A grande decisão
À medida que eu crescia no conhecimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, analisando-O na imagem da Igreja do Sagrado Coração de Jesus, iam desabrochando no fundo de minha alma algumas zonas, as quais pediam e imploravam para serem abertas e que, no contato com Ele, encontravam a sua expansão completa.
De tal maneira que o meu espírito se tornou felizmente incapaz de funcionar a não ser em função d’Ele e da Igreja, pois constituíam o padrão segundo o qual tudo se julgava bem e, fora do qual, eu sentia que enlouqueceria.
E pensava: “Quero ser conforme a Ele! Ele é meu ideal, minha escola e meu Deus. A Ele dei a minha adesão inteira, para todo o sempre!”
Ora, tendo já passado alguns meses no Colégio São Luís, para mim a mentalidade dos meninos de minha geração era o contrário do que eu via n’Ele. Aquela divina fortaleza me parecia combinar com uma delicadeza de alma exquise1, um trato muito respeitoso, uma grande força de resolução e uma calma que não se deixava tomar pela pressa. Ele era para mim o sumo da dignidade e a própria imagem da varonilidade, inteiramente incompatível com o menino boxeur, que dizia palavras agressivas ou inconvenientes, dançava de um modo escandaloso e era aventureiro em todos os sentidos da palavra.
Um tufão monstruoso
Não se pode calcular o que era para mim o choque com o ambiente do recreio, todos os dias. Depois, chegava a casa e encontrava a compostura, a decência, a ternura e a proteção. Então, nas horas de calma e de isolamento, meditando e refletindo, lembrava-me de tudo o que presenciara.
Em certo momento, notei com muita clareza o conteúdo pagão da modernidade e o simultâneo avanço do “hollywoodismo”, do igualitarismo e do ateísmo.
Percebi que a agitação, a brutalidade, as maneiras debochadas e grosseiras, os modos vulgares de se tratar, a linguagem intencionalmente errada – até sob o ponto de vista da gramática –, e os modos de sentar-se e de falar faziam um só todo com a impureza e eram congêneres com ela.
Compreendi então que havia uma reversibilidade entre as várias tentações que as pessoas sofriam: o desejo de popularidade e de importância era cúmplice da preguiça, da inveja e da moleza. E, da parte de alguns meninos, eu notava não apenas o pendor para esses defeitos, mas para a síntese de todos eles. Examinando essa mentalidade, encontrava nela o amor ao mal.
Não custei a entender também que o recreio do meu colégio era uma miniatura do mundo. Além do mais, no bonde que eu tomava para retornar a casa, após as aulas, havia meninos de outros colégios que também voltavam para suas residências. Eu os analisava e percebia terem eles atitudes semelhantes às de meus companheiros. A mentalidade dos meus colegas formava um circuito só, não apenas no ambiente deles, mas também com um número incontável de pessoas, pois tratava-se de um movimento que transformava uma civilização, a qual outrora havia sido melhor. Esse movimento vinha como um tufão monstruoso e trazia consigo a irreligião, investindo contra a ordem, a tranquilidade, a estabilidade e a grandeza, construindo uma sociedade humana oposta a todas as tradições, fervendo de desordem, desprezando tudo o que eu amava e calcando aos pés tudo quanto indicava o bom caminho.
Esses aspectos do mal, que antes eu conhecera apenas de modo fugidio, constituíam a fisionomia da época na qual eu tinha de viver e formavam um mundo que me parecia oposto a mim, aos padres do colégio e ao que eles lecionavam, e, em especial, ao Sagrado Coração de Jesus.
Pensei: “Isso acontece em São Paulo. Ora, se a cidade é assim, é preciso não ter ilusão: essa onda vai levar a humanidade! Um mundo novo está nascendo, em que o mal é rei!”
Eu estava, portanto, diante de um movimento universal, organizado e coeso, com uma mentalidade única, a qual se exprimia sob várias formas e abrangia todos os assuntos. Percebia que ele tinha um só fundo, o qual não consistia numa causa inerte, mas viva. E esse movimento avançava com tanta expansão, segurança e força, que se tinha tornado irresistível e, se chegasse ao seu ponto terminal, teria de culminar num choque frontal com a Igreja Católica e numa tentativa de extingui-la.
