Um mundo em decadência
Quando o moço chegava aos quinze anos e os pais lhe davam a chave da casa, esse gesto, além de indicar que ele passava a ter certa independência, significava também outra coisa: era o símbolo da liberdade para o mal. O dinheiro da mesada aumentava, iniciava-se para ele a época da diversão, e ele estava livre para frequentar os lugares que quisesse, chegando a casa na hora que desejasse.
Por outro lado, até então o rapaz vivia constantemente no mesmo ambiente: entre primos e companheiros do colégio. Mas depois, além da frequência à sociedade, começavam também cursos preparatórios para a entrada na Faculdade, e ele passava a conhecer um número muito maior de pessoas, num horizonte mais vasto.
Assim, a partir dos quinze anos, dois mundos separados se abriam para o jovem: a vida de sociedade e a perdição.
Uma exigência para a dignidade da família
Acontece que a opinião pública mundana de São Paulo fazia naquele tempo uma distinção muito contraditória entre o homem e a mulher, a respeito da castidade.
Por uma boa tradição católica, imperava a ideia de que as mulheres eram obrigadas a ser puras. Proibia-se toda e qualquer forma de impureza para elas e não havia nada mais feio e degradante para a mulher do que não ser casta.
Por esse princípio e nesse ambiente, a senhora ou a moça que se desviasse era completamente desclassificada e, se ela fosse solteira, já não encontraria marido. Então, era para elas de uma necessidade absoluta manterem-se virgens até o momento do casamento. E, de fato, por regra geral toda moça solteira caminhava para o altar adornada com o véu da virgindade. Tal exigência era a condição da dignidade da família.
Uma boa bofetada
Certa vez presenciei uma cena, em determinada casa onde eu tinha muita intimidade. Um rapaz que morava lá foi comigo ao fundo da residência, ao local onde uma das empregadas limpava e passava a ferro as roupas da família. Ele precisava sair e queria reclamar o seu traje, que ainda não estava pronto. Quando entrou, a moça estava passando o paletó ou a calça, e disse a ele:
– O senhor espere um pouco, porque não posso entregar já, mas daqui a pouco.
Ele disse:
– Então vou ficar esperando aqui.
Percebi que ela não gostou daquilo, mas ficou quieta. De repente, ele fez-lhe umas sugestões inconvenientes. A moça continuou passando a ferro, com fisionomia aborrecida. Ele insistiu nas sugestões, e ela então meteu uma bofetada na face dele e disse:
– Saia daqui! E agora vá contar para sua mãe, se tiver coragem!
Ele saiu e eu fui atrás dele, gozando o fato. E perguntei-lhe:
– Como é agora? Você conta?
– Não! Você está louco? Vou ficar calado.
Esse rapaz teria perdido aquela mulher, mediante dinheiro, se ela não fosse uma pessoa de caráter e não tivesse sabido dar a ele uma boa bofetada, no momento oportuno.
Fidelidade e recato
Exemplo característico da época era o seguinte: se um homem dissesse a outro: “tua irmã (ou tua filha) que vai se casar não é pura”, o pai ou o irmão da moça poderia tirar um revólver e matar quem fizesse tal insulto, pois de tal maneira prezava-se e respeitava-se a castidade da mulher, que aquele ultraje era considerado gravíssimo, horrível, e não se pensava na possibilidade de outra solução além do tiro.
Feito o casamento, elas deviam manter-se fiéis aos seus maridos até morrer. O resultado era que as senhoras levavam uma vida casta e respeitável dentro do lar, com muita guarda da pureza. Dirigiam os empregados, distraíam-se e enchiam o tempo com pequenas conversas, lendo alguns romances, tocando instrumentos musicais ou ouvindo música em gramofones, bordando almofadas ou cuidando de um canário.
Nunca saíam a sós, era raríssimo que trabalhassem fora e, em geral, quando o faziam tratava-se de afazeres exclusivamente femininos, para não se lançar suspeita sobre elas. Empregavam-se numa loja de modas para senhoras ou numa confeitaria e, por outro lado, muitas mulheres eram datilógrafas e recebiam serviços para fazerem na própria residência, como traduções de livros.
E assim, a presença da dona de casa era o eixo em torno do qual girava a vida de família.
Crimes absolvidos
Se uma delas fosse surpreendida em flagrante delito, estava seriamente ameaçada: o marido tomaria o revólver e a mataria, sem julgamento. Se houvesse um processo criminal por assassinato, feito o exame e verificada a causa do crime, em geral os tribunais absolveriam, e no registro constaria que o marido tinha sido absolvido porque teve “privação de sentidos”. Dizia-se que, ao receber a notícia, ele de tal maneira havia delirado de indignação, com o senso de honra tão ofendido, que perdera o domínio de si mesmo. Então, nesse trauma ele não havia sido responsável pelos seus atos e, portanto, a verdadeira culpada era ela.
Assim, no júri de São Paulo, as absolvições por razões como essa eram quase regra. De maneira que a infidelidade da esposa, mas também da filha ou da irmã, eram assuntos que se decidiam com revólver.
Nesse sentido, não posso me esquecer do que presenciei em certa residência, por ocasião de uma festa de aniversário.
Em determinado momento vi um homem que falava muito, contentíssimo, chamando a atenção e agradando a todo o mundo. Ora, ele acabava de sair da cadeia, pois tinha assassinado um médico em Campos do Jordão, por razões como as que enunciei. O pai dele, fazendeiro muito rico, protestante, dono de extensas terras no Paraná, lhe havia dito:
– Mate esse homem! Depois eu o tiro da cadeia.
O filho seguiu o conselho do pai e, de fato, o tribunal o absolveu.
Eu percebia que ele sabia que todos aqueles convidados conheciam o fato, mas conversavam com ele e davam risada, naturalmente sem fazer a menor alusão ao ocorrido. Olhei para ele e pensei: “Esse é um assassino”. Observei os outros homens e me lembrei das palavras de Nosso Senhor: “Geração de adúlteros”.1 E refleti: “Todos são adúlteros e, quem tiver qualquer forma de escritório ou de negócios, é também ladrão. Adúlteros e ladrões, maciçamente!”
Impureza, impiedade e perseguição
De fato, as coisas eram organizadas como se a Lei de Deus mandasse a pureza só para as mulheres. Lembro-me de ter ouvido alguns homens sustentarem que, de fato, o Sexto Mandamento valia apenas para elas, e o pecado contra a castidade não tinha nada de ilícito para eles. Por outro lado, apesar de todo o mundo saber que era raríssimo encontrar um homem que guardasse a castidade, cada um escondia o próprio vício, numa atitude hipócrita, sem a qual ele seria reputado um indivíduo desmoralizado e digno de desprezo.
