A batalha da pureza
Nessa época, apresentava-se em minha vida espiritual outro grande combate, ligado essencialmente à luta contrarrevolucionária, mas distinto dela até certo ponto.
Para todo adolescente – sobretudo no Brasil daquele tempo – no mais tardar aos doze ou treze anos desencadeava-se um conflito furioso entre o Mandamento de guardar a pureza e a inclinação contrária. E, como isso despertava quase simultaneamente em todos os rapazes da mesma idade, era como se um rastilho de pólvora percorresse, por exemplo, irmãos e primos em alguma excelente família. Em determinado momento, essa problemática surgia – com um ensinamento errôneo sobre o assunto –, generalizava-se entre eles como um fogo e, depois de quinze ou vinte dias, aqueles rapazes haviam mudado de mentalidade e começavam a desprezar os Mandamentos da Lei de Deus, desejando entrar numa via para a qual eram fortemente solicitados.
Entretanto, por mais turbulento que fosse o apelo dos instintos, essa não era a maior força que os arrastava para o pecado, mas, sim, o respeito humano. A perseguição contra o rapaz puro era tão feroz no ambiente juvenil, que ele devia ter um heroísmo comparável ao dos mártires no Coliseu – ao pé da letra e sem exagero – para não sucumbir.
Explicações dos Padres sobre a castidade
Essa tremenda batalha da pureza tornou-se para mim muito candente e com ela começou um período de grandes dificuldades, constituindo o que eu poderia chamar “a guerra da castidade”. Foi uma das mais difíceis crises que tive em minha longa vida, e nela eu poderia ter naufragado, como milhões de meninos naufragam.
Eu era um menino enormemente puro e sabia que não devia ter imaginações inconvenientes, pois desse modo contrariava a Religião em algo. Mas, apesar de conhecer o Decálogo, até então não conhecia exatamente o significado da palavra “castidade”.
Procurei um Sacerdote, perguntei-lhe sobre aquilo e ele me deu toda a explicação da doutrina católica sobre o Sacramento do Matrimônio, mostrando-me como é bom, legítimo e digno o estado matrimonial, e como as pessoas devem manter-se castas até o casamento, mas também me falou da excelência da virgindade. Nessa ocasião compreendi bem o que é a castidade e qual é o pecado contra o Sexto Mandamento. E percebi melhor como a impureza era um câncer que roía rapidamente os companheiros de minha idade.
Devo dizer que as aulas dos Padres do colégio sobre doutrina católica, também me fizeram muito bem e até hoje me conservo grato a eles por isso. Foi em função de certas pregações sobre o Inferno que eu compreendi melhor a gravidade de qualquer pecado, e entendi o padrão segundo o qual as coisas deveriam ser medidas. Fiat lux1 no meu espírito!
Um desses Padres dizia o seguinte:
– A pureza é uma virtude admirável, mas é a mais difícil de praticar, em todas as idades do homem. Peca-se contra a pureza por pensamentos, palavras ou obras, e acontece que qualquer pecado contra a pureza é facilmente mortal. Peca contra a pureza, por exemplo, aquele que tem um pensamento impuro e consente deliberadamente nele, em vez de procurar evitá-lo, rezar e prestar atenção em outra coisa. Por um minuto que seja, alguém pode pecar mortalmente!
E acrescentava o Padre:
– Palavras! Desde que uma pessoa pronuncie palavras indecentes que levem a pensamentos obscenos, ou tenha conversas obscenas com outro, as quais podem levar a tentação ao seu espírito, pecou mortalmente.
Ele continuava a explicação e no fim dizia:
– Pode acontecer que haja meninos da idade de vocês condenados ao Inferno, pela eternidade inteira, por causa de um pecado mortal! Porque Deus, que é infinitamente puro, odeia a impureza! E, tomando em consideração que cada um de vocês foi criado com o intuito de ser a imagem e a semelhança d’Ele, Deus quer que sejam puros como Anjos, puros como Ele é puro!
“Serei puro!”
Assim o assunto se tornou claríssimo para mim e tive uma firme certeza: “Vejo que no ambiente de minha casa não se trata a respeito da impureza, e eu nunca imaginaria as pessoas de minha família praticando uma ação contra a pureza. Logo, esse ambiente é digno e honesto, por estar construído sobre a recusa do pecado. Mas sei que, em outros meios, ferve às escondidas o contrário dessa dignidade. Logo, a pureza é boa; a impureza é ruim. Na castidade tudo é uma maravilha; fora da castidade tudo é medonho! Portanto, serei puro!”
Depois, com o tempo, fui vendo gradualmente novos horizontes que aumentaram em mim essa convicção, mas a certeza primeira estava adquirida por aquele dado experimental, inteiramente suficiente e lógico, ao alcance de minha mão. Sentia em mim um entusiasmo pela pureza, que me levava a uma posição militante contra a impureza. Desse modo e quase ao mesmo tempo, haviam despertado em mim a tentação para o pecado e a admiração pela virgindade, esta última com todas as forças de minha alma!
Perguntas sobre o futuro
Lembro-me que os Padres me perguntaram algumas vezes:
– O que você vai ser? Vai se casar?
