“Salvai-me Rainha”
No Colégio São Luís, os professores davam as notas no fim de cada mês.
Estas eram postas em boletins, distribuídos aos alunos numa sexta-feira ou num sábado, em geral. Naquele tempo não se usava a semana inglesa e havia aulas até o sábado à tarde.
Aproveitamento e comportamento
Então, cada aluno levava sua caderneta de notas e, chegando a casa, devia mostrá-la ao pai ou à mãe. Três ou quatro dias depois, tinha de trazê-la de volta, assinada por um dos dois, e restituí-la para ser arquivada no colégio. Dessa maneira, não havia risco de algum menino esquecê-la no bolso.
Os Padres jesuítas queriam que o estudo fosse sério e, por isso, precisavam ter realmente a certeza de que os pais acompanhavam o que se passava com os filhos e controlavam as notas deles. Quando o aluno entregava a caderneta no colégio, o bedel a examinava e, se não estivesse assinada, mandava-o levá-la novamente a casa. Se o menino não a trouxesse de volta, alguém da direção telefonava para a família, a fim de perguntar sobre o caso. Isso obrigava os pais a exigirem que o filho estudasse, o que era muito bem pensado.
A caderneta tinha doze páginas, equivalentes aos meses do ano, e nela vinha impressa em coluna, de alto a baixo, a lista das matérias lecionadas no ano, das quais a primeira a ser mencionada, a muito justo título, era Religião. Em seguida, vinha a coluna das notas, duas para cada matéria, escritas em quadradinhos especiais: uma era a de aproveitamento no estudo e a outra a de comportamento.
A nota de aproveitamento indicava se o aluno era aplicado e se, de fato, aprendia o que o professor ensinava, enquanto a de comportamento visava refletir a conduta do aluno: se dormia durante a aula; se conversava ou desenhava às escondidas, para se distrair; se zombava ou era grosseiro com o professor; se atrapalhava os outros colegas por meio de provocações ou brincadeiras, por exemplo soltando no ar aviõezinhos de papel; enfim, se tinha feito desordens ou bobagens durante a aula, violando o regulamento do colégio.
“Na caderneta vinha impresse em coluna, de alto a baixo, a lista das matérias lecionadas no ano. Em seguida, vinha a coluna das notas, duas para cada matéria, uma era a de aproveitamento e a outra a de comportamento”
Dª Lucilia e as notas do colégio
Habitualmente, era mamãe quem via meu boletim em casa.
Nos últimos dias do mês, ela já ficava à minha espera quando eu voltava do colégio e, às vezes, perguntava:
– Filhão, você trouxe sua caderneta?
– Não, meu bem, mas logo vai chegar!
Nem sempre eu era muito pontual na entrega… Afinal, quando eu chegava a casa, portador da caderneta, dirigia-me a ela e dizia:
– Mamãe, o boletim chegou.
– Vamos ver.
Eu o tirava da minha pasta e entregava-o a ela, sempre tranquilo, pois já tinha visto antes as notas e sabia que tudo estava bem. Minha mãe tomava a caderneta e, antes de abri-la, costumava dizer-me o seguinte:
– Olhe, eu vou ler primeiro as suas notas de comportamento e, depois, as de aproveitamento intelectual. Você quer saber por quê?
Naturalmente, eu respondia que queria e ela me dava sempre a mesma explicação:
– Muitas mães dão mais importância ao aproveitamento do que ao comportamento, mas eu faço questão, sobretudo, dessa segunda nota.
Era verdade. As famílias dos alunos, em geral, se preocupavam muito mais com o aproveitamento, pois este significava a capacidade intelectual e aquilo que habilitaria o menino a fazer uma carreira na vida, enquanto julgavam que o comportamento não tinha importância nenhuma, pois o menino que fazia diabruras mudaria mais tarde. Inclusive, havia a tendência de considerar que as travessuras das crianças não acarretavam nenhuma responsabilidade moral.
Porém, com espírito muito profundo, mamãe possuía uma visão sobre o assunto exatamente contrária à opinião comum. Sempre olhava no menino o futuro adulto, e dizia:
– O que o homem é em pequeno será depois, quando crescer. Se a criança se habitua a mentir, por exemplo, terá uma boca mentirosa e deformada para a vida inteira.
Um filho burro?
Então, ela continuava me explicando:
– Eu desejo com empenho que você estude bem e tire altas notas de aproveitamento, pois deve conhecer as matérias e ser um bom aluno. Entretanto, se você me trouxer notas baixas de aproveitamento sem culpa sua, posso tolerar e perdoar, pois ainda não sei se tive um filho burro ou inteligente. Você é quem deve demonstrar isso… Os seus professores são dos melhores de São Paulo e eu vejo que você estuda aqui em casa (de fato, ela me fiscalizava para ver se eu estudava as matérias). Mas, se você não aproveita as aulas e não consegue aprender o que lhe é ensinado, apesar de ser um aluno bem comportado; se tem dificuldades com pontos que qualquer um compreende, disso você não tem culpa. De maneira que eu não vou zangar-me nem vou puni-lo, mas olharei para você com tristeza e chegarei a uma conclusão melancólica: “Deus me deu a infelicidade de ter um filho que não é inteligente, chamado Plinio!” Vou olhar os filhos das outras mães, pensando como eles são inteligentes e como o pobrezinho do meu Plinio nasceu burro! Eu também não tenho culpa… É como se você fosse doente, e não deixa de ser meu filho por isso! Sou sua mãe e vou querer-lhe bem do mesmo modo, com toda pena, compaixão e misericórdia, resignada com meu burro para a vida inteira, pois é um bom menino. Afinal, os burros devem ser tratados com paciência, dando-lhes inclusive feno para comer, uma vez que não se nega alimento nem para eles.
No fundo, havia também uma ameaça de dizer a toda a família que eu era burro, incapaz de aprender…
Ela pronunciava esses ditos severos com uma seriedade aveludada e me olhava com atenção, para ver a minha reação, mas falava com um afeto, uma afabilidade e uma bondade materna indizíveis. Por isso, essas fórmulas pesadas e quase duras que mamãe utilizava eram ditas com tanto carinho e de modo tão leve, que não me causavam indignação nem me magoavam.
Não creio que ela me achasse tão burro. Naturalmente, ela dizia tudo isso como se não soubesse se eu era inteligente ou não, para me estimular, me aguçar e me dar brio. Eu não percebia a intenção dela, mas tomava muito a sério as suas palavras e, pelos ares de desprezo com que ela dizia “burro”, eu compreendia bem qual era o infortúnio de não ser inteligente e dizia a mim mesmo: “Como é? Será que ela me acha burro? Talvez o seja mesmo! Que qualificação desagradável! Mas, afinal, se eu sou, o que posso fazer? Quem sabe se ela está dizendo isso a fim de me preparar para uma vida dura? Pois eu sei que os burros levam uma vida difícil… Entretanto, creio que, para minha idade, não sou tão burro assim! Deve haver algum engano… Mas, enfim, parece que ela admite a possibilidade!”
E ficava quieto, pois, se fizesse essa observação, ela diria que eu tinha de ser mais humilde.
Bom comportamento, a exigência absoluta
Mamãe continuava a explicação:
– Agora, o que eu não posso admitir nem perdoar é uma nota baixa de comportamento. Isso já é diferente: implica num defeito moral e não tem explicação, atenuante ou escusa. É sua culpa, sua culpa, sua máxima culpa, pois cada um tem o comportamento que deseja. Nesse caso, você não é burro, mas um filho mau, ordinário e preguiçoso, que não gosta da ordem, da disciplina e do esforço. Eu prefiro ter um filho burro, mas bom, a ter um filho mal comportado, mas inteligente, porque o homem vale pelo caráter! A inteligência é algo de valor, mas secundário. Sem inteligência pode-se ir para o Céu, mas sem caráter não, pois ninguém tem o direito de ser ruim! Com a maldade, sua mãe não transige nem tem pena! Se Deus permitiu que eu tivesse um filho ruim, você me entristecerá muito e terei a obrigação de endireitá-lo e castigá-lo. Você verá se eu o corrijo ou não! Portanto, exijo absolutamente que você tenha notas muito boas de comportamento.
Ela não permitia que eu, por exemplo, desrespeitasse algum professor, mesmo se este fosse leigo, por julgar que a função docente era intrinsecamente respeitável.
Eu achava irrespondível tudo o que ela dizia, ficava encantado e pensava: “É verdade, mamãe tem razão!”
