Admirando a civilização
Quando minha família esteve na Europa, pouco antes da Primeira Guerra Mundial, meu pai ficou encantado com a Alemanha do Kaiser Guilherme II.
Ele não sabia Alemão e, então, comprou um livro escrito em Francês, publicado em 1913, portanto quando o império germânico tinha chegado a seu apogeu militarista: L’Allemagne Moderne, de um autor pouco conhecido, mas entusiasta da Alemanha, chamado Jules Huret.
Esse livro extasiou a minha infância e a minha adolescência. Era um álbum muito bem feito, descrevendo a Alemanha kaiseriana e fartamente ilustrado em cores – com os parcos recursos gráficos daquele tempo –, apresentando fotografias magníficas, com mil aspectos bonitos e característicos do mundo alemão.
Entretenimento
Meu pai não apreciava muito que eu mexesse nos livros dele, pois eu costumava danificá-los, sem querer. Entretanto, por vezes, quando ele ia trabalhar na cidade, eu entrava furtivamente no seu escritório, tirava L’Allemagne Moderne da estante e folheava-o dez ou vinte vezes, entretido durante longas horas pelo gosto de olhar as fotografias.
Havia belos panoramas e figuras maravilhosas da Alemanha antiga e artística, inclusive vários monumentos góticos. Também personagens grandes e fortes, másculos e guerreiros, que eu percebia serem alimentados com abundância de pão preto, salsichas e cerveja…
Impressões causadas pelas paradas militares
Uma parte do livro tratava a respeito do exército alemão.
Não posso me esquecer de certas fotografias, discretamente coloridas, as quais me maravilhavam: representavam as paradas das tropas do Kaiser, num grande e famoso campo de manobras militares nos arredores de Berlim, cujo nome soava aos meus ouvidos como uma música: Tempelhof , o “Pátio do Templo”.
Nessa enorme planície havia uma tribuna para o Imperador, a corte e o corpo diplomático. Milhares de soldados, com uniformes lindos, desfilavam durante horas seguidas em batalhões infindos, numa ordem impecável, diante do público eletrizado, o qual se sentia representado por aqueles homens que personificavam o desejo da grandeza, da proeza e da ousadia, bem como o gosto da organização e da disciplina que distingue o povo alemão. As bandas tocavam músicas afinadíssimas, entre as quais algumas canções, em que era feito o elogio da boa amizade que se criava entre os soldados, quando juntos corriam os mesmos riscos. Eu refletia sobre isso e pensava que o valor de uma nação se poderia medir pelo entusiasmo que a população tenha ao ouvir um toque de clarim, mesmo em tempos de paz, calma e tranquilidade.
Então, eu ficava embevecido, fascinado e tomado de entusiasmo, olhando os uniformes dos couraceiros, dos dragões de cavalaria, da infantaria, da artilharia; os oficiais superiores com seus alamares e suas prestigiosas faixas douradas; os capacetes brilhantes e luzidios, com plumas brancas que me pareciam ter uma categoria extraordinária; outros com pontas de metal, os quais eram, a meu ver, a última perfeição em matéria de elmo, pois representavam uma alma preparada para a luta, mas também disposta a voar para as mais elevadas e transcendentais altitudes.
Era o contato da minha mentalidade católica com a disciplina do exército do Kaiser, a qual tinha algo do espírito dos Cavaleiros Teutônicos da Idade Média. As tropas rutilantes do Império Alemão permaneceram para sempre no meu espírito como o arquétipo do exército, mais representativo, vigoroso e organizado do que muitas forças armadas posteriores.
Algumas vezes, eu chamava mamãe e dizia:
– Meu bem, venha aqui ver essas paradas!
Mas ela, sem ser propriamente pacifista, tinha horror à guerra e não era entusiasta da carreira militar. Então, ela olhava um pouquinho a certa distância, e logo se retirava, ou ainda fazia um pequeno gesto que significava: “Não me agrada…”
Eu, inclusive, gostava de provocá-la afetuosamente a esse respeito.
Uma fotografia especial
A cavalaria ainda era uma arma de guerra, utilizada durante a Primeira Guerra Mundial e muito posta em foco nos preparativos do conflito, antes da mecanização do combate. Lembro-me de uma fotografia pequena, nesse álbum de meu pai, a qual mostrava a cena de um hurra de cavalaria. Era o momento em que alguma tropa, montada em magníficos cavalos, recebia uma ordem de comando, pela qual oficiais e soldados davam um brado de entusiasmo: “Hurra den Kaiser!” – “Viva o Imperador!” – e avançavam debandados, a todo o galope e com as espadas desembainhadas, numa grande carga contra um inimigo imaginário.