Era o início da ideia da Revolução.
Os monstros da Divina Comédia
Às vezes, eu via na biblioteca de meu pai um grande livro, encadernado num vermelho muito bonito e com tranche dorée2, o qual permanecia deitado, pois não cabia de pé na estante. No dorso estava escrito: “Divina Comédia”.
Eu imaginava tratar-se de alguma obra relativa à Religião, e tinha vontade de abri-la, mas algo me levava a não pedir licença a meu pai para fazê-lo e pensava: “Verei isso um dia em que estiver sozinho, pois, como eu costumo estragar os livros, papai vai recear que eu danifique esse, uma vez que deve ser caríssimo!”
Em certa ocasião, quando ele saiu para o trabalho e minha mãe não estava em casa, tirei o livro da estante e comecei a folheá-lo. Era uma edição de luxo da famosa obra de Dante, com gravuras de Gustave Doré.
Esse artista francês conhecia a Divina Comédia e gravou as cenas exatamente como o autor as descrevia. Eu não conhecia do Italiano senão os poucos fiapos que qualquer brasileiro sabe, pela semelhança dessa língua com o Português, mas, a partir das ilustrações, entendi mais ou menos do que se tratava.
Apareciam ali figuras de anjos, constituindo os seus coros em grandes círculos brilhantes, cada vez mais amplos, mas, sobretudo, seres monstruosos, com aspectos horríveis e dando gargalhadas horrorosas, muito bem representados. Fui olhando e pensando: “Mas, este é o mundo de hoje!”
Eu não empregava ainda a palavra “Revolução”, mas dizia: “É isso! Esse Dante, cujo pensamento não chego a compreender bem, reduziu ‘isso’ a gravuras! Este é o álbum do mal! Eu reconheço aqui os risos de tal homem, o ódio daquele outro; vejo acolá a hipocrisia daquele outro e, mais além, a falta de limpeza daquele outro. Aqui eu reconheço tudo!”
Sempre fui muito levado a relacionar as coisas, umas com as outras, formando assim, através de certos símbolos, ideias globais da realidade.
Pouco mais tarde, ouvi uma pessoa usar a seguinte expressão francesa:
– “Plus ça change, plus c’est la même chose”3.
Encantei-me com a formulação e pensei: “Assim é o tal ‘isso’ misterioso, soma de todos os animais malditos da Divina Comédia e de todos os males, que evolui a todo momento, de maneira a se requintar! ‘Isso’ sempre muda, para ser cada vez mais igual a si mesmo, e quanto mais muda, mais é a mesma coisa!”
O “estalo” e o grande encontro
Ao longo dos tempos, eu conhecera a Igreja Católica por meio de ascensões sucessivas. Tivera em relação a ela aceitações e entusiasmos, sem nenhuma restrição, andando de luzes em luzes, cada vez mais intensas. Discernira bem a divindade da Igreja e rezava com muito boa vontade, piedade e enlevo desanuviado, mas sem especial fervor, talvez pela pouca idade e pela ausência de lutas espirituais intensas.
Entretanto, nessa época, deu-se um “estalo” em minha mente e eu compreendi de repente, com muita nitidez, algo que, até então, não estava tão claro para mim: toda essa batalha que eu presenciava…
Toda essa batalha que eu presenciava tinha como centro a Religião.
Em última análise, quase tudo o que os meninos maus faziam, era proibido pela doutrina católica, e tudo aquilo de que eles caçoavam era mandado por ela. Eles assistiam às aulas de Religião e repetiam as lições; alguns até rezavam, se confessavam e comungavam, mas, no dia seguinte, soltos no recreio, voltavam à impiedade e à imoralidade, pois estavam entregues completamente à influência revolucionária. A Fé era a grande virtude velha, arrastada pela corrosão do tempo, para a qual as novas gerações voltavam as costas, dando risada.