E lembrava-me de certos colegas que quebravam tinteiros, jogavam objetos para o ar, faziam bagunça durante a aula e, naturalmente, recebiam notas de comportamento baixíssimas. A culpa era deles…
Também refletia: “Que amor ela tem para comigo! Se eu for burro, tenho uma boa mãe, capaz de conduzir o jumentão dela, enquanto viver… E, se for ruim, sou o primeiro a desejar que ela me corrija! Para isso é mãe! De maneira que a atitude dela está perfeita!”
Repreensão moderada, compreensão e abraço
Então, mamãe olhava com atenção as minhas notas.
É preciso dizer que minha conduta na sala de aula era boa. Por natureza, era um aluno muito calmo, tranquilo e disciplinado e, portanto, na imensa maioria dos casos, as minhas notas de comportamento, graças a Deus, eram bem elevadas em todas as matérias.
Minha mãe tolerava que, às vezes, escapasse a nota nove de comportamento em uma ou duas matérias do curso, mas não mais do que isso. Não permitia uma nota abaixo de nove e, mesmo assim, uma ou outra vez fazia a seguinte observação:
– Meu filho, a nota de comportamento tem de ser dez e raramente nove. Quando não for dez, é preciso explicar à sua mãe o que você fez na aula para acontecer isso.
Eu havia trocado uma palavrinha com algum colega. Então, dizia a ela:
– Meu bem, eu conversei…
– Mas, você acha que isso está direito? Que não se repita.
E me dava uma repreensão moderada, mas, se os nove se tornassem numerosos, haveria encrenca grossa, pois ela era inflexível! Entretanto, o normal era que, depois de olhar o boletim, ela me dissesse:
– Estou especialmente contente por causa das suas notas de comportamento. Mas o aproveitamento em Matemática está muito baixo! Veja se levanta essa nota no mês que vem.
Muitas vezes, eu havia tirado nota cinco ou seis em Geografia e ela perguntava:
– Você não quer aprender a geografia do seu país? O que é isso?
Eu dava uma saída qualquer ou dizia que era burro… Mamãe me compreendia e deixava aquilo passar, tolerando inclusive a nota quatro de aproveitamento, nas matérias de que não gostava.
No fim, ela me abraçava e me beijava. Depois eu ia tomar lanche e a vida continuava.
Nota baixa de comportamento
Em certa ocasião, entretanto, fiz uma grande estripulia no Colégio São Luís, da qual me lembro até hoje e que nunca poderei esquecer.
Era o fim do mês e havia chegado o dia da distribuição dos boletins. Entrou na sala de aula o Sr. Olívio, bedel português, com seus bigodes pretos – tão rígidos que pareciam feitos de madeira – trazendo o maço das cadernetas.
Houve um suspiro na sala, de brincadeira, e o Padre começou a chamar os meninos para receberem os boletins das mãos do bedel. Chegou a minha vez:
– Plinio Corrêa de Oliveira.
Fui lá, tomei a caderneta e voltei ao meu lugar, já olhando depressa as notas de comportamento, sem grande receio, pois sabia que sempre eram boas. Não me interessava muito o que os professores achariam, mas pensava no contentamento que daria a mamãe.
Pareceu-me que essas notas estavam bem: dez em todas as matérias… com exceção da Geografia. Ali havia uma nota muito estranha: eu obtivera seis de comportamento!
Era, portanto, uma nota baixíssima, péssima! Isso queria dizer que eu tinha feito algo de muito reprovável. Nunca havia acontecido em minha vida nada de parecido com isso!
Verifiquei então que todas as notas de aproveitamento eram bastante altas, inclusive nessa matéria. Fiquei desconcertado, aflito e apavorado, pensando: “Mas, como isso pôde acontecer? O que fiz de mal na aula de Geografia? Na realidade, nada que justificasse essa nota, pois me comportei tão bem como nas outras matérias! Fui um aluno respeitoso e obediente! Como vão me dar seis de comportamento, se andei bem? Isso é história daquele professor que me olha de través e, com certeza, não vai bem comigo… Ele, naturalmente, percebeu que acho as aulas dele tediosas, ficou indignado e me bateu esse seis na cabeça. Não poderia ter agido assim! Não tem propósito! É uma injustiça! Agora, isso vai dar desgosto a mamãe. Ela vai sentir-se chocadíssima, pois seis está muito abaixo de dez e, portanto, longe do que ela tolera! Não posso provar-lhe que andei bem, pois ela vai acreditar mais na nota do que em mim. Então, vou ter um drama em casa! Ela vai ficar zangadíssima comigo e não sei qual o castigo que vou receber”.
Estava indignado e pensei: “Sou inocente! Preciso arranjar este caso, mas não sei o que vou fazer!”
Eu poderia ter ido à secretaria do colégio, para ver se não tinha havido algum erro, ou ter procurado o professor para perguntar-lhe: “O que fiz na aula de Geografia, para o senhor me dar essa nota?” Mas isso não me ocorreu.
Então, em vez de resolver o assunto como devia, achei melhor fazer justiça pelas minhas próprias mãos e, assim, evitar aborrecer a mamãe.
O “dez” sobre o “seis”
Pensei: “Ah! Já sei o que vou fazer! Como não posso aparecer em casa com essa nota, tenho de acabar com ela, arranjando um meio de fazê-la sair do boletim! Vou corrigir o erro do professor, raspando a nota e pondo outra: por cima do seis vou escrever ‘dez’! A letra ‘e’ existe em ambas as palavras, tanto no seis como no dez. Vou aproveitar o ‘e’ do seis que já está escrito e acrescentarei o resto necessário para compor o dez”.
Não tive dúvida! Loucamente, pus-me a raspar o seis e, quando já estava um pouco borrado, apanhei uma caneta e escrevi por cima, com a minha letra, a nota que me parecia merecer.
Em primeiro lugar, fiz o que não devia. Em segundo lugar, era preciso ter uma arte consumada para fazê-lo e, por último, eu tinha o contrário dessa arte!
Depois de escrever, caí em mim e verifiquei que havia feito um absurdo, uma bobagem… A minha obra estava indecente: um “dez” horroroso, grande e pesado, numa letra tão diferente da original, que qualquer um podia ver o seis embaixo… Pensei: “Hii! Essa, mamãe não engole! Ela conhece tão bem a minha letra! No primeiro instante perceberá o que eu fiz. Terei de dar-lhe explicações e ela não vai acreditar… Vai ficar furiosa comigo, assim como o meu pai. Agora piorou a minha situação! O que fazer? Como sair desta dificuldade? Como disfarçar isto?”
Nesse momento ouvi ruído de chuva.
“Um abismo atrai outro…”
Olhei para fora, percebi que estava chovendo e disse para mim mesmo: “Ah, já sei!”
E calculei o seguinte ardil: “O único jeito que há é molhar o papel, de maneira que mamãe não saiba o que aconteceu. Vou pedir ao Padre licença para sair um pouquinho ao pátio do colégio. Levarei a caderneta aberta para a chuva, deixarei cair água em cima dessa infortunada miscelânea de seis e dez, e assim vou borrar tudo: o que eu escrevi e a maldita nota que está em baixo! Depois apresentarei o boletim a mamãe e, quando ela me perguntar o que aconteceu, direi que eu quis ler a minha caderneta na rua, mas não percebi que estava chovendo. Então, caiu água em cima da nota de Geografia, como também pingou em outras partes do boletim, o qual ficou todo borrado! Assim, ela não entenderá nada dessa marmelada, acreditará na minha tapeação e eu me sairei bem!”
“Abyssus abyssum invocat”1 – “um abismo atrai outro abismo”, diz a Escritura. Ou seja, um erro atrai outro; uma má ação atrai outra. Aquela era uma ideia muito mal pensada! Um desastre em cima do outro; uma loucura incrível, disparate de um meninote de doze anos!
Então, levei o boletim para fora e o abri, com esperança de que caísse água na nota e a borrasse. Entretanto, era uma infelicidade incrível: não sei o que acontecia, mas as gotas de chuva não molhavam o ponto certo, o lugar que eu queria! Chovia sobre as pontas do papel, nas laterais, nas outras notas, em torno da nota de Geografia, em todas as partes do boletim, mas não caía uma gota de água no meu dez…
Eu movia a caderneta, mas a chuva fugia da nota de comportamento. Fiz um canal no papel, para formar um riacho até ela, mas permanecia seca. Passeava com o boletim sob a chuva, mas nenhuma gota acertava a pontaria. Não havia meio de molhar aquele dez…
Indignei-me e, em vez de sair da chuva, perdi a paciência: esperei com o dedo uma gota grande de água e molhei resolutamente a nota. Mas, como não conseguia apagá-la bem, arranhei o papel e tudo ficou pior.
