Amor à Santa Igreja Católica
Eu tive a maior felicidade de minha vida em algo que me encheu de entusiasmo, desde pequeno: a Santa Igreja Católica Apostólica Romana! Mais do que qualquer pessoa, qualquer panorama ou qualquer flor, incomparavelmente mais do que qualquer delícia ou iguaria, ela me falava à alma!
Uma mãe verdadeiramente católica
Mamãe conduziu-me às fontes do Batismo e ajudou-me a aprender o Catecismo, mas o seu grande papel consistiu, sobretudo, em sua adesão fervorosa à Igreja Católica, até o fundo da alma. E soube transmitir-me isso pelos temas religiosos dos quais tratava e por todo o ambiente que fazia reinar em casa, discretamente, como uma flor cujo perfume enche uma sala.
Ela me fez admirar a Igreja muito mais do que me atraiu para si mesma, como é próprio a uma mãe verdadeiramente católica. Recordo-me do momento em que li, pela primeira vez, a expressão “Santa Madre Igreja”. Fiquei comovido e pensei: “É verdade! Eu tenho uma muito boa mãe, mas a Igreja é mais minha mãe do que ela”. E assim será até o fim de minha vida, se Deus quiser.
Em certo momento, comecei a perceber o quanto mamãe era um exemplo magnífico de como alguém pode ser conforme a Santa Igreja. Simplesmente no modo de ela dizer “Jesus” ou “o Sagrado Coração de Jesus”, entrava uma forma de respeito profundo, de admiração recolhida e de uma confiança sem limites. Como se podia notar, tinha ela plena noção de que nosso Salvador é a fonte de toda misericórdia, bondade e paciência; e dirigia-se a Ele especialmente enquanto tal. Daí lhe vinham essas virtudes, que eu vi chegar a graus literalmente inimagináveis. Quando me contava episódios da vida de Nosso Senhor, eu entendia a meiguice d’Ele por vê-la refletida em mamãe; de maneira que ela se tornou uma espécie de lição viva do Evangelho. Ela foi para mim como uma “prefigura” da Igreja.
Como Dª Lucilia se referia a um sacerdote
Meu pai tinha um primo-irmão sacerdote, o Pe. Luís Cavalcanti, que foi ordenado na Arquidiocese do Rio de Janeiro. Quando ele viajava a São Paulo, convidavam-no para almoçar ou jantar em nossa casa e, então, vinham parentes de minha mãe para ouvi-lo, pois sua prosa era muito agradável. Ele sustentava a boa doutrina e ensinava o bem, tendo discussões com alguns dos meus tios que eram ateus, ultrapassando-os pela sua inteligência e cultura, mas com polidez e amenidade; de maneira que eles mesmos gostavam de “entregar os pontos”, e todos davam risada de modo amável quando o padre os vencia na argumentação. Eu não entendia bem aquela conversa, mas gostava de ver o jogo de fisionomias, o tom de voz e a atitude das pessoas.
Certo conhecido nosso, também muito inteligente, fazia ao sacerdote perguntas muito capciosas. Eu olhava e pensava: “Desta vez, o padre está ‘na parede’!”. Mas ele ouvia com toda calma e respondia:
– O senhor sabe? Isto precisa ser visto num enfoque diferente.
O “enfoque diferente” mudava a questão, punha-a em seu aspecto verdadeiro e o interlocutor era refutado.
Mamãe sempre falava sobre esse parente com uma inflexão de voz característica, dando a entender que, além de ser um primo do marido dela, era sobretudo um sacerdote da Igreja Católica. Ela nunca dizia “o primo Luís”, mas sempre “o Padre Luís” e, depois de ele ser nomeado cônego, referia-se a ele como “o Cônego Luís”. No modo de pronunciar essas palavras, exprimia toda a sua veneração pelo homem que era superior a ela por ser consagrado a Deus. Por causa disso, ela o atendia com um afeto e uma solicitude que não manifestava em relação a parentes muito mais ricos. Essa atitude me fez entender o que era um padre, antes de aprender o que a doutrina católica ensina sobre o sacerdócio; de maneira que o meu coração estava pronto para receber o que a Igreja depois haveria de me ensinar.
Católico, apostólico, romano
Pela graça de Deus, na medida em que conheci a Igreja, fui aderindo a ela sem discussão nenhuma, de modo tranqüilo e profundo. Lembro-me do momento em que soube haver gente que questionava a existência de Jesus Cristo e sua divindade. Pensei: “Mas são loucos?! Basta olhar uma imagem d’Ele! Eu O vejo e percebo ser Ele uma realidade. Para alguém ter inventado a existência de Jesus, precisaria ser maior do que Ele. Ora, ninguém pode ser maior do que Ele; logo, Jesus não foi inventado. Deixem de lorotas!”.
Graças a Nossa Senhora, nunca fui capaz de pronunciar essa palavra sem me entusiasmar: “católico!”. Lembro-me de mim em pequeno, sozinho, pensando: “Curioso… A palavra católico parece uma música”.
Eu não sabia que era um vocábulo grego, e menos ainda que significava “universal”, mas analisava sua sonoridade: “Que linda palavra! Católico! Quatro notas, que beleza!”.
Depois, pensava: “O forte desse ‘a’: Católico! Começa irrompendo e proclamando. Depois o ‘ó’ que exclama e está no píncaro. E o ‘i’, terminando com delicadeza. Que palavra a meu gosto!”.
E continuava a refletir: “Mas já tenho ouvido falar de católico apostólico romano. Essas três palavras constituem um todo. O que são esse ‘apostólico’ e esse ‘romano’ que se juntam com o católico? Bem, estou sozinho, não tenho a quem perguntar. Vou analisar a musicalidade da expressão…”.
Eu partia do pressuposto de que as palavras, às vezes, musicam o próprio conceito. Ao ouvir dizer: “católico apostólico”, esse apostólico soava como uma reedição do católico, apresentado de outra forma, como uma guirlanda que desce, se engrossa e depois sobe. Eu pensava: “Que bonito! Fica bem!”.
“Romano”! Essa palavra tem um porte sério, uma sonoridade sólida. Dá a impressão de um rio que corre sob um arco robusto – eu ainda não ouvira falar do Tibre –, em que as águas passam fluidas e o arco da ponte continua estável. “Romano! Que bonito. Eu vou perguntar o que significa”. E procurava mamãe, para que ela me esclarecesse, oferecendo-me uma explicação adequada à mentalidade de uma criança.
O ambiente da Igreja do Sagrado Coração de Jesus
Recordo com emoção que Nossa Senhora dispôs as coisas de maneira que eu residisse perto de uma igreja tão altamente carregada de bênçãos quanto é a Igreja do Sagrado Coração de Jesus. Ali eu assistia à Missa de domingo, com meus pais, desde que dei acordo de mim mesmo. Eu sabia que a Santa Igreja era uma instituição enorme, existente na terra inteira; mas, como eu quase não freqüentava outra paróquia, aquele era para mim o templo por excelência. Dele, a minha primeira impressão não foi propriamente causada pelas cerimônias religiosas, mas pela atmosfera interna.
