Preparação para os vestibulares
Depois de meu último ano no São Luís,1 eu pretendia entrar na Faculdade de Direito, mas precisava preparar-me nas matérias em que seria examinado no vestibular.
Ora, eu tinha veneração pelo colégio dos jesuítas, mas não quis retornar a ele para esse fim, pois não aguentaria mais o ambiente.2 Então, decidi estudar em certo curso, próximo da Avenida Rio Branco e da Rua Vitória, chamado Colégio Paulistano.3
Assim, passei mais um ano em colégio leigo, mas, curiosamente, ali não experimentei o deperecimento que sentia no curso do Prof. Raspantini.4
O Prof. Camilo Vanzolini
O estabelecimento era propriedade do Prof. Camilo Vanzolini, um italiano ostensivamente ateu, mas inteligente e com grande vivacidade popular. Enquanto o Prof. Aquiles Raspantini era um homem hierático, o Prof. Vanzolini franzia a testa e tinha um rosto que musculava de todos os lados. Baixo, gordo, com cabelo à escovinha, voz cantante e olhos escuros, comuns e sem nada de bonito, mas vivíssimos.
Ele lecionava História Natural e Filosofia, nas quais falava abundantemente, contava casos, dizia de repente as coisas mais banais possíveis, como também fazia comentários com lampejos inteligentes e algumas tiradas ateias. Dava-me uma ideia da impressionante capacidade de estabelecer correlações, a qual faz parte do gênio italiano. É um dos povos que melhor sabe reverter, converter e ligar os temas com facilidade, como quem se diverte.
O professor tratava, por exemplo, sobre Botânica, matéria das mais enfadonhas, de modo interessante. Suspendia uma planta e dizia:
– Isto aqui, oh, oh, oh! Ecco!5 Uma monocotiledônea! Ah, ah! Monocotiledônea! Sapevamolo6 que é monocotiledônea! Oh, oh, oh!
E jogava a planta no chão. Eu pensava: “Mas, que interessante!” A monocotiledônea para mim não tinha nenhuma graça, mas o Prof. Vanzolini me distraía…
O ornamento rejeitado pela Botânica
Entretanto, o estudo da Botânica, em geral, rejeitava os aspectos que mais me interessavam nas plantas.
Quando começou o curso, pensei que seria trazida uma flor, por exemplo, e se faria dela uma análise simbólica. Não! O professor fazia o desenho de uma flor, e os alunos deviam entendê-la enquanto uma espécie de indústria viva de determinados componentes que o ar precisa ter ou, eventualmente, de predicados curativos.
Cada flor era assim “desmitificada” e se tornava um mero laboratório, um órgão fisiológico da planta, com certas propriedades para manter inclusive o funcionamento desta. Era a anatomia da flor, ignorando todo o aspecto da sua beleza, cuja consideração poderia fazer perder o fio do raciocínio. Então, a Botânica tomava a planta mais bonita que podia haver e a dissecava como um cadáver, desviando de modo sub-reptício o espírito do aluno do pulchrum da natureza, para ele se tornar apenas uma espécie de médico de plantas.
Por exemplo, no centro do jardim de minha casa havia uma acácia com tronco prateado, pequenas folhas aveludadas de um verde agradável e florezinhas amarelas em forma circular. Ela me agradava muito, não apenas pela beleza do conjunto, mas por causa de certo aspecto um pouco paradisíaco da casca, a qual mudava de cor e se tornava ainda mais bonita quando caía uma camada, e aparecia debaixo dela um prateado novo que vinha nascendo.
Então eu pensava: “A acácia é uma árvore que Deus fez para ornamento! Ora, todo ornamento é rejeitado pelas ciências. Mas não é possível que essa finalidade ornamental não tenha alguma correlação com a anatomia e a fisiologia da acácia! A Botânica, bem estudada, deveria ser diferente!” E tinha a ideia de um estudo que rumasse para a beleza.
Fiquei espantado, por exemplo, quando o Prof. Camilo Vanzolini definiu a diferença entre a flor e a fruta. Eu nunca tinha me posto o problema da relação entre as duas! Ele explicou que a finalidade do vegetal está na fruta, pois é o resíduo que permanece depois que caem as pétalas da flor. Eu ouvi aquilo com reticências e pensei: “A flor é muito mais do que isso! É a primavera, a promessa do fruto! As pétalas pressagiam as delícias que o homem vai ter comendo o fruto, e frutificam para a mente como depois o fruto floresce para o corpo”. Por outro lado, parecia-me que a finalidade mais nobre do vegetal é o serviço do homem. E, uma vez que a flor pode ser vista pelo homem muitas vezes, ela o serve melhor do que a fruta.