Ora, acontece que nesse tempo estávamos num período de declínio do ateísmo, e o grande motivo que afastava os homens da Religião era exatamente a violação do Sexto Mandamento. Assim como nos trens há uma locomotiva que puxa os vagões, existia uma “questão-locomotiva” que levava atrás de si todas as outras e ocupava, nos problemas do jovem, um papel enorme, absolutamente central: deve um rapaz ser casto ou não? Percebendo com clareza ou não, querendo ver ou não, todo o mundo sentia que essa era a questão candente, atrás da qual todos os demais assuntos teóricos se introduziam no campo da dúvida e da luta.
Caindo na imoralidade, os homens continuavam a crer, mas perdiam a prática da Fé, o amor à Igreja e, depois, acabavam por optar de um modo coerentemente negativo contra a família, contra a propriedade, contra Deus e, portanto, a favor do comunismo. Era toda uma moral contraditória que acabava influenciando também as mulheres e, assim, esse entrechoque vivo de ideias, essa batalha em torno de um ponto arrastava o futuro do mundo.
Mas, que batalha! Que acusação contra aquele que quisesse dizer-se puro! Que ódio! Que cerco e que esmagamento! O pecado não era simplesmente tolerado, mas exigia-se de modo absoluto que os homens levassem uma vida impura e, segundo essa estranha concepção da moralidade, os transgressores eram rejeitados e punidos. O quanto era bem vista a mulher casta era censurado o homem puro, e o rapaz virgem era tão desprezível quanto a moça que não o fosse. Organizava-se uma perseguição com chacotas e risos, e esse escárnio da opinião pública era rotundo e categórico, de modo que ele se tornava tão desacreditado que ninguém lhe falava nem o cumprimentava. Era para sempre um pária, o último dos homens!
A primeira acusação contra a prática da castidade
Nesse combate de morte contra a pureza no sexo masculino, dizia-se de tudo.
Espalhava-se na generalidade dos moços – pelo menos nos ambientes da sociedade em que eu vivia – uma série de calúnias que já eram velhas. Dizia-se que a pureza não era praticável para o rapaz. Logo, se alguém conseguisse guardar a castidade, isso era desde logo sintoma de ser ele defeituoso, deformado, anormal. Portanto, o homem puro não era um verdadeiro varão ou, se de fato fosse, tratava-se de um hipócrita, pois escondia determinadas atitudes, fingindo ter uma virtude que na verdade não praticava.
Essa era a primeira acusação que faziam contra a pureza do homem. E ela circulava como um corisco, apesar de não ter base científica, pois os detratores não estavam à procura dessa base, mas apenas tinham ódio dos puros.
Ora, eu havia guardado a castidade e pretendia mantê-la. E não tinha razão para duvidar de minha inteira normalidade. Pensava: “Que loucura é essa? É um dos mil absurdos deles. Eu não me incomodo!”
Por outro lado, eu tinha muita noção da coesão de todas as virtudes católicas umas com as outras, mas atribuía uma espécie de primado à castidade, pois parecia-me que a alma humana só tem toda sua beleza e somente é capaz de toda virtude na medida em que ela é casta. Sem a pureza, ela começa a esboroar-se de todos os lados!
A segunda acusação
Em segundo lugar, vinha a acusação de que o indivíduo que guardasse a castidade era um poltrão, o qual não tinha coragem de ir a certos lugares, por medo de enfrentar os riscos que apresentavam. Portanto, era considerado como falho daquela personalidade que distingue o varão.
E outro sintoma de uma mentalidade sem a energia, o vigor e a força de vontade próprios de um homem, era o fato de ele também, em geral, não ter coragem de sustentar diante dos outros que era puro. Pelo contrário, ficava quieto quando caçoavam da sua pureza e, por isso, era tido como fraco, tímido e complexado.
Se ele era casto por razão religiosa, dizia-se que ele possuía uma noção obscurantista das coisas, a qual o fazia não compreender o progresso e as luzes do mundo moderno, voltando às trevas do passado, o que era tido como atitude própria a um cretino, imbecil ou détraqué.2 Um homem inferior e ridículo, que devia ser tratado com o maior desprezo possível.
A terceira acusação contra os puros
Em terceiro lugar, circulava o seguinte boato: a castidade era muito favorável à saúde da mulher, mas deformava e debilitava a constituição física do homem. Se ele guardasse a pureza, dentro em breve, quando chegasse aos trinta anos, acabaria morrendo prematuramente, pois teria feito tal pressão sobre si mesmo, que isso produziria nele doenças do fígado, do estômago e do coração. Sobretudo, tornar-se-ia tuberculoso.
Naquele tempo a tuberculose era quase incurável, e eu mesmo tinha pavor de contraí-la. Mas dizia de mim para comigo: “Se fosse assim, como existem tantos Sacerdotes velhos, andando por aí?” E via pela rua cada Padre forte! Depois
analisava-os e concluía: “Não! Esse Padre é puro. Como ele chegou a essa idade?”
As revistas e álbuns publicavam, às vezes, fotografias em série dos últimos Papas. Eu os olhava, via que eram todos homens com mais de sessenta anos e pensava: “Como é isso? Eles não praticaram a castidade? Não ficaram tuberculosos! Isso é uma estupidez sem o menor fundamento! Depois, eu não posso compreender que o domínio do homem sobre seu próprio instinto lhe prejudique a respiração! É outro absurdo! Além do mais, eu sou forte e não tenho tuberculose. Vou manter a castidade!”
Jovens impuros, maridos infiéis
Havia se espalhado tal tolerância com a impureza, que esta degenerou na ideia de que o homem, mesmo depois de casado, tinha o direito de continuar pecando. Isso, aliás, parecia explicável, pois se todo o mundo julgava que o rapaz podia e devia perder-se, então era consequência natural que, após o casamento, ele continuasse a degradar-se.
Dias antes de se casar, ele convidava os amigos para uma festa que ele pagava, porque estava se despedindo da vida de solteiro. Na realidade, pouco depois ele continuaria levando essa vida abominável “de solteiro”, pois, quem se acostumou à fantasia do vício, habituar-se-á a fidelidade conjugal? Que ascese precisaria ter, para ser fiel!
Glorificação da traição
Em reuniões de família, tanto em minha casa quanto em outras residências, eu via às vezes, no canto de um salão, homens de quarenta, cinquenta anos ou mais, formando roda e fumando charutos grandes e bonitos, com perfume muito bom e fumo magnífico.
Todos conversavam baixinho. Vendo-os de longe, davam a impressão de senhores respeitáveis, tratando de coisas sérias, mas, de repente, estourava entre eles uma gargalhada. Então se continham e vários se sentavam no sofá, para rirem mais à vontade. Eu chegava perto, para ver o que era: estavam contando uns aos outros as imoralidades que tinham feito. Eles não guardavam a castidade! Todos frequentavam os mesmos lugares e não faziam mistério sobre isso. Diante das senhoras não o diziam, mas, quando estavam entre si, esse era o tema das conversas. Assim, no próprio lar, a traição à família era glorificada de todos os modos possíveis.