Esse santuário exercia sobre mim um efeito que hoje vejo ser uma ação sobrenatural; mas eu pensava que aquela sensação decorria do aspecto do edifício, cuja composição de cores e formas parecia-me tão digna e recatada que era para mim a expressão da própria santidade. A Igreja do Sagrado Coração de Jesus possuía uma harmonia, uma suavidade, uma distinção, uma majestade muito alta e sacral, acima de qualquer dignidade terrena; doce e acolhedora, com uma bondade materna, embebida de uma tristeza enternecida que ao mesmo tempo parecia pedir compaixão. Eu tinha a impressão de estar diante do modelo perfeito que desejava seguir. Toda a minha pessoa se sentia penetrada por harmonias e doçuras novas, com uma influência apaziguante, sereníssima e envolvente, de misericórdia e perdão, que me dava força e capacidade de julgamento sadio. Parecia-me também que essa atmosfera interior da igreja devia corresponder a um certo modo de as pessoas boas se tratarem entre si.
Estou certo de que eu discernia todos esses aspectos na igreja por uma graça de Deus, concedida a rogos de Nossa Senhora, para ajudar-me a cumprir minha vocação.
Admirando os vitrais e as imagens
Vejo-me saindo fortuitamente da sacristia da Igreja do Sagrado Coração de Jesus, entrando pelas naves e olhando as janelas que existem nas paredes laterais da capela-mor, com alguns vitrais nas cores vermelho, verde, amarelo. Pareciam-me ser de boa qualidade e olhava-as com interesse. Eu observava aquela luminosidade doce e tinha a seguinte impressão: “Como me sinto bem! Aquilo diz alguma coisa à minha alma que me toca até o fundo. São várias cores harmônicas entre si e eu sou ‘consonante’ com essa harmonia. Há algo no fundo de mim que canta, distende-se e alegra-se de um modo como não sei explicar. No contato com ninguém, nem mesmo com mamãe, experimento isso…”.
Por outro lado, percebendo ser aqueles vitrais diferentes do vidro que eu conhecia, pensava: “Uma janela comum seria indigna de estar ali, enquanto um vitral está perfeitamente bem. O vitral é de primeira categoria; o vidro é de segunda!”. E esse pensamento me ajudava a fazer classificações muito definidas.
Sendo muito menino, julgava que as paredes e as colunas da igreja, pintadas de modo a imitar o mármore, eram de pedra verdadeira e pareciam-me belíssimas.
Depois analisava a imagem de São Pedro, imitação do “Pescador”, em Roma: aquela chave, aquele pé de bronze na frente… Eu pensava: “Mas como ele é severo! Como é sério! Essa barba, encaracolada de modo tão ordenado, parece uma expressão das idéias dele. E como é enorme essa chave! Abre e fecha realmente!”.
Há uma pintura no teto da igreja representando Nosso Senhor que aparece a Santa Margarida Maria, apontando o próprio Coração com dizeres em letras douradas, sobre uma faixa verde: “Este é o Coração que tanto amou os homens, e por eles foi tão pouco amado”. Aquilo dava-me uma idéia de dignidade, santidade e suavidade que me impressionava muito e eu refletia: “Que coisa extraordinária! E como isso é verdade!”.
Também imaginava como seriam os santos, pela expressão fisionômica das imagens dos altares, ao longo das naves. Eles me pareciam muito distintos, bondosos, afáveis e tranqüilos. Uma galeria imponente de figuras arquetípicas! Rezando diante delas sentia uma certa comunicação com os santos que representavam, o que me trazia verdadeiras consolações.
A imagem de São Miguel Arcanjo parecia-me muito prestigiosa pelo traje militar e pela espada, e eu dizia para mim mesmo: “Que grande personagem deve ser para haver merecido usar essa farda!”.
Também me agradava muito o belo mosaico sobre o tabernáculo dourado do altar-mor, representando Deus Pai: um ancião de grandes barbas brancas, tendo sobre o peito uma pomba que era símbolo do Divino Espírito Santo, e com um ar eterno e dominador. E o próprio sacrário chamava-me a atenção, apesar de não ter a noção exata de que ali era guardado o Santíssimo Sacramento.
Encantos pelo órgão
Certa vez, eu estava na igreja rezando um Pai-Nosso ou uma Ave-Maria – quase não sabia outras orações – quando, de repente, dei-me conta de que o órgão estava tocando. Fiquei maravilhado e extasiado com aquela música belíssima e pensei: “Que harmonioso! Isto é uma orquestra inteira e não apenas um instrumento! Parece a imitação de uma voz. Se esta igreja fosse um ente humano, a voz dela seria semelhante a um órgão. E dir-se-ia que, uma vez na História, um homem falou de tal maneira que todas as sílabas pronunciadas por ele tiveram o timbre de um órgão. Quem terá sido esse homem? Como o espírito dele chegou até a pessoa que fez esse instrumento?”.
O meu pendor pelo órgão era indescritível! Parecia-me a voz de Deus, apesar de saber que não era. Para mim, era incontestavelmente o mais belo instrumento de música que existia! Eu imaginava o organista penetrado de todas essas idéias e pensava: “Que grande homem deve ser ele!”.
Foi assim que o órgão entrou na minha vida e ocupou nela um lugar que nunca abandonou; pelo contrário, vai se aprofundando com o tempo. Um pouco mais tarde fiquei muito sensível ao canto religioso: belo, nobre, sereno, calmo e elevado, “absorvendo” minha alma por inteiro.
Ouvindo a oração das senhoras do povo
De repente, ouvia um sussurro de senhoras do povo, rezando o terço. Eu olhava aquelas roupas surradas e aquelas fisionomias tão sofridas que não pareciam ter nenhuma idade… Nas faces não havia nenhuma beleza e nos trajes nenhum gosto, mas, naquela recitação, alguma coisa completamente diferente me atraía:
– Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós pecadores, agora e na hora de nossa morte. Amém.
Uma voz muito fina dizia:
– Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo.
E o coro respondia:
– Assim como era no princípio, agora e sempre pelos séculos dos séculos. Amém.
E eu pensava: “Parece uma espécie de nina-nana… Como isso me ‘berça’! Ouçamos… Há aqui algo de uma doçura aveludada e uma retidão entristecida e envelhecida que nada conseguiu macular. Sente-se aqui qualquer coisa de intensidade de vida que vale muito mais do que cem saracoteios que ouvi”.
Eu tinha a impressão de que isso tocava intensamente outras “cordas de minha alma” e refletia: “Isso está bem. Assim se deve ser!”. Mas logo uma objeção surgia: “Um homem não pode ser assim! Deve ser forte, destemido, audacioso, corajoso e empreendedor. Deve ser herói! E eu, se quiser ser homem na plenitude do termo, não posso ser desse modo… Como resolver isso?”.
Santuário do Sagrado Coração de Jesus
Assistindo à Missa com mamãe
Os costumes eram muito tradicionais e, em geral, as pessoas tinham o hábito de ocupar sempre o mesmo assento na igreja, durante a Missa. O banco de minha família era um dos primeiros do lado do Evangelho1. Sentávamo-nos todos juntos, e eu gostava de ficar perto de mamãe.
Eu percebia que o padre entrava e realizava uma cerimônia no altar, da qual eu também gostava muito, sem ter uma noção exata sobre a Missa. Haviam-me ensinado tratar-se da renovação incruenta do Sacrifício do Calvário, mas eu não entendia bem como se dava isso. Analisava os paramentos e ouvia os cânticos até chegar a hora em que se fazia silêncio: a Consagração. Tocava-me sobretudo o momento da elevação do cálice e eu exclamava interiormente: “Que bonito isto!”.
