse tempo mamãe não modificou em nada o seu modo de me tratar, nunca me disse que tivesse notado em mim alguma mudança e jamais perdeu a paciência, mas eu notava que ela não concordava com minha atitude, e que ficava muito entristecida e alarmada.
Uma discussão junto ao espelho
Até que um dia, quando eu estava no auge desse estado de espírito, entrei no quarto dela e encontrei-a em frente à mesa de toilette, diante do espelho, acabando de pentear o cabelo e de se arranjar – inclusive pondo um colar – antes de ir para o almoço.
Aproximei-me e, segundo o mau costume que havia adquirido, comecei a fazer afirmações com as quais eu sabia que mamãe não estaria de acordo. Não eram invectivas contra ela, mas críticas a respeito de alguns parentes. Mamãe respondeu olhando-me pelo espelho – uma vez que estava de costas para mim – e eu discuti com ela assim durante certo tempo.
Em determinado momento eu disse uma bobagem qualquer, que a desagradou muito e lhe pareceu especialmente censurável, mas nem me lembro mais qual era. Então, em vez de responder continuando a enfeitar-se, ela voltou-se para trás com a escova de cabelo na mão, olhou-me e, sem a mínima irritação, mas de modo muito categórico, disse-me:
– Mas, como?! Meu filho! Isso não é assim!
Estava contundida, dolorida, alarmada e muito apreensiva, mas não cedia! Continuou falando com precisão e energia, e me deu uma resposta à altura.
A antiga visão, restabelecida
Então olhei para mamãe e me veio com ênfase uma ideia: “Mas, olha como ela é boazinha, como é direita! Que encanto de pessoa! Como posso ter me esquecido disso! Afinal de contas, diante dessas aberrações que estou dizendo, ela está me respondendo com firmeza, mas também, com que suavidade! Com quanta bondade, paciência, respeito e carinho! Por que estou fazendo isto, discutindo como um idiota? Quem sou eu, para atormentar dessa maneira uma pessoa tão digna de ser querida, por todas as razões, de todos os modos e a todos os títulos? Ela é a única pessoa que verdadeiramente me quer bem! Que afeto ela me tem! E como está chocada com o meu desacordo! A aflição dela é por mim e não por si mesma! Quem tem razão é ela!”
Assim, compreendi a estupidez de minha exacerbação de mocinho descontrolado, e a antiga visão que eu tinha de mamãe restabeleceu-se no meu espírito, pela mansidão dela.
Foi, portanto, uma vitória da doçura sobre um arrogante chamado Plinio Corrêa de Oliveira.
Graças a Deus, mudei de atitude imediatamente, como se retomasse o rumo, o caminho que havia sido rompido. Nem quis pedir-lhe mais respostas para a bobagem de que eu estava tratando, mas sorri, comecei a afagá-la e disse-lhe qualquer coisa agradável. Ela imediatamente se desmobilizou e eu vi que ficou muito contente. Conversamos mais um instantinho e fomos juntos para o almoço.
À procura das causas de uma crise
Depois procurei verificar exatamente o que havia determinado em meu espírito essa dificuldade de trato com mamãe, pois, graças a Nossa Senhora, eu não tinha a menor ideia de estar procedendo mal. Eu continuava católico apostólico romano, e não sofrera nenhuma alteração em minha pureza nem em minha piedade. Se tivesse mudado nesses pontos a explicação seria muito fácil, e não haveria o menor mistério: pelo estado de pecado mortal, eu me teria tornado ruim e entraria em oposição a minha mãe, a qual representava o bem para mim.
Então, como compreender essa crise? Ela se deu numa tal profundidade de minha alma, que na época eu não soube definir a razão. A resposta só ficou inteiramente clara para mim nesta última década,4 quase na outra ponta de minha vida, e hoje sou capaz de recompor o problema de modo cristalino e explicá-lo.