E eu, sem ter entretanto nenhuma ideia precisa e definida a esse respeito, respondia, não sei por quê:
– Não tenho vontade de me casar.
– Você quer ser Padre?
– Não!
– Então, tem de casar-se! Uma pessoa se casa ou se torna Padre.
Eu pensava com meus botões: “Eu ainda vou desfazer esse equívoco, pois não vejo isso de modo tão claro…”
Combate às tentações
Nesse período – não tenho nenhuma vergonha de dizê-lo, pois isso está na natureza do homem, concebido no pecado original – as tentações se tornaram furibundas e a batalha foi penosa. Não quero dar de mim mesmo a ideia ilusória de um jovem angélico, que nunca teve a baixeza de sentir os estímulos da carne. Não me foi fácil preservar a virgindade!
Eu, tão pacífico e tão calmo, via em meu caminho uma fenomenal luta que parecia não acabar mais, para manter o estado de graça. Que enorme e pavorosa dificuldade! Que terrível crise!
Tinha a firme resolução de resistir, custasse o que custasse. Porém, onde estavam minhas forças? Onde encontrá-las? Quais foram as ajudas que eu tive para me manter na fidelidade aos Mandamentos?
Constatei logo que manter a pureza é insuportável, quando esta não é praticada inteiramente.
Nessa matéria, a recomendação que os confessores davam aos meninos era de não fixar a vista em nenhuma figura que pudesse ser motivo de tentação. Entendi que a porta da alma são os olhos e que por eles entra aquilo que pode levar ao Céu, como o interior de uma igreja, um bonito monumento ou uma bela paisagem, mas também o que leva ao Inferno. Então, eu começava a notar nas ruas certas coisas, ocasionadas pela tremenda lacuna moral que já existia na sociedade daquele tempo – muito menos escandalosa e indecente do que se tornou depois – e, durante os passeios, constantemente eu me dizia: “Não posso ofender a Deus! Tenho de governar os meus olhares, pois, do contrário, serei idiota e olharei para onde não devo! Portanto, abaixarei as minhas vistas, ainda que a Fräulein Mathilde não entenda a minha atitude. Deus vale mais do que ela e, um dia, Ele me premiará”.
Não podia explicar o problema à Fräulein. Se ela me perguntasse por que não olhava em determinadas direções, só poderia responder-lhe: “Porque não quero, e está acabado!”
E resolvi: “Se ceder a um só olhar, estarei derrotado em todos os pontos, pois, mais tarde, a imaginação me apresentará de novo aquilo para que olhei, causando uma segunda tentação. Assim, com dois ou cinco olhares, a pureza começará a se tornar impraticável! Logo, nenhum mau olhar!”
Comecei também a perceber que tal lugar não era bom, que a companhia de tal pessoa podia ser perigosa ou que tal revista não era recomendável. Ajudou-me muitíssimo o fato de compreender que não é possível manter a pureza do corpo sem manter a pureza das cogitações. Quem consente em pensamentos impuros, esse está no risco de cair em atos impuros, mais cedo ou mais tarde. Então, era preciso travar uma batalha interna, mais necessária do que a vigilância sobre os sentidos: a batalha da previdência. Eu devia prestar atenção continuamente na minha própria imaginação, pois se deixasse de vigiá-la por um minuto, ela poderia escapar “pela janela”, indo para onde eu não queria…
Aplicando a norma do agere contra2 de Santo Inácio de Loyola, passei a fazer a análise de tudo quanto era em mim tendência velada para a sensualidade, a fim de evitar qualquer concessão. Tinha de ser consequente, evitando inclusive as ocasiões mais distantes de impureza e enxotando os estados de espírito mais remotamente contíguos a ela. Era preciso combater tentação por tentação, sem nunca conceder absolutamente nada, até transformar a pureza numa segunda natureza.
Os temas agradáveis e a contemplação dos cisnes
Na manutenção da pureza, eu levava a intransigência até o pormenor. Tinha sempre uma pequena lista, não escrita, mas mental, de oito ou dez temas puros a respeito dos quais gostava de pensar – é claro que não eram problemas de álgebra – para desviar a atenção das tentações. Por exemplo, eu me imaginava viajando para a Europa em algum dos grandes palácios flutuantes do mar: os transatlânticos daquele tempo, vários dos quais eu visitei, ancorados em Santos ou no Rio de Janeiro. Eram navios magníficos, alemães, franceses, italianos, portugueses ou espanhóis; cada um dos quais tinha traços de sua pátria, e constituíam verdadeiros antegozos da Europa. Lembro-me especialmente de certos transatlânticos italianos, como o “Augustus”, o “Conte Grande”, o “Conte Rosso” ou o “Conte Biancamano”…Assim, quando vinha a tentação, eu fugia para os assuntos agradáveis e isso me ajudava muito.
