A Idade Média
Nos festejos do carnaval paulista de outrora, o ambiente era muito moralizado, inocente e preservado. Nessas ocasiões, as famílias se trajavam especialmente bem e participavam de um desfile chamado corso, em automóveis cujas capotas de lona eram abaixadas. As moças iam sentadas em almofadas sobre o toldo recolhido, enquanto os rapazes permaneciam de pé nos estribos – hábito que eu cumpria sem muita vontade – jogando serpentinas e usando lança-perfumes.
O corso subia pela Avenida Angélica e dava uma volta pela Avenida Paulista, na qual se encontravam as casas mais ricas da cidade.
No corso da Avenida Paulista
Eu gostava muito desse desfile e, sobretudo, agradava-me enormemente olhar as bisnagas que as pessoas traziam, as quais continham um perfume francês, de marca Coty, o qual tinha uma cor azulada maravilhosa, que me encantava. Entretanto, a melhor parte do corso, para mim, dava-se às sete ou oito horas da noite, quando Dª Lucilia abria uma cesta, onde havia toda espécie de sanduíches e bebidas. Era o ponto auge!
A um dos corsos de que participei, tendo onze ou doze anos de idade, meus pais não compareceram por uma razão de que não me lembro. Então, Rosée, Ilka e eu fomos entregues aos cuidados dos irmãos de vovó. E de tal modo brinquei com serpentinas e confete, fazendo todo tipo de gentilezas às pessoas, que, no fim da tarde, mesmo dos automóveis que passavam ao longe, muita gente, a quem eu nem conhecia, cumprimentava-me e fazia-me sinais.
Chegando a casa, os meus tios comentaram:
– O Plinio tem uma grande popularidade na sociedade de São Paulo! É algo de impressionar! Ele conhecia as pessoas do corso, de ponta a ponta!
Eles não perceberam que eu não conhecia quase ninguém, mas tivera apenas enormes expansões de sociabilidade pernambucana – talvez com um pinguinho de charme dos Ribeiro dos Santos – pela vontade de ser gentil, o que foi muito apreciado pelos presentes. Nos carnavais posteriores, entretanto, eu me contive e então a minha “popularidade” diminuiu muito.
Chapéus medievais
Algum tempo depois do meu encontro com Carlos Magno, eu participava de um desses corsos de carnaval com meu pai e minha avó, num veículo aberto. O tempo estava bonito e, quando saímos da Avenida Angélica e entramos na Avenida Paulista, à direita, passaram diante de nós vários carros, os quais começavam o seu giro numa velocidade lenta.
De repente, vi de longe um automóvel com duas ou três moças sentadas, trajadas de Rosa de Tannenburg ou Genoveva de Brabante. Não sei quem eram, nem prestei atenção nas fantasias delas, pois o que me entusiasmou de imediato foram os chapéus! Estes eram em forma de cones muito altos e belos, colocados de modo um pouco oblíquo para trás, e de cujas pontas pendiam grandes véus de tule que o vento fazia flutuar.
Era a primeira vez que eu via chapéus desse tipo.
Nem sabia que eram medievais, mas fiquei encantado, deixei o jogo das serpentinas e pensei: “Que maravilha! Que coisa digna, linda e fantástica! Aquilo é chapéu! Então… existiram pessoas que se vestiam dessa maneira? Que gente formidável deve ter sido! Esse é o chapéu que as mulheres deveriam usar, muito superior, a perder de vista, a essas coberturas que elas põem na cabeça hoje em dia!”
Aqueles chapéus pareciam-me simbolizar um estado de espírito excelente, e exprimir a sublimidade própria ao sexo feminino. O cone dava-me a ideia de uma certa ponta do pensamento humano, muito adelgaçada, elevada e quase invisível, destacando-se do físico e do concreto, rumando para o metafísico e o vaporoso, e chegando até o mais alto, mas depois escoando em conclusões imponderáveis, cheias de pureza e delicadeza, vibrando sobre o conjunto da sensibilidade humana à maneira de uma gaze ligeira e quase transparente, que tremulava ao vento de um lado para outro.