Essa linda imagem fazia o meu enlevo e deteve meus olhares extasiados, não sei quantas vezes nem por quanto tempo, com um entusiasmo que me é difícil exprimir. Os cavalos davam-me a impressão de voar, mais do que galopar. Eu tinha a sensação de ver os homens respirando, de ouvir os passos do tropel sobre o chão, o tinir dos metais e as vozes de comando. Inclusive a poeira, que me parecia horrenda quando era causada por automóveis, era uma beleza, a meu ver, sendo levantada pelos corcéis. O único que me doía era pensar que aquele ataque pudesse ser dirigido contra a França…
Imaginava então exércitos incontáveis que se desdobrariam um dia pelas planícies da Terra, para fazer a luta pacífica do bem contra o mal. E dizia para mim mesmo: “Meu Deus, nunca me será dado fazer algo à maneira dessa carga? Essa fotografia parece representar a minha vida! Eu sinto que o bem vencerá num magnífico hurra, e essa certeza não pode mentir!”
O uniforme preferido
Recordo-me também de uma fotografia que representava oficiais de cavalaria da Guarda de Corpo do Imperador. Eles estavam num alinhamento impecável e corretíssimo, em atitude de continência, trajando um uniforme que era, de todos, o que eu preferia: elmo de aço, o qual comportava no alto uma águia, também de aço, com as asas ligeiramente abertas, prontas para o voo – emblema do Império Alemão –, representando o domínio e a força; couraça cruzada por uma faixa e tendo um sol estampado, rutilante; dólman e culote brancos, com botas altas, que chegavam até acima dos joelhos, e espada.
Analisando as fisionomias, eu via que nenhum deles tinha expressão de preguiça, mas, pelo contrário, todos estavam contentes, robustos, saudáveis e dispostos a morrer, felizes por terem assumido o papel do guerreiro, que esgota a sua vida no ápice da fortaleza e na beleza do holocausto.
Graça mística?
Tudo isso contribuiu para que eu fosse um militarista convicto, não com a intenção de ser militar – pois eu percebia que minha alma deveria estar inteiramente voltada para os assuntos que constituíam as minhas cogitações –, mas no sentido de admirar a beleza da condição militar, a disciplina e o heroísmo, o que me comprazia extremamente, ajudando-me a ter entusiasmo pela força, como um elemento indispensável da personalidade católica bem construída.
Eu tinha a impressão de que todo aquele esplendor sugeria aos soldados as seguintes ideias: “Se você viver tudo isso, subindo interiormente até a altura moral que o seu uniforme apresenta no exterior, sua vida estará realizada! Pois a existência não foi feita para o prazer e, sim, para chegar a algo que não consiste numa carreira, mas numa determinada elevação de alma, não diante de um público, mas diante de si mesmo e também perante Alguém, com A maiúsculo: Deus, que olha o soldado e lhe diz: ‘Herói militar, tu és meu!’”
É provável que houvesse em tudo isso uma graça mística, levando-me a conhecer algo da beleza e do absoluto da linha reta, da ordem, da coerência, da força, da seriedade, do espírito de sacrifício e do holocausto inteiro, contido em expressões como o alinhamento perfeito e a resolução completa dos soldados do Kaiser. No fundo, tratava-se de uma forma de santidade e um aspecto do Céu, apresentados no seu fulgor.
Uma cena da corte imperial
Lembro-me de uma cena, mais desenhada do que fotografada, a qual dava a sensação agradável da realidade fortemente retocada pela arte, e que eu contemplava com avidez, pois era uma verdadeira beleza. Numa sala muito limpa e magnificamente iluminada, com ornamentos em estilo barroco, o Imperador e a Imperatriz recebiam homenagens, em pé junto a seus tronos, sobre um estrado com dois degraus de pouca altura e tendo atrás um dossel. Eles me pareciam estar numa espécie de inebriamento pela sua missão e pela sua própria grandeza.
O Kaiser, fardado e com as mãos apoiadas na espada, mantinha o olhar numa linha horizontal, fixo num ponto indefinido, dando a ideia de uma perpétua mobilização para o estado de guerra. Era a projeção da vida militar nos esplendores de uma cerimônia da corte.
A Kaiserin era delicada, élancée1 e muito feminina, como uma figura feita de cristal, mas também um pouco hirta e retilínea, à maneira de um jato de água num chafariz. Ela me dava a impressão de estar olhando para o céu e sorrindo para o povo alemão.
Junto ao estrado estava um grupo de pajens nobres da corte, de dezessete ou dezoito anos – o futuro da época –, formando uma linha reta, esplendidamente vestidos com trajes do Ancien Régime e olhando para o Kaiser e a Kaiserin numa atitude de contemplação, que não se exprimia por palavras, mas que representava a nação germânica diante dos soberanos. Esses jovens me davam a mesma impressão de correção e de limpeza que eu sentia ao contemplar os batalhões numa parada.