No fundo, aquela era uma luta religiosa: tratava-se de ser ou não ser como Nosso Senhor havia determinado; como a Igreja Católica mandava e como ela contava que os santos tinham procedido.
Entendi que a Igreja Católica era o único fundamento e o único sentido de tudo aquilo que me agradava. Ela era o suporte, a explicação, o fim, o centro e a luz da verdade, da santidade e de tudo o que eu amava – inclusive da bondade na ordem temporal – e o próprio foco da oposição ao mal. Portanto, devia ser mais amada do que todas as coisas que eu prezava. Ela era a realidade supremamente boa, e esse bem estava, sobretudo, em Nosso Senhor Jesus Cristo.
Então, de modo providencial, acentuou-se a influência da Igreja do Sagrado Coração de Jesus sobre mim.
Eu olhava as fisionomias das imagens dos santos e refletia: “Está vendo? A Igreja deseja que as pessoas sejam assim, e não tenham as maneiras aloucadas e irreverentes que quase todo o mundo vai adotando ao meu redor. Um santo, desses que estão nos altares, se fosse menino e vivesse no meio de alguns dos meus colegas, seria linchado e escorchado, pois eles são o contrário da santidade! Ou seja, esse bloco de magnificências que vejo na Igreja, e no alto do qual está o Sagrado Coração de Jesus, é o oposto dessa nova mentalidade!”
Portanto, o encontro com o adversário fortaleceu a minha inocência, e o conhecimento da Revolução me levou, na ordem do pensamento, a explicitar e amar, com maior intensidade, muitíssimas coisas da Igreja que eu via serem atacadas. Nessa ocasião, comecei a contemplar a Igreja enquanto militante e nasceu em mim a concepção contrarrevolucionária da Religião, como força perseguida que nos apresenta as verdades eternas, salva as nossas almas e nos conduz para o Céu, imprimindo em nossa vida um estilo, o único que torna a existência digna de ser vivida.
Passei a notar melhor, também, que os encarregados de ensinar a doutrina da Igreja e de ministrar os Sacramentos constituíam uma classe, a qual era o próprio vaso de eleição, que tinha não apenas a incumbência, mas inclusive o espírito e as graças necessárias para cumprir a sua missão. O clero era o cerne da Igreja, mas eu percebia que os seus membros viviam numa atmosfera própria e nem sempre percebiam o que acontecia no mundo. Portanto, era preciso que alguém conduzisse, no meio dos meninos, a batalha a favor do que os padres representavam.
Esse foi o meu grande encontro com a Igreja e com o Sagrado Coração de Jesus, muito mais sério e profundo do que os enlevos da minha primeira infância. Eu tinha cruzado um marco da minha história e começava realmente a viver.
Isolamento
Entretanto, quando verifiquei a existência da Revolução, constatei também a minha posição diante dela. Entendi que eu representava um tipo de menino e um programa de vida incompatíveis com a onda moderna.
Em relação ao padrão adotado por meus coetâneos, eu estava carregado de defeitos, reunindo e somando todos os ridículos: além de ser puro, tinha maneiras tradicionais, confessava-me e comungava. Por outro lado, eles eram muito vivazes e eu pensativo; eles eram agitados e eu muito calmo; eles eram engraçados e eu nunca conseguia sê-lo; eles achavam bonito tomar atitudes de cowboys, mas eu detestava esses modos e tomava o ar do mais pacífico dos meninos.
Pensava: “Então, apenas eu sou diferente? Estou inteiramente só?”
Foi uma enorme surpresa que marcou a minha infância. Definia-se para mim um isolamento que antes não sentia, pois, na minha inocência primeva, eu convivia sem problemas com as pessoas, na alegria da consonância e da benquerença.
Precisava agora instalar-me nessa nova situação, mas, se desejasse me encaixar bem nesse mundo no qual iria viver, teria de mudar completamente o meu modo de ser e tornar-me semelhante aos outros meninos, pois, se assim não fizesse, seria combatido ao longo de toda a minha vida e deveria carregar a cruz de uma solidão enorme, amarga e profunda.