Na realidade, eu já tinha antes a ideia subconsciente – proveniente da inocência – de um tipo de chapéu que simbolizasse a retidão e fosse o complemento natural da cabeça humana feminina na sua nobreza. Nessa ocasião, eu o encontrei.
Tive vontade de segurar aqueles chapéus. Se pudesse, faria parar o automóvel daquelas moças e diria a uma delas:
– Não se mexa, pois quero ver como é seu chapéu!
A pessoa mais próxima de mim era meu pai, o qual estava brincando e se divertindo, jogando confetes e dando risadas. Então perguntei:
– Papai, o que é aquilo?
Ele respondeu-me:
– Nada de especial.
– Mas, que espécie de chapéu é aquele?
– Ah! Um chapéu da Idade Média.
Entendi que não devia fazer mais perguntas, mas exclamei interiormente: “Oooh! Idade Média! Esse nome é uma pista, a qual deve ser conexa com muitas outras coisas boas… Vou retê-lo na memória e depois investigarei o que foi a Idade Média, pois ela tem algo para mim! Algum dia encontrarei uma explicação a respeito da beleza desse chapéu! No fundo, ela é religiosa! Ela é a fórmula e a solução para tudo!”
Aquele automóvel continuou e eu o perdi de vista, mas o meu coração havia encontrado a pátria que procurava! Parecia que uma nuvem de ouro passara sobre mim e certa parte dormente de minha alma havia despertado, simplesmente ao ver os chapéus cônicos. E, ao mesmo tempo, tive a impressão de rever um velho conhecido!
Esse foi o meu segundo frisson1 de entusiasmo em relação à Idade Média.
Outros enlevos com a Idade Média
Então, comecei a aplicar minha atenção à Idade Média. Li algumas referências a esse período da História numa revista brasileira daquele tempo, chamada “Eu sei tudo”. E assim fui dando desenvolvimento ao meu encanto, ao descobrir que houvera outrora uma civilização maravilhosa, da qual se encontravam restos aqui, lá e acolá.
Um ou outro cartão-postal e certas fotografias da Europa causavam-me frêmitos na consideração das construções medievais: catedrais, castelos, torres, campanários e inclusive ruínas.
Em certo momento tive um outro encontro, no qual se repetiu o émerveillement2 que eu sentira diante dos chapéus cônicos: conheci as ogivas góticas. A primeira que vi deixou-me fora de mim, de encantamento! Eu procurava explicar para mim mesmo por que ela me falava tanto, pois aquele arco dava-me a impressão de ser o ambiente adequado à minha alma. Desde as primeiras vezes que vi os edifícios góticos, dei-lhes a minha adesão entusiástica e tive a sensação de redescobrir algo que já conhecia. Pareciam coincidir com uma meta elevadíssima de perfeição moral e artística.
Contemplava representações de vitrais, armaduras, guerreiros com penachos, damas com bonitos chapéus – que encontrei folheando o dicionário Larousse –, iluminuras e também o mundo da heráldica, com seus brasões, o qual começou a luzir para mim, como se fosse um conjunto de vitrais sem vidro. Tudo isso me dava a ideia de um universo maravilhoso e, sempre que eu descobria algo da Idade Média, sentia um verdadeiro estremecimento!
Certo dia, vi a fotografia de um pequeno e pitoresco castelo, o qual enchia quase todo o território de uma ilha no Reno. Encantado, mostrei-a a alguém, que me disse:
– É bonito, mas, você sabe para que servia isso?
– Não sei. Creio que para morar.
– Não, não! Você é muito bobo! Essa ilha era um antro de bandidos. Eram senhores feudais que, quando viam chegar um navio, avisados de longe por uma corneta, desciam às margens do rio e obrigavam os viajantes a pagar um imposto sob pena de não irem adiante.
Não me lembro quem foi a pessoa que me contava isso, mas ela estava contente de poder esmagar o encanto que eu tivera pelo castelo… Olhei novamente a fotografia e pensei: “Pode ser verdade, mas não posso me explicar como esses bandidos imaginavam uma casa que parece feita para nela morarem santos e, pelo contrário, os homens de hoje constroem casas que parecem próprias para os bandidos!”
