Uma senhora de sociedade inteiramente voltada à devoção
Em Dona Lucilia se notava a união da sociedade espiritual com a temporal. Ela era uma senhora de sociedade e não uma freira. Mas de tal modo estava embebida das graças recebidas do Sagrado Coração de Jesus, que ambas as condições se interpenetravam: a de senhora de sociedade e a de uma alma dada completamente à piedade.
Em minha infância, no contato contínuo entre mãe e filho,
ainda mais um filho naquela tenra idade, eu sentia em Dona Lucilia algo que
depois, ao longo da vida, não fez senão confirmar-se: aquela doçura de um
espírito, de uma alma elevada a altas cogitações.
Elevação, bondade, perdão sem limites, soledade
Não era apenas a doçura de uma pessoa dotada de um bom gênio,
bom humor, e que trata as pessoas bem, mas uma coisa muito mais alta do que
isso. Era o bom gênio, o humor afável e acolhedor dela, como que penetrado por
um raio de luz que tornava a bondade de mamãe tão à maneira da bondade de Nosso
Senhor Jesus Cristo, que eu percebia perfeitamente ser-lhe dado por Ele, como
se tirasse de um sol um raio e dardejasse com ele uma alma. A alma não ficaria
com todos os raios daquele sol, mas ela ficava cheia daquele raio que recebeu.
Assim, ela nem de longe tinha todas as virtudes de Nosso
Senhor Jesus Cristo, a não ser em grau que um católico praticante bom deve
possuir. Mas havia uma presença de elevação, de tristeza, de bondade, de perdão
sem limites, de soledade em torno dela. Uma soledade que não era o vazio. Ela não
tinha em torno de si o vácuo, a soledade dela era toda saturada, impregnada
pela irradiação de sua bondade.
Conhecendo isso nela, eu tinha uma espécie de confirmação
tangível de como era no Sagrado Coração de Jesus. E vendo como n’Ele era em
grau infinitamente maior, e em mamãe uma coisa semelhante, isso me confirmava
também na Fé. Quer dizer, tanto é verdade que Ele é assim que ela, à força de
rezar a Ele, ficou com algo disso. De maneira que era uma ação reversível, meio
em pêndulo: olhando para as imagens d’Ele, mais de uma vez eu me lembrava dela;
e olhando para ela, mais de uma vez eu me recordava d’Ele.
Vinha daí uma espécie de querer bem a ela, que era um querer
bem a Ele nela. Eu queria imensamente bem a ela, mas a razão principal era
porque, olhando-a, nela eu via a discípula d’Ele.
É preciso dizer o seguinte: nunca notei nela o menor desejo
de imitá-Lo fisicamente, que seria inteiramente insuportável, intolerável.
Minha amizade, meu afeto por ela se partiria em estilhaços se eu notasse uma
coisa assim. Não era isso, mas propriamente o que a Doutrina Católica nos
ensina de uma alma boa, reta, muito sobrenatural, e que recebia esse
embebimento d’Ele.
Impossibilidade de se inventar um Homem-Deus
Isso me animou a vida inteira. Nos maiores reveses e aborrecimentos
dava-me sempre algo que me alegrava. Era um lado de minha vida, por assim dizer
um jardim onde nunca penetrou o oposto. Vinha-me daí um sentimento de apoio
muito grande.
Eu percebia também que, perante os que queriam me perder,
mamãe tomava uma atitude a qual suponho nunca ter chegado às falas, mas deixava
claro que, se eles me levassem para o mal e daí resultasse uma coisa que ela
visse, mamãe criava um caso, mas um desses casos que seria histórico na
família! E eles tinham medo de enfrentar. Essa energia tinha algo de afim com a
bondade dela. Essa era a energia inquebrantável da qual Dona Lucilia dava
provas em certas ocasiões.
Tudo isso era para mim muito formativo. Creio que de algum
modo se comunicava a mim. E essa é a prova de que a bondade era verdadeira, não
tem dúvida nenhuma.
Lembro-me de que a primeira vez que eu soube existir gente
que punha em dúvida a divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo, fiquei pasmo! A
minha reflexão era a seguinte: “Mas eles não veem em qualquer imagem que Ele tem
que ter existido, e que Ele foi Deus? Porque isso não se inventa! Ninguém é
capaz de inventar, nem esse Homem, nem esse Deus! Ou isso foi visto, ou não
existiria!”