Pensei em levar o boletim ao bebedouro dos meninos e salpicar o dez, mas percebi que seria ainda mais forçado. Cada interferência minha era mais desastrada que a anterior. Uma série de inabilidades prodigiosas…
Entrei novamente e olhei bem o resultado: estava péssimo, indescritível, horrível! O pior pasticcio2 possível! Para quem visse, era evidente que eu havia feito aquilo de propósito. Então, comprovando o desastre, desisti, pensando: “Não tem remédio! Não vou fazer mais nada! É melhor fechar este boletim! Talvez essa água faça um pastel aí dentro… Vou entregá-lo a mamãe de qualquer jeito e veremos o que acontece”.
Fechei a caderneta e voltei para casa. À medida que ia chegando e a hora da explicação se tornava mais próxima, eu me sentia mais preocupado. Estava profundamente indeciso e pouco seguro do êxito da minha manobra.
O boletim em mãos de Dª Lucilia
Encontrei mamãe no quarto de toilette, o qual era uma espécie de sala de estar que as senhoras tinham antigamente.
Lembro-me perfeitamente da cena: ela estava sentada numa cadeira de balanço, perto da escrivaninha. Com certeza havia escrito alguma coisa e descansava um pouco, enquanto esperava a chegada do filho, com a tranquilidade costumeira dela.
Habituada às minhas boas notas, recebeu-me muito acolhedora, com o carinho de sempre:
– Filhão, como vai você? Está vindo do colégio?
– Sim, senhora.
Todos os dias, quando eu chegava, ia diretamente até mamãe e cobria-a de abraços e beijos. Ela me beijava também e depois conversávamos. Mas, nessa ocasião, eu me aproximei desajeitado, permaneci em pé diante dela, e não a beijei nem agradei, pois estava envergonhado.
Mamãe sabia que era o dia da distribuição dos boletins, mas eu procurei distraí-la, para que não perguntasse sobre o assunto. Então ela disse:
– Meu filho, entregaram o boletim no colégio hoje? Trouxe a sua caderneta?
Eu respondi, muito inseguro:
– Sim, mamãe, eu trouxe.
E não a mostrei, para ver se a coisa passava… Mas ela continuou, afetuosamente e sem desconfiança:
– Vamos ver, então. Dê-me cá suas notas.
– Aqui está.
Eu costumava entregar-lhe a caderneta aberta para ela folhear, mas, desta vez, apresentei-a fechada – como se adiantasse em algo! – e com o braço encolhido.
Mamãe assumia habitualmente uma atitude muito séria e atenta, no momento de ler o boletim. Então, aconteceu o inevitável: o olhar dela caiu imediatamente naquele empastelado. A caderneta parecia uma chaga, toda franzida de água. Ela perguntou:
– O que é isto? Que desastre aconteceu com este boletim?! Explique-me essa história.
Pode-se imaginar a minha situação… Amolecido na minha maldade pela presença de mamãe, mas, de outro lado, ainda com uma vaga esperança de que ela acreditasse na minha lorota, respondi:
– Ah, mamãe! Caiu água…
– Estou notando. Que água caiu aqui em cima?
– É, a senhora sabe… Estava chovendo. Então, abri o boletim na rua, sob a chuva mesmo, pois quis ver quais eram as minhas notas, e molhou tudo. A senhora vê como está…
Ela não acreditou. Achou aquilo muito estranho e continuou lendo. Olhou as primeiras notas e, quando chegou ao fim – a Geografia era das últimas matérias – percebeu à primeira vista a nota dez, colocada visivelmente com a minha letra feia, e perguntou-me:
– O que é esse dez aí? Quem escreveu isso?
– O Padre!
– Você pensa que eu acredito? Não, senhor! Não me venha com essa história. Isso não é verdade! Aqui em cima está escrito “dez” com sua letra. Por quê? Você apagou o que estava embaixo? Vamos, explique!
Eu estava como Adão e Eva depois de terem comido a fruta… Minha consciência se remoía. Não tinha o que dizer.
“Falsário!”
Desarmado e esmagado, respondi:
– É, mamãe… – não ousei chamá-la de “meu bem” – Vou explicar à senhora o que aconteceu.
E acabei contando-lhe a verdade inteira:
– Eu tinha seis. Então, achei que a senhora ia se zangar comigo e escrevi dez em cima.
– Ah? Mas, como? Nota seis?! Onde se viu isso?! O que você fez com seu professor de Geografia? Você o agrediu? Você quebrou uma janela? O que houve?
– Não fiz nada, mamãe! Foi uma nota injusta, que não mereço. Por isso, não querendo aborrecer a senhora, tentei arranjar um jeito de pôr a nota que a deixaria contente. Eu sei que andei muito mal! Não deveria cometer essa ação de maneira nenhuma!
Minha mãe me olhou bem de frente e disse:
– Você falsificou um boletim dado por seus professores. Isso está muito mal feito!
E tirou logo uma conclusão cujo verdadeiro alcance eu não entendi no momento:
– Então, agora eu sou mãe de um falsário! Você acha isso possível?! Nunca em minha vida pensei que teria de passar por esse desgosto! Um filho meu, falsário?!
A palavra “falsário”, com o segundo “a” bem aberto, soou aos meus ouvidos de um modo duríssimo e pavoroso, como uma chicotada no ar. Eu tinha uma ideia muito vaga do que era um falsário, pois, nas conversas familiares, ouvira contar certos casos que os jornais publicavam a respeito de falsificações, qualificadas realmente como crimes dos mais nocivos e condenáveis, e como ações que rebaixavam muito um homem. Mas, sem saber exatamente o significado dessa denominação que me parecia tão terrível, percebia que tinha relação com “falsificação”: o que eu havia feito com meu boletim.
Senti-me como um criminoso medonho. Um fripon3, na força do termo! Aquela palavra de conotação horrorosa caía sobre mim com uma censura que me triturava… Então perguntei a mamãe:
– O que é um falsário?
– Você não sabe? Tinha de saber. Qualquer um sabe! É aquele que falsifica a letra dos outros. Todo falsário é um ente infame, um homem ordinário e sem-vergonha. Vou dizer-lhe uma coisa: eu posso tolerar muito da parte de um filho, mas que seja um falsário é algo que absolutamente não posso aceitar nem suportar, por nenhum preço do mundo! Eu prefiro tudo na vida a ter um filho falsário! Na sua idade, um menino que falsifica tem de ser muito punido por seus pais, pois, senão, quando for mais velho vai falsificar cheques ou cartas. Ofenderá a Deus, acabará na cadeia, vai ser a vergonha da sua família e o desgosto da sua mãe!
Firmeza implacável e punição
Minha mãe tinha mudado de fisionomia.
Ela, tão suave, paciente e bondosa, estava indignada, aborrecida além do imaginável, o que contrastava com o carinho requintado e dulcíssimo com que normalmente me tratava.
Eu a vira muitas vezes zangada, mas essa era, de longe, a repreensão mais forte que recebera dela.
Assim como o mar muda de aspecto ou o céu muda de cor, sem que se possa perceber bem em que momento começou a mutação, algo nela estava mudado. Os seus olhos castanhos, habitualmente muito aveludados e de uma luminosidade difusa muito doce, haviam adquirido um brilho mais interno e pareciam tornar-se quase pretos. Era um olhar sereno, fixo e severo, que me fitava de dentro de várias profundidades, ao mesmo tempo me envolvendo e me condenando.
A sua voz afável, sonora e acariciante, tinha agora um tom de censura, como um órgão cujo registro houvesse mudado. Sem gritar, ela parecia dizer o seguinte: “Eu irei até as últimas consequências, na energia e na severidade. Não permitirei que você continue com esse defeito, mas entrarei em guerra contra ele até quebrá-lo!”
Era um modelo de firmeza implacável, de intransigência e de exigência! Ela manifestava tanta superioridade, nobreza e dignidade, que eu me sentia pequeno e indigno de ser filho dela. Entretanto, no dizer “um filho meu”, havia uma ressonância de veludo, que mostrava a seriedade e a gravidade da maternidade, e me fez sentir o quanto ela me amava e como a sua proximidade me elevava.