Assim, eu ingeri aquelas aulas de Botânica, mas aprendendo as definições de um modo tão superficial que, menos de um mês após os exames, já havia esquecido tudo, tendo “lavado” minha mente daqueles conhecimentos inúteis. Bromeliáceas e monocotiledôneas permaneceram dormindo nos desvãos de minha memória para todo o sempre.
Reflexões sobre Química
Nas aulas de Química eu também sentia a negação e a recusa de uma série de padrões que estavam em minha alma.
O professor explicava a composição dos vários corpos e o sistema para produzi-los, e dizia que bastava pôr dois deles juntos, por exemplo o bromo misturado com o potássio, para determinar certa reação química, da qual resultava um bromureto de potassa. E para nos persuadir dessa verdade “sagrada” fazia uma experiência: tomava dois frascos onde havia grande quantidade de líquido, tirava uma gota de cada um, punha-a sobre um ladrilho ou numa proveta e dizia:
– Olhem aqui! Isto é bromo. Agora vou misturar.
E depois:
– Aqui está a potassa.
E aquelas duas gotinhas davam numa terceira, a qual tomava a cor que ele anunciava. Porém, o professor fazia a experiência
com muita economia e com uma pressa que impedia qualquer consideração da beleza daquele fenômeno. Ora, eu tinha encanto por ver as reações de certos corpos quando se uniam, fazendo uma espumarada, o que me parecia o seguinte: num corpo onde os elementos componentes conviviam placidamente, se definia de modo brusco uma incompatibilidade seletiva, pela qual a parte nobre do líquido passava a ser espuma e rumorejava de vida. Eu achava aquilo lindíssimo!
Então, dizia para mim mesmo: “Por que ele não enche esse tubo, causando uma reação química que espume e que se possa observar? Eu quereria ver a natureza movimentar-se, e não deduzir uma regra fantástica a partir de duas gotas apenas! Ele não entende a poesia das coisas!”
O professor então afirmava:
– Jogando um sulfato sobre permanganato de potássio, dá um precipitado de cor azul-cobalto.
Ou também:
– Clorato de sódio mais amônio dá um precipitado verde.
E fazia outra experiência num pequeno tubo de vidro:
– Olhem: verde! Está provado… Agora decorem!
Eu tentava: “Clorato de sódio mais amônio dá um precipitado verde…”, mas ficava eriçado de irritação e objetava interiormente: “Estou vendo que saiu verde, mas… decorar?! Isto para mim é comer pedra! E também, por que ‘precipitado’? Quem precipitou o quê? E o que tenho eu com isso?”
Sentia que o estudo da Química tinha muito de verdadeiro, de apreciável e respeitável, mas que também negava todo um mundo de realidades simbólicas. Dava-me vontade de dizer: “O senhor não compreende algo elementar, que não sei explicar no que consiste, mas que é superior a tudo isso! Eu quereria saber, por exemplo, o seguinte: por que essa composição dá verde e não outra cor? No que se transformou essa matéria, para sair o verde de dentro dela? Cientificamente, como as cores dormem nas matérias? Se eu pudesse, com um microscópio, ver o líquido no momento em que a cor nova saiu de dentro das duas cores anteriores, e penetrar no mistério dessa combinação! O que se passa no interior desses dois corpos, para combinarem e darem uma terceira coisa?”
Essa “geração” das cores me interessava muito e, por outro lado, perguntava-me: “Quando uma substância ferve, o que significa esse ferver? Pois a efervescência indica ter-se passado algo no fundo do ser, que produziu uma reação radical”.
E pensava: “Tenho certeza de que esse professor, com sua proveta, seus bastões de enxofre queimados, seus vidrinhos e suas gotinhas, não sabe isso. Se pelo menos ele conseguisse formular esses problemas! Pois, às vezes, saber encontrar um problema é mais nobre do que resolvê-lo… Mas garanto que ele não descobre isso, ainda que passe a vida inteira lendo livros de Química! E não por faltar-lhe inteligência, mas porque o livro desvia a atenção dessas questões, para criar a impressão de que tudo se aprende lendo, o que não é verdade. Entretanto, se eu comentar isso com os meus colegas, eles vão dizer que um homem com espírito maduro não pensa nesses assuntos. Vão achar que estou construindo castelos de fadas, num mundo de fantasia… Mas, se é preciso ter uma vida sem castelos de fadas, na qual existe a Química, eu prefiro os castelos de fadas sem esta última!”