De fato, não há possibilidade de se inventar um Homem-Deus,
que represente tão bem o papel que um Homem-Deus pode ter tido. Isso não pode
ter sido produto de uma imaginação, mas sim produto da realidade. Só um
Homem-Deus seria capaz daquilo, e o Homem-Deus só poderia ser assim. Mas isso
não haveria homem que inventasse. Não me venham com conversa, porque eu não
acredito. Tal indivíduo foi um grande pintor, outro um grande escultor, um
terceiro um grande desenhista. Mas inventar isso, não se inventa!
Ademais, todas as imagens d’Ele, sobretudo enquanto Sagrado
Coração, refletem algo que está ligado à devoção ao Sagrado Coração de Jesus, e
têm toda a comunicatividade de que falava Santa Margarida Maria Alacoque, que
foi a que recebeu as revelações. Quer dizer, as próprias imagens d’Ele são
comunicativas.
Aliás, a imagenzinha do quarto de Dona Lucilia, embora não
tenha valor econômico apreciável, possui alguma coisa que, a meu ver, a imagem
que fica na sala de visitas não tem. Esta última é mais fina, esculpida em
alabastro; entretanto, a do quarto dela tem outra comunicatividade.
De manhã, Ela passava horas rezando no quarto. Eu acho que
ela fazia uma espécie de transfert do que havia naquela imagem para a de
alabastro, atribuindo a esta o que via naquela. E mamãe rezava muito, mas muito
também junto à imagem da sala de visitas.
Alegria com um fundo de tristeza
A Igreja do Coração de Jesus tem no teto uma pintura
representando a aparição de Nosso Senhor a Santa Margarida Maria Alacoque.
Passei uns trinta ou quarenta anos indo àquela igreja sem prestar uma especial
atenção naquela cena.
Uma das últimas vezes que lá estive, olhei para ela e dei-me
conta de uma coisa curiosa: ao contemplar aquele quadro, outrora, embora eu
formasse dele uma ideia objetiva, Nossa Senhora ajudava o meu espírito de
menino a mitificar, sublimar o quadro. E essa sublimação me fez muito bem,
porque fazia-me sentir, às torrentes, a graça vinda do Sagrado Coração de
Jesus, sobretudo a graça com o aspecto da tristeza. Então, aquela frase: “Eis o
Coração que tanto amou os homens, e por eles foi tão pouco amado…” Como pode
ser que a tristeza adorne tanto a alma d’Ele, a tal ponto que até não se
compreende beleza de alma em alguém se não houver sempre um recanto de
tristeza?
Então, ao contrário do modo de apreciar as coisas hoje em
dia, vendo uma pessoa inteiramente alegre, e na qual não se note nada de fundo
de tristeza, essa pessoa para mim, a priori, se anuncia como não amiga da Cruz.
Ora, para o comum dos homens de hoje, a pessoa na qual se note um pouco de
tristeza é empurrada de lado, porque ninguém quer saber da tristeza. Têm
interesse tão somente pela alegria, querem que se seja engraçado; e a tristeza
é a grande rejeitada, porque é rejeitada a Cruz.
As coisas mais ou menos no tempo de mamãe, e da geração da
mãe dela, embora fossem festivas, à medida que afundam no passado tomam ar de
uma tristeza digna, bonita. O Quadrinho1 é a expressão disso.
Uma senhora de sociedade, embebida de muitas graças
Há um aspecto em Dona Lucilia que é preciso ver bem. É a
sociedade espiritual embebida na temporal. Porque ela está no seu papel de uma
senhora de sociedade, e não tem nada de uma freira, de uma religiosa. Seria
muito nobre que fosse. Santa Joana da Chantal, fundadora, juntamente com São
Francisco de Sales, de uma ordem religiosa feminina, ficou freira depois de
viúva. Lucrou com isso, foi uma grande vantagem.
Mas Dona Lucilia era uma senhora de sociedade, embebida
inteiramente dessas graças recebidas do Sagrado Coração de Jesus. De maneira
que ambas as condições se interpenetram: a de senhora de sociedade e a de uma
alma dada inteiramente à piedade, à devoção.
A meu ver, o conceito de senhora começou a morrer com a
geração dela, a qual ainda usou os atavios, os arranjos num grau mínimo que
visavam fazer sentir que uma dama era senhora. Nas épocas anteriores isso havia
mais intensamente; mas no tempo em que mamãe viveu ainda existia. E nas épocas
posteriores, começou a senhora a ser obrigada a usar adornos que já contestavam
o senhorio, mas que ficariam mal para Dona Lucilia. De maneira que ela não
poderia caminhar nesse rumo sem se desmentir.
Porque isso era uma característica muito marcada nela; na
medida em que ficasse mais cercada das condições e do aparato de senhora, mais
ela estaria normal.