Por outro lado, eu me proporcionava algumas distrações castas, cultas e agradáveis, com as quais evitava a impureza. Por exemplo, tinha encanto em olhar os cisnes do Jardim da Luz, que me pareciam uma beleza. Limpos, puros e aristocráticos, nadando sem esforço, dominando as águas e deslocando-se num instante de uma ponta do lago até a outra. Neles eu via como era bela a castidade, e, nos momentos de dificuldade, a consideração de que o cisne foi criado por Deus para nos dar o amor à pureza causava-me uma grande consolação e uma intensa alegria de alma. Os cisnes me ajudaram muito na luta contra a impureza.
A consideração dos grandes transatlanticos era um dos assuntos agradáveis que ajudavam o jovem Plinio a fugir das tentações
O papel de Dª Lucilia
De acordo com a educação dada naquele tempo, havia um princípio pelo qual um jovem não deveria tratar sobre essas tentações com ninguém, nem com sua própria mãe, exceto o confessor, e os pais também não mencionavam o assunto com os filhos.
Parece-me que a barreira era excessiva, mas tanto mamãe quanto eu éramos muito formalistas e observávamos esse costume. Por isso, era um tema sobre o qual nunca falávamos, mas ela me deu certa forma de educação da pureza: ao conversar com ela, ou apenas ao permanecer perto dela, qualquer tentação desaparecia! Não por um milagre, mas porque ela possuía tal elevação de espírito que, ao me aproximar dela, sentia-me tão elevado que o assunto saía da minha mente.
Nessa fase da adolescência, ela não foi para mim como um comandante que dá diretrizes, mas como uma música no campo de batalha. Ela criava o ambiente, a atmosfera dentro da qual eu sentia alento e ia compreendendo a posição que deveria tomar frente aos problemas. De maneira que o convívio com Dª Lucilia deu-me um possante auxílio, do ponto de vista da pureza, indefinido e incomparável, sem ter sido ela uma mentora direta e explícita nessa matéria.
O medo do Inferno, fator insuficiente
Também me ajudava o medo do Inferno, causado pelas explicações sobre os novíssimos do homem, feitas pelos Padres com certa frequência. A ideia da chama física do Inferno me causava verdadeiro horror e eu dizia para mim mesmo: “Sim, senhor! Como é isso? E se você morrer de repente? Vai queimar lá? Trata-se de lutar ou de ir para o Inferno. Entenda bem que ali há fogo eterno, desgraça eterna, dor perpétua, sem limite nem remédio. E você, preguiçoso, pense, sobretudo, no esforço eterno, na tensão levada ao último ponto que possa imaginar, sem diminuição nem melhora. Então, você quer ser um poltrão? Lembre-se que pode morrer de um momento para outro, indo depois para o terrível Inferno dos poltrões!”
No entanto, ficava muito surpreso comigo mesmo, diante da seguinte constatação: esses pensamentos eram muito lógicos e arrastavam o meu raciocínio à persuasão de que eu não devia praticar o mal, por amor a Deus infinitamente bom, por ódio ao mal, por desejo do Céu e por horror ao Inferno. Mas, embora a minha convicção estivesse inteiramente firme com base na Fé, havia momentos em que eu me tornava átono e indiferente a essa verdade, como se uma luz se apagasse e ela perdesse o seu colorido. E pensava: “É verdade, tal pecado me parece um absurdo, mas estou tentado! E se não fizer esforço, cairei. Como posso eu, ente racional, chegar a esse estado de irracionalidade, de tal modo que, no presente momento, essas reflexões não sejam suficientes para eu abandonar com horror a hipótese do pecado e, pelo contrário, me sinta propenso a cair na tentação? O que aconteceu em mim? Sou fraco e débil!”
E às vezes me vinha ao espírito a pergunta: “Afinal, o que é isto? Vale a pena lutar tanto? Para que esse sacrifício? Que sentido tem essa luta?”
O preço da pureza
Pensando sobre esses problemas, muito cedo verifiquei que o raciocínio e a lógica sempre me conduziam a conclusões objetivas e inflexíveis sobre a pureza, as quais se resumiam no cumprimento do dever, no sacrifício e na luta. Se era verdade que a lógica me levava para altas montanhas, eu tinha de reconhecer que no alto delas havia piras onde eu devia oferecer o holocausto de mim mesmo, pois sabia muito bem que, sendo puro, receberia sobre mim a avalanche de todos os risos, sarcasmos, desprezos e debiques do mundo. Pelo contrário, se eu violasse a castidade, teria todas as complacências e compreensões de meu lado, num caminho fácil, suave e atraente. E tinha a seguinte convicção: “Êxito mundano é igual a violação da castidade, mas violação da castidade é igual a abandono da Religião”.
Inclusive, sentia um convite da parte de muitos adultos, no seguinte sentido: “Renuncia à Fé e aos costumes puros, e procura ser um jovem como os outros. Vê como eles se divertem! Corre, vai atrás deles! Este é o meu conselho: vai para o reino da canalhada, pois lá, sim, as pessoas se divertem! Terás amigos, serás simpatizado por todos os lados, procurado em todas as horas do dia, compreendido em todos os instantes e ajudado em todas as aflições! Mas, se não fores assim, e permaneceres na tua pureza; se preservares teus lábios limpos de qualquer palavra inconveniente; sobretudo, se mantiveres teu coração longe de qualquer imaginação impudica ou lasciva; se conservares ostensivamente tua Fé e rezares na presença dos meninos de tua idade, não te matarão nem te acontecerá nada. Porém, serás o grande ignorado e o grande abandonado. Teus amigos não continuarão contigo, mas isolar-te-ão, pois tu representarás o dever, o ideal, a seriedade, a cultura e a Fé. Terás de andar a sós pelo teu caminho, incompreendido e, às vezes, caluniado!”