Eu percebia que deveria haver uma orquestra tocando na sala e notava também que no Império Alemão tudo se passava de um modo um tanto militarizado, pela ideia de que o valor supremo da existência humana era a luta. E pensava: “Tudo isso é tão bonito, que me parece ver e apalpar a cena!”
A Kaiserin e o Kaiser
Havia também uma fotografia de página inteira da Kaiserin2. Desde que a vi pela primeira vez, ela me pareceu uma dama extraordinariamente simpática, cheia de afabilidade e distinção, com uma bondade que me deslumbrou.
E um capítulo do livro, que li com muito interesse, era dedicado ao Kaiser Guilherme II. Ele era o comandante supremo das Forças Armadas da Alemanha e, numa das reproduções, aparecia numa atitude marcial, muito calmo, seguro e varonil, parecendo personificar o brio e o garbo do exército. Montava um cavalo de primeira categoria, que ele dominava com todo o desembaraço; usava um capacete de aço com a águia imperial e um penacho branco esvoaçando ao vento, como a asa de um pássaro. Tinha o peito constelado por numerosas condecorações e passava o bastão de comando a um general, o qual estava em atitude de reverência.
Eu analisava o Imperador e percebia que ele tinha sido a representação da Alemanha oficial daquele tempo, por sua mentalidade, seu estilo e seu jeito.
Restrições
Entretanto, havia algo nas cenas da corte alemã que não me agradava e eu pensava: “Há qualquer coisa de duro aqui, que já tem o odor do mundo moderno e da indústria”.
Certa vez, virei uma página do livro e encontrei outra fotografia do Kaiser, não mais vestido de uniforme militar, mas como civil, tendo uma flor no peito e um ar galante. Em outra reprodução, ele andava com cinco ou seis homens, todos com colarinhos altos e engomados, junto ao muro de uma fábrica. Estava sem chapéu e falava “doutorando”, tendo na mão uma bengala que fazia as vezes de espada…
Também havia uma figura da célebre e histórica Catedral de Colônia, uma das mais belas do mundo, cuja construção foi concluída no século XIX e que ostentava, do lado de fora, entre as estátuas próprias ao edifício gótico, o Kaiser esculpido como profeta do Antigo Testamento… Aquilo não me agradou, pois me pareceu muito objetável e completamente ridículo!
Efeitos da Revolução Industrial
O livro apresentava muitos dados sobre a vida econômica e capitalista da Alemanha, que não me interessavam, pois aquele ambiente industrial me dava a impressão de um universo metálico, mecânico e inanimado, ou seja, sem alma.
Eu olhava fotografias das usinas do Krupp, um potentado que havia criado prodigiosas fábricas de armamentos, o qual, tendo uma filha chamada Bertha, não encontrara modo mais desgracioso de recomendar a sua filha à simpatia do mundo do que dar o nome dela a dois grandes canhões: “Grosse Bertha” e “Kleine Bertha” – Berthona e Berthinha!
Eu já era adversário dos efeitos que a Revolução Industrial ia produzindo no mundo e via, com antipatia e má vontade, a crescente mecanização da arte da guerra. Não tinha nenhum entusiasmo pela artilharia, pelos bombardeios, pela aviação militar ou pelos submarinos, os quais, no entanto, tinham para mim o mérito inegável de entrar nas profundidades do mar, que eu sempre quis conhecer e imaginava serem como eram apresentadas nas histórias de Julio Verne…
Aquelas armas não me pareciam apropriadas a uma luta épica, como eu me afigurava a guerra do tempo das Cruzadas.
Fraqueza do Império Alemão
Eu percebia também que a forma alemã de fortaleza tinha muito de bom, mas não resolvia todos os casos… Conhecia perfeitamente a ruína da Alemanha e a vitória dos Aliados no fim da Primeira Guerra Mundial e, considerando esse desabamento, notava que a potência germânica deveria ter um lado fraco e vulnerável, pois, do contrário, não teria caído daquele modo. Então pensava: “Como caiu o Império Alemão? Faltava-lhe algo para completar a sua força. O que era?”
Refletindo, entendi bem o que lhe faltava e pensei: “Pontaria! O exército do Kaiser atacava, mas à maneira de um touro, lançando-se para a frente… É preciso saber a quem atacar, e de que modo!”
Por outro lado, analisando as fisionomias dos soldados alemães nas fotografias do livro L’Allemagne Moderne, percebia que eles tinham o gáudio antecipado do triunfo, com uma enorme capacidade de avançar na primeira investida de uma luta, mas não pareciam preparados para uma guerra longa e desgastante, no caso de fracasso no primeiro ataque.
1 Esbelta.
2 Augusta Victoria de Schleswig-Holstein, Imperatriz da Alemanha.
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