Dª Lucilia e a tranquilidade do Brasil antigo
Minha mãe se casou tarde, de maneira que, quando eu nasci, ela estava com trinta e dois anos. Havia, portanto, uma decalagem de idade maior entre ela, de um lado, e minha irmã e eu, de outro, do que entre o comum das mães e os seus filhos. Além do mais, era habituada a todo o feitio de espírito, ideias e recordações de seu tempo de infância, e havia convivido muito com pessoas da geração da mãe dela. Ora, essa época – ainda o tempo do Império – estava psicologicamente muito distante do período em que eu era pequeno. Mamãe se lembrava, por exemplo, da libertação dos escravos5 e da proclamação da República,6 e compreende-se que o Brasil dos anos 20 havia mudado enormemente, em relação ao país da Monarquia e da escravatura.
Nesse Brasil antigo as casas eram solares enormes, com famílias numerosas levando uma existência muito confortável e serena. Nas cidades, ainda pequenas, as pessoas se viam todos os dias e viajavam pouco, pois uma viagem constituía um problema e um risco. Todos se tratavam com muito respeito, cordialidade e atenção, e esses fatores compunham uma situação na qual a tranquilidade meditativa, pensadora e propensa às considerações religiosas era uma das alegrias da vida, num ambiente de civilização cristã.
Em tal atmosfera, era bonito para uma senhora ser delicada como uma flor. As damas da natureza eram as flores e, por sua vez, as senhoras eram as flores do gênero humano, cortejadas e tratadas como seres fracos, delicados e belos, que não deviam ser quebrados nem contundidos.
Então, para minha mãe, a ideia de felicidade estava ligada a esse ambiente, e tudo nela era contrário aos estilos modernos. Por exemplo, quando estava indisposta, permanecia nos seus aposentos, deitada numa chaise longue7 e vestindo um chambre. Eu entrava no quarto dela e a encontrava na penumbra, pensando, com enorme dignidade, doçura e bem-estar interior. Tinha a cabeça apoiada na mão, e um olhar luminoso, sereno, firme e sem nenhuma excitação.
Na virtude, aproveitar os aspectos agradáveis da vida
Ora, antes de minha crise, quando eu estava junto a mamãe tinha muita alegria em sentir o contraste entre essa tranquilidade que havia em torno dela, e os modos revolucionários do meu tempo, que haviam entrado no Brasil e no mundo inteiro após a queda dos Impérios Centrais na Europa.8
Entretanto, sendo já mais velho, tomei contato com o seguinte fenômeno: apesar desse estilo novo de felicidade, cheio de extroversão e de agitação nervosa, existiam ainda na sociedade alguns aspectos inocentes, os quais não traziam consigo risco de pecado. Além do mais, eu não tinha ainda o ideal da santidade, mas apenas o intuito de realizar uma obra para a qual eu me sentia chamado9 e o propósito acharné 10 de me manter no estado de graça.
É verdade que eu era um menino muito sério, com as vistas voltadas para o maravilhoso, para todas as harmonias e profundidades, e para tudo quanto há de mais elevado; portanto para uma espécie de recolhimento contínuo e de verdadeira piedade – apesar de não me dar conta, pois pensava que a piedade só existia na hora estrita de rezar. Porém, não era um asceta, e fazia parte do meu natural próprio fruir as vantagens normais que alguém pode obter, dentro da prática da virtude.
Alternância entre seriedade e alegria comunicativa
Lembro-me, então, de uma espécie de dualidade que havia em mim, entre dois estados de espírito ou duas claves, que se sucediam à maneira de uma luz que se apaga ou se acende dentro de uma sala.
O primeiro, bom e elevado, revelava um chamado muitíssimo marcado, o qual transpassava a minha alma de lado a lado e me fazia detestar tudo quanto era brincadeira boba e superficial. Essa posição era congênere com certa seriedade um tanto melancólica e tristonha, mas carregada com ânimo varonil.