Que via tremenda e penosa!
Diferenças entre puros e impuros
Eu passei a compreender melhor como a impureza trazia consigo, além de certo prazer momentâneo, uma fonte de desordem, a qual expulsava da mentalidade e dos espaços temperamentais dos meninos uma série de aspectos, e os destrambelhava completamente. Notava, sobretudo, da parte daqueles que eram impuros, uma espécie de impossibilidade de levar a vida como eu a entendia.
Antes de mais nada, eu percebia que não havia um menino impuro tranquilo. Eram agitados e frenéticos, moviam-se continuamente, faziam correrias de um lado para outro e não compreendiam a serenidade. Em geral tinham umas alegrias delirantes, mas, quando estavam a sós, caíam na tristeza, mesmo que tivessem dez ou onze anos de idade. Por isso tinham pavor da solidão – que eu tanto apreciava!
Por outro lado, a impureza causava horror à reflexão. Os meninos impuros nunca tratavam de algum assunto sério e davam atenção apenas a bobagens: faziam coleção de fotografias de artistas de cinema e trocavam-nas uns com os outros, enquanto os puros gostavam de colecionar selos ou moedas.
Essas diferenças se refletiam também de outros modos: o menino puro tinha um sono tranquilo e, se alguém o chamava, acordava com calma e naturalidade, mas o impuro, quando era acordado, pulava da cama e já começava a querer se mover, dando sinais de uma consciência desassossegada. Ele não tinha os estados de transição, pelos quais se passa com nobreza e delicadeza, sem excessos.
Os meninos impuros não comiam muito durante as refeições, mas depois, em horas malucas, tinham acessos de gulodice e se serviam de modo intemperante. Às vezes, eu os via em alguma confeitaria: mandavam vir três, quatro ou cinco empadas de uma vez e comiam precipitadamente, bebendo depois um refresco às pressas. Eu via que eles queriam satisfazer certo vazio interior, o que os levava a se empanturrarem.
Alguns deles começavam a ler certos livros das estantes dos pais, nas horas em que não tinham nada para fazer. Às vezes eram obras de alto valor intelectual, mas que apresentavam também cenas inconvenientes e, então, quando eles comentavam a leitura, o único aspecto que entrava na apreciação era a fruição sensual que haviam tido com essas cenas, e diziam uns para os outros:
– Você leu tal livro? Viu tal parte assim?
– Ah, vi!
O resto não lhes interessava.
Por outro lado, não havia entre os meninos impuros o conceito de verdadeira amizade, essa nobre posição de alma pela qual se tem em relação a alguém uma afinidade de espírito a propósito de um ideal. Pelo contrário, faziam e desfaziam as amizades ao léu, pois estas não tinham consistência alguma para eles. A impureza lhes dominava todo o horizonte e se tornava uma verdadeira monomania que os impedia inclusive de dar atenção aos pais ou às irmãs. O idealismo desaparecia enquanto a vulgaridade assomava, em conúbio com o egoísmo e com certo sentimentalismo mórbido.
Tudo isso indicava frenesi e desregramento do ser, com uma hipertrofia das preocupações físicas, um subdesenvolvimento das qualidades mentais e uma completa ausência de sentimento para tudo quanto não fosse a imoralidade. Ela esparramava a agitação e o infortúnio na vida das pessoas, à maneira de um incêndio e, no fundo, estava destruindo completamente uma civilização. Então, a minha descompostura contra a impureza começava a tomar figura e, de uma posição inicial infantil e subjetiva, partia para uma crítica razoável e objetiva, seguida de um juízo.
Preservação do paraíso interior
Assim, eu fui favorecido por uma convicção que me ajudou enormemente a admirar a pureza e, portanto, foi o grande fator para mantê-la: eu via a impureza no seu horror e compreendia bem que, se caísse, o meu pecado teria muito mais gravidade que o dos meus colegas.
Qualquer mínimo olhar, pensamento ou palavra impura em que eu consentisse quebraria em mim mesmo alguma coisa, à maneira de alguém que amputasse um membro; tirar-me-ia aquela bela placidez a que estava habituado e faria cessar o cântico angélico que sentia dentro de mim; seria uma pedrada que eu jogaria nesse paraíso interior, maravilhoso e sapiencial, nesse mundo de porcelana e de cristal, através do qual se filtrava a própria luz de Deus. Eu me abriria para a ignomínia, degradaria a minha vida, apostataria da minha mentalidade mais cedo ou mais tarde, largaria os meus valores de modo irremediável e perderia minha alma para sempre. Portanto, para salvar todo o horizonte de belezas que eu desejava preservar em mim mesmo, era indispensável concentrar toda a luta por minha perseverança na questão da pureza e deitar todo o meu empenho para mantê-la, pois a batalha da ortodoxia estava contida na luta pela castidade.
