A ordem do universo
Por volta das quatro e meia ou cinco horas da tarde, terminavam as aulas no colégio. A grande maioria dos alunos saía, mas ali permanecia um grupo de uns trinta meninos de minha idade, para uma sessão de ginástica sueca, ministrada por um oficial da Força Pública1 de São Paulo. Alguns pais pagavam um suplemento mensal e mandavam seus filhos participarem dessas aulas facultativas de ginástica, para se fortalecerem.
Uma lei cumprida com bom humor
Mamãe era insaciável de auxílios para beneficiar a minha saúde. E, tendo ouvido dizer que os médicos recomendavam tais exercícios, pensou haver encontrado a solução para a minha fraqueza, que tanto a preocupava, e tornou-se uma “devota” da ginástica sueca. Com muita firmeza, fez questão absoluta de que eu a cursasse no São Luís. Os meus primos, sendo muito robustos, não precisavam desse reforço.
Eu tinha toda espécie de horrores a essa ginástica, do fundo de minha alma, por tratar-se de um exercício físico ao qual a inteligência parecia não se associar. Era uma prática tediosa e monótona, que não ocupava o espírito enquanto movimentava o corpo e, portanto, habituava a mente a não fazer nada. Pensava: “Eu não fui feito para carregar as minhas pernas, mas elas, sim, para me carregar! Não acredito ser necessário este exercício para me tornar forte. Sinto em mim mesmo que vou ser um homem razoavelmente robusto. Não tenho obrigação de ser um touro, mas preciso pensar, ler e lutar!”
Por outro lado, sentia repugnância de mim mesmo quando transpirava…
Se outra pessoa me pedisse aquilo, receberia um “não” taxativo, mas o desejo de mamãe, para mim, equivalia a uma lei cumprida com bom humor. Para fazer a vontade dela e para não desgostá-la de nenhum modo, eu me submetia à ginástica sueca. Eram, então, aulas abominadas, mas docemente impostas e, por isso, pacientemente obedecidas, de maneira que nunca fugi delas, apesar de ser o aluno mais relaxado que se possa imaginar…
Enquadrados numa disciplina militar, os meninos formavam um pequeno pelotão num canto do pátio e faziam os exercícios em silêncio, durante meia hora ou quarenta minutos. O instrutor ordenava:
– Agacha! Levanta! Abre os braços! Fecha os braços! Levanta a perna!
Eu executava tudo aquilo com prodigioso desinteresse, sem prestar muita atenção e numa fundamental contrariedade interior. Depois ele soprava um apito, o que também me desagradava, e dizia-me:
– Você ali, magro! Por que põe seus braços assim? Parecem uma cortina! Braço reto, teso!
Eu esticava os braços de algum modo e ele dizia:
– Ah! Agora está bem.
Pensava comigo mesmo: “Não compreendo como esse homem se contenta com a minha ginástica mal feita!” De fato, ele parecia compreender que não era possível exigir mais de mim, e contemporizava…
Um dos exercícios consistia em levantar os braços e respirar. Era o único que eu achava agradável e, então, nesse momento olhava o recreio vazio e instintivamente começava a refletir, considerando outras coisas.
Os bambuzais do recreio
O Colégio São Luís ocupava um quarteirão inteiro e comportava um grande recreio com muita vegetação, delimitado em dois de seus lados por bambuzais que o separavam das ruas, formando uma muralha viva e uma vedação, que impedia o acesso de moleques para o recinto.
Esses bambus eram muito mais altos do que todas as árvores ali existentes. Eu tinha passado meses ou talvez um ano no colégio, sem me preocupar com eles, mas, em determinado momento, atraíram a minha atenção. Propriamente, a analogia que me veio ao espírito, contemplando o bambuzal, era a de uma ordem humana perfeita, como o alinhamento retilíneo daquela parede vegetal. As suas pontas, movendo-se numa grande altura, pareciam-me simbolizar a ordem e a intransigência.
Lembrei-me de uma fotografia que eu havia visto e admirado: o exército prussiano desfilando primorosamente. O bambuzal ereto e firme dava-me a impressão de um esquadrão de guerreiros em ordem de batalha, levantando seus imensos sabres e parecendo atingir o azul do céu. E o Sol admirativo e cerimonioso se punha sobre eles, baixando lentamente e projetando uma sombra no areal do recreio, como quem dizia: “Estes são heróis! Vou tratar deles com cuidado!”