As senhoras, por sua vez, desejariam que os maridos fossem puros, mas todas sabiam que eles, por sistema, nunca eram fiéis e, então, já se casavam na certeza de terem maridos impuros.
Mães rejeitadas
Lembro-me da seguinte cena, na tardezinha de um domingo. Eu estava num automóvel com algumas pessoas de minha amizade ou de meu parentesco e, quando passamos pela Rua Maranhão,3 vi uma senhora em pé no terraço de uma casa, olhando a rua. Era a mãe de certos colegas meus no São Luís, os quais frequentavam os mesmos ambientes que eu.
Essa casa não era grande, apesar de muito boa, e estava aberta, pois o dia era quente. Via-se que estava tudo arranjado e, pelo jeito, percebia-se que ela acabava de dirigir a criadagem para mandar pôr sobre a mesa tudo quanto era necessário. Pois, no domingo à noite, muitas famílias não faziam propriamente um jantar, mas uma espécie de ceia.
Ora, ninguém estava com ela. Os filhos e sobrinhos passeavam de automóvel, enquanto o marido também tinha saído – talvez afirmando que iria tratar de negócios em casa de um amigo –, e a residência começaria a se movimentar pelas oito horas da noite. A senhora passaria a tarde sozinha e, como não possuía o hábito da leitura, não tinha o que fazer. Era uma rejeitada, fadada à monotonia e ao abandono. Havia mandado preparar uma ceia, tanto quanto possível régia, à espera da hora em que todo o mundo chegasse das diversões para beneficiar-se do que ela organizara. Logo depois, iriam para o cinema e ela permaneceria em casa de novo, até a hora de dormir.
Não era raro encontrar nas famílias essas almas sofredoras. Eu via muitas vezes cenas semelhantes, ao passar perto das casas de Higienópolis – já naquele tempo o bairro número um. Via uma senhora andando no jardim, outra sentada no terraço, olhando o movimento da rua, e ainda outra que se penteava. Estavam sozinhas, abandonadas por todos, entristecidas.
Assim, junto com quatro ou cinco rapazes da alta sociedade de São Paulo que desejavam manter-se castos, essas senhoras eram as vítimas da situação, com as quais ninguém se incomodava e das quais ninguém tinha pena. Era algo do perfume oposto à impureza, que ainda existia nestas ou naquelas casas: certa bondade, restos de piedade e vestígios de seriedade. Um pouquinho daquilo que minha mãe representava para mim, com tanta intensidade.
Dª Lucilia, mãe íntegra e intransigente
Mamãe via que os parentes iam se afastando dela cada vez mais e, em seu isolamento, pensava no futuro que teria de enfrentar. Os filhos, como seriam? Sobretudo eu, mocinho na época da formação do caráter, como viria a ser? Provavelmente o mais distante dela, uma vez que os homens em geral deixavam de frequentar os Sacramentos, abandonavam a Religião e se degradavam para sempre.
Então, o normal seria que os filhos a tratassem com respeito por ser a mãe, mas, sobretudo, como pessoa sem graça, que não lhes interessava mais. E ela, para quem o estar juntos e o querer-se bem eram a condição da felicidade na vida, deveria passar o resto da existência num isolamento tremendo. De maneira que olhava para um futuro em que o horizonte se escurecia cada vez mais, como baixa o sol quando vai se fazendo noite.
Assim, com uma seriedade que me impressionava profundamente, mas com muita doçura, ela comentava comigo a decadência moral dos rapazes de minha idade, como quem dissesse: “Os tempos são ruins e você é muito moço. Ninguém sabe do que é capaz uma pessoa quando se extravia”. E várias vezes dizia:
– Eu preferiria te ver morto a te ver nessa situação.
Ora, ela havia sido uma mãe desveladíssima por minha saúde, e daria a vida para que eu não morresse! Mas preferia me ver morto a me ver numa situação de pecado mortal ou de ruptura com a Igreja. E era isso o que me encantava nela.
Eu apreciava o encadeamento lógico das suas ideias e fazia reflexões assim: “Como é belo que mamãe seja intransigente, e que leve essa intransigência até o fim do caminho! Que integridade! Eu a quero inteiramente!”
Ausência de reação em face do mal
Por outro lado, eu notava apesar de tudo que havia famílias bem organizadas segundo a Lei de Deus, cujas casas eram como santuários, onde as pessoas eram puras e todo o ambiente era diferente. O bem ainda existia em alguns lugares, mas encontrava-se fraco, perseguido e espancado, sem reação nem possibilidade de defesa, sem chefes que lhe abrissem os olhos nem generais que lhe tomassem a direção para preparar grandes ofensivas. Logo, a sua derrota era inevitável. Mais cedo ou mais tarde, o bem desapareceria completamente e o mal teria tomado conta da Terra.
Da parte do clero de São Paulo, muito ortodoxo e altamente moralizado, havia sermões sobre a pureza. Porém, de modo invariável, falava-se do Sexto Mandamento e da castidade in genere,4 mas não se davam especificações concretas. Então, ouvia-se:
– Oh! A pureza, que linda virtude! Os fiéis devem ser puros!
E logo derivava-se para elogios ao sexo feminino, muito aplaudidos:
– Jovens floridas que me ouvis…
Mas eu nunca vi um Padre fazer no púlpito uma aplicação ao sexo masculino, recomendando a pureza para os homens, nem dizendo de modo formal que o moço deve ser puro, com obrigação tão grave quanto a moça. É verdade que também nunca ouvi um Sacerdote negar tal afirmação. Inclusive perguntei a um Padre sobre isso em certa ocasião, e ele me respondeu que, de fato, o Sexto Mandamento valia tanto para a mulher como para o homem.
Entretanto, ao escutar sermões que tratavam apenas da pureza da mulher, os fiéis entendiam indiretamente que o homem estava dispensado de ser casto. Um número enorme de famílias estava persuadida disso e, em muitos ambientes, os rapazes eram formados segundo este princípio:
– Preste atenção! A Igreja não faz questão de pureza para os homens. Diga-me se ouviu um sermão em que os Padres afirmem que a castidade é para homem! Vá ao mês de Maria! Está anunciada uma pregação sobre a castidade. Você não ouvirá uma palavra sobre a pureza dos homens! Você, ficando puro, fará o papel de bobo! A pureza é só para mulher!
De maneira que eu vi muitos jovens de meu tempo caírem na impureza e comprometerem sua própria salvação, por causa dessa ambiguidade. Quantos amigos eu tive que eram católicos, mas levavam uma vida impura!
