Como Dona Lucilia estimulava nos filhos o senso do maravilhoso
Muito próvida no tocante aos diversos aspectos da educação infantil, procurava Dª Lucilia orientar as tendências de seus dois filhos, Rosée e Plinio, para tudo o que há de mais elevado. Por isso, tinha extremo empenho em evitar, por exemplo, brinquedos que pudessem conduzir à vulgaridade ou incutir nas crianças uma mentalidade laica.
Preferia os que estimulassem o senso do maravilhoso ou contribuíssem para uma boa formação intelectual e cultural. Assim, ao chegar a hora de fazer as compras, saía com os filhos sem lhes manifestar sua intenção, e passava “casualmente” por uma das então melhores lojas especializadas em brinquedos, deixando-os admirar à vontade o que quisessem.
Ao analisar a reação de ambos, muito expansivos, era-lhe fácil descobrir o que mais lhes tinha agradado. Desta forma, as surpresas preparadas por ela sempre coincidiam com os anseios das crianças.
O “meu Enorme”
Um dos brinquedos dados por Dª Lucilia a Dr. Plinio, e que animou a primeira infância dele, fora um cavalinho de madeira, que ele considerava muito grande e, em conseqüência, chamava “meu Enorme”. Porém, em virtude da operação que Dª Lucilia faria na Alemanha, em 1912, “Enorme” ficou trancado no armário dos brinquedos durante todo o tempo que a família permaneceu fora. De volta do velho Continente, um dos desejos que o menino mais apressadamente resolveu satisfazer consistiu em rever seu “Enorme”, a fim de brincar com ele. Mas, qual não foi sua perplexidade ao encontrá-lo! Parecia ter diminuído de tamanho!
Sentindo viva estranheza, Plinio chegou a pensar que lhe tinham substituído maliciosamente o querido objeto. Por fim, teve de ceder à força irresistível de uma explicação bem dada: não diminuíra o “Enorme”, mas crescera o Plinio. Contudo, ele se mantinha desapontado, e continuou a rejeitar categoricamente o brinquedo. Dª Lucilia, face à atitude do filho, sorria amorosamente enternecida. Começava, para Plinio, a longa carreira dos desapontamentos que a vida traz consigo a todos os homens.
Engenhoso carinho materno
Em certas ocasiões, levada por seu desvelo, queria ela mesma confeccionar os presentes. Às vezes — apesar de doente — ficava acordada até uma ou duas horas da manhã, desenhando figuras tais como pequenas bonecas de papelão, que recortava, adornava e pintava para Rosée, com esmero único. Costumava usar um pó brilhante, feito de mica, para enfeitar os personagens nas cabeleiras e os trajes.
Mandou fazer para a filha, numa carpintaria, uma casa de bonecas e, em estilo condizente com esta, móveis por ela mesma desenhados, decorando-a depois com cortininhas e outros adornos, que acuradamente planejara e costurara. A casa se compunha de três cômodos “espaçosos”: uma sala de visitas, uma sala de jantar e um quarto de dormir.
Brinquedos preferidos de Plinio
Soldadinhos de chumbo, bem aprumados em seus belos e coloridos uniformes, faziam o encanto de Plinio. Chegou a contar mais de mil, com os quais organizava paradas, revistas e batalhas. Foi um dos brinquedos que ele mais apreciou, guardando-o depois por longos anos como saudosa recordação dos tempos de infância. Outro presente dado afetuosamente por Dª Lucilia a seu filho foi uma aldeia francesa em miniatura, brinquedo cuidadosamente escolhido por ela, não só para incentivar a imaginação do menino, que podia compor o panorama como lhe aprouvesse, mas também para lhe despertar ainda mais o gosto pelas boas maneiras. Isto porque, entre as peças integrantes do conjunto, figuravam alguns personagens que se saudavam. Um deles, por exemplo, um juiz de Direito, vestido de fraque, portava uma bengala e, em sinal de deferência, tirava seu chapéu ao cumprimentar uma pessoa que pelo caminho passava.