A bondade e a nobreza do Sagrado Coração de Jesus
Não me custou perceber que Nosso Senhor Jesus Cristo, especificamente enquanto fazendo ver seu Coração aos homens, era a fonte infinita da qual emanava todo o bem. E n’Ele realizavam-se todas as perfeições e maravilhas de alma possíveis, de um modo que eu jamais poderia ter imaginado! E, ao discernir o bom espírito que havia em todas as coisas da Igreja, pensava: “Este ambiente é o reflexo d’Ele! A harmonia que encontro aqui é o próprio Deus. Ele é isso num grau supremo, extraordinário, perfeito e infinito”.
Às vezes, permanecia diante da imagem do Sagrado Coração de Jesus que existe num altar lateral da igreja. Via-O em pé, muito nobre e com um sorriso ligeiramente triste, mas imensamente convidativo, tocando com a mão no Coração e olhando para quem estava embaixo, como se dissesse:
“Queres um lugar aqui dentro? Não Me aceitas? Olha que tesouro! Isto é para ti!”.
Eu olhava e pensava: “Bem sei que isto é uma imagem e não um homem, mas as pessoas que construíram a igreja querem que Deus seja visto assim e, por isso, representaram Nosso Senhor dessa forma. Ora, Deus, visto assim, é completo! Percebo que Ele é de fato assim.
“Que fisionomia! A beleza de que ouço falar por aí não vale nada! Se um dia eu quisesse analisar a idéia de formosura, eu viria aqui para olhar a fisionomia d’Ele, pois só Ele é bonito! Esse é o padrão: uma beleza de alma, mais do que de corpo. Mas, que corpo…! E por detrás dele, que alma…! Que maravilha!
“Dado que essa imagem coincide de um modo inteiramente satisfatório com o ambiente da igreja e com o que me ensinaram a respeito de Nosso Senhor, olhando a sua fisionomia, suas mãos, seu traje, seus cabelos e seu gesto, terei uma idéia global a respeito d’Ele, que posso tornar mais precisa e mais rica em contornos, se examinar cada ponto. Sobretudo seus divinos olhos e seu Sagrado Coração”.
Começava, então, a fazer a análise psicológica d’Ele e assim O discernia. Hoje vejo o quanto eu “arquetipizava” a imagem por efeito da minha inocência, pois ela está realmente distante daquilo que a graça me fazia ver. Numa atitude de respeito e de adoração, eu compunha a mais alta das idéias que minha mente de criança podia formar. De maneira que, quando muito mais tarde conheci o Santo Sudário, exclamei: “É Ele!”.
Posso dizer que aquilo que eu via na infância representava ainda mais fielmente a Nosso Senhor do que o próprio Santo Sudário, o que se compreende facilmente, pois este O mostra enquanto morto e vítima, e na imagem do Sagrado Coração Ele Se me apresentava vivo, acolhedor e afável.
Eu via n’Ele algo de uma bondade insondável, e essa idéia era requintada pela impressão que me causava a cor vermelha de seu Coração. Encantavam-me também, em Nosso Senhor, o asseio e as boas maneiras, expressas no feitio da sua face e ainda mais no seu corpo, que parecia emitir luz. Sua túnica dava-me a idéia de uma pessoa perpetuamente limpíssima, sem mancha alguma na alma ou na própria indumentária. E havia no seu traje uma discreta bordadura dourada que me parecia indispensável à sua elevação. Sem ouro, Ele não teria reverenciado sua própria grandeza como devia. Essa consciência d’Ele a respeito da sua majestade me deixava encantado.
Eu me dizia: “Como Ele está em pé com distinção! Como o modo de segurar o Coração é o de uma pessoa bem-educada! Como a impostação da cabeça é de alguém que recebeu boa formação! Como a barba está bem-arranjada, sem faceirice! Que supremo aristocratismo natural nos cabelos! Tem-se a impressão de que Ele nem pensa nisso, mas não há um cacho, nem um fio, que não estejam inteiramente no lugar apropriado, para dar uma idéia perfeita d’Ele mesmo!
“Muita gente viveu em ambientes mais distintos dos que Ele freqüentou. Mas… distinção é aquela! Os outros são todos insignificantes em comparação com Ele!”.
E eu chegava à conclusão: “Como Ele é amigo da ordem universal! Como é coerente com essa ordem! Ele ama todas as coisas na sua ordenação própria e no mais belo aspecto que podem dar de si mesmas. E com quanto carinho! Ele gosta dessa rosa que foi posta em seu altar, assim como também gosta de mim que estou igualmente aos seus pés. Ele é afim com tudo o que é reto! A Igreja Católica é santa porque é como Ele; é um hífen entre Ele e nós; é a própria auréola que nimba a cabeça d’Ele e por isto eu a amo! A influência, a mentalidade e a presença d’Ele estão neste ambiente”.
Essas graças foram de tal profundidade e alcance que não creio ter podido, naquela idade, conhecer d’Ele mais do que conheci.
Discernindo a divindade do Sagrado Coração de Jesus
O que via n’Ele – naturalmente de modo implícito – poderia ser resumido assim: Em primeiro lugar, os critérios segundo os quais Ele considerava todas as coisas eram de uma sublimidade tal, que não tinham paralelo possível com nenhum outro. Era uma elevação de cogitações e vias absolutamente excelsa, que levava todas as qualidades d’Ele a uma altitude e uma plenitude que eu não chegava a compreender, mas vagamente entrevia. Seria como um monte altíssimo, no píncaro do qual eu via nascer um fio de água que chegava até mim. Ao beber essa água, tinha presente ser ela a mesma que vinha do alto da montanha; a bem dizer, quase dentro do azul do céu! Assim eu compreendia a Igreja, reportando tudo a Ele.
Hoje percebo que olhando para sua humanidade, eu compreendia o que no Homem resplandecia de divino, entendendo também que a sua natureza humana estava numa atitude permanente de contemplação e adoração da sua própria divindade e das três Pessoas da Santíssima Trindade.
Em segundo lugar e a partir disso, eu via que Ele mantinha um contato com todas as pessoas, pois quem se situa nessa altura está acima de todas as limitações. Ele sabia, então, o que acontecia e intervinha no interior de todas as almas que foram, são e virão a ser.
“De que natureza é essa ação d’Ele sobre as almas?” – pensava eu. “Não posso saber como ela é nos outros, mas posso estudar como é em mim”.
“Aqui está o Plinio…”
Eu tinha a impressão de que Ele me olhava, não com os olhos de vidro de uma imagem sem vida, mas, de algum modo, comunicando a essa imagem certa expressão. Não sabia como definir esse olhar, nem me preocupava em fazê-lo, pois, por outro lado, achava ser talvez uma ilusão de minha parte, em vista da distância entre Ele e os homens. Como Ele chegaria a ter uma manifestação assim a meu favor?
De qualquer maneira, parecia-me que Ele realizava comigo o mesmo que eu fazia em relação a Ele: analisar. E eu imaginava que Ele me olhava pensando: “Aqui está o tal Plinio, o menino número ‘um trilhão quinhentos milhões e tanto’, de quem gosto e no qual Me comprazo em apreciar tais aspectos bons; de quem espero tal coisa. É uma criança boazinha, para a qual Me digno olhar com compaixão e com intenção de beneficiá-la. Uma vez que está aqui, tenho algo a dizer-lhe, do que ele deve tirar proveito”.
