O Anjo da Guarda de Dona Lucilia
Um Anjo cheio de misericórdia, de um atendimento pronto, meigo a todos os pedidos, sabendo ter pena até o fundo. Mas também um Anjo de grande discernimento: o que é verdade é verdade, o que é erro é erro, o que é bem é bem, o que é mal é mal.
Para ver Dona Lucilia com os olhos com que eu via, tenho a impressão de que é preciso tomar muito em consideração um certo ponto fundamental de equilíbrio que dá propriamente a “fisionomia” da alma como ela é vista por Deus. Porque Ele não vê a alma apenas nesta ou naquela atitude, mas na própria fonte de todas as atitudes, naquilo que há no homem de estável e que dita a pluralidade de suas atitudes.
Firme na doçura e doce na firmeza
Alguém dirá: “Mas o homem nunca é tão coerente assim. Os homens incoerentes o que têm de estável? Parece que eles não são estáveis.”
É o contrário, eles têm uma estabilidade intencionalmente quebrada, de onde todo o resto sai errado. Mas esta estabilidade, ainda que seja no quebrado, no errado, existe.
Assim, para se formar uma hipótese de como seja o Anjo da Guarda correlato a cada pessoa é preciso procurar cada uma naquela estabilidade. Mais ainda, como seria essa estabilidade se a pessoa fosse como deveria ser. Aí se têm os elementos para uma hipótese de como é o Anjo da Guarda de alguém.
Nesta perspectiva, tenho a impressão de que o Anjo da Guarda dela deveria ser visto como um Anjo de uma espécie de serenidade sobrenatural, que importa numa convicção formada: é a Fé; numa atitude tomada: é o estilo da vida dela; e num passado coerente com essa atitude até o último momento. Firme na doçura e doce na firmeza até o fim.
Aí se pode ter uma ideia de como seria esse Anjo: cheio de misericórdia, de um atendimento pronto, meigo a todos os pedidos, sabendo ter pena até o fundo. Mas, também, um Anjo de grande discernimento: o que é verdade é verdade, o que é erro é erro, o que é bem é bem, o que é mal é mal, e daí não se sai.
Creio que sabendo compensar essas coisas e pô-las bem na linha se tem uma noção de como seria o Anjo da Guarda de Dona Lucilia.
Todo mundo fala, e com muita razão, da missão protetora que tem cada Anjo. Mas está realçada muito – porque é mais fácil de imaginar e é autêntica, existe – a proteção do Anjo no que diz respeito ao corpo. Contudo, não está devidamente ressaltada a proteção do Anjo no referente à alma. Ora, esse é o elemento principal. Nós estamos aqui na Terra para dar glória a Deus, servi-Lo e amá-Lo, mas também para salvar as nossas almas, que é o meio de dar glória a Ele.
Nessas condições, é bem evidente que o Anjo deseja para nós, mais do que tudo, a perseverança e a santificação. E nós devemos ver, sobretudo, como o Anjo terá agido em relação à alma de Dona Lucilia.
Um mero corisco transformado em luz
Conheço de um modo não satisfatório o passado remoto da sua família. Sei que um bisavô dela era um português o qual lutou contra o exército de Junot, general de Napoleão que invadiu Portugal. Como Junot tomou conta de Portugal, esse bisavô de mamãe teve sua casa no Porto destruída e sua família foi morta, e ele veio para o Brasil, onde se casou com uma senhora de família tradicional, que veio a ser minha trisavó.
Entretanto, tenho uma ideia muito vaga sobre o passado da família em Portugal, não sei qual é a mentalidade, o estado de espírito e, sobretudo, o que mais importa: qual a posição religiosa desses antepassados portugueses. Mas, através de alguma coisa que ela contou, julgo vislumbrar que havia em sua avó paterna, e depois em seu pai, alguma coisa que preparava o caminho para ela, fazendo pressentir esse estilo de alma de que acabo de falar.
Não estou dizendo com isso que o pai e a avó dela corresponderam inteiramente. Digo apenas que parecem ter recebido graças na mesma direção. E isso tem alcance para considerar como seu Anjo da Guarda agiu na alma dela, porque se vê que mamãe nasceu num ambiente onde essa luz estava presente, e ela participou dessa luz mais do que seus antecessores. Aquilo que era um corisco antes dela, com ela tomou muito mais porte e dimensão. Dentro desse ambiente familiar, ela estava enlevadíssima com essa luz, e fazendo disso um caminho para Deus.
No Sagrado Coração de Jesus ela via a plenitude inimaginável e indiscernível de todas as virtudes, entre as quais esta que ela conhecia por coriscos humanos, por fulgurações assim.
Creio que a grande provação da vida dela se desenvolveu da seguinte maneira: tenho a impressão de que ela formava uma ideia um tanto ingênua de que todas as pessoas eram, pensavam, sentiam e se queriam assim, e que todas as famílias, em suas casas, viviam desse jeito, os senhores eram do estilo do pai dela e as senhoras como ela via a mãe. Com isso, ela concebia o mundo como uma espécie de antessala do Céu.
