Estudando Latim
Naquele tempo, as famílias que enviavam seus filhos aos colégios estavam persuadidas de certa ideia muito verdadeira: para conferir ao espírito humano a clareza, a determinação e a força necessárias, era altamente útil estudar o Latim.
Pe. Cerdá, professor de Latim
Meu professor de Latim era um jesuíta espanhol, o Pe. Miguel Cerdá, homem da geração dos meus avós, notavelmente inteligente. Sussurrava-se no colégio que era de uma família de alta nobreza, das Ilhas Baleares. Ele nunca dizia isso, mas parecia-me perfeitamente possível pelo seu jeito.
Era também professor de Geografia e de História. Falava muito bem o Português e o Francês, mas admirava tanto a Itália, que se impregnou inteiramente da cultura dessa nação e sabia o Italiano na perfeição.
Era um homem cheio de corpo e tomava um ar teatral. Ensinava com muita personalidade e os alunos acompanhavam bem as aulas dele. Os mais inteligentes dos meus colegas, mesmo sendo ateus, eram entusiastas dele, pois parecia possuir a plenitude daquilo que era chamado de “Humanidades”.
Lembro-me dele, com seus olhos verdes, falando a respeito das conquistas de Garibaldi e vibrando muito com esses acontecimentos. Em certo momento, ele mencionou um porto dos antigos Estados Pontifícios, dizendo:
– Civitavecchia!
Foi até o quadro negro e escreveu com giz, numa letra perfeita: “Civitavecchia”. E eu sentia o odor da maresia, o gosto dos mariscos, as ondulações do mar, a praia, os navios ordinários e de baixo calado, e os italianos cantando, sentados sobre montes de alface e de couve… Tudo isso, só pelo modo de ele dizer “Civitavecchia”.
Lembro-me também da expressão “la naturalità de la cosa”1, muito utilizada por ele e por outros professores do São Luís, realmente italianos.
Um episódio narrado com entusiasmo
Certa vez, ele nos contou como haviam sido os primeiros dias dele na Companhia de Jesus. Entrou nela sendo mocinho, foi tratado com muita gentileza e, em certa ocasião, foi apresentado ao Geral.
Toda a comunidade estava enfileirada para receber a visita deste, o qual passava com seriedade e recolhimento, analisando todos e dando-lhes um pequeno cumprimento. Na ponta da fila, num canto, havia três aspirantes a jesuítas, esperando. Pode-se imaginar o que significava esse momento para um jovem de dezoito ou dezenove anos que estava entrando na Companhia! Era o próprio Geral que ia passá-lo em revista…
O nosso professor contava que este se aproximou, parou diante deles e passou uma fenomenal descompostura em cada um. Eles permaneceram imóveis. Depois, soube-se que o Padre Geral dissera, antes de sair:
– Dá para começar…
E o mestre de noviços explicou-lhes:
– Se um de vocês tivesse dado algum sinal de emoção, teria sido excluído da Companhia, pois não serviria para ser jesuíta.
Aquela cena me parecia ter uma tal classe, que dispensava qualquer comentário! O Pe. Cerdá narrava o episódio com transportes de entusiasmo e eu me perguntava como seria a Companhia de Jesus por dentro…
Analisando trechos de Virgílio
Esse professor se mostrava encantado com certas frases latinas, que lhe pareciam verdadeiras belezas. Para mim, elas eram dignas de certo apreço, mas não me extasiavam.
Por exemplo, ele repetia uma das poesias de Virgílio, a qual falava de certo personagem, um daqueles flibusteiros mitológicos, que acertara uma flecha no alvo, a qual permanecera tremendo depois de bater. Então dizia:
– Stetit illa tremens2!
Stetit – ficou. Illa – ela. Tremens – trêmula. Realmente, era um modo quase musical de indicar a vibração, o tremor de uma flecha, atirada de uma distância não muito grande e fixada num alvo, o qual parecia haver-lhe cortado o voo, inopinadamente. Ele explicava:
– Sintam a beleza do Latim! Nós temos a impressão de ver a flecha tremer, com essas palavras: Stetit illa tremens!
Eu não via razão para tanto encanto e pensava: “Ele se entusiasma, porque uma seta tremeu…?”
O mesmo poeta, em certo trecho, descrevia uma tempestade desencadeada a partir de uma gruta imaginária, da qual saíam todos os ventos. Então empregava as seguintes palavras:
– Eurusque notusque ruont3.