Eu já considerava isso muito mais do que eu merecia e, então, diante da atitude d’Ele, refletia: “É um Pastor e um Rei que empreendeu de me governar, e Ele quer absolutamente a minha docilidade às suas indicações. Dar-me-á conselhos e ordens, preparando-me o caminho para voltar até Ele”.
Palavras interiores do Sagrado Coração de Jesus
Eu refletia: “Antes de tudo, sinto-me elevado acima de mim mesmo, por ver a sua grandeza. De onde se abre em mim uma certa luz no cogitar e no ver, que me extasia, porque algo em mim é feito para admirar o que é mais do que eu. Quando saio das minhas ocupações normais de menino e vejo algo muito maior do que eu, tenho a impressão de fugir do bom para o ótimo! Ali eu me ponho ‘na ponta dos pés’ e me alegro. Isto é: vejo-O como Ele é e O adoro.
“Eu noto que, ao mesmo tempo em que O contemplo, Ele me faz como que ‘tocar com as mãos’ no pensar, no querer e no sentir d’Ele. E isso me comunica uma retidão e uma santidade no meu pensar, no meu querer e no meu sentir, à maneira de uma bebida deliciosa que eu tomasse e me agradasse sobremaneira, mas ao mesmo tempo me corrigisse. Ou seja, adorando-O, vejo que os meus aspectos tortos e reprováveis endireitam-se e, com isso, Ele me cura de doenças cuja existência eu ignorava”.
Sua seriedade me impressionava muito, e eu percebia que Ele queria manifestá-la no modo de segurar o Coração, rodeado de espinhos e tendo uma chama em cujo centro havia uma cruz. Esse Coração, retirado do peito e colocado à mostra, dava-me a idéia de uma certa violência, o que era acentuado pela cor vermelha, apesar de esta ser muito bonita. Isso me fazia lembrar da Paixão que Ele havia sofrido, e a carga desses símbolos tinha, para mim, o significado de uma pergunta feita por Ele: “Você se dá conta de que, em cada um dos seus atos maus, você feriu o meu Coração? Olhe como sou bom. Meça o mal que fez”.
E eu pensava: “Quanta intransigência! Basta cometer uma falta para Ele ostentar o Coração ferido… Quanta pureza e sabedoria! Ele, no fundo, está mostrando o que eu fiz… As suas mãos estão chagadas e eu tenho parte nisso. Os pés, aparecendo sob o traje, também o estão… As minhas falhas concorreram para esses ferimentos. Sinto que em mim há defeitos potenciais não reprimidos, em relação aos quais, por enquanto, não sou um alheio, pois não os rejeitei ainda.
“Também, estou vendo bem tudo quanto há de mal em mim… Se eu não aplicar atenção nisso, estou perdido, pois não sei até onde decairei…”. E concluía: “Como as coisas do homem tocam no infinito! Como é bonita a vida, ao considerar que cada pequeno fato tem relação com o Céu! Como tudo é grande!”.
Essa era a primeira “mensagem” d’Ele para mim.
A segunda, porém, manifestava-se assim: “Entretanto, meu filho, Eu não lhe digo isso para perdê-lo, mas para perdoá-lo, pois existe em Mim o manancial de um afeto mais suave que o veludo, mais ameno do que qualquer brisa do mar e capaz de inundá-lo inteiramente, até o mais íntimo de seu ser”.
E eu continuava refletindo: “Como é imensa a doçura d’Ele! Eu não seria capaz de medir sua grandeza, se não entendesse a dimensão dessa doçura! Sinto que Ele não quer cobrar algo de mim, nem castigar-me, nem vingar-se, pondo o seu pé chagado mas vencedor sobre minha cabeça desvairada e pecadora. Não! Ele quer dizer-me que está disposto a pagar o bem pelo mal, pois, apesar de tudo, tem pena de mim considerando a minha pequenez”.
Aquele corretivo era delicioso, mas eu percebia que me seria difícil manter essa postura interior e que em certo momento, eu teria de sofrer e lutar muito. Mas, como criança, pensava: “Bem, ainda não chegou a hora! E isto é tão bom que deixarei esse problema para depois”.
Eu tinha mais curiosidade em fixar minha atenção no que Deus estava me mostrando, do que em deduzir por mim mesmo a conseqüência futura daquilo.
“É preciso adorá-Lo!”
À medida em que eu tirava as minhas conclusões – com a intuição de uma criança –, ia sentindo que tudo aquilo não tinha a sua sorgente [manancial] em mim, mas era comunicado por Ele. Então nascia o desejo de unir-me a Ele! Daí evolavam-se atos de Fé, adoração, reparação, ação de graças e petição: “Eu creio n’Ele, pois ninguém seria capaz de inventar esta figura! Ninguém teria imaginação nem virtude para isso, a começar por mim! Se eu não tivesse visto tudo isto aqui na igreja, jamais seria capaz de formar esta idéia a respeito d’Ele! Ele ensina uma verdade perfeita e total, a respeito da qual não há nada a dizer senão exclamar, num entusiasmo recolhido, afável e inteiramente persuadido: ‘Sim, eu Vos adoro!’
“Ele é Deus e é preciso adorá-Lo! Ele merece a adoração e eu O adoro inteiramente, mas é preciso também ter a mentalidade d’Ele. Isto é o meu ideal!”.
Desejando a Consecratio Mundi
Entretanto, o meu desejo ia mais longe: eu queria morar n’Ele! E refletia: “Se pudesse estudar, rezar, conversar, enfim fazer tudo quanto faz um menino, aos pés da imagem do Sagrado Coração de Jesus, seria para mim uma explosão de alegria, pois sinto que Ele impregnaria tudo em mim e em torno de mim, inclusive os meus amigos”.
Poder-se-ia pensar que eu desejava permanecer rezando lá, abandonando as brincadeiras, a comedoria, o leito bom e o conforto. Não era assim! A minha idéia era a seguinte: “Como seria bom se Ele pudesse presidir toda a minha vida!”.
Eu gostaria de trazer às escondidas um éclair e dizer a Ele: “Senhor, aqui está este doce, tão afim convosco. Eu vou me unir a Vós comendo-o e pensando em Vós. Abençoai este éclair!”.
Eu comeria aos pés d’Ele e ficaria contentíssimo! Depois diria: “Senhor, eu trouxe mais um… É de café, o éclair de minha preferência!”.
E se eu não pudesse permanecer ali, despedir-me-ia d’Ele assim: “Senhor, agradeço-Vos pela boa companhia que me fizestes!”.
E acho que não haveria nada de mau nisso. Ali estava, em raiz, o desejo da Consecratio Mundi [Consagração do Mundo] e da sacralização da ordem temporal.
Oração Mental
Hoje percebo que a minha atitude nesses momentos era de verdadeira oração, entretanto não vocal. Eu pensava sobre muitas coisas, encantando-me por ver que eram boas e relacionando-as implicitamente com o Sagrado Coração de Jesus, o que constituía portanto uma meditação profundamente religiosa. Nessas horas de silêncio, eu tinha uma paz e um contentamento muito intenso em sentir a minha virtude e minha união com Ele. E essa era a minha alegria de viver!