Assim, a batalha da pureza me fez entender melhor a relação entre a atmosfera adamantina em função da qual eu me movia desde pequeno – a minha inocência primeva, no fundo – e todo o panorama da Igreja Católica e do mundo sobrenatural, do qual a impureza era o contrário repugnante, repulsivo e censurável. Essa relação me fez aumentar o amor à Fé e me ajudou a completar todo um quadro que, até então, estava um tanto vago. Eu pensava: “Toda essa ‘transesfera’ que eu amo não faria sentido, se não tivesse a sua explicação em Deus. Pois de que me serviria amar um panorama, uma bonita pedra, o macio de uma seda ou de um tecido de damasco? Não vou sacrificar-me por eles, a menos que exista um Deus pessoal, do qual tudo isso não é senão a expressão, O qual tem o direito de mandar que eu seja como Ele”.
Entre todas as virtudes, a pureza passou a ser a que mais me encantava, e a qual procurava praticar com maior ardor e entusiasmo, em parte por horror ao oposto.
As virtudes, um anel de irmãs
Não levei muito tempo para perceber que a pureza era um degrau, e que o meu entusiasmo e o meu ardor se voltavam para a constelação de todas as virtudes. Formava-se em meu espírito um princípio: “É um engano imaginar que alguém pode praticar bem apenas duas ou três virtudes, pois todas elas são como um anel de irmãs indissociáveis. Não se pode viver afagando umas e detestando outras, mas é preciso ter boas relações com todas, pois um anel rompido em qualquer ponto torna-se um objeto sem valor. Logo, tenho de praticá-las na íntegra, inclusive aquelas que não despertam em minha alma um entusiasmo especial, pois, do contrário, não possuirei nenhuma! Por exemplo, qualquer um sabe que a mentira é um mal e que não se deve mentir, mas eu compreendo que alguém possa não ter um entusiasmo preponderante pela virtude da veracidade. Pode-se ter muito mais encanto pela pureza. Entretanto, se eu pecar gravemente contra a verdade, perderei o estado de graça! Estarei arrasado e, em poucos passos, terei perdido também as outras virtudes. Portanto, não posso pecar mortalmente contra a veracidade! Se eu não for veraz, não praticarei a virtude que tanto amo!”
Essa atitude era para mim uma condição de sobrevivência, diante da mediocridade moral tão frequente naquela época.
Uma cançoneta tida como inocente
Até os anos 20, não se podia conceber que um homem, por mais corrupto que fosse, pronunciasse uma palavra imoral ou fizesse qualquer alusão à imoralidade diante de uma senhora, de uma moça ou de uma menina, sobretudo tratando-se de irmãs ou primas dele, pois isso seria considerado uma verdadeira profanação.
Isso, naturalmente, criava a impressão de que o mundo dos adultos tinha o maior horror à impureza. O pai de família parecia um varão probo e íntegro, e os amigos que iam visitá-lo em casa, senhores muito sérios e dignos, que ignoravam o quanto a imoralidade era o grande tema das conversas animadas entre os meninos nos colégios. De maneira que uma canção imoral, por exemplo, nunca transpunha o limiar de uma casa de família.
Um dia, entretanto, em certo ambiente onde nunca penetraria um dito inconveniente, ouvi alguém cantar uma cançãozinha popular, provavelmente composta no Brasil. Pelo tom alegre de dança, percebi ser o que havia de mais moderno na matéria. Lembro-me apenas das primeiras palavras, as quais eram dirigidas por um homem a uma mulher, no momento de se separarem:
“Meu bem, não chora, arruma a trouxa, diga adeus e vá embora”3.
Em pouco tempo, essa cançoneta se propagou por toda a parte e era cantada como não tendo nada de repreensível, mas, analisando-a, eu percebia haver nela um sentido realmente imoral. E pensava: “Se ele a manda embora, é porque ela morava na casa da qual ele é dono. Entretanto, não é o esposo dela, pois entre marido e mulher as coisas não se passam assim! Se não é o marido, o que pode ser? No fundo, essa música procura ressaltar o aspecto pseudoengraçado de uma relação pecaminosa”.
Então, inclusive moças das mais puras, em ambientes dos mais corretos, de vez em quando cantavam essa cançoneta vil. Eu pensava com meus botões: “Isso é errado! Não vou cantar essa canção e ninguém deve cantá-la! Esse mau sentido que estou percebendo é óbvio, por um pouquinho que se pense e se analise. Será que ninguém se dá conta?”
Prestava atenção naquelas moças enquanto estavam cantando e notava bem que não queriam prestar atenção nesse aspecto, para não chegar à mesma conclusão que eu. No fundo, havia nelas uma bipartição de alma, pela qual, se é certo que de nenhum modo praticariam o pecado que transparecia naquelas palavras, por outro lado elas tinham para com esse pecado uma tolerância crescente, a ponto de deixarem entrar nas suas casas esse tipo de cançoneta. Então, eu me perguntava a mim mesmo: “Até onde isso irá?”