O Euro e o Notus eram ventos que, segundo a expressão do poeta, rugiam. E a frase produzia o efeito do rugido, para dar a entender a grandeza do fenômeno… O professor de Latim ia ao quadro negro, escrevia “Onomatopeia” e depois dizia:
– Isto é uma figura onomatopaica: o ruído dos ventos foi genialmente expresso por Virgílio!
Eu achava aquilo interessante e bem arranjado, mas não tinha propriamente entusiasmo…
Lembro-me de outra frase de Virgílio, que o Pe. Cerdá se comprazia em repetir:
– Rari nantes in gurgite vasto4!
Ou seja: “Eram raros os que nadavam na vastidão do mar”. Isso era dito após a narração de um naufrágio. Enfrentando forte tempestade, a frota de Enéas perdera vários navios e muitos marinheiros morreram, permanecendo alguns poucos na imensidão do mar.
O professor também gostava muito de citar um outro verso, o qual tratava de uma mulher que conversava com Enéas. Este, admirado com ela, percebeu tratar-se de uma deusa, pois ela se manifestara como tal pelo modo de andar:
– Vera incessu patuit dea 5!
A frase parecia comum e banal, mas o professor no alto da cátedra imitava a cena muito bem e, através da teatralidade dele, compreendi que havia ali uma beleza especial, da qual nunca mais me esqueci. Era a ideia de uma pessoa, andando com tal soberania, que se revelava numa pequena manifestação, fazendo os outros vislumbrarem uma totalidade que ainda não conheciam e causando-lhes, assim, uma espécie de pequeno êxtase, o qual valia mais do que muitas descrições.
“As causas das coisas”
Eu era obrigado a fazer traduções do Latim e coube-me uma frase da Geórgica de Virgílio: “Félix qui potuit rerum cognoscere causas”6.
Quando li esse verso, entendi imediatamente o que significava: “Feliz aquele que consegue conhecer as causas das coisas”. Tive um sobressalto e um pequeno estremecimento, fiquei entusiasmadíssimo com a frase, julgando-a fenomenal, e resolvi aprendê-la de cor, pois, já naquele tempo, eu sentia algo dentro de mim que ansiava por conhecer habitualmente as causas das coisas, e procurava adestrar-me nessa análise.
A concatenação quase infinita das causas e dos efeitos no proceder e no agir humanos me interessava como algo fascinante e eu sempre me perguntava: “Por que isso é assim? Por que aquilo é diferente? Por que tal coisa aconteceu assim e não de outro modo? Por que tal homem pensa de tal maneira? Por que um odeia o outro? E por que esse é amigo daquele outro?”
Notava que muitas pessoas da minha geração, pelo contrário, desdenhavam as causas das coisas como pertencentes ao passado, pois se interessavam apenas pelos fenômenos presentes.
Então, ao encontrar aquela estrofe, pensei: “Está vendo? Isso tem valor e está bem pensado! Se pudesse conhecer o mais alto significado, a meta última e essencial das coisas, que vantagem tiraria! Quem sabe se, quando for mais velho, conhecerei as causas de algumas coisas?”
“Animula vagula blandula”
Também aprendi no curso de Latim uma expressão proferida a respeito de uma certa alma, que flutuava no ar: “Animula vagula blandula”7, expressão que eu traduzia como “almazinha vagazinha e brandazinha”, o que me parecia denominar uma personalidade incerta, indecisa e sem capacidade de tirar conclusões. Uma nulidade, que eu desejaria afastar com um gesto de mão!
E pensava: “As almas definidas viveram, enquanto as almas indefinidas não viveram, mas arrastaram-se pela vida e foram rascunhos de pessoas…”
As Catilinárias
Nesse tempo conheci as Catilinárias8 de Cícero, sobretudo a primeira, cuja tradução em Português eu li quase inteira.
Catilina era um conspirador, contra o qual Cícero pronunciou discursos no Senado, com aquelas palavras conhecidíssimas, entre outras: “Quousque tandem abutere, Catilina, patientia nostra?”– “Até quando, Catilina, abusarás da nossa paciência9?”
Lembro-me vagamente de certas perguntas que o orador dirigia ao acusado, a respeito de patrulhas noturnas, e idas e vindas dentro do mistério: “Crês, ó Catilina, que Roma inteira ignora isso…?”