Meditação sobre pedras preciosas
Por outro lado, tudo quanto dizia respeito às pedras preciosas me interessava muito, devido à minha enorme atração pelas cores. Certo dia, o professor explicou:
– O brilhante! As mulheres correm atrás dele, mas a ciência já provou que não tem o valor que dizem, pois não é mais do que carbono! E a esmeralda não é senão tal composição química…
O conhecimento mais profundo que se pode ter de uma esmeralda reduz-se a isso!
Olhei para os meus colegas: estavam com a fisionomia absolutamente natural. Então pensei: “Mas… sim, senhor! Esse homem não compreendeu nada! Diz que o brilhante é apenas carbono, que a esmeralda se reduz a tal fórmula, e que isso constitui a maior profundidade do conhecimento dessas pedras! Se a profundidade for isso, esse homem destrói o mundo! O profundo
da esmeralda é outra coisa, que não sei definir, mas que um dia, à força de pensar, saberei dizer”.
Tive de refletir muitos anos, pois em nenhuma aula de Religião encontrei a solução, mas depois cheguei à conclusão: o sentido mais profundo da esmeralda – tenha ela a composição química que tiver – não são os elementos que se reúnem nela num equilíbrio mais ou menos estável ou precário, mas é o aspecto pelo qual ela retrata infinitas perfeições de Deus, que é puro espírito. Entendi que a esmeralda tinha de ser vista com um olhar artístico, não puramente estético, mas numa consideração que seria o vínculo entre a beleza da própria esmeralda e a formosura da inteligência, da vontade e da sensibilidade do homem. Ou seja, um santo deveria perceber esse vínculo na esmeralda, e tal é o sentido mais profundo de uma pedra preciosa, a qual pode preparar a alma para o Céu.
Desse modo, o meu olhar estava sempre à procura de algo que não era prático e, por isso, poderia ser chamado de inútil, mas Nossa Senhora me deu através disso a graça de desenvolver o senso religioso de todas as coisas, pelo qual meu espírito era convidado a ver o mais alto e mais sublime, como sendo o mais real e mais profundo.
Os aspectos mais interessantes da Química
Assim, a minha negligência durante essas aulas era interrompida por algumas complacências com pormenores interessantes, dos quais eu queria saber mais. Entretanto, o professor não os explicava nem eu fazia muitas perguntas, pois seria tido como pouco amável.
Falava-se, por exemplo, de um estado chamado coloidal, no qual a prata era campeã, pois tinha cinco estados coloidais. Isso significava que podia haver nela outras tantas modificações, e a sua cor variava de acordo com esses estados, sendo sintoma deles, sem que a substância química da prata – cujo símbolo gráfico era Ag, da palavra argentum7 – mudasse em nada, pois as moléculas da matéria eram as mesmas, mas o modo de se comporem era outro. Essas cinco cores atraíram minha atenção e, bem entendido, desejei logo verificar se o vermelho estava entre elas. Poucos assuntos da Química me interessaram mais do que essa mudança de estados, pois me parecia semelhante ao que se dá nas situações dos homens e da sociedade.
Também me interessou a cristalografia, pois me impressionava a tese de que todo cristal é composto por uma porção de cristaloides do mesmo formato, presos uns aos outros por uma coesão de cuja natureza não me lembro bem, mas que, dando-lhe uma pancada em certo ponto, pode ser decomposto numa quantidade de cristaizinhos menores e iguais.
Por outro lado, chamou-me muito a atenção um fenômeno de que os professores falavam: quando se introduzia em certa solução aquosa um grãozinho de cristal daquele mesmo corpo, todo o líquido se precipitava e formava um cristal, por uma ação de presença do cristalzinho.
Rejeição de afirmações e insinuações materialistas
O pequeno laboratório do Prof. Vanzolini era uma sala de ladrilhos brancos, com armários vidrados, laqueados também de branco por dentro e por fora, e revestidos de linóleo, onde se encontravam os objetos alinhados, inclusive alguns que não eram usados quase nunca, por economia. Ao entrar para a aula, só de ver o professor manipulando aqueles aparelhos, eu tinha a impressão de que uma influência, uma carga de malefício se irradiava do ambiente, dos aparelhos, do avental branco do professor, da própria vitrine e de tudo. Era algo que eu não sabia explicar, e ficava intrigado, pois, afinal de contas, que mal podem ter uns eletrodos? Do ponto de vista moral, eram anódinos!