Certo dia, perguntei a alguém sobre esse sentido da canção:
– Você não nota?
– Ah, que coisa complicada! Nem entendi o que você está dizendo!
– Você entendeu perfeitamente. Esse é o sentido da canção e não tem por onde escapar!
– Homem! Não percebi isso e, portanto, continuo a cantá-la.
Assim, uma cançãozinha entrava em ambientes moralmente medíocres, onde as pessoas toleravam o veneno do mal e sorriam para as suas manifestações veladas e encobertas, sem se alarmarem, desde que ele progredisse devagar e as deixasse viver despreocupadas e contentes. Esse estado de espírito não poderia deixar de conduzir a sociedade a um ponto em que ela se entregasse completamente ao mal. Tudo havia começado com ares inocentes e o resto seria apenas consequência!
A conivência, sob o rótulo da misericórdia
Em certo momento, acabei me dando conta de que os homens, entre si, falavam largamente sobre assuntos imorais. No fim das conversas deles, por exemplo, percebia que já não dissimulavam tanto, pois estavam preparando as crianças para saberem como eles eram na realidade. E surpreendi-os fazendo graças e tratando temas que não eram corretos. Compreendi, então, que eles viam perfeitamente como se passavam as coisas entre os meninos nos colégios. Tive estranheza, mas logo concluí: aquilo que parecia cegueira era conivência com a imoralidade.
Eu me perguntava: “Mas, como essa conivência levou tanto tempo com a máscara da cegueira?” E entendi que isso se dava sob as aparências da misericórdia, pois, quando se reunia alguma criançada, muitos adultos, que não davam atenção ao menino mais bem comportado, mais bem vestido ou mais fino, empolgavam-se com o mais travesso e palhaço, o qual era também o rei da imoralidade. Este recebia l’honneur de la maison4 e o primeiro lugar na admiração velada dos mais velhos.
Lembro-me bem de uma cena de grande sucesso que presenciei nessa época: certo menino travesso arranjou um jeito de galgar um alto portão, com risco de se espatifar, para fugir e brincar na rua, pois queria sair de um jardim normal e bem arranjado, a fim de estar no ambiente dos moleques. Ele estava violando todas as leis e percebia-se que transpirava muito, de medo de cair, mas também da punição que poderia receber. Toda a meninada que se encontrava na casa correu para assistir à fuga dele e permaneceu olhando, numa espécie de êxtase entusiasmado, enquanto eu, pelo contrário, estava pensando em mil outras coisas.
Então, quando chegou ao alto do portão e passou uma perna por cima das pontas de ferro, parecia haver um sopro de glória sobre ele. Um menino que recebesse todas as medalhas douradas do colégio durante o ano não seria objeto de uma admiração assim, nem de longe!
Muitas vezes, certos pais diziam:
– Coitadinho! Meu filho é terrível, travesso, respondão, insuportável! Ele pula por cima dos muros, incomoda os vizinhos… Dá uma dor de cabeça…!
Isso equivalia a afirmar: “Meu filho é colossal” e dava a entender que, no fundo, todo menino desordenado, quebrador e revolucionário era um grande homem em gérmen. Pelo contrário, todo menino bom e direito seria no futuro um cretino.
Eu, que conhecia o menino, pensava: “Ele é impuro e, portanto, não é coitadinho!”
E sentia claramente que, em contato comigo, havia da parte dos mais velhos uma atitude de descontentamento e severidade. Quase nada do que eu fazia de bom era elogiado, e nunca ouvia algum comentário assim: “O Plinio obteve brilhantes notas no colégio. Coitadinho! Como ele se esforçou!”
Pelo contrário, de vez em quando alguém dizia:
– Então, como foram suas notas ontem no São Luís?
– Tive quatro medalhas.
– Ah, sei. Lucilia deve ter ficado contente, não é?
Daí a pouco, entrava outro menino, com as maneiras de um potro… A mesma pessoa exclamava:
– Oh, chega aqui! Então, como foram as notas?
– Não foram tão boas…
– Não se preocupe! Acima de tudo, aproveite sua vida e agora vá para o cinema! Olhe, aqui está um dinheirinho para você ir também a uma confeitaria.
Eu refletia: “Como é isso? Que misericórdia é essa, a qual tem pena de um e não do outro? Ela não parece o complemento harmonioso da justiça, mas a inimiga desta última, pois, onde a justiça mandaria o agrado, a misericórdia está ausente; onde a justiça proibiria o agrado, a misericórdia invade…”
Na realidade, havia uma verdadeira perseguição armada contra a infância pura.
No elevador, uma gorjeta
Uma vez, passei por uma loja da cidade e tive muita vontade de adquirir certo brinquedo, mas não quis pedir o dinheiro a mamãe – apesar de ser um presente barato –, pois ela pregava muito a economia. Então, fui ao escritório de um senhor da família, no centro velho, a fim de pedir a ele o favor de me dar a quantia necessária. Ele estava atendendo alguns amigos quando entrei, e disse:
– O que é isso? Você veio à cidade? Deveria estar estudando.