Também, enquanto mamãe me increpava, deixava transparecer um convite afetuoso a deixar de ser falsário, ao mesmo tempo que me censurava, numa atitude de equilíbrio ideal. E, no momento de pronunciar a palavra “falsário”, a sua expressão de fisionomia acentuava de tal modo a carga de censura, rejeição e horror, que eu percebi todo o mal que havia na falsificação e o feitio fraudulento e torpe da personalidade do falsário.
Eu me sentia achatado e esmagado pelo meu próprio delito, e pensava: “Falsário! Que coisa horrorosa!” Mas estava transido de admiração, por ver como ela tomava a sério a gravidade das coisas e como tinha razão de estar zangada comigo. Associado à indignação dela, e indignado eu mesmo com a minha atitude, pensei: “Eu fico agradecido à senhora, pois não havia percebido o quanto é ruim o ato de falsificar!”
Mamãe disse:
– Vou dar-lhe uma punição. Você vai apanhar! Vá lá e pegue a escova naquele móvel.
Entre alguns objetos de toilette que ela havia comprado na Europa, estava essa escova de prata, com pelos duros como alfinetes, a qual funcionava para me castigar quando eu andava mal. Depois, com o tempo, ela a substituiu por outra, de pelo mais suave.
Então mamãe ordenou:
– Dê-me a sua mão!
Obedeci. E as pancadas que ela deu na minha mão me fizeram sentir o impacto da sua cólera, seu desprezo e seu repúdio por eu ser um falsário. Eu estava sofrendo tanto na alma, que quase nem senti o sofrimento do corpo.
Ameaçado de ir ao Colégio Caraça
Mamãe não acreditou que a minha nota seis fosse imerecida. Ela pensou que, de fato, eu havia procedido muito mal e havia falsificado a nota, a fim de que o meu comportamento não fosse conhecido. Por isso, ela me disse:
– Essa caderneta não vai ficar com você, mas comigo. Vou esperar que seu pai chegue do escritório, para falar com ele e mostrar-lhe o que você fez.
As tragédias se acumulavam.
Quando meu pai chegou, mamãe pediu-lhe que viesse falar com ela na minha presença. Ele, muito tranquilo e otimista, perguntou brincando:
– Então, o que há?
Mamãe respondeu:
– É algo muito sério: seu filho falsificou uma nota!
Ele se assustou:
– Como? Falsificou…?
Ela explicou o acontecido, do que papai naturalmente não gostou nada… Viu o boletim e disse:
– De fato, você falsificou a letra. Para evitar qualquer dúvida, irei ao Colégio São Luís e perguntarei aos Padres sobre isto.
Eu me sentia afundando no chão… Mamãe continuou:
– Então, fique sabendo que seu pai vai mostrar aos Padres o que você fez, pedir informações ao professor de Geografia, verificar se não houve engano na cópia, se a sua nota foi essa mesma e perguntar o que você fez para merecê-la. Se houve um engano do colégio e a sua nota foi dez – e se pedir perdão por essa péssima ação –, estará perdoado. Pelo contrário, se for confirmado que você realmente fez uma estripulia grave e mereceu essa nota seis em Geografia, a primeira coisa que eu farei é afastá-lo de mim. Você não terminará este ano no São Luís, mas eu o mandarei como aluno interno ao Colégio Arquidiocesano4, ou ao Caraça, para ver se toma caráter!
– O que é o Caraça, mamãe?
– É um colégio que existe no Estado de Minas Gerais5; um internato de disciplina terrível, o mais severo do Brasil! Assim como os falsários vão para a cadeia, você irá para o Colégio Caraça, pois é o que merece, e isso ainda é pouco!
Esse excelente colégio, dirigido por religiosos lazaristas e localizado num bonito lugar, nas montanhas, era na verdade um dos melhores do país, com muito boa formação, mas tinha em São Paulo uma fama completamente injusta.
Naquele tempo, os meios de transporte estavam muito atrasados e as comunicações eram difíceis. Então, por falta de informação, corria o boato de que o Colégio Caraça era uma verdadeira penitenciária, quase um cárcere, onde os pais mandavam os meninos delinquentes ou insuportáveis, e onde o regime era severíssimo e a comida péssima. Era tido como uma espécie de castigo que ameaçava todas as crianças do Brasil.
E mamãe, também enganada a respeito do Caraça, acreditava que, se o filho dela era um criminoso, deveria ir para essa prisão de meninos. Eu estava pasmo e tinha a impressão de cair em vários abismos. Perguntei:
– Longe de casa, mamãe?
– Sim, senhor! Não quero ter falsários junto de mim. Eles devem ser trancados lá.
E continuou:
– Você sabe o quanto seria doloroso para sua mãe separar-se de você. Pois bem, não tenha dúvida: vamos passar um ano sem nos vermos. Não sei se você vai sofrer por isso, mas é certo que eu sofrerei, e muito mais do que você. Estando lá, lembrar-se-á de que sua mãe infeliz está chorando, porque você está na cadeia, mas, sendo para seu bem, eu farei qualquer sacrifício! E não tenha a ilusão de pensar que vou visitá-lo, pois não irei! Não conte com meu perdão, a não ser depois desse período. Então, vou verificar se o falsário se emendou e, do contrário, voltará para o Caraça! Até que você compreenda que não pode ser, ao mesmo tempo, filhinho queridinho e ordinarinho! Tenha isso por bem entendido.
Por fim, ela disse:
– Agora, vá embora. Você desgostou muito sua mãe.
E deixou-me ir sem o ósculo costumeiro, o que eu entendi bem. Como um falsário iria se aproximar de uma senhora tão venerável? Não lhe pedi perdão naquele momento, mas saí muito abatido, sem dizer nada e pensando: “Se mamãe não me quer perto dela, o que me resta?”
Sentia-me expulso daquele paraíso de sabedoria e de carinho que era a minha união com ela. A ideia de permanecer afastado dela durante um ano, a uma distância “astronômica” de São Paulo, era para mim como uma morte; um castigo inimaginável! Se pelo menos eu soubesse que ela iria comigo para o Caraça…
Além do mais, pelo fato de ela me fazer essa ameaça no começo do ano, eu entendia que a coisa era muito séria. Por outro lado, devo confessar que uma das minhas preocupações era a comida. De modo infantil, eu tinha a impressão de que no Caraça apenas se comia cará, do que eu não gostava…
Estou certo de que minha mãe teria cumprido o que dizia, se esse castigo fosse o único meio de corrigir-me. Não creio que me colocasse no Colégio Arquidiocesano, mas enviar-me-ia realmente ao Caraça. E, na hora de levar-me para o trem, a fim de partir, ela de fato sofreria cem vezes mais do que eu, que entretanto sairia com o coração partido!
Angustiosa espera
Se não me engano, aquele dia era um sábado.
Papai não iria incomodar os Padres com esse casinho no domingo, dia em que eles permaneciam rezando no colégio. Então, foi combinado que ele iria ao São Luís na segunda-feira, para elucidar o assunto. Portanto, eu tive de esperar o resto do sábado e todo o domingo. Nem ousei perguntar a meu pai a que horas ele iria, mas me mantive quieto e acanhado, sentindo-me como uma espécie de animal doente e repugnante, que devia ficar de lado…
O dia terminou triste e aborrecido para mim. Estava muito apreensivo com o que poderia acontecer, tomado por uma aflição medonha, uma angústia enorme, sem encontrar remédio para a minha situação; verdadeiramente transido de pavor!
Na Igreja do Sagrado Coração de Jesus
Eu tinha o hábito de acordar tarde aos domingos, mas nesse dia me levantei muito cedo, por estar com pouco sono e não conseguir dormir mais. Resolvi então assistir à Missa na igreja dos salesianos – o Santuário do Sagrado Coração de Jesus – a qual era muito próxima de minha casa, apenas três ou quatro quadras em terreno plano, o que não é nada para um menino.
Lembro-me perfeitamente do estado de espírito com que cheguei à igreja, sozinho e muito mais cedo que de costume: preocupado em extremo, com a alma nos pés e recriminando-me amargamente pela ação que havia praticado.
Esperava encontrar algum lugar livre no meio da nave central, mas, quando entrei, tive um desaponto, pois vi uma cena inteiramente diferente do que era habitual para mim: entravam meninos em fila, cantando, e iam ocupando os bancos. Tratava-se de uma Missa para os alunos do Colégio Coração de Jesus6.