Eu lia e às vezes pensava: “Por que não interrompem esse discurso? Não é preciso argumentar tanto! Estão perdendo tempo!” Mas, prestando atenção, percebi haver naquilo uma grandeza com sonoridades magníficas, pela qual eu tinha a impressão de ver Catilina sentado num banco, tremendo de medo e com a fisionomia envergonhada, e Cícero com o braço erguido.
Eu tinha uma enorme admiração por Cícero, e os próprios discursos dele davam-me a ideia do timbre de voz e do estado de espírito com que eles deviam ser declamados. Sentia a magnífica calma dele na sua indignação, que me parecia feita de bronze. Era para mim um cume do talento humano!
Diante de tal genialidade, pensava: “Ele não inventou esse estilo, mas já nasceu sabendo! Creio que, sendo pequenino, quando ele queria mamadeira, estendia a mão e dizia a uma serva: ‘Mamadeira ainda, por que não deste, ó serva, ao filho de teu senhor?’”.
Pelo contrário, Catilina era um nervoso, correndo de um lado para outro, fazendo intrigas e importunando todo o mundo. Apesar da minha tranquilidade, eu torcia por Cícero contra Catilina e pensava: “Eu quereria encontrar na minha vida algum Catilina para fazer discursos assim, mas não tenho talento para isso!”
A Guerra de Troia e a mitologia germânica
Em certa ocasião, na sala de aula, o padre perguntou quais alunos conheciam a história da Guerra de Troia. Logo levantei a mão numa atitude decidida – com a segurança do nordestino que “sabe tudo” – e o professor mandou-me começar a narração.
Entretanto, cometi algumas falhas: quando falei do personagem chamado Heitor10, pronunciei Héctor. Percebi uma certa antipatia da parte dos colegas, mas não entendia a razão e, continuei, dizendo:
– Tzois resolveu a favor de Aquilois…
Armou-se então um verdadeiro escândalo! Deram-me vaias, mas eu enfrentei a classe:
– É isso mesmo!
Não tinha percebido que estava pronunciando os nomes ao modo alemão, o que desagradara os alunos… Eu havia aprendido a história de Troia com a Fräulein Mathilde, a qual germanizava os nomes, dizendo Héctor para designar Heitor, Aquilois em lugar de Aquiles11 e Tzois em vez de Zeus12. Na narração dela, todos eles tinham características alemãs, mesmo sendo gregos ou troianos…
Naturalmente, ela também me contava histórias da mitologia alemã, sobre o Walhalla13 e a Bavária14, cuja estátua me parecia representar uma fenomenal bebedora de cerveja, a qual acabava de dar um soco no seu marido e estava perfeitamente satisfeita com o ato executado…
Lembro-me, por exemplo, da história de Lohengrin15 contada por ela: o Reno azulado do qual se desprendia uma névoa branca, as montanhas de um verde claro, com seus picos graníticos, o Lohengrin que chegava numa concha enorme, puxada por cisnes, todo revestido de uma armadura de aço, com a lança na mão e cantando… Aquilo me parecia de um grande bom gosto!
Ela falava inclusive da Lolerei16, de cujo poema cheguei a memorizar as primeiras palavras: “Não sei o que significa, que hoje estou tão triste. Uma fábula dos velhos tempos não me sai da cogitação…” Depois descrevia a Lorelei: “Maravilhosamente sentada, ela tem um pente de ouro, com que penteia os seus áureos cabelos…”
Mas, sobretudo, com o encanto pela latinidade e pela cultura clássica, próprio aos alemães, a Fräulein me fizera “ingerir” a Guerra de Troia, de ponta a ponta, não lendo o próprio texto original, mas um resumo em Alemão, adaptado para crianças, com muitas ilustrações bonitas.
Ela me explicava vários trechos, como o combate de Héctor contra o seu inimigo Aquilois. Eu sempre tinha uma dissimulada aversão pelos gregos e uma aberta simpatia pelos troianos. Não simpatizava com Aquiles, mas sim com Heitor, pois ele me parecia aristocrático.
Lembro-me de ter pensado sobre esse tema: “Como é lindo o heroísmo! Como é bonito esse ambiente da Guerra de Troia! Mas, por outro lado, como tudo isso é vazio, pois ali não está presente Nosso Senhor Jesus Cristo! Ele é o píncaro de tudo! Essa gente, porém, que corria de um lado para outro, pulando em cavalos, matando-se mutuamente e caindo dos muros, com esperanças e decepções, não era nada em comparação com o Sagrado Coração de Jesus! Se O pusessem no centro das coisas, tudo se explicaria!