– É que estou de férias e vim aqui, pois quereria duas coisas: tomar um sorvete e comprar uma caixa de soldadinhos de chumbo, a qual está à venda em tal casa assim e custa tanto. Então eu vim pedir ao senhor para me dar esse dinheiro.
Ele desagradou-se com o pedido e respondeu com severidade:
– A qualquer hora das férias você vem pedir presente?! Isso não tem nenhum propósito! Apenas no Natal ou no dia de seu aniversário! Não tenho razão nenhuma para dar a você mais do que isso, nem dinheiro suficiente para comprar-lhe brinquedos o ano inteiro!
Eu me submeti com respeito. Ele disse:
– Estou fechando o escritório. Vamos andando.
Ele saiu comigo e entramos no elevador, o qual era acionado por um menino ascensorista, quase da minha idade. Os dois se olharam e logo senti haver entre eles um jogo de cumplicidade, pelo qual ambos desejariam que eu não estivesse presente, pois assim o encontro teria sido muito mais divertido. Nesse momento, lembrei-me de inúmeras rodas de colegas, nas quais, quando eu chegava, a situação era exatamente essa…
Então, o menino disse uma piada imoral para o meu parente. Este, comprazido e maravilhado, deu uma gargalhada, abriu a carteira, tirou dela precisamente o dinheiro que me havia recusado e deu-o a ele, dizendo com afabilidade:
– Você, sempre engraçado!
Essa atitude me deu a pior das impressões. Eu nunca havia dado um aborrecimento a esse senhor e jamais lhe fizera algum pedido, até então. Além do mais, eu tinha consciência da retidão, do respeito, do afeto e da mendicidade com que havia feito aquela solicitação inocente. A mera recusa não me causaria amargura, pois teria pensado: “Não posso ganhar esse brinquedo. Está bem! Graças a Deus, possuo outras coisas”. Mas aquela preferência injusta, diante de uma antítese boçal e imunda, constituiu para mim uma tortura.
Não disse nada, mas pensei: “Para esse menino do ascensor, que lhe contou uma anedota das piores e o fez rir desse modo, ele dá o que não deu a um parente… Então, a única boa aplicação de dinheiro, para ele, consiste na imoralidade? Como é isso?”
Aquela cena se gravou profundamente no meu espírito. Nunca mais fiz um pedido a essa pessoa, mas compreendi que, em cada dia de minha vida, eu teria de aceitar situações como essa, vinte ou cinquenta vezes… E deveria conformar-me.
Assim, a respeito de inúmeros aspectos da existência, eu ia percebendo a mediocridade que se escondia atrás das virtudes, se instalava, enchia os ambientes, reinava e depois abria a porta para chamar a infâmia, dizendo-lhe: “Agora podes entrar!” Entretanto, a primeira ação da infâmia, antes de tomar conta de tudo, seria expulsar a mediocridade, como alguém que dissesse: “Sua velharrona! Sua tradicional! Para fora!” E a mediocridade se esvairia, de tal maneira ela era cúmplice da infâmia.
Então, o terror da infâmia me fortaleceu na seguinte conclusão: “Não quero ser cúmplice dela! Portanto, hei de praticar a totalidade das virtudes otimamente, uma vez que todas elas são irmãs!”
A necessidade da oração
Entretanto, eu ainda não possuía uma noção exata do papel da graça de Deus na luta pela virtude, e tinha a ideia de uma mera batalha travada com forças humanas. Até que, em certo momento, compreendi: não bastava esforçar-me, mas era preciso rezar.
Porém, a oração vocal foi para mim uma espécie de conquista, pois, apesar do exemplo de minha mãe e de outros membros da família, eu não era muito propenso a fazê-la. Não era, portanto, nesse sentido da palavra, um menino especialmente piedoso, mas era muitíssimo dado a refletir e considerar todas as coisas à luz da Religião Católica, concebendo-a como verdadeiro centro de toda a ordem terrena e caminho para nosso fim, que é a vida eterna. Para mim, tudo na Igreja Católica era santo, pois nela eu encontrava o nexo de minha alma com Nosso Senhor Jesus Cristo.
Quantas e quantas vezes, antes de entrar numa igreja, tive vontade de ajoelhar-me e oscular a soleira da porta, pensando: “Aqui começa a casa d’Ele!” Certa vez vi uma pinturinha, na qual aparecia a seguinte frase a respeito da Igreja: “Hæc est porta cœli”5. E pensei: “Mas é claro! A porta do Céu é esta!”
Consideração da própria indignidade
Entretanto, com frequência pensava: “Plinio, preste atenção! Você tem seus doze anos, e já sente o peso de seus defeitos que resistem à ação de Nosso Senhor Jesus Cristo. Essa sua resistência resulta de algo fundamentalmente mau que existe em sua alma, porque você é ruim. E o que lhe compete é um sentimento profundo dessa sua maldade. Queira oscular a soleira da porta da igreja, compreendendo que assim você se honra, pois nem isso merece”.
Curiosamente, eu sentia Nosso Senhor Jesus Cristo mais próximo de mim e atuando em minha alma com maior profundidade, quando considerava desse modo minha própria indignidade. E, se deixasse de fazê-lo, parecia-me que começaria a apagar a Fé Católica de minha alma.