Percebi logo que os Padres mandariam dar todos os lugares da nave a esses alunos, o que era natural, uma vez que estudavam lá. Então, fiquei aguardando no fundo, em pé, para ver se sobraria algum espaço para mim. A igreja foi se enchendo e, por fim, a meninada havia lotado “salesianamente” os bancos da parte central, e eu não pude ocupar o lugar que desejava.
Mamãe havia ameaçado colocar-me no Colégio Arquidiocesano, mas eu não fazia distinção entre um e outro, e julgava tratar-se do Colégio Coração de Jesus. Este era um bom estabelecimento e a formação salesiana é excelente, mas os rapazes que lá estudavam eram de uma condição modesta e, portanto, vestiam-se de modo mais pobre do que eu. Olhando-os, pareceu-me – sem nenhuma razão – que o Colégio Coração de Jesus era uma espécie de sucursal do Caraça. Confusões na mente de um menino!
Então, enquanto não começava a Missa, eu observava aqueles meninos e dizia para mim mesmo: “Está vendo?
Também andaram mal e foram mandados para cá… Esse é o meu futuro; mas lá, naquela penitenciária, vou viver numa situação ainda pior que a deles…” Analisava aquela fila de alunos que entravam e pensava: “Um colega, dois colegas, três colegas…”
“Ele me detesta e eu O adoro”
Após a entrada dos meninos, os fiéis ocuparam as naves laterais. A igreja estava repleta.
Empurrado pelo fluxo do povo, tive de me deslocar casualmente para a nave à direita de quem entra, entendendo que devia acompanhar a Missa em pé, deixando os assentos para as senhoras. Estava ainda mais desanimado, por não encontrar lugar e por sentir-me rechaçado de todos os lados, por Deus e pelos homens. Pensei: “Tudo me acontece mal!”
Afinal, achei um lugarzinho vazio no último ou penúltimo banco, bem no fundo. Eu era relativamente magro e consegui me espremer naquele canto, pensando: “Aqui ainda cabe um miserável falsário”.
Eu me sentia errado, pecador e perverso, sem nenhuma saída para a minha situação. Estava no auge da aflição, não propriamente desesperado, mas perdido nas minhas apreensões. Tinha a compreensão muito clara de que não era digno de me dirigir a Nosso Senhor e nem sequer merecia levantar meus olhos para Ele, pois eu O havia desagradado.
Cheio de temor reverencial e com o coração partido, pensava: “Como é que agora vou comparecer diante d’Ele, na sua majestade, e pedir: ‘Meu Deus, aqui está Plinio Corrêa de Oliveira, que Vos pede tal coisa’? Mole, pulha, covarde e desleal como sou, não me farei aceitar bem da parte de Nosso Senhor Jesus Cristo! Ele é por demais puro, íntegro, nobre, santo e perfeito! Em uma palavra, Ele é Deus! Basta olhar uma imagem d’Ele ou ler uma parábola da História Sagrada para compreender isso. Não me receberá com agrado, mas terá aversão por mim e não me suportará, com razão, pois, ainda que eu tenha certa boa vontade, o que há em mim é nauseante! Ele me olhará com justiça e dirá: ‘Iiih! Está aí Plinio Corrêa de Oliveira! Que horror! Com tais defeitos!’ Ele me rejeitará com um desprezo tão magnífico quanto Ele mesmo! Que adorável! Que formidável! Ele me detesta e eu O adoro!”
Mas, de outro lado, punha-se para mim, de modo cruel, a pergunta: “Como vou me arranjar neste apuro?”
Precisava de alguém que tivesse pena daquele verme esmagado, derrotado, humilhado, aturdido, abatido e envergonhado.
Aos pés de Nossa Senhora Auxiliadora
Em certo momento, os meninos cantaram novamente e o Padre entrou. Começava a Missa.
Por causa das colunas, eu não conseguia ver o celebrante, mas apenas seguia os movimentos do povo, ao levantar e ajoelhar. Também não podia ver a imagem do Sagrado Coração de Jesus do altar-mor. A única imagem que tinha diante de mim era a de Nossa Senhora, no altar da nave lateral, o qual estava decorado com flores.
Era uma linda imagem de Nossa Senhora Auxiliadora, de mármore absolutamente branco, tão alva que parecia feita de neve. Radiosa, com coroa de Rainha na cabeça, tendo o Menino Jesus no braço esquerdo e um cetro na mão direita7. Ela segurava o Menino como Mãe que leva o seu filho, e o cetro como general que sustenta o bastão de comando. O Menino Jesus, também com coroa na cabeça, estava risonho e parecia contente de haver dado o cetro à Mãe.
Ela mostrava um ligeiro sorriso, iluminada, inundada de felicidade, e dava-me a ideia do que seria a situação d’Ela no Céu. Com tanta pureza, bondade, superioridade, grandeza e majestade, mas olhando os fiéis de modo tão acolhedor, tão nobre, tão afável e tão misericordioso, que me deixou encantado.
Veio-me à mente também a ideia de que o Menino Jesus faria tudo quanto Nossa Senhora pedisse, assim como eu fazia tudo quanto mamãe queria, pois Ela possuía junto a Ele uma influência semelhante à que mamãe tinha sobre mim.
Pensei: “Se eu, que sou um trapo, amo minha mãe tanto, tanto e tanto, imagine Deus, que é infinito! Como Ele amará a sua própria Mãe? Mas também, como será Ela, para que Ele a tenha escolhido por Mãe? Deve ser formidável!”
E disse para mim mesmo: “De fato, como Ela é boa! Se eu, falsário, me dirigisse ao Sagrado Coração de Jesus, não seria atendido, pois não mereço ser ajudado, mas Ela é o auxílio dos cristãos! Aquela que está disposta a ajudar especialmente todos os cristãos. Eu sou cristão! Vou rezar a Ela! Talvez me arranje uma solução neste embrulho em que estou!”
“Salvai-me, Rainha!”
Então, não sabendo bem o que dizer a Nossa Senhora, veio aos meus lábios, instintivamente, uma oração que eu tinha aprendido a rezar e conhecia de cor, mas nunca me chamara a atenção de modo especial: a Salve Rainha.
Em latim, a palavra salve é um cumprimento. Assim como hoje dizemos “bom dia” e “boa tarde”, os antigos romanos costumavam dizer salve, e essa saudação latina passou para a Salve Rainha em português e em outras línguas, com o sentido de “eu vos saúdo, ó Rainha!” Mas eu não sabia isso e interpretei o salve, julgando que tivesse relação com o verbo salvar, como no português. Então, quereria dizer “salvai-me!”
Era um erro crasso. Eu apenas começava a aprender latim, o que equivale a dizer que sabia uns poucos arranhões… Mas não estava pensando em saudações nem protocolos na hora em que naufragava. Era um brado pedindo socorro, um S.O.S.!
E pensei: “Salve! Que coisa bem achada! É a oração de que eu preciso! Idealmente bem ajustada para o meu grande apuro! Estou numa circunstância em que preciso de alguém que me salve mesmo! Vou pedir a Nossa Senhora instantemente que me proteja, me ajude e me salve, porque estou perdido!”
Caí ajoelhado diante daquela imagem de Nossa Senhora Auxiliadora e comecei a rezar a Salve Rainha. Era a primeira vez que recitava essa oração com todo o fervor de minha alma e com enorme desejo de ser atendido:
– Salve, salve… Salvai-me, salvai-me! Salvai-me deste aperto, salvai-me desta dificuldade! Eu quero absolutamente ser salvo!
Uma luz e um sorriso
A Missa seguia o seu curso.
Eu estava pensando em Nossa Senhora e rezando a Salve Rainha, quando, em determinado momento, fixando aquela imagem, algo se passou. Ela estava tão maternal! Tive a impressão singular de que me olhava, cheia de bondade, misericórdia e ternura, como quem me conhecesse e dissesse: “É o Plinio, filho de Dª Lucilia e de Dr. João Paulo”.
Pareceu-me sentir toda a pena que Nossa Senhora tinha de mim. Ela via minha alma e, sem querer me julgar, compreendia o drama no qual eu estava imerso, desejosa de me ajudar e me afagar.
Duas ideias vieram-me juntas nesse momento, como um relâmpago. A primeira era: “Parece mamãe!”
E a segunda: “Mamãe é tão, tão boa! Ela me arranja tudo e me acompanha em todas as ocasiões, mas… Nossa Senhora tem uma bondade maior, sem comparação! Ela é enormemente mais jeitosa, indizivelmente mais perfeita do que mamãe! É inimaginável! Ninguém é como Ela!”
