Ancestrais ilustres
Ao considerar a vida de um homem desde a sua remota infância, o que mais interessa é a gênese de sua mentalidade: como ela se formou, quais dificuldades ou fatores favoráveis essa formação encontrou e que esforços foram necessários para conservar e aperfeiçoar essa mentalidade. Isso poderia chamar-se a “história de uma alma”.
É preciso, então, fazer a distinção entre os pequenos episódios de uma infância e o significado que tiveram para a formação intelectual, moral e espiritual da pessoa. Freqüentemente esse significado é grande. Na existência de um menino, o fato externo muitas vezes não tem interesse nem alcance, a não ser quando visto subjetivamente em relação ao desenvolvimento interno.
Portanto, o que poderia atrair em minha história é alguma noção de como se constituiu meu espírito, os elementos de que ele se compôs e as dificuldades por ele encontradas.
Sou brasileiro por todos os lados. Não tenho em minhas veias outro sangue além do português, umas três ou quatro longínquas gotas de sangue espanhol e um pouquinho de índio, pois descendo muito remotamente, pelo lado paterno, de uma índia chamada “Salta-riacho” e, pela parte materna, de duas índias apelidadas respectivamente Mécia-açu e Mécia-mirim.
Minha família paterna
Minha família paterna é procedente do Estado de Pernambuco. Dela, a única pessoa que teve alguma influência sobre a formação de minha mentalidade foi meu pai, Dr. João Paulo Corrêa de Oliveira, sobrinho do Conselheiro João Alfredo Corrêa de Oliveira, que foi governador de Pernambuco e depois ministro da Justiça no gabinete do Visconde do Rio Branco, no tempo do Império. Posteriormente, João Alfredo se tornou presidente do Conselho de Ministros e, por sua iniciativa, a princesa Isabel promulgou a “Lei Áurea”, que extinguiu a escravidão no Brasil. Proclamada a República, retirou-se quase completamente da vida política, embora fosse um dos chefes do Partido Monarquista. Isso significava uma grande ligação de meu pai e de seu ambiente com o passado imperial brasileiro.
Papai nasceu numa cidade de Pernambuco chamada Goiana e estudou na Faculdade de Direito de Recife. Era filho de um senhor de engenho, e sua família tinha sido muito rica. Quando os alemães inventaram o açúcar de beterraba, a importação de açúcar de cana diminuiu enormemente na Europa e as famílias que cultivavam cana no Brasil empobreceram.
Na época, as ligações do Nordeste brasileiro com Portugal eram muito mais freqüentes e intensas do que com os Estados do Sul, e o pólo de atração na Europa, para os pernambucanos, não era Paris, mas Lisboa. Meu pai, então, representava em minha família uma nota especialmente brasileira e lusitana, a qual aliás se unia à nota francesa, sem conflito, formando um só conjunto. Ele conhecia canções e poesias portuguesas, era leitor assíduo de autores lusos e sua formação jurídica recebera uma forte influência portuguesa.
Era um homem do tipo robusto de senhor de engenho, um pouco brincalhão. Tendo uma saúde esplendorosa, conservada com cuidado extraordinário, possuía voz forte e de timbre agradável, dando às vezes gargalhadas sonoras, que enchiam a casa! Nesse ponto, ele era bem diferente de mamãe e vovó, com as quais era muito respeitoso e atencioso. Elas achavam graça em suas “portuguesices” nordestinas e entendiam-se muito bem com ele. Era também o mais pacífico dos homens, de boa inteligência e cultura, pitoresco e engraçado. Excelente advogado, mas com a indolência de um plantador de cana… Às duas horas da tarde ele deixava a mesa do almoço para ir a seu escritório, no centro da cidade de São Paulo, voltando para a casa às cinco horas em ponto, cansado, pois tinha vindo em bonde após um dia de muito trabalho. Trazia debaixo do braço o “Diário Popular” e “A Platéia” – jornais vespertinos do tempo –, jogava-se nas poltronas de couro, gemia um pouco, colocava os óculos para ler as notícias e ali permanecia até as oito horas da noite.