Se alguém me afirmasse com provas de evidência que o Sagrado Coração de Jesus não existia, eu era capaz de ter uma convulsão e morrer. Pois se Ele não fosse verdadeiro, eu me desagregaria e não seria mais eu mesmo!
A atitude das pessoas em relação à igreja
Eu julgava que as pessoas que freqüentavam a igreja sentiam o mesmo que eu e eram atraídas por aquele ambiente, mas notava que elas nunca teriam a coragem de comentá-lo, por medo das gargalhadas. Elas formulavam mentalmente algo do que experimentavam, mas não iam além disso e, quando tinham de permanecer ali muito tempo, a maior parte delas se encantava, mas depois se enfastiava. E eu, perplexo com aquilo, pensava: “Como é isso? Não posso compreender! Gostam tanto e fogem? Não agüentam o que admiram? Percebo que muita gente faz o mesmo com mamãe: ela atrai pelas suas inúmeras qualidades, mas deixam-na abandonada!”.
Eu ouvia os ruídos que transpunham as portas da igreja: trânsito de táxis, carrocinhas dirigidas por cocheiros italianos que bradavam imprecações, gargalhadas da molecada… Lembrava-me da frase: “Eis aqui o Coração que tanto amou os homens, e por eles foi tão pouco amado”. E pensava: “Está vendo? É verdade. A começar por mim, que quereria amá-Lo muito mais do que O amo. Mas, se eu O amo menos do que desejaria, esse mundaréu de gente, como é que O ama? O que fazem eles, que não ligam para isso? Onde está a lógica deles? Eu quero saber! Eles não amam a Jesus! Por quê? Os automóveis deles não fariam esse barulho; eles não dariam esses gritos nem ririam assim, se tivessem essa louçania de que o Coração d’Ele está cheio…”.
E cheguei a uma conclusão, com toda clareza: “Algo do que vejo e amo na Igreja há de transparecer em mim algum dia, e fará de mim um perpétuo incompreendido e um perfeito exilado. Serei muito atraente para uma minoria, a qual vai se cansar rapidamente de mim. É improvável que os outros mudem e tomem o meu modo de ser. Ora, eu também não posso mudar! No fundo, eu sou isto!”.
E daí vinha a idéia de que, quando eu crescesse e deixasse de ser um menininho no qual ninguém prestava atenção, algumas pessoas pediriam de mim uma transformação, e a vida me seria muito difícil, pois eu recusaria. Poderia disfarçar um pouco o meu modo de ser e dar a impressão de que aderia a esse convite, mas sentia que, na realidade, eu me transformaria e esse disfarce me mataria. Eu não tinha o direito de fazer isso, nem queria!
Aquela perspectiva me dava um certo medo de ficar adulto e entrar nesse combate, quando a minha existência, naquele tempo, era tão esplêndida e feliz. Tratava-se apenas de um começo de luta que aparecia no meu horizonte, mas que não me empolgava como sucedeu mais tarde. Por outro lado, eu não sentia propriamente um choque, nem pensava muito nesse futuro.
Eu olhava para os meus companheiros de idade e pensava: “Jesus também age nas almas deles, mas com menor intensidade. E eles Lhe dão muito menos atenção. Como é que eles vêm aqui e, tendo a possibilidade de notar tudo isso, não o tomam profundamente a sério? Tartamudeiam uma oraçãozinha e vão embora?”.
Eu tinha uma certa idéia de que eram culpados, mas, de qualquer modo, eu formava com eles um conjunto tão alegre e agradável, que pensava: “Este convívio é bom porque há em todos nós uma ação de Jesus! Estes meninos não são inimigos d’Ele, nem estabeleceram um corte de relações com Jesus e, por isso, eu me sinto posto na minha situação própria e natural: contemplando Nosso Senhor Jesus Cristo na Igreja Católica, em mim mesmo, em mamãe muitíssimo, mas também em todos os que me circundam”.
Por reverência, eu imaginava os adultos do meu ambiente transidos de disposições muito análogas; de maneira que eu julgava estar num mundo inteiramente católico, no qual sentia o complemento normal da felicidade que me dava a contemplação de Jesus. No meu modo de entender, para eu ser inteiramente “cristiforme”, era conveniente que tudo em torno de mim também o fosse.
Primeiras idéias de Cristandade
Nascia então a seguinte noção implícita: a condição normal do homem, para adorar a Nosso Senhor Jesus Cristo, receber a influência d’Ele e ser como Ele, é contar com a harmonia dos outros e a ação supletiva deles, tomando em consideração que Nosso Senhor não transmite todos os seus benefícios diretamente, mas, muitas vezes, por meio de outras pessoas. Ele exerce uma ação direta sobre cada um, mas também uma ação complementar por meio da sociedade.
Começava a aparecer diante de mim a idéia da Cristandade. Ela era constituída por meu lar e meus parentes, e também por todas as famílias que moravam no bairro dos Campos Elíseos e, finalmente, pelo mundo inteiro. Considerando tudo aquilo igualmente louvável, eu era sustentado por uma série de aparências boas que o mundo ainda possuía naquele tempo, as quais me pareciam sinais da influência do Sagrado Coração de Jesus.
A partir desse ponto, vinha-me a idéia de que a existência terrena era uma espécie de grande Céu, onde eu viveria até a hora de morrer.
O que era a morte, para mim? Um desastre, uma dilaceração pavorosa proveniente de algo que estava no ar – eu não tinha a noção de pecado original – e que às vezes atingia as pessoas. Quando ela visitava alguém, a família inteira chorava copiosamente e eu sentia que Jesus ficava com muita pena: apesar de não derramar lágrimas, Ele tinha mais compaixão do morto do que todos os circunstantes.
Também, na hora da festa de Natal Ele era o mais alegre! E no dia da Páscoa, Ele era o mais triunfal! Embora Ele me parecesse mais inteiramente Ele mesmo, durante a Agonia do Horto, a qual me inspirava inclusive mais respeito e adoração do que a sua morte na Cruz, cuja meditação me fazia um bem incalculável.
Amando o unum da Santa Igreja
Então, comecei a notar que na Igreja Católica existia uma uniformidade na doutrina e em todos os objetos do templo, o que me causava a seguinte impressão: parecia-me que n’Ela as pessoas, os costumes, a doutrina, a liturgia e as orações tinham, desde o início, no fundo, uma mentalidade una. Eu olhava os objetos do Santuário do Coração de Jesus e pensava: “Curioso… Há qualquer coisa nesta imagem e naquele vitral, por onde todos são parecidos uns com os outros e formam um todo. Há mais do que os belos vidros, o belo mosaico e a bela música. Há uma unidade nisso, que existe também dentro de mim e que me encanta mais do que cada coisa, mas não sei o que é…”.
Eu me esforçava para formular qual seria essa unidade, mas a minha mente de menino não conseguia…
E eu notava não tratar-se apenas de uma mentalidade, mas da mentalidade por excelência. Percebia que, propriamente, apenas a Igreja possui uma verdadeira mentalidade, e fora dela ninguém a tem. Era um certo modo de ser, presente em absolutamente tudo, até nos mínimos detalhes: na letra do começo da oração de um livro de Missa, na estante do próprio missal, na forma do altar e das janelas, no jeito do padre, no toque do sino, no tipo do eco dos passos dentro da igreja, no modo de colocar o confessionário mais para cá ou mais para lá, na disposição dos vasos sobre os altares… Parecia-me ver uma correlação entre a forma da pia de água benta e o espírito de tal santo, ou entre o episódio da vida de tal outro e o colorido de tal vitral… Enfim, tudo o que se possa imaginar era a expressão de uma mentalidade total.