Não consigo descrever como foi isso! Não foi nenhuma aparição, visão, revelação ou êxtase. Não houve, portanto, o menor milagre, e os traços fisionômicos daquela imagem de mármore não se moveram em nada. Mas, por uma impressão imponderável, eu vi no olhar d’Ela uma luz para mim e, nos seus lábios, um sorriso.
Tive uma espécie de conhecimento pessoal dessa misericórdia insondável, e pensei: “Eu não esperava tanto! Em lugar de desprezar este trapo, este menino que pecou, e que comparece diante d’Ela trêmulo, Ela deixa cair a pétala de um sorriso!”
Então, por uma moção da graça – sem ouvir nenhuma voz – pareceu-me que a imagem continuava se exprimindo pelo olhar e dizia no interior de minha alma: “Meu filho, é verdade! Você, de fato, é um trapo e nunca se esqueça disso na vida, mas você ainda não tinha pedido o meu apoio. Eu sou boa, muito mais do que você é ruim! A minha misericórdia se estende também aos trapos e Eu tenho pena de você, pois sou sua Mãe! Peça-me perdão! Acredite que Eu lhe quero bem. Eu o trago para junto de mim, o afago, o envolvo, o inundo e o purifico com meu afeto”.
E sentia que, se por acaso eu quisesse fugir, Ela me tomaria carinhosamente e diria: “Meu filho, volte! Aqui estou Eu”.
Eu já havia me confessado e sabia estar absolvido, mas nesse momento fui tocado pela persuasão de que o sorriso de Nossa Senhora me abria as vias da misericórdia. D’Ela eu poderia esperar tudo! Ela cobriria o que eu havia feito e me obteria coragem e forças para me emendar! Profundamente arrependido, comecei a pedir perdão a Nossa Senhora, mil vezes, não por causa do mau resultado que poderia decorrer de minha ação, mas por tê-la ofendido e, em grau muito menor, por haver ofendido mamãe também.
Tive simultaneamente uma enorme contrição e a sensação de um grande perdão, acompanhado de um auxílio meigo, bondoso e animador.
Foi então que eu senti bem o que era o arrependimento. E a graça dessa contrição e desse perdão até hoje me dá saudades.
“Com Ela, eu me arranjarei!”
Na expressão de Nossa Senhora também senti uma espécie de promessa, como se Ela me falasse à alma: “Meu filho, Eu faço contigo uma aliança: jamais te abandonarei! Confia, pois Eu te ajudarei!”
Dizia de mim para comigo: “Entendi a lição: eu não mereço receber forças para continuar bem meu caminho, mas, se me agarrar a Ela, tudo mudará! Como é doce e agradável recorrer a Ela! Que paraíso para a alma! Este é o meu caminho! Confiarei em Nossa Senhora a vida inteira! Com Ela, eu me arranjarei! Sem Ela, irei para o Inferno!”
E algo da imagem incutia em mim a convicção de que em todas as aflições, perigos e até infidelidades ao longo da minha vida, quando eu olhasse para Ela ou eu d’Ela me lembrasse, pedindo o seu auxílio, Ela teria pena de mim e me acolheria, pois era a chave de todas as soluções. Eu acabaria por vencer a batalha de minha vida, ser um católico exímio e até um herói. Portanto, a serenidade, a tranquilidade e o frescor de alma que aquela promessa me comunicava acompanhar-me-iam até o fim dos meus dias.
Nossa Senhora me fazia ver toda a beleza e suavidade do caminho que se abria diante de mim, se eu permanecesse unido a Ela, refugiado aos pés d’Ela, vivendo do seu afeto, do seu carinho, da sua compaixão e da sua misericórdia. E nisso a minha afetividade encontrava o ambiente que lhe era próprio.
Percebi que Ela também queria ser amada inteiramente por mim, como se me dissesse: “Dou-me inteiramente a ti, mas tu deves dar-te inteiramente a Mim! Caminha na via da fidelidade, dize ‘não’ aos homens da Revolução, para dizer ‘sim’ a Mim, que sou a Rainha do Céu e da Terra. Luta e combate, pois um dia verás que os teus ideais se realizarão! Ama-me a vida inteira, e eu te amarei até a eternidade”.
Então, ali mesmo fiz os propósitos de ser muito devoto d’Ela até morrer e de nunca esquecer como Ela me havia socorrido. E respondi interiormente: “Minha Mãe, eu sou vosso!”
“Eu sou boa para todo o mundo!”
Senti que Nossa Senhora tinha uma pena especial de mim, por eu ser tão fraco. Entretanto, tive a clara cognição de que essa compaixão não constituía um privilégio para mim, mas era a atitude d’Ela diante de todos os homens, o que me deixava muito tocado e enlevado.
Eu não me tinha por uma pessoa a quem Ela houvesse amado especialmente, mas apenas unum ex populo8 e pensava: “Assim como Nossa Senhora me atende agora, vejo que Ela atende todos os fiéis. Eu sou apenas um entre os que estão nesta igreja. Ela também tem pena de todos os pecadores que enchem as ruas, as casas, os bondes e os automóveis; de qualquer um, por pior que seja, desde que tenha desejo de emendar-se! Porém, muitos deles a rejeitam…”
E parecia-me que Ela dava a entender o seguinte: “Se você quiser que outros se beneficiem dessa bondade, diga a eles que Eu sou boa para todo o mundo!”
“Mãe de misericórdia”
Enquanto a Missa seguia, continuei a rezar a Salve Rainha, uma, duas, não sei quantas vezes, invadido por uma enorme alegria, entusiasmadíssimo! Cada uma daquelas palavras, que antes eu papagaiava, tomava beleza para mim e parecia encher meu coração como uma luz maravilhosa, com a impressão inefável de que Nossa Senhora lhes dava valor e sentido. Ia compreendendo ponto por ponto o que recitava, e dizia para mim mesmo:
“Salve Rainha!”
“Aqui está o salva-vidas! Eu sou tão miserável que, se não me agarrar n’Ela, não haverá saída para mim! Ela me resolve o caso…”
“Mãe de misericórdia…”
“A palavra ‘mãe’ já indica a ideia de misericórdia, pois as mães são misericordiosas, mas Ela é toda feita de misericórdia! Como isso é bem pensado! Que coisa formidável, extraordinária! A mãe que eu tenho em casa me castigou e me abandonou, pois eu o mereço, por ser pecador. Eu precisava, portanto, de uma outra Mãe, mais misericordiosa do que a minha, a qual nunca fosse severa e sempre me perdoasse tudo. Aqui está!”
“Isso é compreensível, pois as mães se medem pelos filhos… Compare o Filho d’Ela com o filho de Dª Lucilia! Que diferença! Um é o Menino Jesus e o outro é um miserável falsário! É natural que mamãe não tenha toda essa bondade e não tolere o que Nossa Senhora tolera. Esta Mãe é incondicional! Não me chama de falsário, mas me estende a mão! É minha Mãe por excelência, mais do que ninguém! Quem sabe se Ela comunica um pouco de misericórdia a mamãe?”
“Vida, doçura e esperança nossa…”
“Vida…”
Pensava: “Está vendo? Ela é minha vida! Eu me sentiria liquidado se Ela não tivesse pena de mim e não advogasse minha causa junto ao seu Filho. Quero viver com Ela!”
“Doçura…”
“Como Ela é suave! Minha doçura é Nossa Senhora, que me atende nesta situação! Que doçura restaria em minha vida, se não tivesse a possibilidade de rezar a Ela?”
“Esperança nossa…”
“Minha esperança é Ela e não há outra! Se Ela não olhar por mim, estou perdido e sem solução na Terra, mas com Ela estou esperançado!”
“Salve!”
“Já que Vós sois assim, salvai-me!”
“No fim da minha vida, verei Jesus!”
“A Vós bradamos, os degredados filhos de Eva”.
Eu não sabia bem o que significava a palavra “degredado”, mas entendia que se tratava de uma situação muito infeliz e dizia para mim mesmo: “Esta é a oração para o meu caso! É bem isso! Sou degredado e estou bradando”.
“A Vós suspiramos, gemendo e chorando…”
“Apenas me falta chorar – pois não sou muito dado ao choro –, mas estou gemendo tudo quanto eu posso! Eu inteiro sou um gemido…”
“Neste vale de lágrimas”.
“É isso mesmo! Estou nadando nas minhas próprias lágrimas. Quanto pranto interior! Quanto pranto sem lágrimas, nesta alma que sofre tanto, numa idade tão prematura!”