Medi o tamanho da luta que teria de enfrentar, se quisesse ser fiel, e esta era tão gigantesca, que eu fui tentado a pensar: “Quem sabe se eu saísse dessa luta, para levar uma vida muito apagada, num cantinho…?”
A alternativa
Então, percebi que tinha de escolher entre duas vias e dois padrões: aceitar a influência hollywoodiana, mudando de ideias e renunciando ao meu modo de ser, para me adaptar ao ambiente do colégio e ao mundo em geral, ou manter-me na minha posição.
Era uma luta interna: “Como vou ser?”
Na primeira hipótese, a minha vida seria cômoda, suave e agradabilíssima, mas eu sentia que, de algum modo, renunciaria à Igreja do Sagrado Coração de Jesus e à mamãe. Teria de entrar numa combinação com os maus, tácita ou explícita; acabaria por deixar de rezar, abandonaria a Fé, deixaria as tradições e passaria a gozar de uma vida cada vez mais acelerada, ateia e materialista. Jogar-me-ia na felicidade da modernidade, mas se apagariam todos aqueles fogos áureos da inocência, aqueles sóis de minha infância.
Eu cometeria assim uma hipocrisia, uma insinceridade e uma espécie de suicídio moral, pois estava persuadido de que a verdade estava com a Religião Católica e com os estilos tradicionais conformes a ela.
Na segunda hipótese, eu teria uma infância dura e árdua, pois a fidelidade aos meus ideais me colocaria contra todos os meninos do meu recreio. Deveria passar a vida inteira numa luta tremenda, de certa forma contra tudo e contra todos, pois, no meu ambiente social, a generalidade das pessoas aderia à mentalidade nova, inclusive alguns parentes e amigos muito chegados. Quase não haveria lugar para mim no mundo, pois começaria uma perseguição de caçoadas, de debiques e de isolamento, que faria de mim um menino odiado ou desprezado.
Eu estaria cercado por uma opinião geral, a qual desejava algo que eu temia mais do que o meu próprio extermínio: a minha desfiguração. E, se me abrisse para qualquer um dos aspectos revolucionários do mundo moderno, por mais insignificante que fosse, abrir-me-ia para todos os outros. Deveria, portanto, empreender um combate total ou não teria nada feito.
E pensava: “Há uma tentativa de me destruir, da parte de alguns. Embora não o digam, o sentido da vida deles não é a sensualidade – como poderia parecer – mas é destruir aquilo que amo e segundo o que eu sou. Portanto, o sentido da vida deles, como o da minha, será o de ganhar essa batalha”.
Eu possuía a seguinte convicção: se quisesse, seria possível reagir e encontrar um caminho nessa luta, pois quem abraçasse a causa da Igreja, ainda que esta parecesse derrotada, adotaria a causa vitoriosa por excelência, uma vez que ela jamais seria vencida, devido à promessa formal de Nosso Senhor. Eu notava bem que, se duvidasse da divindade da Religião Católica, todo o meu “edifício” interior balançaria, pois, não tendo a certeza de que Jesus Cristo era o Homem-Deus, não poderia confiar na realização da palavra d’Ele, nem no valor da promessa da indestrutibilidade de sua Igreja. Ora, eu tinha essa certeza de modo indiscutível e absoluto.
Além do mais, eu olhava para dentro de mim mesmo e notava tanta pureza e retidão, tantos brilhos, luzes e ideais, aspirações tão nobres e elevadas, que eu percebia procederem elas de uma fonte que não era eu. Tratava-se de um lumen4 incomparavelmente superior a mim mesmo: a graça divina, sobre a qual, entretanto, eu ainda não possuía uma noção exata. Entendia que, no fundo, tudo isso provinha de Deus e correspondia bem à minha natureza, de maneira que eu tinha o direito de ser assim, e não abriria mão desse direito por nenhuma forma.
No fundo, o problema consistia em escolher entre o caminho do prazer ou a via do dever.