Entre os brinquedos comprados por Dª Lucilia, encantavam especialmente ao pequeno Plinio lindos puzzles (quebra-cabeças) importados, com gravuras de palácios, paisagens europeias, ou cenas o Oriente, como um grupo de beduínos com seus camelos, atravessando ao pôr-do-sol um deserto cujas areias eram tingidas de rubro-áureo…
Os maravilhosos contos de fada
Além dos brinquedos, outro meio utilizado por Dª Lucilia para incrementar nos filhos — e, quando oportunidade havia, também nos sobrinhos — o desejo do belo e as boas inclinações, consistia em lhes narrar histórias e contos de fada. Com efeito, a inocência conduz a alma infantil a ver tudo em proporções fabulosas, e esses contos maravilhosos são indispensáveis para apurar o senso artístico, elevar o espírito, aguçar a perspicácia e estimular sadiamente a imaginação.
Sabendo, porém, que preservação da inocência não era sinônimo de manter as crianças indefinidamente na infantilidade, e sim um modo de ajudá-las a maturar o espírito, Dª Lucilia modelava as histórias, o que constituía uma das principais atrações de suas narrativas. Contava-as com tato e bom gosto notáveis, evitando que as crianças se colocassem como participantes do enredo, mas levando-as a se deleitarem com a felicidade dos outros e a se encantarem com a existência da perfeição em todos os seus aspectos: moral, cultural e artístico. Desse modo, ao terem o choque com a vulgaridade da vida, entenderiam não dever esquecer-se dos lindos exemplos das histórias de sua infância.
O Gato de Botas e o Marquês de Carabás
Uma dessas narrações, adequadas por Dª Lucilia às mentalidades e bons anseios das crianças era, por exemplo, a história do Gato de Botas. Ao contá-la, ressaltava que o Marquês de Carabás se tornara possuidor de um imenso e soberbo castelo. E a linda carruagem que adquirira, ornada de plumas multicolores, guiada por postilhões impecavelmente trajados com a libré de sua casa e puxada por corcéis fogosos, atravessava extensos e dourados trigais, enquanto o sol, batendo em seus cristais bombeados, produzia belos reflexos…
Dª Lucilia descortinava para os juveníssimos ouvintesa beleza da caridade, ao contar que o Marquês de Carabás levava consigo uma linda bolsa repleta de moedas de ouro para, com magnanimidade, distribuílas aos camponeses que respeitosamente o saudassem pelo caminho. Depois explicava como estes, com veneração, lhe agradeciam.
Para Plinio, insaciável no desejo de conhecer os modos de ser, os costumes e até os objetos de uso pessoal do nobre marquês, Dª Lucilia não deixava de acrescentar, em cada narrativa da história, um novo detalhe. Assim, se o filho lhe perguntava:
— Mamãe, a bolsa do marquês tinha franjas?
— Sim, filhão, os fios eram delgados e muito bonitos…
— Mas, mamãe, alguma pedra ornava a bolsa?
— Claro que sim, meu filho. O fecho era um lindo topázio dourado, contrastante com o couro escuro da bolsa.
Tal era o atrativo desses contos que, por vezes, um cunhado de Dª Lucilia vinha para a sala onde ela se encontrava, rodeada pelas crianças, e ali, fingindo ler o jornal, escutava embevecido aquelas maravilhosas narrativas que, por certo, lhe davam saudades de sua longínqua infância.