Por outro lado, as luzes vespertinas da São Paulinho daquele tempo tinham belezas extraordinárias e luminosidades triunfais, que me tocavam a fundo. O vento soprava no bambuzal e este parecia gemer.
O céu estava muito azul, de uma tonalidade que o ocaso começava a tornar profunda – como eu gostava –, numa etapa intermediária para chegar até o negro carregado de estrelas, e esse colorido contrastava de modo muito agradável com o verde do bambuzal. Alguns artistas afirmam que o azul e o verde não se harmonizam, mas Deus não pensou do mesmo modo! Ele disseminou o azul e o verde pelo universo afora, em quantidade, diante dos olhos maravilhados dos homens!
Eu via aquelas cores e admirava aquela ordenação.
De vez em quando, um padre andava pelo colégio silencioso, de rosário na mão, meditativo, com batina e faixa pretas, tendo o clássico barrete na cabeça. Um outro passava junto aos bambus, rezando o seu breviário de encadernação preta, sossegado e tranquilo. Ambos se encontravam no pátio, cumprimentavam-se e continuavam a andar.
Eu olhava aquela cena e refletia: “Ali estão os padres, com os seus barretes. Que coisa bonita!”
Observava a catadura séria, nobre e distinta da fachada interna do prédio. Aquele pátio vazio, de areias claras, tão revoltas antes pela correria dos alunos buliçosos, agora estava em ordem. Eu percebia que a agitação tinha saído do colégio e tudo estava serenado.
Previsão de um grande triunfo da Igreja
E dizia de mim para comigo: “Esta é a ordem que Deus pôs no mundo! Ordem na Igreja: os jesuítas rezando, lentos e sérios. Ordem que Deus quis manifestar ao homem por meio da natureza: o bambuzal, que também representa o passado, pois as pessoas que aprenderam a plantar os bambus em linha reta não eram como essa meninada… Como eu gosto dessa ordem!
“Este colégio, que vi tão turbulento durante o dia, agora está sério e composto! Quanta diferença! De um lado, as coisas bem arranjadas e simpáticas do recreio vazio; do outro, a algazarra, a desordem, a impureza e a voz dominante dos piores alunos, transformando o ambiente num “inferno”! Quem faz tanta bagunça não gosta da ordem da Criação, nem desse jogo de cores ao entardecer, nem de ouvir os passarinhos cantarem nos jardins das mansões da avenida.
“Mas então, essa ordem será inteiramente derrubada? Os colégios sempre serão antros de pagodeira e de pilhéria? A Igreja alguma vez deixará de ser como ela é? Se isso acontecer, o mundo não terá chegado ao fim? A atitude desses meninos é uma desordem na natureza e pressagia um desastre”.
Eu via bem que o caos não existia apenas entre os meus colegas, mas que a humanidade estava no caminho de um transtorno completo da ordem querida por Deus. Já tinha noção de não tratar-se apenas de uma enorme quantidade de pecados, mas de um pecado imenso constituindo um todo, idolatrado por inúmeras pessoas e que, muito mais tarde, eu chamaria de Revolução.
No meio da aula de ginástica, de repente, consolidou-se no meu espírito a seguinte ideia: existia tanta oposição entre a inocência, a retidão e a santidade da Igreja – simbolizadas pelo edifício religioso e pela ordem da natureza, castamente refletida no alinhamento irrepreensível dos bambuzais –, e a mentalidade desses alunos ruins que, em certo momento, os objetos inanimados, os bambus, a terra, as pedras da rua e as construções das casas se revoltariam diante da agressão dos pecados, em legítima defesa.
Tive a certeza de que esse desastre final – o qual me parecia muito próximo – dar-se-ia necessariamente e, então, o mundo iria desabar numa destruição universal.