Eu folheei, depois, álbuns com fotografias de templos, mostrando estilos católicos de outros tempos e coisas da vida da Igreja em outras épocas, inclusive no período das catacumbas. E, em tudo, eu notava presente aquela mesma mentalidade, exprimindo-se de mil modos, jeitos e formas. Nada mais diferente do que uma catacumba romana e a Sainte-Chapelle de Paris, por exemplo. Entretanto, a mentalidade era a mesma.
Então, esse conjunto de símbolos, de doutrinas, de leis, de costumes e de realidades concretas constituía um unum a partir do qual se tinha uma visão inteira do Universo, considerado no seu centro e na sua verdadeira significação; o que levava as pessoas a pensarem, quererem e sentirem em toda a medida da sua própria dimensão, pois qualquer alma possui imensas “vastidões”, habitadas ou inabitadas, sujas ou limpas, cavernas ou capelas… E todos esses espaços encontravam com o que se entreter na Igreja, em função daquele unum, o qual se exteriorizava apropriadamente, com intensidades diversas e com plenitudes de força de expressão maiores ou menores, mas sempre autênticas, através de todos os séculos.
Por outro lado, sendo São Paulo uma cidade de grande imigração, recebendo, portanto, ordens e congregações religiosas dos mais diversos países, eu freqüentava às vezes igrejas muito diferentes. Verifiquei, então, que a Igreja embebia dessa mentalidade as mais variadas nações.
O encanto do “vitral italiano”
Um era, por exemplo, o jeitão majestoso e severo, mas no fundo bonachão e com certo relaxamento grandioso – próprio a Netuno no meio das ondas –, de certos padres italianos muito gordos e bem altos, que celebravam a Missa com ar de quem estava falando para a eternidade e depois acariciavam um bambino [menino]… Sacerdotes de batina um pouco rapada e sobrepeliz não muito bem colocada; cuja estola era um tanto surrada, por economia, mas possuindo um “quê” indefinível da eternidade romana, e daquela inteligência com a qual o italiano passa por cima dos detalhes para permanecer nas linhas gerais das coisas; ou, às vezes, se acantona num pormenor para exprimir apenas nele uma linha geral, e continua adiante, o que faz parte das delícias da Roma sparita…2
Eu entrava na Missa do padre italiano e gostava dele, pensando: “Olhe como ele é inteligente e sutil; como ele suaviza uma série de regras que, para a minha Fräulein, são ‘eixos do universo’! E o universo não treme diante de toda essa indefinição dele. Como é bonita a inteligência humana quando ela sobrevoa os obstáculos em vez de enfrentá-los e, num bater de asas, supera o problema sem ligar para ele, pousa logo no alto duma solução e dá um salto para maiores elevações. Eu aprecio esse modo italiano! Gosto da Igreja quando passa pelo ‘vitral italiano!’ Isso me regala!”.
Assistindo à Missa no colégio alemão
Aos domingos, com certa freqüência, a Fräulein Mathilde me obrigava a levantar muito mais cedo do que o normal, para assistir à santa Missa num colégio de freiras alemãs, na rua Conselheiro Crispiniano3, e depois fazer uma excursão a pé. Eu obedecia de bom grado,
para fazer a vontade de mamãe e por encantar-me com as coisas
germânicas.
As ruas ainda estavam um tanto escuras e os lampiões de gás acabavam de ser apagados. A escolinha ficava num terreno elevado e, ao entrar no jardim, subíamos por uma rampa muito íngreme, ao longo da qual havia umas figuras de gesso em relevo, pintadas com muita ingenuidade, representando a Paixão de Nosso Senhor. Isso parecia feito para obrigar o visitante, logo ao chegar, a aproveitar todos os minutos fazendo uma coisa útil.
Apesar de não serem especialmente bonitas, essas figuras eram piedosas e estavam sempre muito limpinhas, dando-me a impressão de que a cada meia hora passava uma freira com uma esponja molhada e limpava aquilo com amor. Era um “banho” de colorido fresco que eu recebia antes de entrar na capela e havia algo ali que me fazia conhecer a santidade divina de Nosso Senhor Jesus Cristo suportando as dores da Paixão.
Nessa capela reinava a penumbra e a lamparina do Santíssimo bruxuleava. Tinha a impressão de que as imagens estavam acordando e me olhavam benevolamente, dizendo: “Aqui está este filho. Vamos ver o que ele quer”. Havia uma religiosa tocando o harmônio e um bando de criancinhas mais moças do que nós, filhos e filhas de membros das colônias alemã, austríaca e suíça, todos em ordem, formando fileiras e rezando. O padre alemão que celebrava a Missa era o contrário do italiano: firme e hierático, como se aquelas crianças fossem ulanos4 que ele estivesse comandando ali dentro.
A graça me enchia, então, de sensações sobrenaturais e eu pensava: “Isto é uma coisa magnífica! Essa ordem, essa limpeza. Tudo aqui está direito, sem caprichos nem corcovas! Se pudesse viver neste ambiente, não queria outra coisa! Sinto-me perfeito. Deus está aqui!”.
Um simpático sacerdote português
Freqüentávamos também a igreja de um padre português: era completamente diferente! Amável, gentil e acessível a todo o mundo. Perguntava o que queríamos e dizia:
– Sim, pois não!
E eu me sentia em casa, imediatamente. Tudo ali parecia estar imerso na doçura! Ao aproximar-me do tabernáculo, tinha a impressão de que o próprio Deus ali era um tanto luso e nos recebia assim: “Meu filho, aproxime-se”.
A luz da Igreja, brilhando nas pessoas
Eu observava pessoas de diversas paróquias e percebia o seguinte: quando chegava o domingo, todos já amanheciam um tanto penetrados pela luz que iriam receber dentro da igreja, quando fossem à Missa. Notava que, à medida que iam atravessando o portal do templo, parecia acender-se uma luz dentro deles. Enquanto permaneciam ali, aquela influência penetrava neles, acentuava-se e em algo os modificava, cessando depois no caminho de volta para casa, à distância de um, dois, cinqüenta ou duzentos metros da igreja. Assim mesmo, todo o dia de domingo transcorria meio “perfumado”, como se ainda perdurasse o aroma de incenso que na igreja se havia respirado.
Observando mamãe na igreja
Mais de uma vez, no Santuário do Sagrado Coração, enquanto estava nessas reflexões, eu olhava os membros da família e depois observava mamãe com o canto dos olhos, sem ela dar-se conta. Notava como ela rezava com empenho! Podia acontecer qualquer coisa na igreja, mas ela nunca se voltava para os lados nem desviava os olhos do altar, no alto do qual está a imagem do Sagrado Coração de Jesus. Eu, pelo contrário, olhava para todos os lados – o que era natural para um menino – e ela me deixava fazê-lo. Então pensava:
“Há uma atração entre o Sagrado Coração de Jesus e mamãe. Tenho a impressão de que, quando ela está olhando para Ele, há nela uma vida extraordinária. E também, olhando-O, parece-me que Ele causou sobre ela um tal efeito que, de algum modo, Ele vive nela. Como Ele é admirável! Como é perfeito! Como é divino! Como é incomparável! Mas, também… Como ela é parecida com Ele! Mamãe é assim um modelo criado! Que fantástica é ela! A benquerença dela é uma fagulha do querer bem d’Ele. Toda esta bondade que aprecio tanto, nasceu d’Ele… O píncaro das perfeições dela está n’Ele! Se mamãe não fosse devota do Sagrado Coração de Jesus, não as teria. O meu afeto e a minha confiança ilimitada nela se explicam por isto!”.