E assim, de migalha em migalha, construí a minha noção sobre o mundo medieval e amei-a o quanto eu podia, entendendo de modo intuitivo que todos os aspectos da Idade Média constituíam um todo cheio de harmonia. Vinha-me a ideia de uma ordem, que era, no fundo, a expressão temporal da Igreja Católica, Apostólica e Romana, e, portanto, o suprassumo do bem!
Entretanto, eu me perguntava: “Como acabou a Idade Média? Quando? Por quê? Não voltará mais? Se ela não retornar, vale a pena viver neste mundo?”
Era, no fundo, uma forma de amor a Deus, para a qual eu era chamado e que dizia respeito a uma visão de todas as coisas.
A Cavalaria
Com o tempo, conheci melhor algo que amei superlativamente e passou a ser uma das minhas grandes admirações: a Cavalaria.
Lembro-me da primeira vez que vi a figura de um cavaleiro, de lança em riste. Como achei bela a lança! Ela me parecia representar a virtude do cavaleiro.
Comecei a saborear a palavra “Cavalaria” e compreendi que ela era como uma misteriosa pedra preciosa – um brilhante ou um rubi – que rutilava com uma luz vinda de dentro de si mesma. Um cavaleiro! Esse título parecia trazer uma beleza, uma dignidade e uma distinção extraordinárias.
Naqueles remotos tempos, o termo se usava mais do que hoje e, algumas vezes, eu recebia repreensões da minha Fräulein com a recomendação de ser um cavaleiro. À mesa, por exemplo, eu tinha a tendência de deixar cair sopa da colher e de cortar mal a carne, fazendo tudo muito distraído. Então, ela dizia:
– Pssst! Olhe lá! Um cavaleiro não deixa cair um grão de arroz! Recolha esse que caiu! Um cavaleiro não toma um grão de arroz com seus dedos! Faça-o com a colher!
Depois dizia a uma empregada:
– Troque essa colher, pois está suja.
A palavra “Cavalaria”, para mim, tinha som de ouro, mas às vezes batia como uma chicotada, e nisso me fazia um grande bem.
Conhecendo as Cruzadas
Certo dia, ouvi falar sobre as Cruzadas. Então perguntei:
– O que eram as Cruzadas?
Alguém me respondeu, muito sumariamente:
– Ah! Eram expedições de uns guerreiros que iam libertar o Sepulcro de Jesus Cristo.
– Mas, conte isso! Houve guerreiros que foram libertar o Sepulcro de Jesus?!
– Houve… Na Idade Média, aqueles tempos recuados…
– Mas, quem oprimia o Sepulcro de Nosso Senhor Jesus Cristo?
– Os maometanos.
– Quem eram os maometanos?
– Gente que havia por lá e que aderiu a um tal de Maomé, o qual não admitia Jesus Cristo como Deus. Esses guerreiros não queriam que os maometanos tomassem conta do Sepulcro. Você sabe… Essas guerras de religião do passado…
– Ah! Houve muitas guerras de religião no passado?
– É. Fanatismo religioso…
Pensei: “Mas eu, só de ouvir falar sobre Cruzadas, sinto-me no auge de meu fervor. Que beleza!”
Eu não achava a guerra melhor do que a paz, evidentemente. Preferia que todos tivessem a paz de Cristo no Reino de Cristo, mas percebia que isso nem sempre era possível e comecei a compreender melhor o heroísmo.
Em certas ocasiões, vinham parar em minhas mãos alguns álbuns de literatura infantil representando figuras de cruzados. Por exemplo, eu me entusiasmava vendo os gisants: túmulos com estátuas de guerreiros, revestidos de suas armas e repousando… E pensava: “Isso não é morrer, mas descansar à espera do Céu! Sei bem que embaixo está enterrado o corpo do cruzado, o qual, depois de tantos séculos, provavelmente já se transformou em pó, mas quem viveu e morreu com esse espírito está no Céu! Que maravilha! Por que a Providência não me fez nascer na época dos cruzados?”