Tratei de analisar qual era o mal que havia naquilo e percebi que tudo ali falava da natureza, sem nenhum caráter simbólico e sem nada de sobrenatural, dando a entender o seguinte: “A realidade se exprime apenas por isto, e todo o resto não é verdadeiro. Este é o horizonte natural do homem, enquanto a metafísica, a poesia e a literatura são apenas mentiras. Não pense nelas, e a vida será muito mais eficiente! Ponha de lado símbolos e imponderáveis, porque são ilusões! Olhe como aqui se explica tudo!”
Também dava-se a entender que não há, nem poderia haver, nada para além do universo astronômico, o que criava a impressão de que era um absurdo pensar na existência de um céu material – Céu empíreo – fora dele.
Assim, com o pressuposto da imparcialidade científica, aquele estudo excluía a consideração da obra de Deus e a própria existência d’Ele. Era uma deformação atroz e destrutiva, a qual incutia de modo disfarçado uma criteriologia profundamente errada.
Porém, apesar de tudo, aquelas demonstrações científicas pareciam estar acima de qualquer raciocínio, e me davam uma impressão de óbvio, de evidência e de irresistibilidade, como se alguém me agarrasse pelos ombros para me gritar dentro dos ouvidos: “É claro! É patente! Você não vê?”
E eu pensava: “Isso é um efeito artificial. Dir-se-ia que é diabólico! Ainda vou estudar esse fenômeno”. E odiava todas aquelas afirmações materialistas, recusando-me a participar desse banquete do entusiasmo pelas ciências. Inclusive resolvi tirar notas baixas nessas matérias, para negar o meu culto a elas.
Teorias evolucionistas
O professor também falava com euforia sobre a teoria evolucionista de Darwin,8 naquele tempo muito em moda, segundo a qual o homem descenderia do macaco. Então, mencionava os vários tipos de homens que faziam parte da cadeia evolutiva, e desfiava as “provas”. Uma delas era o dente de certo elemento intermediário, elo entre o homem e o símio, encontrado no subsolo da localidade inglesa de Piltdown pelo famoso Padre jesuíta Teilhard de Chardin.9 Era o “Homem de Piltdown”,10 mencionado também em meus livros escolares. Outra “prova” era a existência do homem de Neandertal,11 o qual seria também uma espécie de estágio intermediário entre o homem-macaco e o homem civilizado.
Ora, logo ao ouvir ou folhear essa matéria, tive a sensação do conto-da-carochinha.12 Eu não sabia refutar tudo aquilo e nem sequer me interessava em aprofundar o assunto, mas tinha a maior desconfiança em relação a quaisquer provas científicas, no sentido de demonstrar que a doutrina da Igreja não era verdadeira, e sempre farejava o erro no meio de tais afirmações. Pensei: “Preciso decorar isso para responder ao professor, no caso de esse ponto me cair nas provas, mas não acredito em tal bobagem, a não ser em alguns ‘pedaços’ de verdade que percebo existirem no meio de toda essa fantasia, mas que não sei bem quais são”.
Entretanto, olhava em torno de mim e via a devastação que essa doutrina fazia junto a meus colegas de curso secundário. Alguns ficavam pasmos de surpresa e diziam:
– Quem sabe se isso é verdade?
Eu respondia que o professor podia dizer o que quisesse, pois eu sabia não serem reais tais afirmações, e elas não causavam em meu espírito a menor apreensão. Então alguém objetava:
– Como você prova?
– Não compreendo sua pergunta. Como eu provo? Eu sei que não é verdade! Existem provas do que eu digo. Uma ou outra me chegou aos ouvidos e me pareceram bem interessantes e concludentes, mas não conheço a maior parte delas, por desinteresse. Acabou-se!
Intervalos
Nesse curso havia três ou quatro aulas por dia, com intervalos de dez minutos e sem recreio. Os alunos saíam da sala e quase não falavam entre si.
Certa vez, vários de nós estávamos debruçados sobre o corrimão do terraço da casa, perto do qual passava a água de uma torneira aberta. Olhávamos aquilo distraidamente, para matar o tempo durante o intervalo, quando um dos meus colegas, em atitude pensativa, disse:
– H2O, hein!