Ela era muito reservada quanto à própria vida espiritual e nunca me falou a respeito de alguma graça que houvesse recebido na igreja. Eu sentia que não devia perguntar, mas notava haver nela uma penetração daquela atmosfera da igreja e continuava pensando: “É curioso: existe alguma relação entre esta igreja e ela. O que há em mamãe, no altar e nos paramentos do padre é a mesma coisa. Ela parece feita para rezar aqui, e a igreja parece feita para que mamãe reze. Uma se parece com a outra. Como ela é harmônica com isto! Mamãe está mais contente aqui do que em casa, e este é o ambiente dela, onde a sua alma se abre inteiramente, o que não acontece em outros lugares. Aqui ela aceita tudo, inala tudo e se adapta a tudo! Este ambiente vive em mamãe e ela recebe aqui uma influência pela qual se torna cada vez mais semelhante à igreja, e depois espalha isso na família. Todo o afeto dela é uma irradiação disso.
“Mas, então, o que é isso? Quando chegarmos a casa, vou falar com ela para ver se sinto o mesmo, e verificar se o que ela possui é um reflexo do que existe aqui ou é algo que ela traz em si. Eu preciso saber, pois quero conhecer as coisas!”.
Então, aos domingos, quando a família se dispersava após o almoço, eu entrava nos aposentos de mamãe, começava a conversar sobre qualquer coisa e notava nela qualidades que me pareciam análogas àquelas que eu notara na Igreja: uma personalidade muito digna e respeitável mas, ao mesmo tempo, de uma afabilidade e doçura indizíveis. Continuamente trazia consigo uma atmosfera de recolhimento, dando a entender que o espírito dela estava pairando numa região muito alta.
Era um reflexo da bondade de Deus, infinita mas condescendente, que vai até os últimos pormenores: fala sobre a ovelhinha, presta atenção na galinha, agrada a criancinha e medita sobre o lírio do campo. Quanto mais desce, mais doce se torna. E isso trazia como conseqüência a vaga idéia de que, no pequeno mundo da família, mamãe era uma imagem de Deus.
E eu pensava: “Vejo que ela possui o mesmo que existe lá, mas não sei nem sequer encontrar as palavras para perguntar-lhe sobre isso. Vou explicitar isto um dia!”.
Uma interrogação
Então, prestando atenção nela e em todas as pessoas que eu via serem influenciadas pela Igreja, eu me perguntava: “Eles nasceram com essa mentalidade? Tudo isso é criado agora, ou vem do passado? Evidentemente, vem do passado. Houve outrora alguém que criasse isso?”. E chegava à conclusão óbvia: “Isso é grande e perfeito demais para ter sido criado por alguém. Isso não é produto da mente humana, mas é própria e especificamente divino. Deus está aqui e esta é a obra d’Ele! Pois eu, que sou tão entusiasta disso, sinto que se fosse compor alguma coisa, da minha cabeça nunca sairia isso!
“Mas estou vendo os outros e percebo não serem a tal ponto melhores do que eu, de maneira a isso sair da mente deles. Já conheço bem o gênero humano: as cabeças dos homens produzem asneiras. Qual é a prova? A minha! Faço bobagens e tenho más propensões e, se não tivesse o bordão da Igreja para me apoiar, de mim sairia erro e ignomínia. Portanto, a mente dos outros é assim também, mas na Igreja há qualquer coisa que não erra, não peca nem tem más tendências, pois é perfeita. Esta é a verdade!”.
Um episódio arquetípico
A totalidade do que eu sentia na Igreja parecia-me provir de um espírito infinitamente superior, que quase se mostrava e se deixava perceber misteriosamente aqui, lá e acolá, através dos símbolos e por aquela ação interna dentro de minha alma, o que me deixava cheio de veneração. Ele era a causa que dava sustentação e fazia com que todas as coisas na Santuário do Sagrado Coração brilhassem como um reflexo muito rico, fiel, preciso e exato, do próprio Deus. E eu pensava: “É curioso, mas parece que tudo aqui fala à minha alma com a voz que teria Jesus se estivesse na terra! Este é o próprio timbre da voz d’Ele! No fundo, é o Sagrado Coração de Jesus que está no Céu!”.
Não posso me esquecer de um fato que se deu comigo nessa igreja, não uma vez apenas, mas numa série incontável de ocasiões – talvez anos a fio –, que, entretanto, em determinado dia marcou-me mais especialmente e permaneceu na minha memória como um episódio arquetípico.
Eu estava assistindo à Missa, encantado com as figuras, as cores, os vitrais, a liturgia e a atmosfera sobrenatural que pairava no ambiente, quando, de repente, formou-se em mim a noção do conjunto daquilo e concluí: “Por cima de tudo isto há Alguém, que é mais do que tudo! É uma coisa curiosa. A Igreja não parece uma instituição, mas uma pessoa que se comunica através de mil aspectos. Ela tem movimentos, grandezas, santidades e perfeições, como se fosse uma ‘alma’ imensa que se exprime em todas as igrejas católicas do mundo, todas as imagens, toda a liturgia, todos os acordes de órgão e todos os toques de sino. Essa ‘alma’ chorou com os réquiens e alegrou-se com os bimbalhares dos Sábados de Aleluia e das noites de Natal. Ela chora comigo e se alegra comigo. Como eu gosto dessa ‘alma’! Tenho a impressão de que, em relação a ela, a minha alma é como uma pequena ressonância ou repetição; algo no qual esta ‘alma’ vive inteira, como se estivesse num templo material. Sinto-me nela como uma gota d’água na qual o sol se espelha inteiro. À maneira de miniatura e de reflexo, eu contenho essa alma!”.
Eu não sabia explicar o que era essa “alma”, mas tinha a impressão de que toda a doutrina e todo o espírito da Igreja Católica me envolviam! Identificando-me com esse unum da Santa Igreja, embebendo-me dele e habituando-me a viver sem nenhuma discrepância com ele, encontrava uma esplêndida plenitude, em que me sentia cada vez mais sendo eu mesmo. Isso me sensibilizava até o fundo da alma, inspirava-me um movimento de gratidão e deixava-me incomparavelmente mais encantado do que, por exemplo, com as carruagens de Versailles.
Creio que era a presença de Deus em mim, pela graça do Batismo.
“Creio na Santa Igreja Católica Apostólica Romana!”
Então, em certo momento, veio-me à mente uma idéia esplendida: “Este é o espírito da Igreja Católica Apostólica Romana! Mamãe recebeu tudo isso da Igreja! Os artistas que fizeram este templo e os padres que celebram Missa também receberam a inspiração da Igreja!”.
Ao mesmo tempo, surgiu em mim a convicção de que na Santa Igreja todas as coisas se imbricavam de um modo tão lógico e perfeito que só ela era a única e verdadeira. Então o meu ato de Fé se explicitou em toda a sua extensão: “Creio na Santa Igreja Católica Apostólica Romana!”.
