A alegria da Inocência
Eu fui um menino enormemente feliz! Profundamente feliz! Quase angelicamente feliz! Que alegria áurea e tranqüila eu carregava em minha alma, na primeira infância! Que bem-estar e que louçania eu sentia dentro de mim! Eu me sentia penetrado por uma luz prateada e juvenil, e possuía a segurança de que ela me acompanharia sempre, apesar das dificuldades da vida, cuja existência eu percebia confusamente.
Um jardim de felicidade
Como eram essas alegrias?
Era, em primeiro lugar, sem saber explicitá-lo, a satisfação por minha própria inocência. Eu desfrutava calmamente todo o proveito que uma criança inocente pode ter na vida, o que me fazia palpitar de contentamento.
Por outro lado, Nossa Senhora me ajudava a ver o que a vida tinha de bom e direito. Entretanto, pela ordenação com que a graça punha isso na minha alma, a fonte principal dessa felicidade não era propriamente tal coisa ou tal outra, mas sim notar serem elas, no fundo, santas. Isso me trazia muitas consolações espirituais, não tanto por pensar no Céu, mas pelo nexo daquelas coisas com ele e por vê-lo refletido nelas.
Assim, na vida de todos os dias, eu tinha cem gáudios! Literalmente, vibrava de felicidade! E isso fazia de mim uma criança de gênio muito estável, sem tempestades temperamentais. Até me perguntava: “Serei só eu tão feliz?”.
Eu olhava as pessoas em minha casa, notando que todas pareciam felizes, com exceção de uma que, para mim, valia pela casa inteira: mamãe! Ela era muito doente, e eu percebia que tinha outros desgostos, não conhecidos por mim. Mas eu pensava: “Se uma é infeliz e todos os outros são felizes, a grande maioria dos homens é feliz”.
Às vezes, eu permanecia na janela de minha casa, olhando passar o bonde, para ver se as pessoas que iam dentro dele tinham fisionomias felizes ou infelizes. E, com a minha inexperiência, concluía que eram, de fato, felizes. A vida me parecia um jardim de felicidade inocente e sem sombras. Quando me lembro dessa época, anterior às primeiras tentações da vida, tenho umas saudades realmente colossais!
No ambiente familiar, perspectivas de um futuro brilhante
Como a imensa maioria das pessoas do meu tempo, eu fui formado na idéia de que os santos são seres inteiramente excepcionais, cheios de grandeza e caracterizados por fenômenos místicos. Por isso eu pensava erroneamente que a generalidade dos homens não era chamada a nenhuma forma de santidade, mas apenas devia praticar o bem e seguir a verdade, atingindo assim um degrau muito baixo. Mais do que isso não me parecia necessário nem possível.
Entretanto, desde muito pequeno, sentia flutuar em torno de mim uma certa atmosfera a meu respeito, da parte das pessoas que moravam em casa. Isso não era visto com caráter religioso, mas sobretudo tendo em conta o legado cultural, literário e político de meu bisavô materno, o Dr. Gabriel José Rodrigues dos Santos. Contavam-me fatos da vida dele como, por exemplo, um discurso com o qual ele derrubou o gabinete do Marquês de São Vicente. E isso era considerado como o auge da glória. Eles sentiam que eu era destinado a tomar essa herança jacente – não assumida ainda por ninguém da minha geração –, como também os talentos, a habilidade e a saliência do Conselheiro João Alfredo Corrêa de Oliveira. Eu percebia que, na mente de meus familiares, estava a idéia de que eu seria um homem brilhantíssimo, aliando a varonilidade e o modo de ser paulista do meu bisavô materno com a genialidade pernambucana do Conselheiro. Portanto, eu deveria ser uma pessoa de brio e repetir ou superar aqueles feitos.
Também mamãe contribuía para criar essa atmosfera, pois ela me tratava, discretamente, como um menino um tanto “predestinado”, sem nunca me dizer isso explicitamente. Apenas me falava muito – mais do que papai – dos dois ilustres antepassados.