Esse estado de espírito alternava subitamente, durante duas ou três horas, com outro diferente, pelo qual me deixava levar por certos aspectos agradáveis e divertidos da sociedade – com as formas de alegria dos anos vinte, muito vivas e comunicativas –, exatamente por não achar neles matéria de pecado, e sempre que não notasse neles, também, qualquer coisa de revolucionário. E não me parecia que isso diminuísse meu empenho em manter-me fiel, nem meu desejo de fazer a Contra-Revolução e de arcar com a enormidade do sacrifício que ela me exigia.
Por outro lado, eu via que o clero não fazia a menor oposição a essas formas de alegria.
Música e brincadeiras inocentes
Havia, por exemplo, muitas cançonetas que se espalhavam em São Paulo e que todo o mundo cantava, muitas das quais não ofereciam nada diretamente contra a pureza, de maneira que eu não percebia nelas perigo algum. Inclusive entre os meus discos havia alguns de musiquetas compostas no Rio de Janeiro ou na Bahia, as quais exprimiam uma alegria ajustada segundo o modelo moderno.
No cinema, onde o costume social me obrigava a ir, eu nem sequer me expunha a uma ocasião próxima de pecado – pois Nossa Senhora me protegia e não era tentado – e posso dizer que nunca consenti a um mau olhar, mas, seja como for, ali ouvia outras músicas.
Então, estando em casa, de repente eu cantarolava a plenos pulmões esta ou aquela melodia que estava na moda. Aliás, não sei como toleravam isso, pois sempre tive uma voz muito forte…
Por outro lado, às vezes me lembrava de algo divertido que presenciara em algum teatro, repetia aquilo interiormente e achava graça. Também, nas conversas com minha irmã e meus primos, sobretudo nas quintas-feiras, quando eles iam jantar em casa, estando à mesa dos mais moços, eu era um dos
chefes da brincadeira! Nunca dizia uma inconveniência, mas eram gracejos de mocinhos, com toda intimidade: falávamos mal deste e daquele membro da sociedade ou da família, inclusive com apelidos. Naturalmente eu mencionava os parentes deles e eles debicavam da minha família do norte, mas sem nada de insultante.
Ingenuidade na percepção do mal
Porém, tudo isso contrastava com o estado de espírito de seriedade que eu havia assumido, e revelava uma tendência para súbitos cansaços – um tanto subconscientes – da clave superior, o que poderia ter-me levado a uma vida desengajada, não responsável e feita para meu próprio lazer.
Eu notava que as duas tendências eram diferentes, mas achava que ambas podiam coexistir bem e, no começo, não tinha a noção de uma incompatibilidade absoluta entre elas. Posso afirmar que não havia em mim conivência com a Revolução, mas apenas ingenuidade e falta de percepção do mal que significaria aderir a esse modo de viver, banal, agradável e divertido.
Ora, em certo momento percebi que aquilo poderia mudar a minha mentalidade se eu me deixasse arrastar, levando-me depois a uma atitude de alheamento em relação à minha própria vocação. Mas senti uma sedução que me dizia: “Deixe o seu modo de ser, sério e pesado demais! Olhe como é alegre viver nessa outra clave!”
Mas Nossa Senhora me ajudou e eu disse: “Não!”
A explicação de um mal-entendido
Hoje percebo ter sido aquele estado de alma que fez nascer uma espécie de distonia entre mim e mamãe. Tão séria, tão afável, tão bondosa, tão pensativa e tão amena, não tendo consigo aquela alegria fresca e nova que às vezes me atraía, ela começou a me parecer monótona. Sentia em mim outro temperamento, que me tornava alheio em relação a ela.
As histórias que mamãe narrava, por exemplo, davam-me a impressão de não ter mais nexo com o presente. Quando ela procurava tratar algum assunto comigo, com o cuidado, a calma e a paciência extraordinárias que a caracterizavam, eu pensava: “Não se trata desse assunto assim! Hoje isso é feito com mais agilidade e com mais vida. Mudou!”