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Mas, não era só através de histórias que Dª Lucilia procurava despertar nos filhos o senso do belo, do maravilhoso, e a aspiração para a nobreza e a distinção. Em nenhuma de suas ações — como, por exemplo, nas diversões por ela organizadas durante o Carnaval — deixava de estar presente esse elevado anseio. No Carnaval, dois pequenos marqueses Quão recatados eram aqueles festejos carregados de pitoresco e de alegria, dos idos de 1915, contrariamente aos de hoje, nos quais imperam o frenesi e a imoralidade! Uma das principais distrações eram os famosos corsos, tradicionais Desfiles de carros nos quais iam pessoas fantasiadas. Ao longo do trajeto, as residências, seus parques e jardins eram enfeitados com lâmpadas multicolores, e, junto aos muros, montavam-se pequenos palanques para as famílias verem passar o corso.
As fantasias procuravam manifestar mais o bom gosto do que o desejo de provocar hilaridade e fazer pilhérias. Imoralidade, nem pensar! Enfim, era um carnaval bem paulista, grave, familiar e aristocrático, no qual a mentalidade otimista, difundida pouco depois pelo cinema americano, ainda não havia entrado. Para as pessoas daquele tempo, alegria não era sinônimo de gargalhada, embora o riso tivesse seu proporcionado papel na vida.
Dª Lucilia nunca deixava de mandar fazer fantasias para os filhos. Ela mesma as planejava, procurando apresentar personagens míticos, como os das “Mil e uma noites” — marajás, guerreiros gregos ou romanos, potentados persas, princesas cobertas de jóias (falsas é claro) — de preferência a personagens burlescos, mas que também não faltavam: “pierrots”, arlequins, trovadores e outros Santos. Às vezes se inspirava em trajes franceses do “Ancien Régime”. Num dos anos ela fantasiou Rosée, e noutro, Plinio, de nobres do século XVIII, procurando, nos mínimos detalhes, aproximar-se o mais possível da realidade. Não se empenhava apenas na confecção das roupas, feitas de tecidos importados de boa qualidade, mas sobretudo em que eles tomassem atitude condizente com o traje.
O menino, de cabeleira empoada, chapéu de dois bicos, rendas nos punhos, tomava o aspecto distinto e requintado de um marquês; a menina, de saia toda rendada e toucado de marquesa, fazia elegantes reverências…
O marajá e a princesa persa, na imaginação de Dª Lucilia
No carnaval de 1917, Dª Lucilia escolheu para seus filhos os trajes de marajá e princesa persa, e eles logo quiseram saber do que se tratava. Com seu fino senso dos matizes, ela explicou pormenorizadamente que os marajás eram príncipes da Índia, os quais, como as princesas da Pérsia, habitavam fabulosos palácios, envoltos nas míticas brumas de um mundo longínquo e misterioso. Dizia isto de maneira a convidar discretamente as crianças a se porem nos papéis de marajá e de princesa persa, e a vivê-los durante alguns dias.
A fantasia do jovem Plinio consistia em vistoso turbante, que pareceria um tanto pesado se não tivesse como adorno uma delicada “aigrette”. Esta, por sua vez, era fixada por uma joia rutilante, que marcava ainda mais a nobreza do conjunto.
Na fantasia de Rosée, sobressaía a leveza do toucado de seda, ornado com várias fileiras de pérolas, três das quais, bem longas, pendiam à maneira de colares. Uma fina “aigrette” conferia mais elevação ao todo da personagem. Os bordados da blusa, as pulseiras e anéis lembravam a suntuosidade oriental, e um vaporoso tule trazia à mente o aspecto sonhador do grandioso Império Persa.
Os trajes de ambos, de seda preciosa, eram realçados por belos cinturões. E os sapatos, revestidos de cetim lilás, tinham as pontas voltadas para cima, lembrando o ambiente exótico dos maravilhosos palácios do Oriente, o que as crianças acharam de rara beleza, pois essas pontas pareciam estar moldadas como a querer alçar-se da vulgaridade do chão. Sentimento este que bem correspondia àquilo que Dª Lucilia tanto buscava incutir no espírito de seus filhos.
Plinio Corrêa de Oliveira (Transcrito, com ligeiras adaptações, do álbum biográfico “Dona Lucilia”, de autoria de João S. Clá Dias, Volume I.)
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