Tudo isso ajudava a tornar a minha vida agradável e me dava certo estímulo para estudar. Às vezes, pensava: “Eu também deverei ser um grande orador como esses antepassados, recebendo aplausos de homens ilustres e fabulosamente importantes! A glória me espera!”. E tinha a idéia de que, a certa altura do meu caminho, pousaria sobre mim uma luz que nunca mais me deixaria e constituiria a alegria de minha vida, até o fim…
Por outro lado, eu via nas coisas muito mais aspectos, reflexos e circunstâncias do que meus companheiros notavam, de maneira que eu evitava comentar a maior parte das minhas impressões. Quando eu dava qualquer prova de uma inteligência privilegiada, sentia os olhares dos parentes mais velhos cruzando-se e querendo dizer: “Está vendo? É isso mesmo.” O que eu, entretanto, tomava com certa negligência, pensando: “Isto é lá com eles! Continuem com seus mitos, se quiserem. Eu vou ser aquilo que devo…”.
Às vezes, até, alguns me diziam:
– Tal coisa é nociva para a sua carreira.
E eu tinha vontade de responder: “Mas quem lhe disse que eu quero correr? Desejo viver, ser ‘eu’, sentir-me e explicar-me a mim mesmo! Depois verei se sou promovido ou não; se vou ser um homem célebre ou não. Vou dizer mais: se me acontecer de ficar célebre antes de eu querer, isso poderá atrapalhar-me e criar-me obstáculos, pois existem muitas coisas sobre as quais ainda tenho de pensar…”.
Além disso, o primeiro modelo que segui – desde que me lembro de mim mesmo – não era constituído por nenhuma dessas figuras do passado, mas por uma visão de mim mesmo como eu deveria ser, na minha inocência. Notava que em mim se passavam coisas que não se davam nos outros. Não pensava que fossem graças, pois nem entendia bem a palavra “graça”. Eu rezava: “Ave Maria, cheia de graça”, sem saber exatamente o que significava. Nunca me comparava com ninguém, mas percebia haver em mim algum “toque” do dedo de Deus, sem chegar a analisar isso com profundidade, pois ainda não tinha idade nem instrução suficiente para fazê-lo.
Um “paraíso interior”
Devido à minha inocência, eu tinha um estado de espírito pelo qual, às vezes, observava minha alma e percebia nela uma espécie de brilho “auri-prateado” e um “aroma”, fazendo-me sentir tudo quanto eu tinha de éclatant [fulgurante], de brilhante, de reto e de puro.
Isso era seguido da idéia de que essas coisas, que eu admirava e me deliciava em possuir, existiam aliunde [alhures] de um modo incomparavelmente mais intenso, como em sua potência mater [mãe]. Era como se existisse um meu “arqui-alter ego” [arqui-outro eu mesmo], atraentíssimo, porque imensa e infinitamente distante, mas “inviscerado” dentro de mim e “brincando” com minha alma como um homem poderia brincar com uma pedra preciosa.
Eu tinha a impressão de que esse alter ego se comprazia em intensificar em minha alma ora tal atitude, ora tal outra. Ao mesmo tempo, ele me deixava contemplar essa atitude e parecia dizer-me:
“Vê como isso é lindo! E tu, meu filho, como és pulcro, perfumado, irisado e magnífico, em tua alma! Que esplendor há em ti! Também, que alegrias inefáveis tu sentes! Que bem-estar superior a qualquer satisfação da terra, sem nenhuma comparação!
“Sendo fiel a ‘isso’, terás um grande papel. E quando o realizares, então verás como será a minha união contigo! Que grandeza sem nome! Anda, portanto, pois no fim me encontrarás. E agora, trata de encontrar a tua alegria em ti mesmo, pois eu ponho em ti o enlevo e a ‘leveza de alma’ que são o teu Céu desde já”.