Foi uma gargalhada geral, pois, no fundo, pensamos: “Quem haveria de dizer que essa coisa tão caseira, chamada água, contém uma composição chamada H2O?”
Um professor com riqueza de espírito
No mesmo estabelecimento eu tive outro professor, também italiano, que lecionava Física, Química e mais alguma matéria, talvez Matemática. Chamava-se Francisco Gaiotto, homem de altura mediana, magro, ainda mocetão, quase calvo, com uma cabeça pequena e um nariz adunco, muito proeminente e desmesurado – de maneira que havia certa desproporção entre o nariz e a cabeça –, olhos pequenos, azuis e muito vivos. Mas, apesar de todos os aspectos desfavoráveis, no total ele se apresentava bem.
Era a imagem do técnico preciso, falando como um jurista e esmerando-se muito em dar a sua aula de modo eminentemente racional. Os temas que lecionava não me interessavam, mas, sem a menor infidelidade a meus ideais e a meu feitio de espírito, eu gostava das aulas dele, pois ensinava com alma. Quando ele conseguia fazer que um raciocínio difícil cintilasse com a clareza que havia ideado, via-se nele uma repercussão de conaturalidade e de encanto – não de vaidade – com a demonstração que tinha feito.
Ao começar a exposição de suas doutrinas, eu tinha a impressão de que se evolava da cabeça dele um ritmo agradável, que tornava mais clara a matéria lecionada. De maneira que ele transmitia certa riqueza de espírito e, nesse sentido, para mim as aulas dele não eram descarnadas como um esqueleto, mas vivas e muito interessantes, e isso me agradava muito.
Ele também me apreciava e, anos depois de ele ter sido meu professor, ainda chegaram-me aos ouvidos boas referências dele a mim, como aluno de matérias que eu detestava…
Assim, os professores Aquiles Raspantini, Camilo Vanzolini e Francisco Gaiotto pareciam-me formar uma tríade, na qual cada um correspondia a um tipo de italiano diferente do outro, dentro de um enorme leque de variedades.
Novo curso de Filosofia
Entretanto, o Prof. Vanzolini começou a fazer certas exposições de Filosofia, com algumas ideias e argumentos ateus, que eu não sabia responder. Então, eu disse a mamãe que tinha receio de que algo disso acabasse por me fazer mal. Assim, pedi a ela que me conseguisse, através das suas relações, algum professor católico, uma vez que eu não conhecia nenhum. Evidentemente, ela recebeu o pedido com muito agrado e, em pouco tempo, deu-me a notícia: por meio de certos parentes pobres, ela havia descoberto um professor muito católico, do qual se faziam extraordinários elogios, chamado Morais Andrade,13 irmão do Mário de Andrade, famoso futurista.14
Desse modo, para me conservar a Fé, mamãe me encaminhou a esse homem, de quem eu recebia um reforço de Filosofia em aulas particulares, de manhã, junto com meu primo Procópio.
Um personagem em seu próprio ambiente
O Prof. Morais Andrade morava na Rua Margarida, esquina com a Rua Lopes Chaves, perto da Barra Funda.15 Era uma casinha geminada, tendo no térreo uma entradinha encovada, com duas cadeirinhas de vime, para ele e a esposa se balançarem nos domingos e dias feriados, ela fazendo crochê e ele lendo o jornal. Havia ali um pote com uma grande avenca, que caía do alto, e à direita uma janela que dava para a minúscula sala de visitas, onde se viam, espremidos, moveizinhos estofados de tecido azul claro trançado com branco.
A senhora dele, Dª Celeste, preparava todos os dias feijão com louro, cujo aroma se sentia na casa e que, para mim, se tornou uma espécie de definição da família Morais Andrade, pois me parecia ter possante analogia com certo estado de alma deles.
Para subir ao escritório era preciso passar pela salinha de jantar, onde havia um buffet com dois candelabros de ferro batido, cada um dos quais tinha pendurados dois pingentes de galalite, em forma de losango, com cores vivas, vermelho, amarelo e azul. E, quando eu entrava, aquilo se movimentava – talvez pela deslocação de ar que eu e minha voz produzíamos – e tinha um colorido especial, que eu associava com o feijão, para ajudar a compor a definição da casa do Prof. Morais Andrade.