A decisão
Não levei muito tempo duvidando, optei pela luta e decidi:
“Eu sou católico, apostólico, romano! Não acredito, nem aceito nada que não seja católico! Não abandonarei a Religião única e verdadeira, nem deixarei de ser casto, por causa dessa gente! Nunca me tornarei semelhante a eles! Tenho de resistir! Aquilo que eu amo deve ser servido!
“Aconteça comigo o que acontecer, vou destoar desse mundo! Serei a favor da compostura, da pureza, da hierarquia e da Igreja, ainda que no futuro eu tenha de ser o último dos homens, isolado, desconsiderado, objeto de escárnio, pisado, esmagado e triturado. Esses valores confundem-se comigo e com minha vida! E a minha atitude está tomada para todo o sempre!
“Será preciso entrar numa luta? Está bem, então aprenderei a lutar e, se for preciso, viverei lutando. Por enquanto, vou me ‘construir’ a mim mesmo, o quanto puder…”
Era patente que essa luta iria tomar a minha vida inteira, pois o processo do mal se desenvolvera em muitas gerações anteriores à minha e não iria se extinguir rapidamente. Eu percebia também que, nessa luta, o meu futuro mundano estaria desfeito, pois eu renunciava àquilo que todo o mundo considerava prestigioso: ter boas relações e grande vontade de ganhar dinheiro. Entendi que eu não iria ser um homem rico nem gozaria a vida, mas teria uma existência dura, econômica e tormentosa, mas desejei isso, pela fidelidade a Nosso Senhor Jesus Cristo e à Santa Igreja Católica, Apostólica e Romana, luz suprema de minha vida!
Foi um ato de fidelidade corajosa, pela recusa de abandonar a inocência. Porém, essa decisão nunca me impediu de ser alegre e de gozar dos pequenos nacos bons que a vida me dava. Não me tornei por isso uma pessoa triste, revoltada nem misantrópica. Era como se me revestisse de uma personalidade nova, conquistada à força, mas sem deixar a antiga.
Por outro lado, eu considerava as ruínas do passado: os resíduos de hábitos, costumes e mentalidades, os quais constituíam restos de tradição. Percebia perfeitamente que tudo isso tendia a acabar e, a partir daí, fui conhecendo, analisando e admirando gradualmente o passado da Civilização Cristã. Amei essas ruínas e resolvi dedicar-me para evitar a sua destruição, a fim de que durassem o maior tempo possível.
Por isso, em certa ocasião, tratando sobre esse período de minha vida, escrevi:
“Quando ainda muito jovem,
Considerei enlevado, as ruínas da Cristandade,
A elas entreguei o meu coração
Voltei as costas ao meu futuro,
E fiz daquele passado carregado de bênçãos
O meu Porvir…”
No fundo, havia nascido em mim a ideia da Contra-Revolução.
Explicitando uma vocação
À vista de tudo isso, dir-se-ia que a minha vocação nasceu nesse momento, mas essa afirmação é suscetível de certo aprofundamento.
Imaginemos um artista que pinta uma árvore. Ele a representa como ela aparece a quem a vê, mas, na realidade, ela não é apenas aquilo, pois existem as raízes, as quais não figuram no quadro. Ou seja, o primeiro capítulo da história de uma árvore consistiria em discorrer sobre as suas raízes, embora se tratasse de uma vida subterrânea e, portanto, invisível. Assim também pode-se dizer que a minha vocação se manifestou nos fatos por mim narrados, mas tem raízes que possuem uma história própria, com profundidades de alma não acessíveis à primeira vista.
Qual é, então, a origem da minha vocação?
Vivendo em meu ambiente doméstico, eu via nele algo que me agradava sobremaneira e ao qual aderi de toda a alma, pela minha tendência para tudo quanto era sublime, magnífico e pulcro. As coisas me compraziam na medida em que possuíam pelo menos algum traço de sublimidade e de magnificência; desagradavam-me quando não o tinham e me causavam repulsa quando eram o contrário disso, ou seja, caricatas, vis e apalhaçadas. Era a graça da vocação no seu primeiro e mais tênue filamento ou, de certo modo, no mais vigoroso de seus filamentos, pois daí deveriam brotar todos os outros. Foi por ter dado essa adesão à sublimidade que, encontrando algo que a contrariava, minha reação foi tão forte. Ou seja, o amor ao maravilhoso foi o primeiro élan5 de minha alma e me levou a recusar o oposto.