Então, uma vez que o meu objetivo principal era sentir-me perto d’Ele – sem o que eu não saberia viver – assumia essa posição de humildade com toda a minha força e pensava: “Quanto mais eu tiver em vista essa minha indignidade, mais estarei próximo d’Ele. Logo, vou martelar nesse ponto até me arrebentar, para me unir a Ele tanto quanto eu quisera!”
E tanto “martelei” que, por exemplo, tomei o hábito de oscular as imagens bentas apenas nos pés destas, julgando que os meus lábios nem sequer eram dignos disso, por causa da radical maldade existente em mim, a qual me devia tornar objeto da repulsa divina.
Sem dúvida, essa reflexão era de algum modo uma oração, pois esta se define como a elevação da mente a Deus6.
Devoção a Nossa Senhora
Além do mais, nas primeiras noções de piedade que eu havia recebido, já aprendera a rezar a Nossa Senhora.
Aliás, minha mãe me havia ensinado a Ave-Maria, em português naturalmente, mas como se reza em francês, ou seja, dizendo: “Rogai por nós, pobres pecadores”, o que é muito bonito e mais humilde. Era uma bela ressonância que vinha da França e me era muito agradável.
Existiam algumas representações de Nossa Senhora em várias salas de minha casa, colocadas por minha mãe. No oratório dela havia três imagens aos pés do Sagrado Coração de Jesus: uma do Menino Jesus, outra de Nossa Senhora das Graças e uma terceira, feita de marfim, a qual representava certa santa, mas estava na família havia tanto tempo que se perdera a memória da sua origem e não se sabia bem qual era. Entretanto, minha mãe venerava-a como padroeira da gens7 dela, e chamava-a de “santa desconhecida”.
E na parede do meu quarto de dormir existia um quadrinho – tanto quanto me lembro, pintado sobre vidro – representando Nossa Senhora com o Menino Jesus. Não tenho ideia se era um objeto de valor ou não, mas tratava-se de uma bonita imagem. Eu percebia que mamãe entrava todos os dias em meu quarto, quando eu não estava nele, e rezava junto a ela, certamente por mim.
Entretanto, eu tinha uma dificuldade incrível.
Uma reticência motivada pela devoção ao Sagrado Coração de Jesus
Eu compreendia que Nossa Senhora era a Mãe de Deus, mas a minha devoção a Ela era muito vaga e sem nada de especial. Mamãe costumava falar menos do Imaculado Coração de Maria e mais do Sagrado Coração de Jesus. Então, por causa do exemplo dela e pelo seu relacionamento especial com Nosso Senhor Jesus Cristo, todo o meu culto ia para Ele, embora eu visse minha mãe rezar também a Nossa Senhora.
Assim, formou-se em mim um estado de espírito pelo qual sentia uma espécie de reticência, não com Nossa Senhora, mas com a devoção que lhe era tributada, e uma vez ou outra me perguntava se não seria um tanto exagerada, pois poderia afastar as almas da adoração ao arquétipo humano que era Nosso Senhor Jesus Cristo.
Recordo-me da insistência de Dª Lucilia para que eu rezasse a Nossa Senhora. Eu atendia, porque o pedido vinha de mamãe, mas com pouco empenho, pois tinha tanta devoção ao Sagrado Coração de Jesus, que não desejava empanar ou diminuir em nada minha união com Ele, uma vez que só Ele tinha palavras de vida eterna.
Lembro-me de mim mesmo olhando para o quadrinho de Nossa Senhora em meu quarto e pensando: “O objeto desse culto é Ela e não Ele. Ele é um acidente nessa representação, pois, quando alguém vai visitar uma senhora e seu menino, o objeto da visita não é ele, mas a mãe. Então, onde está a devoção a Nosso Senhor Jesus Cristo, que é Deus? Isso tem propósito? Devia-se rezar mais a Ele…”
Era um equívoco da inteligência, mas essa dificuldade foi a tal ponto que, um dia, quando houve um acidente qualquer pelo qual esse quadro caiu no chão e quebrou, deixando assim de existir em meu quarto, eu não o lamentei.
Não sabia que Nossa Senhora, misericordiosamente, me reservava um caminho especial nas vias d’Ela, de tal maneira que mais tarde – em virtude das circunstâncias que vou relatar – a minha vida acabou sendo um contínuo ato de devoção a Nossa Senhora e, por meio d’Ela, a Nosso Senhor Jesus Cristo.
Os fatos se passaram do modo mais inesperado possível.
1 Em latim: “Faça-se a luz”. Gn 1, 3.
2 Em latim, literalmente: “agir contra”, clássica expressão utilizada nos famosos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola, indicando a necessidade de resistir ativamente às solicitações do mal (Cf. Exer., 13, 16).
3 Estribilho da marcha de carnaval Sai da raia, de autoria de José Barbosa da Silva, lançada no Brasil em 1922.
4 Em francês: as honras da casa.
5 Em latim: “Esta é a porta do Céu”.
6 Cf. São Tomás de Aquino, Summa Theologiæ, II-II, q. 83, a. 17.
7 Em latim: família, raça.
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