Por exemplo, nesse tempo, se os dois estávamos perto de algum jarro com flores, ela me chamava a atenção para alguma delas e me mostrava certos detalhes da flor. Eu, com respeito, prestava atenção e olhava, mas sentia certa implicância com as flores em geral, e com as pessoas que prestavam atenção nelas. Parecia-me muito mais interessante e elevado pensar na História, nas civilizações do passado e nos fatos de outrora, e para mim uma cruzada valia incomparavelmente mais do que uma rosa.
E pensava: “Isso não é assim e esse comentário não me atrai. Se ela quisesse comentar comigo um personagem famoso da História, como seria mais interessante! Mas essa não é uma distração agradável para ela…” Então, desviava o assunto logo que podia, e ficava pensando nos meus personagens históricos e nos meus castelos, enquanto ela continuava admirando as flores.
Assim, eu não compreendia bem umas tantas coisas do seu modo de ser, e tinha a vaga ideia de que ela não queria mudar, por estar habituada a esse estilo do passado, e que desejava prender-me num estado de alma, o qual já não era adequado ao meu tempo.
Explica-se assim como um filho dos mais amorosos pode ter tido uma mudança em suas disposições com a mãe, sem que esta lhe tenha dado motivo nenhum de queixa.
As rosas do carinho
Entretanto, no momento em que mudei de atitude em relação a ela, junto ao espelho, tenho certeza de que uma graça especial atuou sobre mim.
Eu obtive uma noção tão lúcida de quem era mamãe, que, a partir de então, até o fim abençoado da sua vida – na idade de noventa e dois anos –, nunca mais se interrompeu o bom fluxo da minha consonância total com ela, a mais afetuosa possível. Não fiz outra coisa com ela a não ser agradá-la ao último ponto, e constantemente fui um filho talvez ideal, de maneira que as rosas de meu carinho pudessem dar-lhe a compensação daquele momento de fugaz dissabor, até o último suspiro dela.
Mas receio que, se eu tivesse recusado essa graça e continuasse no caminho em que estava, algo poderia ter cambaleado em minha vida espiritual.
Quase adorada mãezinha
Já antes de sair senti tantas saudades que
lhe deixo aqui 500000
beijos. Esteja sossegada.
Logo que chegar eu lhe telefonarei. Eu levei meu
capote. Eu volto amanhã durante o dia.
100000000000000000 de beijos e abraços
de
Pigeon.11
Correspondência
Os compiladores da presente obra, julgaram oportuno incluir no fim deste capítulo algumas das missivas escritas por Da. Lucilia a seu filho Plinio em diversas ocasiões — bem como uma das cartas dele a sua mãe — na primeira metade da década de 20
Filho querido!
Escrevo-te às pressas por estar passando mal e muito cansada pelas muitas visitas que temos recebido ontem e hoje.
Tenho tido tantas, tantas saudades tuas, meu filho, que se quisesse não saberia dizer-te!… Parece-me ouvir-te e ver-te o dia inteiro… Farei todo o possível para ir ver-te e à minha filhona na segunda-feira, se Deus permitir.
Dizes-me que a casa de tia Zili está lindinha, o que é natural com o seu bom gosto, e tenho muito desejo de vê-la.
Recebi ontem e hoje à tarde tuas cartinhas que me alegram tanto… Vovó também fica tão contente, meu filho, que peço-te que lhe escrevas sempre; sim?
Sê sempre bonzinho, obediente e delicado para com teus bons tios, e Fräulein Dettmer,12 e carinhoso e delicado para com Ilka.
Diga a tio Augusto,13 que envio-lhe um abraço e que estimarei que continue a passar bem de sua gripe.
Um apertado abraço a tio Nestor,14 muitos beijos a tia Zili e Ilka, e para você… muitas bênçãos e o coração saudoso de tua mamãe,
Lucilia.
Não deixe de tomar o remédio do Murtinho.15
Lembranças a Fräulein Dettmer.
Rio de Janeiro, 22-9-92516
Filho querido.