Um tule simbólico
Naquela fotografia tirada em Paris, em que mamãe está em pé
segurando um tule, quem conhece as modas e os costumes do tempo vê que tudo era
daquela época, mas que o modo de usar, a atitude dela e, sobretudo, a expressão
do olhar eram mais antigos do que a moda. Ela transcende, de alguma maneira, a
moda.
Mais ainda, aquele tule com que ela se fez representar, é
curioso, as senhoras não usavam. Foi um adorno que ela imaginou para dar o que
julgava ser inteiramente a expressão dela. Tem qualquer coisa de vaga
reminiscência do estilo antigo, quando as senhoras, usando vestidos com cauda
ou saia-balão, constituíam um ambiente em torno de si. Aquele tule, que não é
de um tecido finíssimo, tem qualquer coisa que substitui e ainda prolonga isso:
é o ambiente que a senhora traz em torno de si.
O tule está muito bem calculado, porque tem exatamente o
tamanho que deve ter, a curva que ele faz de uma mão para outra é bem como deve
ser. Ademais, na fotografia se percebe bem tratar-se de um tule, não há dúvida
nenhuma; e tule é o único tecido que, sendo carregado, poderia permitir o gesto
leve da mão, sem dar a impressão de estar carregando um pano pesado.
As pessoas talvez não calculem como o quadro perderia sem o
tule, o qual é um símbolo de um dos aspectos da alma de Dona Lucilia. Creio que
ela não tinha uma intenção explícita, mas fez aquilo intuitiva,
instintivamente.
Ela estava permanentemente meditando
Algumas impressões causadas pelo quadro lucram em ser
explicitadas. Eu inúmeras vezes olhando para aquilo, aos poucos, fui
explicitando.
Por exemplo, mamãe era um pouco baixa, e eu até brincava com
ela a esse respeito. No tempo dela, senhoras baixas como ela eram frequentes.
Mas o fotógrafo, inteligente, a interpretou muitíssimo bem e arranjou para ela
um degrau exatamente do tamanho necessário para a estatura, o olhar e o porte
dela.
Em relação àquele fundo representando a entrada de uma
ópera, uma coisa assim grandiosa, palaciana sem ser um palácio – é um teatro
apalaciado, como era o Ópera de Paris, por exemplo –, ela está colocada de
maneira a não parecer pose, mas um pouco négligée, um pouco por acaso, mas é o
“por acaso” idealmente escolhido pelo olho francês para ela ficar bem como era.
Aquele homem interpretou, inclusive, a virtude dela muito bem.
Mamãe estava permanentemente meditando, com o espírito posto
numa determinada clave, a qual tinha muito a ver com o Sagrado Coração de
Jesus. Ela não dizia, nem saberia dizer, porém isso se irradiava de toda a sua
pessoa e lhe dava aquela doçura discreta de personalidade, mas também uma
profundidade que, por exemplo, o Ancien Régime não comportava e detestava.
No ambiente da Idade Média, muito mais sério, poderíamos
imaginá-la melhor, pois ali ela quase que estaria in sede propria. Isso porque
o romantismo sentimental do tempo dela – não considerado enquanto filosofia,
mas como capítulo da história das almas –, que a marcou de algum modo, tinha em
alguns aspectos uma seriedade, que é a dela e representa o aspecto gótico do
romantismo. Havia veios bons do romantismo, e estes tinham qualquer coisa de
“goticizante”. Assim, poderíamos imaginá-la na Catedral de Notre-Dame rezando;
ela estaria inteiramente à vontade.
O tom de sua voz podia ser comparado a um órgão
Entretanto, naquela fotografia em Paris aquilo tudo vai tão
bem com ela porque, propriamente, é a fotografia do seu tempo e onde ela era
aquilo. Ou então, em outra foto, na qual ela está sentada num banco de madeira,
pensando. Ela está tão bem expressa ali que teríamos dificuldade em imaginá-la
vestida com outros trajes, como ela chegou a vestir. Porque uma adaptação ela
teve que fazer. Ela não poderia, por exemplo, ir ao dentista vestida como está
naquela fotografia. Mas era uma adaptação de tal jeito que ela como que
ignorava a roupa que estava vestindo.
Porém, naquelas fotografias ela não ignorava; percebia a
harmonia com ela e se sentia bem. Em relação aos vestidos mais recentes, ela
ignorava e prolongava o estado de espírito com que ela está até no Quadrinho.
Esse era o modo de ser dela.
Mamãe falava do Sagrado Coração de Jesus sem descrevê-Lo,
propriamente. Mas no modo de ela dizer: “Rezei ao Sagrado Coração de Jesus”, ou
“Fiquei muito aflita, dirigi-me a Ele”, nisso entrava implicitamente uma
descrição d’Ele.