“Eia pois, advogada nossa…”
“Compreendo: eu precisava de alguém que advogasse a minha causa junto a Nosso Senhor Jesus Cristo, meu juiz. Ela é minha advogada, que tem uma espécie de parti pris9 por mim e permanece ao meu lado em qualquer circunstância. Tem a missão de me comover, de me aproximar de Jesus e de obter que Ele me perdoe. Há alguém que une minha imperfeição irremediável à celeste perfeição d’Ele! Então, acabarei por vencer!”
“Esses vossos olhos misericordiosos a nós volvei”.
“Ela está olhando para mim do Céu! Tudo dará certo!”
“E depois deste desterro, mostrai-nos Jesus, bendito fruto do vosso ventre”.
“Então, depois de sair deste apuro, no fim da minha vida, ainda verei Jesus!”
E assim por diante, fui rezando toda a Salve Rainha, com uma emoção interior muito forte, tendo a impressão de que Ela sorria ainda mais para mim.
Sensação de pisar sobre nuvens
Esse fato produziu na minha alma uma verdadeira reviravolta. Eu sentia que a compaixão d’Ela, incidindo sobre a minha miséria como a luz do sol poderia incidir sobre um muro, havia me regenerado. E nesse dia acabou toda a implicância que eu tinha com a devoção a Ela.
Terminou a Missa. Saí da igreja reconfortado, animado, sentindo-me mudado e fazendo a seguinte conclusão: “Vou confiar! Tudo se resolverá e mamãe ‘ficará bem’ comigo de novo, pois Nossa Senhora rezou por mim e vai arranjar o meu caso!”
E, no caminho de volta, tinha a sensação de pisar sobre nuvens!
Chegando a casa, encontrei Dª Lucilia ainda na mesma disposição de censura em relação a mim, esperando o dia seguinte para tomar conhecimento do acontecido no colégio. Entretanto, curiosamente, ela estava um pouco mais amena e distendida.
Dr. João Paulo visita o Reitor do colégio
Afinal, passou-se o domingo.
No dia seguinte, de manhã, meu pai foi ao Colégio São Luís e pediu para falar com o Reitor10. Quando este apareceu, mostrou-lhe meu boletim, dando risada:
– Olhe aqui, o que o Plinio foi inventar!
E papai contou-lhe toda a história. Ele também riu e disse:
– Dr. João Paulo, não pode ser! Espanta-me que ele tenha recebido essa nota de comportamento, pois é um menino muito calmo e tranquilo, bem educado e comportado. Vou conversar com o professor da matéria.
Mandou chamar o Padre que lecionava Geografia, explicou-lhe o caso e perguntou:
– Como é, Pe. Cerdá11? O que o Plinio fez?
Ele respondeu:
– Não fez nada! É um aluno pouco amoroso da Geografia, mas perfeitamente bem comportado. Não dei essa nota para ele, mas talvez seja um engano da secretaria: alguém deve ter feito um erro de transcrição. Em todo caso, vou verificar a nota nos registros e virei trazer a resposta.
Ele foi à secretaria, chamou o funcionário que copiava as notas, mandou trazer os documentos originais e depois voltou, sorrindo:
– O Plinio fez justiça a si próprio! Está registrado que a nota foi dez, mas o funcionário realmente se enganou e escreveu seis no boletim.
O Reitor, achando graça naquilo, disse a meu pai:
– Olhe, isso foi uma bobagem de menino. Se ele tivesse vindo reclamar comigo, por julgar-se objeto de uma injustiça, eu mesmo teria corrigido a nota no boletim dele. O caso não tinha importância nenhuma e ele não precisava fazer essa criancice.
Uma vaga hipótese: a raiva de Domingos
É preciso dizer que havia um funcionário da secretaria, chamado Domingos – homenzinho manco, de cinquenta anos aproximadamente –, o qual antipatizava comigo.
Eu era o único aluno que chegava frequentemente atrasado ao São Luís. Nessas ocasiões, chamava-o para que me abrisse o portão e ele me respondia de longe, falando com uma voz fina, muito singular. Eu insistia:
– Sr. Domingos, chegue mais perto! Não estou ouvindo bem!
Ele se aproximava, dizendo:
– Não pode entrar.
– Como não? Onde já se viu?
Então tirava o molho de chaves.
– Só desta vez…
– Está bem!
E o Sr. Domingos sempre acabava abrindo… Creio que recebia ordem dos Padres para facilitar-me a entrada, mas não demasiadamente. Então, ele me criava alguma dificuldade antes de abrir.
Entretanto, um dia eu me havia zangado com ele, pois, tendo chegado atrasado ao colégio e vendo-o com as chaves na mão, pedi-lhe que me abrisse, ao que ele se negou, talvez porque meu atraso fosse excessivo… Então eu disse:
– Eu lhe dou ordem de abrir!
– Não abro!
Passei a mão pela grade e segurei-o pela gola, dizendo:
– Abra esse portão!
Ele acabou abrindo e eu entrei como um turbilhão. Porém, tinha certeza de que seria feita uma reclamação, e, à tarde, algum dos Padres me chamaria. Depois telefonariam para casa, a fim de avisar Dª Lucilia sobre aquela irregularidade… Mas não aconteceu nada. Ou o Sr. Domingos não contou o ocorrido aos Padres ou estes resolveram não tomar nenhuma providência a respeito do caso.
Entretanto, ele era responsável por copiar as notas de algumas matérias nos boletins. É possível que, movido pela raiva, tenha sido ele quem escreveu aquela nota baixa em meu boletim. Trata-se apenas de uma vaga hipótese.
Apesar de tudo, graças a Deus e pela intercessão de Nossa Senhora, o problema estava esclarecido no colégio. Mas, se o Reitor não tivesse o cuidado de verificar pessoalmente e tirar a limpo o que havia acontecido, talvez eu teria ido parar no Caraça…
Reconciliação e perdão
Mamãe e eu, cada um a seu modo, estávamos ansiosos pela volta de meu pai.
Afinal, ele chegou a casa. Respirava fundo e padecia pelo calor, pois o dia era muito quente, mas apresentava uma fisionomia segura e tranquila, nada carrancuda. Colocou sobre um móvel a pasta com papéis que trazia na mão e parecia preocupado com um chaveiro, o qual não estava funcionando bem, a tal ponto que nem percebeu a minha presença.
Olhei a fisionomia dele e pensei: “Se está pensando no chaveiro em vez de preocupar-se comigo, é porque tudo correu bem!”
Ele se dirigiu a mamãe, no estilo dos antigos pernambucanos:
– Senhora, aqui está o boletim de vosso filho.
Ela tomou logo a caderneta e disse:
– João Paulo, diga logo! O que houve?
Eu estava “de orelha em pé”…
Com sua calma característica, papai respondeu:
– Não tem nada! Foi uma bobagem do rapaz.
Mamãe disse:
– Mas, conte qual foi a bobagem.
– O Padre Reitor, com quem eu estive conversando, deu muita risada quando viu a borradela no boletim. Disse que deveria haver um engano na cópia, pois, em geral, o Plinio é de uma correção excepcional nas aulas. Então, mandou ver os apontamentos do colégio e, depois de algum tempo, verificou que, de fato, a verdadeira nota de comportamento do Plinio era dez. Eu mesmo a vi!
Ele continuou, dizendo-me:
– De maneira que o Reitor estava disposto a registrar no boletim, com a letra dele, a nota dez para você.
Papai terminou o relato. Eu atribuía todo aquele esclarecimento a uma ação de Nossa Senhora…
Então, quando mamãe entendeu que o assunto consistia apenas numa trapalhada de criança, pareceu muito aliviada: a sua implacabilidade se dulcificou e ela mudou de atitude imediatamente. A ponte da reconciliação estava estendida! Abriu os braços para mim e disse:
– Filhão, agora venha aqui, pois sua mãe vai lhe dar um beijo.
Voei em direção ao pescoço dela, cobri-a de beijos e abraços, e ela também me osculou. Eu percebia bem que ela estava muito alegre por verificar a minha inocência e o meu comportamento modelar nas aulas de Geografia. Entretanto, essa alegria não era puramente instintiva nem se devia apenas ao fato de ela ser minha mãe, mas provinha de motivos muito razoáveis e elevados, como se dissesse: “Eu lhe quero bem por ser meu filho, mas, sobretudo, porque tenho afinidade com você no amor à virtude, a qual participa de Deus”.