Fiz boa viagem e achei tua avó um pouco melhor, – graças a Deus –, mas acho tanta falta em meu “filhão”, que nem poderás fazer uma ideia! Como vamos de estudos…… estuda-se muito, do mesmo modo que o fazias quando estava aí?… Veremos pelo boletim; não é exato? – Esse prazer me dás quando leio tuas boas notas, meu filho!… e Deus te abençoará por este grande esforço.
Zezinho Camargo17 almoçou hoje conosco, e segundo ele diz, esta história de greve ainda vai longe, pois os estudantes voltam aos estudos, mas lavrando
antes um protesto, que poderá talvez levá-los a cheirar um pouco o xilindró!
Tens tomado sempre teus remédios?
E Rosette18 querida, como vai? Olha bem por ela e vai vê-la todos os dias.
Diga a Florência19 que Vovó quer que ela contrate a cozinheira.
Gostei muito da viagem a bordo, só senti não ter levado os meus pendentifs.20
Os cariocas estão deveras radiantes com a “sova mestre” que pregaram nos paulistas!
Bem, vou terminar, por sentir-me já cansada, pois escrevi uma longa carta a teus tios Gabriéis.21
Escreverei amanhã à Rosée.
Escreva-me logo uma carta bem longa “mas com o polegar direito”, sim?
Já escreveste a D. Pedro? 22 – aposto em “como não”, mas faze-o depressa e manda pelo 1o vapor.
Abençoa-te e envia-te milhares de beijos e abraços, tua mamãe que tanto te quer,
Lucilia.
Filho querido!
Recebi tua carta que muito prazer me causou. Dora23
te dirá porque não te escrevo mais hoje, o que farei amanhã sem falta. Vai este pequeno money,24 para ficares mais um dia. Sê bem amável para com tua irmã e prima. Estou com muitas saudades tuas, e envio-te com minha bênção, muitos e muitos beijos e abraços.
Divirta-te mas com juízo.
De tua mamãe que tanto te quer,
Lucilia
Meu Amorzinho
Com vai a senhora? Não pergunto por Vovó porque sei que ela está rija e forte como uma digna bandeirante.
Por que não respondeu à carta que lhe escrevi?
Vovó recebeu a dela? Imagine que eu queria pôr as 2 cartas em 1 só envelope porém esqueci-me e pus só uma.
Estou muito alegre por esperar que a senhora venha logo com vovó pois seria inútil descrever o aspecto da casa sem as senhoras.
Recebeu a recomendação do Post Scriptum da carta de Vovó? Espero que tenha sido tomado na devida consideração.
Por aqui nenhuma novidade.
Rosée, Papai e eu vamos muito bem.
Muitos abraços a Tio Gabriel e aceitem Vovó e a senhora muitos beijos do filho e neto que lhes pede a bênção e muito as quer
Plinio
Rio de Janeiro, 11-10-925
Pigeon querido!
Tive imenso prazer ao receber tua carta e muito, muito te agradeço o excelente boletim. Dás-me tanto gosto com estas notas, meu filho, que certamente este esforço te reverterá em bênçãos, e por isto Deus te ajudará muito, e velará por ti com especial carinho, e por isso, peço-te insistentemente para que não empregues mais esta expressão de… …+ azarento… em relação a pessoa alguma, e muito menos a tua, pois como sabes, você e Rosée são confiados a Deus antes de nascer, e portanto, com fé e amor a Deus, vocês não poderão deixar de ser felizes, tanto mais que, por vocês eu rezo noite e dia e é natural que as preces de uma mãe católica, mesmo de tão pouco mérito, sejam atendidas por Nossa Senhora que também é mãe, e Nosso Senhor Jesus Cristo.
Continua a estudar bem, e não demais, a ponto de te prejudicar a saúde, e farás uns bons exames e vencerás esta primeira “étape” .25
Espero que você e Rosée tenham feito a comunhão conforme lhes pedi.