Nesse sentido, a terrível surpresa no Colégio São Luís me fez bem, pois produziu um choque que me definiu e tornou possível uma explicitação, fazendo com que a minha vocação se me apresentasse com muita clareza no seu aspecto essencial.
Esse acontecimento foi muito ajudado por dois fatores.
Em primeiro lugar, a minha frequência à Igreja do Sagrado Coração de Jesus e o enlevo que ela me causava; em segundo, mamãe, que me preparou para esse enfrentamento, inspirando-me um amor muito intenso a todo o bem contra o qual a Revolução colidia, de maneira que, na ocasião do choque, eu me senti na presença do contrário daquilo que havia recebido da influência materna, com a qual o meu temperamento tinha tanta afinidade.
Pelo exemplo, de mamãe eu aprendera – entre outras coisas – a intransigência no que diz respeito ao dever, o qual tinha de ser cumprido a todo o custo. Mesmo se fosse preciso enfrentar dificuldades ou até inimizades, sem nenhuma vantagem pessoal, era preferível arrastar o tormento pela vida afora – como Nosso Senhor Jesus Cristo carregara a sua Cruz – a abandonar o dever.
Então, a cada dia, retornando do colégio, ao entrar em casa, encontrava aquele olhar castanho, bem escuro, tranquilo, sério e atraente, o qual me parecia trazer consigo as reflexões, a seriedade e a calma desse passado que a modernidade recusava. E eu pensava: “Entre esse olhar e o mundo de Hollywood, prefiro o primeiro!”
Uma grande missão
Esse grande choque com a Revolução e essa explicitação me fizeram entender, de maneira clara, que deveria ser operada uma transformação completa no mundo, para que ele voltasse a ser verdadeiramente cristão e modelado de acordo com o espírito do Sagrado Coração de Jesus.
Eu estava convencido de que tudo deveria mudar, não por uma lenta evolução, mas num só momento, através da coligação dos bons. Olhava em torno de mim e percebia com clareza que essa obra demolidora do mal, no seu conjunto, não era contestada por ninguém. Logo, Deus queria de mim que eu o fizesse.
Então, de modo um tanto confuso, tinha o pressentimento de que Ele haveria de me chamar para uma grande obra, uma missão extraordinária, a qual comportaria muito sofrimento, perseguição e menosprezo, mas, em certo momento, redundaria numa imensa vitória, acompanhada de muito destaque. E parecia-me que todos os acontecimentos iriam ser conduzidos pela Providência para chegar até esse ponto.
Evidentemente, esse destaque não era a razão pela qual me movia, pois só desejava o triunfo da Igreja. E, já naquela ocasião, Deus me dava o desapego suficiente para querer fazer aquilo que eu sabia ser meu dever, mesmo se, em certo momento, compreendesse que não era chamado a essa vitória, mas à derrota.
Para realizar essa obra, eu imaginava uma vida “carolíngia” atualizada, mas sentia que precisaria ter um primeiro núcleo de amigos, cuja vida deveria ser dedicada a esse ideal, pois eu sozinho não conseguiria fazer nada. Começava a nascer a esperança de que, um dia, apareceriam no meu caminho colegas, os quais pensariam como eu e me ajudariam a formar uma vasta organização de pessoas para combater e vencer a Revolução, dizendo as verdades que deviam ser ditas. Mas a condição para a existência dessa instituição era encontrar meninos puros e cheios de Fé. Naturalmente, o primeiro passo era procurar esses companheiros.
Vagamente, formou-se no meu espírito a ideia de uma residência destinada a todos os jovens que se consagrassem a esse ideal, sob uma certa disciplina.