A perdição dos filhos, promovida pelos pais
Em certas famílias, os próprios pais eram tão ímpios que vigiavam seus filhos jovens, para saber se já estavam frequentando lugares de perdição. E, quando percebiam que o rapaz chegava aos dezessete ou dezoito anos ainda puro, não querendo abandonar a castidade – levado por sua retidão natural, por um resto de consciência ou por uma graça –, ficavam receosos e punha-se para eles um problema. A mãe dizia: “Será que ele não é inteiramente normal?” O pai pensava: “Esse é um bobo, que está perdendo a ocasião de se divertir, quando eu poderia dar dinheiro a ele para isso!”
Então, os pais faziam questão e não sossegavam enquanto o filho não frequentasse a perdição, pois julgavam ser algo indispensável ao status masculino. Alguns o chamavam e davam-lhe ordem, exigindo-lhe que começasse a ir. Se ele não queria, começava uma tensão em casa e os pais diziam:
– Castidade? Você segue a pureza? Vai ficar doente, nervoso, frenético, tuberculoso!
Outros não tinham coragem de fazer isso diretamente, mas a senhora entrava em combinação e cochichava com o marido, para arranjar uma pessoa que arrastasse o filho. O pai chamava os primos e amigos do jovem, e fazia um contrato com eles, dando-lhes dinheiro para tomarem o rapaz à força e levarem-no à perdição. Então, eles lhe propunham:
– Não fique agora em casa! O automóvel está aqui e a noite é bonita. Vamos sair um pouquinho e dar um passeio!
Se ele estava com vontade de dormir ou simplesmente não queria ir, o pai, que assistia à cena, dizia:
– Não! Vá com eles passear.
Quando o rapaz entrava no automóvel, os amigos seguiam para um bairro suspeito e, se ele resistisse ou quisesse sair do
veículo em movimento, amarravam-no com cordas e levavam-no…
Em outros casos, na noite do aniversário do jovem casto, diziam-lhe:
– Agora vamos andar pelas ruas de São Paulo, tocando guitarra, para festejar você!
Era o antigo costume português da serenata. Saíam cantando e, quando chegavam ao bairro de perdição, jogavam o rapaz numa casa e dali não o deixavam sair enquanto não tivesse pecado. Em outras circunstâncias, arranjavam um jeito de levá-lo para um bar e todos o estimulavam a beber, para ver se o rapaz se embriagava. De repente, agarravam-no e levavam-no à força a um desses lugares.
Eu soube de muitos casos como esses e tive a ocasião de comprovar mais de um, acontecidos com colegas meus, em geral pouco mais velhos do que eu, a quem não tinha conhecido na infância. Não queriam pecar, mas, uma vez que os pais agiam assim, eles se perdiam completamente e depois não se reerguiam mais.
O triste caso de um primo
Numa visita à casa de certos parentes longínquos, os quais se davam muito com minha família, eu havia tido outrora uma das primeiras noções sobre o papel central que ocupava a questão da castidade, nos problemas do jovem.
A residência deles era numa rua atrás do Palácio dos Campos Elíseos. Chegamos lá numa manhã muito bonita, eu entrei e vi um primo, bem mais velho do que eu e filho do dono da casa, no terraço que dava para um amplo jardim, com árvores e canteiros. Ele tinha ido estudar na França e estava temporariamente de volta em São Paulo.
Era um rapaz de tipo inteiramente brasileiro, alto, calmo e sereno, sentado com as pernas cruzadas numa atitude muito direita, com a mão colocada de certo modo como quem carrega o peso da cabeça, e com fisionomia de profundo desgosto e tristeza. Tão preocupado que, quando o criado abriu o portão do jardim, ele não percebeu que vinha chegando um grupo de primos mais moços.
Nós fomos cumprimentar outras pessoas e, na passagem, falamos com ele. Saudou-nos amavelmente, mas de modo muito distraído, e percebi que ele estava pensando em outra coisa, tomado por uma dúvida. Qual seria? Eu não sabia, mas fiquei surpreso de ver uma pessoa daquele ramo da família que parecia tão feliz, um moço tão bem apresentado, com tanta capacidade de receber toda espécie de prazeres na vida, imerso naquela dor.
Ora, eu tinha nesse tempo sete ou oito anos, e pensei: “Que pena! Na minha idade, não posso fazer nada por ele, pois, se lhe perguntar por que está assim, dará risada e fará uma brincadeira comigo. E, se me contar, nem entenderei!”
Anos depois, numa conversa, mamãe me explicou o caso dele, sem que eu perguntasse.
O pai desse rapaz era um médico de primeira classe em São Paulo, rico, muito inteligente e bom conversador, sabendo inclusive fazer bons discursos. Eu o via de vez em quando em minha casa, pois nos visitava com frequência. Não sei por que, às vezes ele não tocava a campainha logo que chegava, mas permanecia no alto da escada, talvez tomando fôlego antes de entrar. Eu ouvia o ruído dos pés de uma pessoa do lado de fora da porta, e pensava: “É ele”. Daí a pouco chegava o copeiro e dizia a Dª Gabriela que ele estava ali. O homem entrava e começava a conversar, falando de muitos temas, inclusive de Religião.
Esse médico começou a notar em seu filho certas tendências para uma posição católica e, sobretudo, para a castidade. Então, ouviu dizer que na famosa École des Roches5 – colégio secundário de boa reputação na França – havia professores avançados e modernos, que poderiam tirar essas caraminholas da cabeça do rapaz. Então, mandou-o estudar nessa escola.
Parece que os professores eram muito bons, pois o jovem logo aprendeu francês e escrevia cartas nessa língua. O pai inclusive levava algumas dessas cartas para ler em nossa casa e assim vermos como o filho dele estava progredindo. E, às vezes, fazia o comentário:
– Agora vou ler um trecho da carta de meu filho. Preparem-se! É um verdadeiro artigo de jornal!
E lia vários trechos. Não sei se as pessoas de minha família sentiam-se tão encantadas quanto ele, mas respondiam com amabilidades:
– Ah, bonito…
Em certo momento o jovem escreveu, dizendo ao pai que precisava abrir-se: estava muito contente com a formação profundamente religiosa que a École des Roches dava. A Fé Católica se encontrava mais firme do que nunca na alma dele, e pedia licença ao pai para não vir ao Brasil nas férias, pois preferia ficar ali durante esse tempo. E já avisava que desejava ser Padre, na congregação religiosa da própria escola.