Lembro-me de fazer a seguinte reflexão: “Haverá um choque entre essa mentalidade, de um lado, e a Igreja com a ordem da natureza, do outro. Um dia, os bambus mudarão e crescerão tortos, ou os homens mudarão e crescerão direitos. Dado que a ordem do universo não pode ser alterada, o mal não prevalecerá! O caos vai cessar! Os homens acabarão tornando-se melhores e então teremos a vitória, mas estou certo de que isso se dará em meio a uma enorme punição!”
Esperança na intervenção de Deus
Assim, fixou-se ainda mais em mim a noção da necessidade de uma grande transmutação, para erradicar completamente esse pecado imenso, pois a ordem tinha de ser vitoriosa. Lembrei-me de minhas andanças pela cidade, durante as quais eu via certas pessoas que trabalhavam com seriedade; alguns meninos de minha idade, pertencentes a uma classe social mais modesta, que andavam corretamente, carregando seus livros; famílias virtuosas, unidas pelo amor de Deus e morando em casas humildes, mas bem organizadas; as igrejas cheias de gente rezando… E refleti: “Ainda resta algo de bom no mundo, mas é perseguido, desprezado e pisado”.
Tinha a impressão confusa de que, humanamente falando, o inimigo era invencível e, ainda que o meu apostolado fosse muito bem sucedido, a resistência e a vitória do bem seriam impossíveis sem um milagre. Então, Deus haveria de intervir em determinado momento, com uma ação especial, para que os esforços dos bons tivessem resultado e, assim, salvar o bem antes que este desaparecesse, fazendo justiça a mim e a esses bons que existiam na Terra. Pensei: “Não é possível que, em determinado momento, Deus não restabeleça a ordem criada por Ele mesmo. O homem é como uma formiga revoltada, tão pequena nesta imensidade de ordem! Deus esmagará essa revolta, e vencerá!”
Entretanto, perguntei-me: “Mas, quando vencerá?” E logo me veio a convicção: “Quando a desordem tiver chegado ao seu auge. Dia virá em que a ordem se vingará deste mundo!”
Entendi que esse desenlace não seria propriamente o fim dos tempos, mas iniciaria uma era em que os homens receberiam os últimos ensinamentos antes de a História terminar, e me fiz a seguinte pergunta: “Como será a Terra, no dia em que o pecado for vencido e as pessoas tomarem juízo?” E refleti: “O que agora existe de bom vai permanecer, mas essa época será muito melhor do que tudo isso, pois ela constituirá a réplica de Deus contra o mal. E a Igreja será a rainha!”
Então, fortaleceu-se em mim o propósito de consagrar minha vida a fazer tudo quanto fosse possível para essa vitória: “Vou dedicar minha existência a trabalhar contra o caos, pela ordem de Deus que será restabelecida! Serei o soldado dessa esperança! Mas dizer ‘esperança’ é muito pouco. Para mim, trata-se de uma certeza: a ordem do universo não se deixará esmagar pelo mal! Portanto, vamos para a frente!”
Voltei a casa, cheio de ânimo. Essa certeza da vitória do bem acompanhou-me desde aquele momento e não me abandonou um só instante de minha vida.
Fruto da graça
Todos esses pensamentos não me vieram à mente à maneira de um flash. Houve uma série de dados que se reuniram e foram atraídos para um mesmo centro de reflexão e de análise, com a normalidade de um raciocínio lógico comum, enquanto eu fazia ginástica e olhava os bambus.
A procura do absoluto era uma tendência constante no meu espírito. Deus me concedera a graça de olhar tudo com a mente sempre voltada para o mais elevado, detestando a trivialidade, a banalidade e o igualitarismo. Então, vendo ou considerando qualquer objeto, perguntava-me como seria ele levado à sua perfeição absoluta e, enquanto não tivesse concebido o máximo naquela linha, não me contentava.
Concretamente, olhando a vegetação do recreio procurei desde logo o bambuzal absoluto, mas, se antes tivesse cedido ao ambiente revolucionário do colégio, os bambus não teriam tido sobre mim o mesmo efeito.
Percebo com clareza que aquilo foi, sobretudo, um fruto da graça, pois, para um menino daquela idade chegar a conclusões tão profundas, não bastavam os meros recursos da natureza. Inclusive sou propenso a aceitar que tenha havido uma ação de caráter místico.
1 Antigo nome da Polícia Militar.
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