A mesa da sala de jantar era no estilo das utilizadas em jogo de ping-pong para crianças, e havia ali também uma cristaleira, coberta por um tampo de mármore nacional, a qual não continha cristais, mas apenas um grande serviço de vidro, que parecia não ser usado nunca. Sobre esse móvel havia sempre uma garrafa com refresco de maracujá ou de algo semelhante.
À direita subia uma escadinha que terminava no escritório do professor, atopetado de livros por todos os lados, onde havia um terno, no qual os alunos podiam sentar-se.
O Prof. Morais Andrade era um homem muito digno e bem apessoado. Moreno, corado, com o cabelo um pouco crespo e a barba dividida em duas partes, tinha um ar doce e uma voz rouca, agradável de ouvir, mãos bem feitas e modo interessante de expor e gesticular. As suas roupas eram lustrosas, de um gosto que possuía todas as delicadezas e todas as limitações de um homem de bom aspecto, mas que não superava em nada os horizontes da sua classe.
Assim, ele levava uma existência muito arranjada e organizada, em que tudo era posto no diapasão e na mentalidade própria ao interior, mas à maneira de uma redução, em ponto minúsculo, do que era a vida na alta sociedade de São Paulo.
Nas aulas de Filosofia
O Prof. Morais Andrade era realmente católico praticante e eu me tornei amigo dele.
Numa ocasião, conversando durante a aula, tratamos sobre Monarquia e República, e ele disse ser republicano. Eu caí das nuvens:
– Mas, o senhor diz que é republicano? O senhor não é católico?
Ele respondeu:
– Sim, mas não há problema.
– Como não?
Ele então me deu a explicação a respeito das encíclicas de Leão XIII sobre o tema. Fiquei pasmo, mas depois, com a preocupação dos estudos e dos exames, esse assunto ficou de lado.16
No ensino da História da Filosofia, o professor começava explicando que, entre as várias escolas filosóficas que surgiram no mundo, a mais antiga era a dos hindus. Aquilo me parecia arbitrário, e tinha vontade de perguntar-lhe de onde havia tirado isso…
Certo dia ele contou uma historieta ou pequeno episódio, que indicava a oposição do espírito helênico em relação ao espírito oriental, bem como a diferença das duas filosofias respectivas.
Tratava-se de um concurso de arte havido em Atenas, na Grécia, ao qual foram convocados todos os escultores que desejassem comparecer. Foram admitidos inclusive artistas da Pérsia, potência rival dos gregos – numa oposição clássica entre os dois povos –, a qual estava no fastígio do seu poder, da sua riqueza e da sua influência, naquelas áreas de civilização.
As duas estátuas mais apreciadas, entre as quais era preciso escolher, foram uma deusa esculpida por um grego e uma rainha esculpida por um persa. Esta última era muito rica, vestida e adornada de modo lindíssimo, à maneira de uma imperatriz, no luxo e no esplendor de sua corte. O grego, entretanto, apresentou uma deusa vestida apenas de uma túnica simplicíssima e sem adorno, mas fabulosamente elegante, nobre e bela.
Então, a comissão encarregada de premiar fez uma apreciação entre as duas obras de arte e deu o ganho de causa à deusa grega. Naturalmente, o persa ficou indignado e protestou, dizendo:
– A minha rainha é tão mais rica e adornada, tão mais bonita do que essa mulher vestida com uma camisola! Vocês não tomaram em consideração todos os enfeites que eu esculpi sobre ela? Por que não ganhou?
Eles responderam:
– Tu a esculpiste rica, porque não a soubeste fazer bela!
Era uma resposta fenomenal! Entretanto, a mim não me satisfez por completo, pois ela parecia conduzir a certo simplismo, que não continha toda a realidade. É verdade que certas formas de beleza se apreciam melhor na simplicidade extrema, mas essa não é uma regra universal, e não se pode julgar que tal simplicidade seja o hábitat natural da beleza, nem que esta deva necessariamente se apresentar sem adornos, para brilhar por inteiro.
O dom de fazer-se respeitar
Às vezes, tocava o telefone durante a aula. Eu prestava atenção na conversa do Prof. Morais Andrade, pelo desejo de conhecer como eram a vida, os amigos e o ambiente dele. Em certa ocasião, percebi que falava com enorme respeito, parecendo o groom17 da senhora com quem conversava. Ao desligar, ele voltou-se para o meu primo – a quem conhecia como Ribeiro dos Santos, mais do que a mim, que tenho o sobrenome Corrêa de Oliveira – e disse:
– A senhora com quem acabei de falar é sua parenta.