Creio que o pai havia sido mal informado e colocou o filho num viveiro de Contra-Revolução… Tomou-se de furor, pois era totalmente inconcebível, censurável e desprezível que um rapaz da alta sociedade se tornasse Padre e, portanto, ficava mal para o pai. Então ele escreveu ao rapaz, respondendo que nunca permitiria aquilo, e que mandaria a polícia buscá-lo. O filho, ingênuo, insistiu dizendo: “Papai, se o senhor conversasse com o Père6 Tal! Eu quero vê-los discutir, para saber qual dos dois tem razão. Quem ganhará a discussão? O senhor, tão inteligente, ou o Père? Por que o senhor não paga duas passagens de navio, a fim de eu ir ao Brasil com o Père? Ele convencerá o senhor de que eu devo ser Padre!”
O pai respondeu: “Eu vou convencer esse padreco de que as crenças católicas não resistem à ciência! Ofereça então a ele uma passagem e venham os dois. Vou discutir com o Padre diante de você, e arrancarei a Fé da sua cabeça e da dele!”
Era uma armadilha para obrigar o filho a transpor o oceano. Na esperança de converter o pai, o rapaz veio com o Padre e presenciou discussões monumentais, dando razão a este. O pai espumava e, no fim, não conseguiu arrancar a Fé de nenhum dos dois, mas também não concluíram nada. Então, quando chegou o dia em que o Padre devia voltar para a França a fim de começar as aulas, o pai disse ao moço:
– Bem! Você me viu discutir com o Padre: ele não me convenceu. Quem manda em você sou eu, seu pai, e você permanece aqui no Brasil.
O meu primo ficou. Ora, isso importava em frequentar um ambiente restrito, composto pela rodinha dos primos e dos amigos destes. E, portanto, nos primeiros dias, já começariam as perguntas sobre o que ele havia conhecido em Paris, reputada como a cidade da perdição:
– Onde você andou? Esteve em tal lugar e tal outro?
Ele mentiria se dissesse que havia ido a esses lugares e pecaria, pois ninguém tem o direito de atribuir-se a si próprio pecados que não cometeu, por vergonha da Fé. Mas, se afirmasse que não tinha estado, ou naquele dia ele ia aos lugares de perdição ou começaria uma caçoada, a qual faria dele uma pessoa desmoralizada em São Paulo.
Essa era a causa da perplexidade e da enorme tristeza dele, quando o encontrei no terraço. E esse lampejo de tragédia – que depois seria a minha – marcou o meu espírito para a vida inteira.
Entretanto, sob a ameaça da gargalhada geral, ele não teve coragem, jogou-se na perdição e, por fim, desistiu de ser Padre. Tenho certeza de que ele possuía vocação sacerdotal e, se a tivesse seguido, depois teria sido Bispo, pois, com seu estilo aristocrático, era feito para ser um prelado.
Assim, aquela tristeza passou e ele se tornou um homem como outro qualquer, sempre bem vestido, elegante e superficial, com o seu problema resolvido, na aparência. Mais tarde, perdeu completamente a Fé e tornou-se um vagabundo, que nunca trabalhou nem fez nada, mantido pelo pai, o qual era muito abastado. No entanto, tenho certeza de que esse filho não receberia um tostão, se tivesse guardado a castidade!
Em certa ocasião, eu estava passando uma temporada em Santos, hospedado na casa de tio Nestor e tia Zili. Era noite e me encontrava no terraço quando, de repente, tocou a campainha. A criada atendeu e entrou um rapagão, que vinha fazer uma visita. Era esse primo. Sentou-se e meus tios perguntaram:
– Mas, o que você veio fazer em Santos, tão fora da época de estação?
Ele respondeu:
– Eu vim para escrever um livro, um tratado de economia política! Trouxe meus apontamentos, vou passar um mês ou dois no Hotel Parque Balneário e, quando o livro estiver pronto, voltarei a São Paulo para entregá-lo ao editor.
– Humm! Que coisa boa! Você vai escrever um livro… Pois faça!
Havia muito tempo que não nos víamos. Ele passou perto de mim e disse:
– Você é o Plinio, não é?
– Sim, sou o Plinio.
Cumprimentei-o e ele comentou:
– Ah! Mas, como você cresceu! Está grande e forte, bem mais alto que o meu irmão.
Era o irmão mais moço, muito inteligente, que brincava comigo quando eu ia à casa deles. De fato, apesar de ser da minha idade, ele havia ficado mais baixo e até raquítico, mas eu nunca pensava em comparar minha estatura com a dele! Sorri e respondi qualquer coisa:
– É. Pode ser.
Ele pensou um pouquinho, tomou ar de superioridade e disse:
– Olhe: meu irmão é mais baixo do que você, mas isso não tem importância e só redunda em elogio para ele, pois é sinal de que tem mais valor do que você. Os homens pequenos valem mais do que os homens altos, porque os perfumes preciosos se guardam em frascos pequenos. Quando o frasco é grande, o perfume é ordinário.
Eu não compreendi bem o que ele disse. E, quando saiu, ouvi minha tia comentar com o marido:
– Coitado! Vive dizendo que vai fazer uma coisa e outra, mas não faz nada. Duvido que esse livro de economia política vá sair!
– Que insultante! Merecia que tivéssemos respondido com um desaforo!
Ora, tenho certeza de que ele não me diria isso se eu fosse impuro, pois essa raiva só existia contra os puros.
Alguns anos depois, eu estava atravessando a Praça da República,7 quando vi esse homem, em meio a um grupo de pessoas que vinha na direção contrária, e os nossos olhares se cruzaram. Com a fisionomia gasta e acabada, enfeado, ele era a ruína do que tinha sido.
Um episódio lamentável
Conheci também o caso de um mocinho que não queria ir à casa de perdição, e os pais dele armaram um plano.
Quando chegou o dia do aniversário do filho, eles organizaram uma festa em casa e recomendaram-lhe:
– Chame todos os seus amigos!
Ele de fato convidou um grande número de primos e colegas, e compareceram todos, o que, aliás, não era difícil. A casa encheu-se de rapazes – pois naquele tempo as festas de moços e moças eram separadas –, houve um lanche colossal, comeram, beberam, conversaram, cantaram e brincaram, como era natural numa ocasião assim.
Ora, sem o filho saber, o pai combinou com quatro ou cinco valentões, os mais fortes entre os amigos do rapaz, dizendo-lhes:
– Terminada a festa de aniversário, vocês vão descer para o jardim e ele vai acompanhá-los até o portão. Convidem-no a entrar no automóvel, para ir à perdição. Se ele não quiser, insistam! Se resistir, vocês têm minha autorização: amarrem-no dos pés à cabeça – aqui está uma corda –, puxem-no para dentro do carro e saiam a toda pressa, para não chamar a atenção. Se gritar, eu não atenderei, e não tem perigo de a polícia intervir, pois está tudo avisado. Ele cairá! Está aqui o dinheiro: eu pago para vocês e para ele, mas quero que meu filho fique impuro esta noite! De maneira que, quando vocês o soltarem em casa de manhãzinha, eu terei um verdadeiro homem diante de mim.