Então refletia: “Sou muito jovem, tenho meia dúzia de pequenos recursos intelectuais e percebo bem que posso vir a ser um homem com um pouquinho de capacidade. Vou aproveitá-la para virar esse mal de pernas para o ar! E não vou fazer isso apenas quando for mais velho, mas vou começar já!”
Um menino que disse “sim”
De outro lado, tinha a ideia de que inúmeras outras almas, pelo mundo afora, inclusive entre os meus colegas, eram muito mais dotadas do que eu em matéria de inteligência e capacidade. Eu figurava razoável e decentemente, de modo comum e corrente, entre os bem dotados, ou seja, também possuía inteligência e boa educação, mas parecia-me não ter o papel brilhante de alguns outros, donde chegava à conclusão de que eles haviam recusado a graça.
Portanto, ao encontrar um que estava resolvido a fazer o sacrifício de dizer “sim”, Deus o chamara, mas quase com pesar e frustração.
O colosso com pés de barro e a fraqueza dos bons
Eu via ainda, no meu horizonte, uma série de fatores sociais e de circunstâncias contrárias à Revolução, e o bem me parecia potencialmente muito forte. Tinha a noção de que ainda existiam numerosas pessoas boas, sinceras, honestas, dignas e respeitáveis – especialmente nas gerações anteriores à minha –, as quais entrariam na luta junto comigo, rumo a uma vitória muito provável.
Também, no meu ambiente de colégio, observava que muitos meninos quereriam proceder de modo virtuoso, e o fariam se não tivessem maus líderes que os conduziam para o mal. Portanto, se aparecesse uma boa liderança, eles talvez a aceitassem alegremente. Então, era possível travar uma batalha e vencê-la!
Nascia em mim a convicção de que a Revolução era derrotável, como um colosso com pés de barro, o qual poderia ser derrubado com recursos relativamente modestos, se os autênticos filhos da luz se lançassem à tarefa, utilizando os meios, as táticas e as estratégias necessárias para tocar os pontos fracos dele. Disso eu não tinha a menor dúvida, pois sabia que Deus estava com os bons e desejava a vitória deles.
Por outro lado, via que haveria de chegar um momento em que o colosso se cansaria. Essa seria a hora de deitá-lo por terra.
Entretanto, eu percebia uma grande dificuldade da parte dos bons. Eles não eram combativos, nem lutavam contra a Revolução, por não conhecerem as verdadeiras técnicas para fazê-lo e por não verem toda a maldade dela. Também não eram capazes de se estruturarem agilmente e daí vinha para eles um desânimo que os tornava “azarados” e derrotados de antemão, impedindo-lhes qualquer sucesso ou conquista. Eram fracos na medida em que eram bobos e moles, o que me deixava muito entristecido.
Pelo contrário, o campo do mal agia com todos os jeitos, habilidades, espertezas e audácias. De maneira que, naquela situação histórica, o bem estava continuamente sendo golpeado, enquanto o mal sempre avançava. Eu via assim uma aurora radiosa do mal e um ocaso melancólico do bem, e vinha-me a ideia de um passado em que os bons eram fortes e espertos.
Porém, eu adquiri a noção de haver nascido para inverter esse jogo de forças. A minha missão consistiria, então, na tarefa de encontrar os bons que ainda tivessem alguma vitalidade, chamá-los, curar a cegueira deles, mostrar-lhes esse panorama, transformá-los em guerreiros, coligá-los, coordená-los e conduzi-los à luta, dotados de uma tática que era a decorrência imediata dessa visão da situação concreta. Então, o jogo se inverteria e começaria a surgir, para os que assim lutassem, uma série de possibilidades, de novidades e de venturas, que os levariam à vitória.
Entretanto, com o passar do tempo, constituiu-se um novo elemento da minha convicção: o papel da ordem do universo, na luta entre o bem e o mal.
1 Requintada, primorosa, excelente.
2 Corte das páginas tingido de dourado.
3 “Quanto mais isso muda, tanto mais é a mesma coisa”.
4 Luz.
5 Ímpeto, impulso.
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