Respondeu Procópio:
– Ah, sim? Quem é?
– Dª Nicota Ribeiro dos Santos.18
Era uma senhora de certo ramo empobrecido de nossa parentela. Nesse pequeno episódio, notei como as pessoas da família de mamãe tinham esse particular: até os membros dos ramos pobres tinham o dom de se fazerem respeitar. Assim, Dª Nicota, no estado de derelictio19 em que estava, colocava o Prof. Morais Andrade na posição de groom!
Um colega silencioso
Certa vez, meu primo Procópio disse-me:
– Mamãe deseja que um dos meus primos participe de nossas aulas de Filosofia.
Era um rapaz de minha idade, seco e louro. De fato, começou a frequentar o curso e, quando nós chegávamos, ele já estava ali pontualmente. Cumprimentávamo-nos e, durante a aula, ele não descolava as vistas do professor – pasmo de ver alguém que soubesse tão alta filosofia! –, mas ficava quieto e não fazia sequer uma pergunta e não se sabia o que pensava. Terminada a aula, despedíamo-nos e eu o via afundar numa rua da Barra Funda, enquanto nós íamos para os Campos Elíseos.
Eu ficava com pena e quase iniciava uma prosa com ele, mas acabava evitando-o, pois sabia que, se ele entrasse em nossas conversas, não tardaria em dizer imoralidades.
Dificuldade insuperável
Entretanto, apesar de todos os reforços, eu me sentia apertado em minha preparação para o vestibular, pois tinha uma dificuldade insuperável em estudar Física, Química, Geometria e outras matérias do gênero, e era obrigado a fazer exames em colégios do Governo para obter promoção na conclusão do meu curso.
Então, tomando isso em consideração, decidi procurar mamãe para fazer-lhe uma proposta.
1 O ano de 1924.
2 O Autor se refere à pressão exercida por alguns colegas, no sentido de arrastar todos os alunos do colégio a aderir à mentalidade revolucionária, que começava a dominar a sociedade nos anos 20. Cf. Volume II desta coleção, pp. 351-352.
3 O Liceu Paulistano, situado no Largo General Osório, 116, no Bairro de Santa Ifigênia.
4 Referência à sensação de distância em relação à Igreja, que Plinio experimentara no ano de 1923, período em que estudou no curso do Prof. Aquiles Raspantini. Cf. pp. 24-25 do presente volume.
5 Em italiano: eis aqui.
6 Em italiano: sabíamo-lo.
7 Em latim: prata.
8 Charles Darwin (1809-1882), naturalista inglês, autor da teoria da evolução das espécies.
9 O Pe. Pierre Teilhard de Chardin, SJ (1881-1955), paleontólogo francês.
10 O descobrimento desse resto do suposto “Homem de Piltdown” foi noticiado em 1908. Tratava-se de uma fraude, revelada em 1953.
11 Em 1856 foram descobertas ossadas humanas no Vale de Neandertal (Alemanha) e, de fato, esses restos foram atribuídos por certos intérpretes a um ser intermediário entre o homem e o macaco.
12 O termo carocha, sinônimo de mentira, deu origem à expressão “conto da carochinha”, como designação de contos de invenção narrados às crianças.
13 O Prof. Carlos de Morais Andrade, formado na Faculdade de Direito do Largo São Francisco e Doutor em Filosofia pela Faculdade Livre de Filosofia e Letras do Mosteiro de São Bento.
14 Mário Raul de Morais Andrade (1893-1945), poeta, romancista e historiador brasileiro.
15 No Bairro de Santa Cecília.
16 Em anotações já publicadas, o Autor explica a sua marcada preferência pela Monarquia em relação à República, opção inspirada nas tradições de sua família e em oposição ao ateísmo ostentado por alguns dos seus parentes republicanos. Cf. Volume III desta coleção, pp. 678-679. Mais tarde, Plinio aprofundará seus conhecimentos sobre as Encíclicas de Leão XIII a respeito da legitimidade das três formas de governo – a Monarquia, a Aristocracia e a República – e não terá dificuldade em aceitar tal doutrina, movido por sua incondicional submissão aos ensinamentos da Santa Igreja.
17 Em inglês: moço de recados.
18 Ana Cândida Ribeiro dos Santos (1857-1938),
prima de Dª Gabriela, mãe de Dª Lucilia.
19 Em latim: abandono.
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