Então, em certo momento da festa, o pai fez um sinal para eles, levantou-se e disse:
– Ó meus caros! Já chegou a hora de ir embora.
O pai saiu e eles desceram todos ao jardim, conversando amistosamente com o jovem, o qual não percebeu o que ia acontecer. Chegando lá fora, entraram nos automóveis que estavam parados na porta – eram rapazes ricos e eles mesmos guiavam –, mas os últimos a sair foram os que estavam contratados pelo pai, e disseram-lhe:
– Bem, agora vamos para a perdição.
Respondeu ele:
– Não, não vou.
– Você não vem conosco?!
– Não, obrigado! Eu vou dormir.
– Mas, por que não vai? O que é isso de dormir?! Nós todos vamos e você vai ficar aí? É uma vergonha! Venha conosco! Se não for, vamos ficar desconfiados de que você não é um homem normal!
– Não, não quero ir.
– Tem de ir! Vamos levá-lo! Ah, ah, ah!
E, como pretexto de brincadeira, amarraram as pernas e os braços do coitado, entre gargalhadas, e levaram-no. Chegando ao local, desamarraram-no e, efetivamente, a tentação foi muito forte, mas, sobretudo, ele foi poltrão e teve medo da gargalhada geral na cidade de São Paulo.
Garanto que esse pai sustentava que todos são livres segundo a lei, mas negou ao filho a liberdade de ser puro e lançou-o
no pecado. E o rapaz nunca mais voltou à prática da Religião.
Graças a Deus, nunca fizeram isso comigo. Eu teria reagido com tapa e pontapé, e nem sei o que faria! Mas esse era o ambiente da sociedade em que eu vivi, e esses eram os horríveis meios para fazer os jovens perderem a Fé.
Indulgência e cumplicidade
Por outro lado, era considerado de bom tom que as senhoras tratassem o pecado com indulgência. Se um rapaz fosse visto em má companhia por uma tia ou prima, elas não o saudariam nesse momento, mas, se tivessem com ele certa intimidade, na próxima vez o cumprimento seria seguido de um risinho, como quem diz: “Eu perdoo e até acho certo pitoresco na sua aventura”. Essa era uma atitude característica.
Eu pensava: “Mas, se não o cumprimentou antes, como se explica essa indulgência? E se deve haver indulgência, por que não o cumprimentou? E como é possível ter indulgência com esse procedimento?! Essa é outra torpeza, que não tem propósito!”
Lembro-me de certo caso, que uma senhora narrou na minha presença e do qual nunca me esquecerei.
Ela era uma pessoa muito piedosa. Seu marido, homem estudioso, não trabalhava – pois era rico –, mas lia muitos livros, tinha boa cultura e inclusive escreveu alguns ensaios. Ele gostava de deitar-se e levantar-se cedo, e ela, como boa esposa, acompanhava os horários dele, mas ia todos os dias à igreja, às seis horas da manhã, para assistir à Missa e comungar.
Em certa ocasião, quando chegou da igreja, ela encontrou o filho embriagado, no jardim. Ele tinha passado a noite fora e, voltando a casa, conseguiu abrir o portão da rua, mas não a porta da residência. E a mãe entrou nesse momento, dando com ele naquele estado. O rapaz, com medo de encontrar-se com ela, dava pulos de um lado para outro, procurando esconder-se atrás de uma roseira. Ela fingiu que não o viu e depois mandou que alguém o levasse à cama. E essa senhora contava isso para as amigas, dando risada e achando muita graça no episódio.
Ora, ela voltava da igreja, onde acabara de receber o Corpo e Sangue de Cristo. Certamente havia rezado com piedade, usando um véu preto e tendo um bonito livro de Missa e um rosário nas mãos. Encontrava o filho vindo de um lugar de perdição – ela não podia ignorar onde o rapaz estava! –, dominado pela bebedeira, em estado de pecado mortal e, portanto, ofendendo a Deus, comicamente fugindo dela atrás de uma roseira, mas, em vez de se entristecer e rezar por ele, achava aquilo engraçado e ia contente tratar dos seus afazeres domésticos.
À noite ela veria o filho saindo de casa novamente, e não teria a mínima objeção. A mãe lhe dava um beijo, ele se despedia da irmã, que também o beijava, tomava o automóvel e saía. E na manhã seguinte a senhora comungaria mais uma vez! Ela possuía a Fé, acreditava na presença real e estou certo de que havia mandado o filho estudar Catecismo em pequeno e fazer a Primeira Comunhão, ensinando-o inclusive a não dizer palavras imorais. Por isso, ela se julgava quite com os seus deveres e não sentia o choque entre a mentalidade dela e a do filho.
Uma nova moral pagã
Ouvindo fatos como esse, eu dizia a mim mesmo: “Como pode uma mãe tolerar no seu filho um pecado que ela mesma considera uma torpeza? Ela realmente tem horror a essa infâmia? E como a mãe de família pode prezar a própria pureza?”
Acontecia que as apetências, desejos e pendores para a pureza que existiam nessas senhoras eram apenas herdados e moribundos, fruto de uma correnteza geral de bons hábitos consuetudinários, cada vez menos sinceros, minados pelo permissivismo e pelo relativismo. Muitíssimas delas eram mães de família do modelo mais tradicional, amigas de todas as freiras e de todos os Padres. Rezavam o Rosário, davam esmolas e suportavam tudo dos maridos, mas não tinham uma estrutura de espírito definidamente católica, nem tomavam a sério os princípios que elas próprias simbolizavam.
Se o esposo era ateu, a senhora não se afligia, e quando um filho entrava para a faculdade e perdia a Fé, também a mãe não tomava isso como um drama.
Tranquilas e despreocupadas, quando iam à igreja faziam orações pelo marido que estava resfriado, ou cujos negócios iam mal; por ela mesma que estava com alguma dor e acordava à noite… Entretanto, rara era a senhora que tomasse a deliberação de praticar ações contrárias ao hábito geral, em obediência a um princípio. Estava afastada delas a ideia de um ensinamento doutrinário dado pela Igreja, como norma de pensamento ou de ação à qual os fiéis devem submeter-se, ainda que não entendam ou não queiram. De maneira que davam a mesma formação às filhas, e sorriam quando as viam se modernizarem sob a ação do cinema e tomarem atitudes de liberdade com os rapazes, ainda na linha da pureza, mas já não da super-pureza que as mães haviam aprendido.
E, quanto aos filhos, as senhoras permaneciam no indiferentismo, na displicência e no liberalismo bonachão, achando que eles podiam fazer todo o contrário delas, pois seguiam o que mandavam os costumes da época. Portanto, os costumes faziam as vezes de religião.