Após me abraçar e beijar, ela disse:
– Agora, preste muita atenção no que sua mãe vai lhe dizer. Desta vez eu deixo passar, e você vai continuar cursando no Colégio São Luís, mas não faça mais a bobagem de alterar notas, pois é muito feio! E, se alguma vez você repetir isso, não tenha a menor ilusão: vai para o Colégio Caraça! Veja bem o que faz! Falsificar, nunca mais!
Por fim, ela disse:
– Você promete a mamãe que nunca mais fará uma coisa dessas?
Eu pensei: “Que Nossa Senhora me ajude, para não fazer outra burrice desse gênero!” E respondi, com toda a sinceridade de minha alma:
– Nunca mais!
– Então, dê mais um beijo a mamãe.
E, com aquele afeto dulcíssimo que ela manifestava quando eu me comportava bem, disse-me:
– Agora, está tudo acabado. Não vamos mais pensar nesse caso.
Era o grande perdão e o grande alívio! Fez-se a paz em casa. Retirei-me e, daí a pouco, estava brincando no jardim e pensando em outro assunto. A questão da nota estava resolvida, mas essa foi para mim a menor das vantagens recebidas, nesse episódio que mudou a minha vida.
Os benefícios de um sorriso
Em primeiro lugar, adquiri o temor reverencial em relação a mamãe, o que foi um benefício.
Por outro lado, aquela graça me favoreceu para amá-la mais, por causa da perfeição moral que notei nela na ocasião. E as minhas relações com ela passaram a ter um sentido mais sobrenatural, pois compreendi que seu amor materno, sua bondade e doçura provinham de Nossa Senhora, como meros efeitos de uma causa transcendente a qual estava incomparavelmente acima dela.
A terceira vantagem consistiu em compreender melhor a gravidade do pecado, no relâmpago daquela crise.
E a mais importante – a qual vale todas as vantagens da Terra e algumas do Céu – foi ter “descoberto” Nossa Senhora. Minha devoção a Ela, entranhada, filial e fervorosa, começou nessa ocasião e eu a devo a mamãe, cuja severidade me atirou nos braços de Nossa Senhora. Foi preciso receber um bom e merecido susto, para que meus olhos se abrissem e eu compreendesse por inteiro a bondade e a misericórdia d’Ela, numa espécie de contato pessoal, indefinível e indescritível, como se eu tivesse, de fato, conhecido Nossa Senhora.
“A respiração de minha alma”
A partir desse dia, Ela estabeleceu comigo uma relação de bondade e eu jamais perdi a confiança n’Ela. Fiquei calmo para a vida inteira, pois, fosse o que fosse, uma vez que me sentia envolvido por essa misericórdia, podia descansar.
A Salve Regina passou a ser a respiração de minha alma e, se eu duvidasse da misericórdia e da benevolência de Nossa Senhora, imediatamente perderia a segurança e talvez me desintegraria! Sem a devoção a Nossa Senhora eu não valeria dois caracóis, pois Ela é minha força, e a pena que teve de mim naquela ocasião de crise é a mesma que Ela sempre tem manifestado ao longo dos meus dias. Em todos os transes de minha vida não deixei de pedir forças a Nossa Senhora, e jamais Ela me recusou essas forças de que eu precisava. Em todas as aflições, a coragem nunca me faltou, porque Ela me ajuda, porque um dia resolveu ouvir a oração de um menino aflito!
Na realidade, naquele momento em que fui empurrado para a nave lateral da Igreja do Sagrado Coração de Jesus, tinha encontrado aberta para mim a porta do Céu! Posso dizer que, verdadeiramente, nasci nesse dia.
De tal maneira que, nas mil ocasiões posteriores em que recebi graças de devoção a Nossa Senhora, eu sempre reconhecia nelas o nexo com essa graça primeira, e a confirmação daquele perdão d’Ela, dado com crescente misericórdia, sem eu merecê-lo, ou excedendo os méritos que porventura eu tivesse. Nunca mais olhei para uma imagem ou estampa de Nossa Senhora sem que, de modo direto ou implícito, essa lembrança aflorasse imediatamente ao meu espírito. Então, revivia aquela sensação e, assim, cheguei até uma idade muito avançada, sempre devoto d’Ela e sempre rezando especialmente a Salve Regina, muitas vezes dando à palavra salve o mesmo sentido que lhe dei então – infantil, ingênuo e errado – mas que corresponde ao apelo de minha alma: “Salvai-me, Rainha! Salvai-me agora, neste momento, nesta situação e nesta ocasião, eu vos peço!”
Inclusive nas horas de lazer rezo a Ela, já não mais para me salvar, mas para dizer-lhe o quanto a quero.
Novas forças para a luta
Além do mais, naquele tempo eu estava lutando muito para me manter fiel em matéria de pureza, mas sentia-me pavorosamente fraco e débil. Sem ter propriamente momentos de desânimo, pareciam faltar-me as energias para a luta.
Pois bem, quando apareceu para mim o “arco-íris” do sorriso de Nossa Senhora Auxiliadora, compreendi que, rezando a Ela, eu obteria a perseverança na pureza e poderia ser um verdadeiro leão de energia. Então, comecei a pedir: “Minha Mãe, eu vejo que Vós sois ao mesmo tempo virginal e forte. Eu quero ser puro e forte como Vós! Revesti minha alma de santa indignação contra o mal, de forças, de coragem, de lógica e de coerência!”
Ela interveio e me deu forças novas. Aquele furacão das tentações foi apaziguado e empurrado de lado, e eu comecei a gozar de um período extremamente agradável de tranquilidade, de segurança e de paz no hábito da prática da castidade. Eu sentia que a graça da pureza era um prolongamento da minha inocência batismal, e que essa virtude – guardada com esmero e sem nenhuma forma de concessão no pensamento, no olhar e tudo o mais –, além de encher-me de felicidade, tornava a minha inteligência mais ágil e lúcida, com penetração mais profunda e fazendo correlações com maior facilidade.
A devoção a Nossa Senhora fez-me perseverar na pureza e espero que Ela me conserve assim até a morte! Adquiri para todo o sempre a persuasão de que, sem o auxílio da graça de Deus, é impossível ser puro.
A bem dizer, eu tenho vivido desse primeiro sorriso que recebi de Nossa Senhora Auxiliadora, o qual permaneceu como um sol para a minha vida inteira, como se tivesse sido ontem!
Que saudades eu tenho desse sorriso! Que Ela me ajude a não esquecê-lo jamais! Espero que minha devoção a Ela não deixe de crescer até o momento de entregar a minha alma a Deus e que, em meu último alento, ainda eu diga: “Salve, Rainha, Mãe de misericórdia!”
1 Sl 41, 8.
2 Em italiano, de modo figurativo: confusão, desordem.
3 Em francês: bandido, sem-vergonha.
4 O Seminário Diocesano, situado na Avenida Tiradentes, no Bairro da Luz, foi fundado em 1856 pelo Bispo de São Paulo, D. Antônio Joaquim de Mello. Em 1858 foi instalado o Colégio Diocesano no mesmo prédio, sendo entregue aos cuidados dos Irmãos Maristas em 1908, quando D. Duarte Leopoldo e Silva, primeiro Arcebispo de São Paulo, governava a Arquidiocese. Tornou-se então Colégio Arquidiocesano.
5 Fundado pela Congregação da Missão em 1820, nas proximidades de Mariana.
6 O Liceu Coração de Jesus, localizado junto ao santuário do mesmo nome, no Bairro do Bom Retiro.
7 A mesma que se encontra atualmente no Santuário do Sagrado Coração de Jesus, acima do altar da nave lateral mencionada pelo Autor. Em data posterior aos fatos aqui narrados, a imagem foi adornada com algumas discretas bordaduras douradas, pintadas nas orlas do traje e em outros pontos. Essa é a única diferença visível em relação ao seu aspecto no tempo da infância e da adolescência de Plinio.
8 Em latim: um dentre o povo.
9 Em francês: decisão tomada de antemão a favor de alguém, antes de conhecer determinado fato.
10 O Pe. João Batista du Dréneuf, SJ. Cf. Volume II desta coleção, p. 222.
11 O Pe. Miguel Cerdá, SJ, era professor de Geografia e de Latim. Cf. Volume II desta coleção, p. 259.
Comment (1)
Linda história do Doutor Plinio Corrêa de Oliveira. O conheci muito bem. Pessoa extraordinária!