Tudo isso me convidava a sacrais “sonhos de olhos abertos” e pensava: “Como vai ser essa união?”. E imaginava episódios… Eu sonhava com essa união, prometida para a hora da tarefa cumprida e do triunfo realizado, mas sem nunca pensar assim: “Eu estou caminhando e os outros não…”.
Portanto, o verdadeiro triunfo não consistiria no aplauso dos outros, mas na união consumada. Seria como um general de alma nobre, que deseja ganhar uma guerra. Na hora do desfile da vitória, ele tem a sensação metafísica de encarnar a pátria e o heroísmo, e encontra a plenitude e a realização de sua alma nessa identificação com valores superiores, muito mais do que na alegria de ver-se aplaudido.
Assim eram os meus “sonhos”, mas de um modo incomparavelmente mais alcandorado: eu desejava essa união, para sentir-me inteiramente penetrado por “isso”, quando chegasse o fim da minha missão. Eu não sabia que “isso” se chamava Deus, como vejo hoje. Eu tinha, portanto, um desejo de união com Deus. E isso se exprimia dos modos mais variados. Eu não ouvia nenhum som ou melodia tocada por anjos, mas, de vez em quando, sentia uma “harmonia” interna da minha alma, sobre a qual eu tinha vontade de compor uma música… E, às vezes, em uma ou outra peça musical que ouvia – executada pelas muitas orquestrinhas existentes por toda parte – certos trinados lembravam-me isso, de passagem.
Mas eu percebia que esse “paraíso interior” trazia como pressuposto uma coerência muito grande: exigia que eu me desse a ele por inteiro! Aquele deveria ser o lar de minha alma por toda a vida, e nele eu teria toda espécie de felicidade e bem-estar. Se bem que eu ignorasse ainda os assuntos relativos ao Sexto Mandamento – que conheci aos nove ou dez anos de idade –, sentia em mim uma pureza exímia, que parecia tocar música em meu interior. A castidade era como uma concha na qual tudo isso estava contido e, se eu a perdesse, romperia com esse mundo maravilhoso.
Entretanto, eu não vivia no pânico de quebrar essa integridade, pois, como nunca havia pecado contra ela, nem tivera tentações nesse sentido – por especial proteção de Nossa Senhora –, eu me dava inteiramente a esse “mundo maravilhoso” e não me era difícil amá-lo.
Tais cogitações levavam-me também a entusiasmar-me por determinadas pessoas, mitificando-as. Eu amava intensamente certos estados de alma que notava nelas, vendo-as muito conexas com o ambiente em torno de mim. E percebia que elas mantinham – em alguns aspectos – uma relação de nível inferior com a inocência e, por isso, eu desejava respeitá-las, mas com a ilusão de um menino que ainda não tinha a idéia de pessoas em estado de pecado mortal. E, nessa mitificação – subconsciente e involuntária, mas coerente –, eu fazia uma seleção de todos os aspectos tradicionais que ainda existiam nestes ou naqueles conhecidos meus.
Apesar de tudo isso, eu rezava pouco, infelizmente. Fazia apenas as orações da manhã – que nem me lembro quais eram – e algumas à noite. Durante o dia inteiro, não rezava. Mas as minhas reflexões eram sempre em função de um tema religioso, e a Igreja estava no centro de minhas cogitações, muito amorosamente e com grande veneração. Suponho que eram graças sensíveis muito intensas, penetrando em mim e trabalhando-me intensamente.
Alguém dirá:
– O senhor pretende ter sido um místico?
Não pretendo nada, pois não analisei bem esses fenômenos. Se fui um místico, ainda o sou; se não fui um místico, não o sou. Deixo a qualificação aos cuidados dos teólogos, os quais poderão inclusive dizer que tudo isso foi uma ilusão de minha parte. Eu inclinarei a cabeça e aceitarei essa opinião, sem dúvida nenhuma!
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