Essa era a atitude psicológica de todos os setores da alta sociedade e, em cada geração que vinha, o mal tolerado era um pouco maior do que na geração anterior. Com isso, a moral católica ia recuando, enquanto uma nova moral pagã ia avançando.
Em Santos, reflexões sobre a perda da Fé
Todos esses contrastes eram muito acentuados no Hotel Parque Balneário, em Santos, durante as estações de inverno.
Nessas ocasiões, as famílias se recolhiam pouco depois das dez da noite, mas eu percebia que todos os moços entre quinze e vinte e cinco anos saíam, e ninguém perguntava para onde iam. Ora, eu sabia bem que eles se dirigiam a um lugar de jogo chamado Miramar. Os familiares notavam e tomavam isso como algo inteiramente normal, sem nenhum protesto.
No fundo, aquela gente se preparava gradualmente para o amor livre.
Entretanto, no domingo, todas as famílias iam à Igreja do Embaré – junto à praia do José Menino – a qual ficava repleta, sobretudo na última Missa, tida como a mais elegante e social. Eu pensava comigo: “Qual é o grau dessa religiosidade? Eles têm Fé ou não?” E permanecia nos bancos da frente, para olhar com discrição as fisionomias e atitudes deles durante o Santo Sacrifício da Missa.
Muitos homens ficavam do lado de fora da igreja, fumando, à espera das senhoras, enquanto alguns outros entravam e assistiam a tudo com ar de não entender o que se passava, e não se ajoelhavam. Eu concluía: “Essa é uma Fé que ainda é bastante grande para eles se tomarem o trabalho de vir até aqui, mas não sei se todos compareceriam, no caso de não se tratar de um ato de vida social. Tenho minhas dúvidas!”
Na hora do sermão ninguém prestava atenção. Aliás, o Padre apenas dizia:
– Naquele tempo, disse Jesus…
E repetia as palavras sublimes do Evangelho, fazendo um comentário sem nenhum nexo com os problemas daquelas pessoas, sem falar contra o Miramar ou contra a jogatina. E eu percebia que, se ele o fizesse, as famílias não iriam à igreja.
Na praia, interrogações
Havia outro aspecto que contribuía para dar-me a ideia do superficial e do inconsistente de toda aquela atmosfera.
O hotel tinha um largo jardim defronte à rua, depois da qual já estava a praia. Terminados os banhos de mar da manhã, eu ia passear lá sozinho, e via aquele panorama magnífico que ninguém olhava e do qual ninguém falava. E refletia: “De manhã eles vêm contentes aqui, e à tarde isto não lhes diz nada? Qual é a coerência entre o estado de espírito matutino e o vespertino? Parece que em cada um desses hóspedes há duas pessoas, que não têm relação uma com a outra…”
E, em noites lindíssimas, ninguém ia até a praia, para ver o luar. Eles só pensavam em gozar o gostoso: a sala de festas, a sala de reuniões, o bilhar, o mundanismo… As luzes elétricas cintilantes do hotel os atraíam muito mais do que a luz que Deus acendeu sobre o mar.
Assim, a rua que separava a praia do Parque Balneário me mostrava um limite entre dois mundos: o hotel e o panorama; a modernidade hollywoodiana e a tradição.
Análise, crítica e prognóstico
E a cada ano em que eu voltava a Santos, notava uma tradição que havia morrido, um bom costume que ia se atenuando, uma presença na Igreja do Embaré ainda mais desatenta… Aquilo era um sorvedouro, no qual todos se divertiam, fechando os olhos para a grande realidade: estavam se deixando devorar.
No contato com esses contrastes, eu ia construindo uma muralha interior de objeções contra aquela incoerência eufórica, e formulava aos poucos a análise, a crítica e depois o prognóstico: “Toda a religiosidade dessa gente está morrendo, e eles perderão a Fé! Cairão no ateísmo e na igualdade completa, pois a contradição que eles mantém entre o igualitarismo hollywoodiano e a tradição hierárquica vai arrebentar em maior ou menor tempo. É o comunismo que está nascendo aqui! Eles dançam, divertem-se, conversam, comem, bebem e jogam, mas sobre um vulcão, ou afundando na areia movediça, e não se salvarão se ninguém lhes jogar uma corda…”
Então, vendo que ninguém percebia aquilo, e na minha admiração sem limites pela Santa Igreja Católica, eu pensava: “Os Padres vivem completamente alheios a isto e não sabem o que se passa nestes ambientes! Nunca vejo aparecer Sacerdotes no Parque Balneário, e ninguém aqui, nem por acaso, conta algo que ouviu de um deles. Quando eu for mais velho, vou falar com os Padres, ou mandar-lhes um relatório, estimulando-os a irem de encontro a essa degringolada! Alguém tem de lançar essa corda!”
Entretanto, essas elucubrações eram feitas por mim com a aparência do inteiro bem-estar, num convívio normal.
A oposição de uma alma reta, em relação ao mal
Assim, eu via em torno de mim contradições monstruosas e aberrações de toda ordem, das mais clamorosas. Ora, a contradição choca muito a pessoa de alma reta e, naturalmente, eu tinha uma grande cólera contra tanta hipocrisia e insinceridade. Aquilo me colocava numa oposição completa, de base religiosa, contra um sistema de vida que levava as pessoas à transgressão dos Mandamentos e dos princípios imutáveis da verdadeira ordem social católica, ao abandono dos Sacramentos e à perda da Fé, ao ultraje a Deus, à ingratidão e à felonia para com a Santa Igreja.
Um exemplo da força “hipnótica” da Revolução
Por outro lado, nessa época as molas propulsoras da Revolução eram, sobretudo, certas figuras, vedetes que regiam a exemplaridade da moda, criando uma espécie de hipnose no mundo.
Eu vi esse mecanismo nascer em São Paulo e generalizar-se nos mais variados ambientes, e foi minha geração que o inaugurou. Assim, arbitrariamente, de um momento para outro uma coisa passava a ser moda e outra deixava de sê-lo, levando os meninos a entrarem nesse sistema por inteiro, de corpo e alma, escravizados por aquela força “hipnótica” crescente.
Nesse sentido, lembro-me de uma cena a que assisti no São Luís, quando eu já não era aluno, mas ainda frequentava o colégio para conversar com os Padres.
Naquele tempo começaram a aparecer certos automóveis de corrida muito apreciados, pequeninos, marca Bugatti8 e conhecidos no Brasil como “baratinha”.9 Eram vermelhos, azuis, laranja e outras cores vivas, com aplicações douradas, e podiam ser inclusive dirigidos por mocinhos de treze ou quatorze anos. Então, para um menino rico, era sinal de grande prestígio social possuir um dos primeiros automóveis infanto-juvenis de São Paulo, com chapa, e guiá-lo por toda parte nas ruas.