Dissabores permitidos pela Providência
Com o tempo, naturalmente, vieram as decepções: este e aquele não eram assim, ingratidões para com ela, enfim, toda espécie de dissabores.
Ela me contava este caso característico:
Uma senhora rica, de boa família, cliente de meu avô, era isolada no mundo, não tinha quem a apoiasse e, de repente, adoeceu. Meu avô precisou tratar com ela de um negócio qualquer, soube que ela estava doente e mandou que as filhas dele a visitassem. Viram, então, o abandono em que ela se encontrava, numa casa grande, rica, mas no meio de criadas que não tinham zelo por ela. Meu avô, desde logo, decretou: “Ela vai ficar morando em nossa casa durante o tempo que quiser e minhas filhas vão cuidar dela.”
Minha mãe era moça e essa senhora, portanto, bem mais velha do que ela. E logo se prontificou a ajudá-la. Mesmo tarefas que poderiam ser confiadas a uma criada, ela, por amabilidade, fazia. Entretanto, começou a notar que quando prestava a essa senhora toda espécie de serviços, ela os recebia como se minha mãe não estivesse senão cumprindo a mais elementar das obrigações. Por outro lado, ao aparecer uma outra pessoa da família que quase não ia lá – porque pensava na sua própria vida e não queria ter essa paciência –, a hóspede sorria muito comprazida e dizia: “Fulana, como você tem sido boazinha para comigo. Muito obrigada!”
A pessoa da família, objeto dessa gratidão, olhava para minha mãe e dizia:
— Não seja boba, Lucilia. Você deve fazer como eu: mande as criadas da casa servirem a ela, e uma vez cada dois ou três dias você aparece para fazer uma visitinha, e ela fica encantada.
Minha mãe respondia:
— Não, coitada, ela está doente, sofrendo, e eu quero prestar-lhe todo o auxílio, pois papai assim nos mandou.
— Olhe, você vai ver como no dia em que essa senhora sarar e sair de casa, ela vai agradecer a mim o serviço que você fez.
Foi dito e feito. Na hora da despedida, a hóspede agradeceu efusivamente à outra e, para mamãe, disse apenas: “Lucilia, até logo.”
A criatura humana tem torpezas dessas, mas nesse caso Nossa Senhora permitia para ir abrindo os olhos de mamãe a respeito das coisas.
Foi-lhe pedido desapegar-se de tudo
Eu mesmo presenciei várias situações semelhantes, por onde ela ia compreendendo que, em face da bondade dela, as pessoas, na sua grande maioria, ficariam indiferentes. Entretanto, ela mantinha sua posição por amor de algo infinitamente mais alto, quer dizer, de Deus Nosso Senhor.
Ao longo da vida, ela foi constatando que essa atitude das pessoas não era apenas uma falha, mas quase se poderia dizer o contrário, que dentro do homem a bondade constitui um lapso, ou seja, de vez em quando acontece de ser bom. Mas se não for fiel à graça, e por razões religiosas, o ser humano é estável e continuamente ruim. Portanto, esta vida, essas criaturas humanas terrenas que ela se preparava para querer tanto não eram senão o contrário do que ela esperava, das quais recebia apenas decepção e ingratidão; e isso entre os mais próximos…
Compreende-se bem como isso ia maturando a alma dela para fazer o seguinte balanço: “Ou minha vida foi vivida toda para Deus – e então se explica –, ou se não tivesse sido vivida para Ele, teria sido o maior erro que se possa imaginar, porque passei minha existência dando-me, dando-me, dando-me e recebendo dos homens essa retribuição…”
Pequenas circunstâncias fortuitas levaram a que, em determinado momento, mesmo a meu respeito, ela tivesse algumas provações. Por exemplo, eu percebia que ela tinha uma certa dificuldade em compreender a razão pela qual eu dedicava tanto tempo ao nosso Movimento, deixando-a sozinha. O que eu, no meio de mil carinhos, fazia inexoravelmente por saber ser a minha obrigação.
Em certa ocasião, quando nos encontramos fortuitamente num corredor de nosso apartamento, ela me disse: “Meu filho, eu só tenho você, mas a você eu tenho inteiramente!” Vê-se que depois a Providência começou a exigir dela, até disso, um certo desapego: “Não pense em mais nada, nem em ninguém. Pense só em Deus.”
Quando, em seus últimos instantes, ela sentiu a morte chegar, fez um grande Sinal da Cruz, juntou as mãos e morreu. Esse amplo Nome do Padre tem evidentemente o caráter de uma grande aceitação, uma grande resolução e uma grande confirmação: “É o que eu queria, é nisso que eu creio!” v
Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 16/1/1981)
Revista Dr Plinio 259 (Outubro de 2019)
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