O Santo Sepulcro
Assim se formou em mim a ideia do cruzado: era o soldado do Sepulcro de Nosso Senhor Jesus Cristo! Eu havia lido na História Sagrada que Jesus havia sido morto e, nas aulas de Catecismo, aprendera que Ele tinha vertido o seu Sangue para redimir o gênero humano. Eu inclusive conhecia pinturas representando a descida da Cruz e o sepultamento, e sabia perfeitamente que Ele ressuscitara no dia da Páscoa. A narração do Evangelho estava bem presente na minha memória, mas nunca tinha pensado que ainda poderia existir o seu Sepulcro, esse lugar sacratíssimo, santuário incomparável, no qual o Corpo d’Ele tinha permanecido e onde se dera a glória da Ressurreição.
Quando me falaram do Santo Sepulcro, dei-me conta de que o túmulo d’Ele ainda existia e era possível venerá-lo.
Há algumas expressões que falam à fantasia e tomam para o ouvido humano certa musicalidade. Para mim, as palavras “Santo Sepulcro” parecem, desde aquele tempo até hoje, exprimir tão bem o que há de sagrado no túmulo de Nosso Senhor, que as próprias sílabas parecem musicais: “Santo Sepulcro de Nosso Senhor Jesus Cristo”… Palavras augustas e respeitáveis!
Eu imaginava que nele dever-se-ia entrar de joelhos, pois o homem não pode calcar com os pés o local onde o Corpo do Salvador repousou. Se fosse possível, eu quereria beijar aquele recinto, milímetro por milímetro. Vinha também a ideia de que o interior do Santo Sepulcro tinha uma cor profunda, mais ou menos como se um líquido com a tonalidade de um vinho Bourgogne impregnasse um veludo. Na minha sensibilidade, assim seria aquela pedra, toda marcada pelo Sangue sacrossanto d’Ele.
Então, a ideia de defender aquele Sepulcro me entusiasmava. Assim, as Cruzadas deram-me um matiz indispensável, pelo qual eu consegui a harmonia de alma que procurava. É bem evidente que, em todas as impressões que a noção de Cruzada me trazia à mente, eu encontrava um equilíbrio entre a bondade e a força, o qual poderia dar-me a esperança de praticar ambas as virtudes até o fim da minha vida.
Contemplação diante dos soldados de chumbo
Como já contei, eu tinha um bom número de soldados de chumbo, chegando a possuir 1.100 deles. Naquele tempo, não havia em São Paulo soldadinhos representando cruzados, mas, se eu os encontrasse, deliraria de encantamento! E se um deles representasse Carlos Magno, eu seria capaz de rezar para essa figura, pois ele era como um polo para o qual minha alma era atraída.
Então, eu fazia certas contemplações enquanto brincava, sem ser capaz de comunicá-las a ninguém. Aqueles soldados exprimiam ideias de ordem e de resolução para o combate, com determinado aspecto da beleza do estado militar, que me conduzia ao entusiasmo pelo ideal da cruzada e me levava a admirar a sublimidade de alma desses homens, os quais marchavam com grande aparato de festa e cânticos de alegria, em favor de algo que transcendia toda a ordem criada. Tratava-se de um contentamento, que os bailes ou as grandes festas que eu conhecia não davam, absolutamente.
Achava especialmente formidáveis aqueles soldados que tocavam a corneta e batiam os pratos – cujo som eu bem conhecia – e pensava: “Está vendo? Isso leva ao holocausto e tem uma beleza especial. Como será o ideal na mente desses soldados, para eles marcharem assim?”
E percebia existir algo acima deles, como uma luz que os tocava e os entusiasmava.
Outros meninos, pelo contrário, brincavam fazendo guerras entre os soldadinhos de chumbo e quebrando-os quanto fosse possível, o que me parecia uma barbaridade e me deixava muito perplexo.
1 Arrepio, estremecimento.
2 Maravilhamento.
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