Minha família materna
Quando comecei a dar acordo de mim, meus primeiros contatos temperamentais e emotivos foram com a família materna. Considerada a grande união que eu tinha com minha mãe, Dª Lucilia, evidentemente o ambiente no qual ela vivia teve muito mais nexo com a formação de minha mentalidade.
Os Ribeiro dos Santos vieram de Portugal para São Paulo no tempo de Dom João VI. Era uma família em lenta e constante ascensão social e econômica; contava com alguns bons escritores, mas sem nada de nobreza. Na época do Império, ocupou boas posições e produziu alguns homens de destaque. Depois, no tempo da República, foi fecunda em produzir figuras eminentes para o círculo doméstico – advogados e fazendeiros – e também alguns políticos.
Formação do temperamento
A característica da primeira quadra de minha vida foi a harmonia em todos os campos. Em primeiro lugar, do ponto de vista econômico: nunca fomos uma família riquíssima, mas tínhamos esse conforto e essa grande largueza que chega quase ao desperdício, e essa distinção que chega quase até o luxo. Gastava-se sem perceber que existia o dinheiro. Todas as rendas eram muito seguras, pois provinham de imóveis. Não existiam problemas financeiros, e São Paulo era tão pouco comercial que as pessoas recorriam aos bancos apenas para recolher aluguéis e fazer outras pequenas operações. Lembro-me de que, na casa de minha avó, o capital era guardado numa burra com paredes de metal muito grossas, trancada com segredo; tão pesada que não podia ser transportada fora de casa sem chamar demais a atenção. Ali dormia a tranqüilidade da família.
Os Ribeiro dos Santos tendiam todos para o formalismo, de maneira que eram muito corteses uns com os outros, nessa intimidade cerimoniosa que torna o convívio agradável. No meu tempo de pequeno nunca presenciei uma briga em casa. Todos eram muito alegres e gozavam de boa saúde, exceto mamãe, que sofria do fígado.
O círculo doméstico era muito diferenciado do ambiente externo, apesar de haver grande facilidade nas relações sociais, que eram numerosas; a vida transcorria na calma, na gravidade, na serenidade e no bem-estar, num ambiente muito puro. Eu tinha, portanto, a impressão do homem que repousa, propriamente, no lugar que lhe convém, sem nenhuma variação ou mutabilidade.
Essas condições favoreceram muito meu temperamento, que poderia ser classificado, nativamente, da seguinte maneira: ao mesmo tempo calmo até a indolência e equilibrado até o incrível, mas muito mole e detestando brigas. Entretanto, poderia ser chamado – para um homem concebido com pecado original e, portanto, com todas as reservas que isso comporta – de fundamentalmente temperante.
“Tudo quanto possa haver de bom em mim provém da Fé Católica”
Outro fundo de quadro de minha educação foi o resto de tradição católica recebido de minha família, a qual não era nem mais nem menos religiosa que o conjunto das famílias antigas de São Paulo. Essa tradição brasileira – ainda com muito do calor e do sabor do Ancien Régime e da Idade Média – habituou-me a ver na Igreja Católica a própria base e alma desta ordem de coisas, e preparou-me para considerá-la com Fé incondicional, submissa, alegre e total, e com a admiração sem limites que, por graça obtida através de Nossa Senhora, até hoje possuo.
Declaro com enorme contentamento: tudo quanto possa haver de bom em mim provém da Fé Católica, que recebi como tradição, pois o catolicismo vivia nas almas das pessoas que constituíam o ambiente no qual me formei. A fonte verdadeira e viva de todo o bem é a Igreja Católica Apostólica Romana, com a submissão ao Santo Padre, Vigário de Jesus Cristo na terra.
Essa influência católica recebeu um apoio especialíssimo em minha primeira infância, através do convívio com minha mãe. Afirmo isso de todo o coração, pois eu a queria tanto quanto um filho pode querer sua mãe.
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