Certo dia, quando os alunos acabavam de entrar no colégio e as portas já haviam sido fechadas, ouviu-se uma buzina tocando do lado de fora, junto à entrada de veículos. E um criado, já sabendo do que se tratava, foi correndo com entusiasmo e abriu o portão que dava para o pátio.
Era um rapazinho aproximadamente de minha idade – neto de um nababo de São Paulo10 –, o qual chegava num pequeno Bugatti, vermelho como uma cereja, bonitinho, reluzente e parecendo feito de esmalte, que ele recebera de presente dos seus pais.
Era uma novidade assombrosa, pois nunca um aluno havia entrado com o próprio veículo no São Luís. Ele dirigia com ar de naturalidade, sem olhar para a direita nem para a esquerda, preocupado apenas em fazer-se ver e em representar o papel do primeiro mocinho que possuía automóvel em São Paulo. Tocou o clácson ao entrar, supostamente para evitar trombadas em alguns distraídos, mas todos estavam atentíssimos, a ponto de parar o colégio inteiro! Quando ele estacionou, triunfante, no meio do pátio, toda a meninada afluiu correndo, num burburinho de admiração e de curiosidade, como se houvesse aparecido um Anjo. Aquilo era um sucesso inimaginável e conferia ao rapaz o prestígio de um grande homem!
Os meninos estavam proibidos de entrar no colégio em automóvel, mas ele passou a entrar sempre desse modo e ninguém o impedia, devido à fortuna do avô.
Eu vi perfeitamente a embriaguez que tomava conta daquele meu antigo colega e o apetite fantástico que se despertou nos demais, inclusive com enorme inveja da parte de alguns. Pensei o quanto serviria à causa do bem se o dono do automóvel fosse um bom menino.
E perguntei-me: “Se, ao invés de ser apenas abastado, eu fosse filho de milionários; se meus pais tivessem dinheiro para me proporcionar um veículo assim, e amanhã eu entrasse no Colégio São Luís guiando um automóvel ainda mais bonito, qual seria a atitude dos piores alunos? O ódio em relação a mim aumentaria ou diminuiria? Eles se sentiriam desconcertados ao verem de repente o desprezado, o ‘errado’ entrar com o automóvel certo, no modelo certo, e teriam de bater palmas, ainda que sentissem as mãos queimar, por aplaudirem o bem. Seriam capazes de amabilidades comigo e de me agradar, e inclusive chegariam a elogiar a virtude da castidade que não praticam. Tudo isso não seria uma vitória para o bem?”
E concluí: “Falsa vitória! Pois quem compra um inimigo em vez de derrotá-lo não é herói, mas negociante. Vencê-lo não é opor o dinheiro ao dinheiro, mas enfrentar a força e o dinheiro dele com a força e a altivez católicas”.
O sacrifício de cumprir o dever até o fim
Lembro-me de um dia em que eu estudava no escritório de meu pai, andando de um lado para o outro segundo o meu hábito, enquanto memorizava qualquer coisa, preparando os meus exames. Ao mesmo tempo, pensava em mil problemas que me atormentavam e montava gradualmente a Contra-Revolução em meu espírito.
Em certo momento, olhando pela janela aberta que dava para a Barão de Limeira, vi passar um automóvel de último tipo, bonito e com cores vivas, próprio de mocinho esportivo e alegre. Nele ia um bando de rapazes do bairro, todos de minha idade e colegas meus do São Luís. Quatro ou cinco deles estavam dentro do veículo e alguns outros sentados em cima, sobre a capota.
O automóvel seguia devagar, para os de cima não caírem. E, como o fato era inusual, todo o mundo na rua parava, olhava com simpatia e comentava, achando aquilo engraçado. Naturalmente passavam pessoas conhecidas dos rapazes, com quem eles brincavam e davam risadas. Era um show de alegria e despreocupação.
Diante daquela cena, senti um choque e pensei: “Eu sou um rapaz correto e cumpro as normas em relação a todo o mundo, mas ninguém acha graça nem tem prazer nenhum em encontrar-se comigo, porque não sou palhaço e nunca faço uma extravagância. Pelo contrário, trato as pessoas à distância e cerimoniosamente, e então elas dizem: ‘Lá vem o doutor dos deveres, carregando os seus protocolos e as suas cerimônias!’ E esses meus colegas, quanta alegria transmitem! Como a existência é leve para eles! Se eu saísse à rua, mandasse o automóvel parar e entrasse no meio deles, como seria agradável a minha vida!”
Mas continuei pensando: “Não posso! Vou aguentar esse meu papel, para a vida inteira! As gerações que virão depois da minha serão piores do que esses rapazes e, portanto, o meu contraste vai ser ainda maior com elas. Mas isso é necessário e eu o farei por amor a Nossa Senhora! Vou tomar esse fardo e vesti-lo como se fosse uma roupa de chumbo, andando com ele até o fim dos meus dias”.
Eu renunciava, portanto, ao meu futuro, pois entendia bem que, sendo um homem de Fé, puro e reto, lutando por um ideal, não teria amigos nem dinheiro, mas, pelo contrário, inimigos, dificuldades e lutas. E esse sacrifício de cumprir o meu dever até o fim, expondo-me a ser o perpétuo incompreendido e interpretado de má vontade – às vezes pelos mais íntimos –, era para mim muito mais pesado do que se me flagelasse ou jejuasse. Eu pensava: “Que desgraça a minha: haver nascido numa época em que tenho a obrigação de viver neste antro, sem poder sair dele! E isso se chama ‘minha mocidade feliz’!”
E, apesar de gozar de saúde muito boa, com tudo o que poderia representar a felicidade, nas horas de solidão só me faltava chorar.
1 Cf. Mt 12, 39; Mc 8, 38.
2 Em francês: desequilibrado.
3 No Bairro de Higienópolis, em São Paulo.
4 Em latim: de modo genérico.
5 A École des Roches, colégio católico fundado em 1899 nas cercanias de Verneuil-sur-Avre (Eure, França), inspirava-se, de fato, em métodos modernos de ensino, utilizados em algumas escolas britânicas, e era considerado uma instituição de elite.
6 Em francês: Padre ou pai.
7 No centro de São Paulo.
8 Famosos automóveis de luxo fabricados por Ettore Bugatti (1881-1947), industrial francês de origem italiana.
9 Trata-se do automóvel de corrida Bugatti Tipo 35C, que fez sua primeira aparição no Salão de Paris em 1924.
10 O italiano Francesco Matarazzo, o qual recebeu do Rei da Itália Vítor Emanuel o título de conde, com direito a hereditariedade. Os seus netos Francisco – o dono do pequeno automóvel – e Olímpio eram alunos do Colégio São Luís.
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