“Eu mesmo, tenho interesse pelas coisas de Héctor e Aquilois, apenas na medida em que posso concebê-las em função d’Ele!”
Entretanto, não comentava essas reflexões com a Fräulein, pois ela não entenderia…
As declinações
Eu me fazia uma pergunta, que nunca ousei expor ao professor de Latim: “Por que os casos das declinações são chamados de nominativo, vocativo, genitivo, acusativo, dativo e ablativo?”
E pensava: “A palavra ‘nominativo’ diz algo sobre o nome. Então, por exemplo, ‘Rosa regina florum est’. Bem! ‘A rosa é rainha das flores’. Entretanto, ‘rosa’ não é um nome, mas a designação genérica de um número incontável de criaturas de Deus. Então, por que isso é nominativo? Depois, o genitivo… Que geração há, quando eu digo florum – das flores – para chamar isso de genitivo? Sinto que o professor não vai gostar dessa dúvida… Também, não vou perguntar isso aos maiores de minha família, pois eles certamente passaram pelo curso de Latim sem formular essas questões…
“Vejo que ninguém vai me ensinar isso. Um belo dia resolverei esse problema, o qual, por enquanto, permanecerá pendente no meu espírito, entre outros. E, quando passar pelo firmamento de minha vida alguém que saiba dar-me uma explicação, irei correndo atrás dele e lhe perguntarei”.
“Deo Optimo Maximo”
Na Igreja do Sagrado Coração de Jesus existe um grande arco, o qual separa o presbitério da parte do povo. E, na ponta desse arco, há uma inscrição que me intrigava muito: “DOM”.
Eu lia e pensava: “Quem é esse ‘DOM’, glorificado aí? Será alguém da família imperial, com o título de ‘dom’? Não pode ser, pois haveria também uma coroa… Também não é um bispo, pois teriam colocado ali uma mitra… Quem é esse ‘DOM’?”
Em certa ocasião, por acaso, o meu professor de Latim explicou o significado dessas letras, mas eu o esqueci logo depois… Queria lembrar-me, não conseguia e preferia não perguntar ao padre, pois ele iria dizer que eu era distraído, pois não aproveitava as aulas a que assistia. Então, quando ia à igreja, eu permanecia mascando aquele “DOM”, até que, um dia, recebi novamente a explicação: eram as iniciais das palavras Deo Optimo Maximo – “A Deus, supremamente bom e máximo”.
Entendi que Deus é a chave de cúpula e o ponto de encontro de tudo, dirigindo o destino dos homens de modo sábio e santo e que, apesar de todas as fraquezas e pecados, se devia confiar que os acontecimentos acabariam bem, neste mundo ou no outro. Essa convicção dava às pessoas o senso de uma ordem muito alta, não dependente dos fatos desta Terra; uma espécie de espinha dorsal, a qual mantinha as almas eretas.
1 “A naturalidade da coisa”.
2 Eneida II, 52.
3 Eneida I, 85.
4 Eneida I, 118.
5 “Manifestou-se verdadeira deusa pelo andar”. Eneida, I, 405.
6 Geórgica II, 490.
7 “Animula vagula, blandula, hospes comesque corporis” – “Ó alminha vagabunda, folgazã, hóspede e companheira do meu corpo!” (Historiæ Augustæ, Vita Hadriani, 25.9).
8 Célebres discursos do Cônsul Marcus Tullius Cícero, pronunciados no ano 63 a.C. contra Lucius Sergius Catilina, político romano inescrupuloso, que fomentou uma conjuração contra o senado de Roma.
9 Primeira Catilinária: “Oratio in Catilinam Prima in Senatu Habita”.
10 Herói troiano da Ilíada de Homero, filho do rei Príamo e rival do grego Aquiles.
11 Herói grego da Guerra de Troia e personagem principal da Ilíada de Homero.
12 Principal divindade da mitologia grega, correspondente ao Júpiter dos romanos.
13 Segundo a antiga mitologia nórdica, o Walhalla seria o lugar para onde iam as almas dos guerreiros mortos em combate.
14 Figura alegórica, cuja estátua, erguida em Munique em 1850, simboliza a Baviera.
15 Herói legendário medieval, também chamado “O Cavaleiro do Cisne” e personagem principal da ópera “Lohengrin”, de Richard Wagner (1848).
16 Segundo a lenda, Lorelei seria uma ninfa das águas que atraía os navegantes do Reno, fazendo-os naufragar.
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