Era preciso ter ouvido a voz dela para entender bem. Mamãe
não falava alto, mas tinha um aveludado na voz tão sonoro, tão meigo, que
poderia até certo ponto ser comparado a um harmônio ou um órgão. Não é dizer
que fosse uma voz de um timbre próprio a uma cantora, nunca. Tinha uma certa
musicalidade, não de artista, mas psicológica. O timbre de voz era agradável,
sem ser extraordinário, com qualquer coisa de psicológico que exprimia tão bem
tudo quanto ela sentia.
A luminosidade de seu olhar
Isso se fazia notar no timbre de voz, na impostação, e até
no português utilizado por ela. Não um português ornado; eram as palavras da
vida corrente, mas sem nenhum erro. Frases de uma construção muito simples,
porém inteiramente corretas; vocabulário fácil. Mesmo no estado de semilucidez
do fim da vida, nenhuma vez a vi à procura de uma palavra. Aquilo ia com
naturalidade. Mas ela não se apressava para contar, não corria, e não amarrava,
ia devagar. Era uma velocidade exatamente adequada ao que conviria.
No modo afável de tratar as pessoas, ela era muito amável.
Porém, conservava uma atitude por onde não era possível faltar-lhe com o
respeito. Nem passava pela cabeça de alguém desrespeitá-la.
O olhar dela era aveludado, de um marrom muito escuro que
tomava uma luminosidade conforme o grau de intensidade com que ela queria
caracterizar, marcar o que ela dizia. Quando ela estava alegre, era uma luz
meiga, envolvente; quando tomava a coisa muito a sério, estava impressionada, o
olhar adquiria uma tonalidade de um escuro carregado, bem definido.
O olhar dela era aveludado, de um marrom muito escuro que tomava uma luminosidade conforme o grau de intensidade com que ela queria caracterizar, marcar o que ela dizia. Quando ela estava alegre, era uma luz meiga, envolvente; quando tomava a coisa muito a sério, estava impressionada, o olhar adquiria uma tonalidade de um escuro carregado, bem definido.
Ao percorrer com o olhar de uma coisa para outra, fazia-o
com um movimento tão temperante que parecia com os passos dela: um caminhar um
tanto rápido, mas apesar disso muito compassado.
Um raio de sol incide sobre a cruz feita de flores
A este respeito me comoveu um episódio ocorrido por ocasião
da Missa de sétimo dia do falecimento de mamãe. Quando ela morreu, pedi a Nossa
Senhora que me desse a certeza de que ela tinha saído do Purgatório. Porque
evidentemente me atormentava muito a ideia de que ela pudesse estar sofrendo.
E quando houve o fato daquele raio de luz que incidiu sobre
as orquídeas que ornavam o centro de uma cruz feita de flores, o modo pelo qual
o raio de luz, de repente, pôs-se a mover e saiu, era como se ela saísse de
dentro do meu campo visual, com aquela ligeireza. Mas era o passo ligeiro e ao
mesmo tempo calmo dela, não um passo de corridinha vulgar. Era o passo de uma
consciência leve. Podia carregar qualquer peso, mas não o do pecado, nem o da
raiva, do ódio, da inveja, essas amarguras assim.
A luz cresceu em intensidade enquanto incidia sobre a cruz.
De maneira que, em certo momento, aquelas flores ficaram carregadas de tal
intensidade luminosa, que as orquídeas pareciam estar iluminadas por dentro. E
foi lentamente se evanescendo, mas com a suavidade que mamãe punha nas
transições dela. Depois saiu “andando”.
Não creio que se possa falar em milagre, mas foi um fenômeno
onde o sobrenatural estava patente. Claramente um sinal. Aliás, propriamente o
pedido que fiz a Nossa Senhora foi o seguinte: “Eu tenho consciência de ter
sido para com ela muito bom filho. Assim, invoco minha condição de bom filho
para Vos pedir que me deis um sinal de que ela não está no Purgatório. Em nome
do bom filho que fui, e o que sei que Vós apreciáveis, eu Vos peço isso.”
Como aquele raio, por assim dizer, se perdeu dentro da
parede, assim também Dona Lucilia partiu. Mas de um modo tão característico
dela, que era um último carinho. v
Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 15/4/1989)
1) Quadro a óleo, que muito agradou a Dr . Plinio, pintado
por um de seus discípulos, com base nas últimas fotografias de Dona Lucilia.
Cf. Revista Dr. Plinio n. 119, p. 6-9.
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