Não recebi ainda a carta de Rosée, a que ela se referia pelo telefone. E teu pai, porque não me escreve? Vocês estarão passando a preguiça para ele? … Deus me livre que assim seja!
Penso poder seguir para Santos e de lá para
S. Paulo, no próximo sábado, se tio Toni26 ou Papai vier nos buscar para eu matar estas tantas saudades dos meus queridos!
Vovó tem passado um tanto mal esta semana e só hoje com as presenças de teu tio Gabriel e de Antônio,
ela animou-se.
Adeus, meus queridos… até domingo?
Abraça por mim a teu pai e Rosée, e você, filho de meu coração, lançando-te minha benção envio-te milhares de beijos e abraços.
De tua mãe extremosa,
Lucilia
Só agora à noite, teu tio entregou-me a cartinha de minha Rosete querida. Beija-a por mim. Escreve a tua avó, pois a última ela não recebeu, porque deixaste de pô-la junto à minha.
Escrevo-te com uma pena tão ruim, que só as saudades de uma prosa com vocês me obriga a usá-la.
1 Em francês: “Bela Época”. Assim foi denominado o período que abrange os anos posteriores à Guerra Franco-Prussiana (1870-1871), até os primórdios da Primeira Guerra Mundial (1914-1918).
2 O Autor se refere à imensa luta que via diante de si, causada pela sua incompatibilidade com o espírito revolucionário que já dominava a sociedade do tempo. Cf. Volume III desta coleção, p. 27 ss.
3 Cf. Volume I desta coleção, p. 51.
4 A década de 1980.
5 No dia 13 de maio de 1888.
6 No dia 15 de novembro de 1889.
7 Em francês, literalmente: “cadeira longa”. Espécie de sofá ou divã para reclinar-se ou deitar-se.
8 Cf. Volume II desta coleção, p. 59 ss.
9 Cf. Volume II desta coleção, pp. 534-535.
10 Em francês: encarniçado.
11 Em francês: pombo. A partir de certo episódio ocorrido na primeira infância de Plinio (Cf. Volume I desta coleção, p. 128), Dª Lucilia costumava dirigir-se a seu filho com esse apelativo afetuoso, à maneira de gracejo.
12 A governanta alemã de Ilka, prima de Plinio.
13 Augusto Rodrigues dos Santos, irmão de Dª Gabriela.
14 Nestor Barbosa Ferraz, esposo de Dª Zili, irmã de Dª Lucilia.
15 Dr. Murtinho Nobre, o médico de Dª Lucilia e de outros membros da família.
16 Escrita do Rio de Janeiro. Dª Lucilia e Dª Gabriela permaneceram na Capital Federal até o mês seguinte, provavelmente devido à Exposição do Leite, da qual participava Dr. Gabriel Ribeiro dos Santos, enquanto Secretário da Agricultura do Estado de São Paulo.
17 Um amigo de Procópio (Pinho) – primo de Plinio – e filho adotivo do famoso cirurgião Antônio Cândido Camargo.
18 Termo carinhoso utilizado por Dª Lucilia para referir-se à sua filha Rosée.
19 A cozinheira da casa de Dª Gabriela e Dª Lucilia. Cf. Volume III desta coleção, pp. 66-67.
20 O pendentif é um adorno feminino, o qual se usa preso a uma pequena corrente, pendente sobre o busto. Neste caso, Dª Lucilia utiliza o termo para referir-se de modo carinhoso a seus dois filhos.
21 Dr. Gabriel Ribeiro dos Santos e sua esposa Dª Gabriela.
22 O jovem Príncipe D. Pedro Henrique de Orleans e Bragança, com o qual Plinio se correspondia. Cf. Volume III desta coleção, p. 541.
23 Filha de Dr. Adolfo Lindenberg e de Dª Eponina (Yayá), irmã de Dª Lucilia.
24 Em inglês: dinheiro.
25 Em francês: etapa.
26 Antônio Ribeiro dos Santos, irmão de Dª Lucilia.
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