Daí veio também um ato de amor: “Ela vale tudo! De tal maneira, que tudo quanto me agrada é semelhante a ela, mas também ela é semelhante a tudo o que me agrada. Ela é o ideal de minha existência! Para a Igreja quero viver e assim quero ser, tendo esse espírito para toda minha vida! E algo faz com que eu seja inteiramente consonante com ela e apenas com ela!”.
Ouvindo os sinos do Coração de Jesus
No bairro dos Campos Elíseos eu sentia algo de parecido com o lúmen interno da Igreja do Sagrado Coração. Um dos meus tios morava na rua Barão do Rio Branco, quase em frente ao Palácio dos Campos Elíseos e muito perto da igreja. No fundo de sua casa havia um jardim onde eu brincava com os filhos dele, quando íamos visitá-lo.
Às seis da tarde, os sinos do Coração de Jesus começavam a carrilhonar o Angelus, tocando a melodia do hino: “À Bernadette, a Virgem fiel…”.
Aquilo me parecia verdadeiramente um cântico! O som começava a espalhar-se lentamente, tomava o local onde estava reunida a criançada, penetrava casa adentro e impregnava os ares das circunvizinhanças, enchendo todo o bairro tranqüilo. As crianças não paravam de brincar, mas aquela música, pairando acima do ambiente natural e gostoso do jardim e da brincadeira, descendo do alto da torre coroada pela imagem dourada do Sagrado Coração, com seus braços abertos, dava-me a impressão de que a universalidade do amor de Jesus cobria tudo aquilo.
Ao mesmo tempo, eu percebia que certas pessoas, em algumas casas vizinhas, tinham crispações de mal-estar quando os sinos tocavam, e sentiam um verdadeiro deleite quando eles paravam de soar.
Os clarins do palácio
Eu me regalava também em contemplar o palácio dos Campos Elíseos – que estava a poucos quarteirões de casa –, por ser uma construção respeitável e decorosa, digna de abrigar a mais alta autoridade do Estado, inspirando a idéia do poder e da ordem bem instalados. Às vezes, coincidia de eu passar a pé em frente dele, às seis horas da tarde, no momento da troca da guarda da Força Pública, atual Polícia Militar, que o guarnecia. Era um pequeno destacamento de soldados fardados à maneira francesa, pois quem dirigia a formação e o adestramento dos policiais militares era o General Nérel, comandante da Missão Francesa. Eles saíam de uma espécie de quartelzinho, tocando tambores e clarins, e passavam sob as imensas árvores de fava que havia no palácio. Depois, os que estavam nas guaritas saíam, recebiam a continência da nova guarda e se retiravam marchando.
A tardezinha estava começando a baixar, e um mundo de passarinhos cantava nos arvoredos dos jardins. Então, enquanto o carrilhão da Igreja do Coração de Jesus badalava, ouvia-se também uma música militar. Aquela convergência dos sinos com os clarins me parecia lindíssima! Eu sentia a existência de uma ordem espiritual, imponderável e nobilíssima, sobrepairando acima da ordem terrena e muito mais elevada do que esta, a perder de vista.
Daí a pouco escurecia. Acendiam-se os lampiões de gás e começava a noite. Tudo isso me falava do Céu, o palácio eterno da ordem perfeita, onde um Deus supremo, infinitamente sábio, santo e poderoso, mantinha em ordem todas as coisas. E esse quadro me enchia de comprazimento, de amor e de entusiasmo.
Ouvindo a Marcha da Aida
Às vezes, eu ouvia os clarins no momento em que a minha família estava no living da casa. Todos ouviam, mas continuavam a conversar indiferentes, sem a menor atenção.
Eu quase nunca comentava isso com ninguém, mas je dressais l’oreille [erguia o ouvido] para escutar melhor e, quando a música se afastava, eu ainda permanecia durante algum tempo tomado por aquele encanto. Para mim, aquilo dava uma idéia de heroísmo e de sacrifício da vida! Foi numa dessas tardes que ouvi pela primeira vez a Marcha Triunfal da Aida, de Verdi, tocada por aqueles militares:
“Sol, Dó… Ré-Do-Ré-Mi… Mi-Fá-Dó-Mi… Ré-Dó. Ré-Mi-Mi… Ré-Do… Ré, Mi-Mi… Ré, Mi-Mi… Ré-Mi-Ré-Dó”.
Pareceu-me uma melodia épica e, tomado por essa impressão, pensei: “Viver é isso!”. E tenho certeza de que era Deus que tocava a minha alma.
Certa ocasião, numa época do ano em que a tarde começava a baixar às cinco horas, a maior parte da família havia saído; eu me encontrava na sala de jantar com a minha avó, que estava sentada em sua cadeira de balanço, com grande calma, pondo em dia a sua correspondência. Ela fazia isso de modo singular: tomava uma caixa de papelão – dessas que servem para guardar papel – e apoiava-se nela para escrever. Em certo momento, ouvi ao longe a Marcha da Aida e fiquei entusiasmado! Olhei para ela e disse:
– Vovó, a senhora está ouvindo a música?
Ela me olhou com surpresa e respondeu:
– Estou, meu filho. Isso o que tem?
Sua indiferença deixou-me um pouco espantado e pensei: “Esta senhora, tão majestosa, é insensível a isso?”.
Não me atrevi a comunicar-lhe esse pensamento, pois ela me teria “esmagado” com a sua superioridade, ordenando: “Quem é você para pensar que pode fazer objeções à sua avó? Vá lá e fique durante quinze minutos voltado para a parede”. E eu seria obrigado a executar a ordem, sem réplica…
Na alameda Barão de Limeira, dois personagens singulares
Recordo-me, como se fosse ontem, de um fato que se deu quando eu tinha seis ou sete anos. Estava saindo de minha casa e andava com minha mãe pela alameda Barão de Limeira quando, em certo momento, num local que eu poderia indicar até hoje, vi passar um carro do tipo chamado Vitória, com toldo de lona, puxado por um cavalo e rodando bem devagar. Dentro dele estavam dois padres enormes, gordos e hercúleos, inteiramente vestidos de preto. Os seus cabelos, sobrancelhas, bigodes e barba eram pretíssimos e os olhos de um negrume fulgurante, relampagueando um brilho semelhante ao do aço. Os chapéus deles, bem pretos também, eram de uma altura pouco comum e diferentes da cobertura dos sacerdotes que eu estava habituado a ver. Cada um ocupava um espaço considerável no carro, sem cedê-lo ao outro em nada!
Cruzaram conosco e eu me senti olhado por eles, como também percebi que olhavam para mamãe. Ela não fez comentário algum, mas eu me senti muito concernido por um deles, que me fitou com olhos que pareciam duas verrumas. Tive a impressão de um raio que vinha em minha direção! Parece-me que ele também percebeu a barreira interior que eu opunha em relação a esse olhar. Então, um pouco assustado, perguntei em voz alta:
– Mamãe, que coisa esquisita é essa? Quem são esses padres?
Ela, com intuição materna, sentiu logo que minha preocupação era a seguinte: “Esses padres são católicos?”. E respondeu-me baixinho, querendo dar-me a entender que não se fazem comentários aos berros, na rua:
– Não são padres da Igreja Católica.
Eu disse:
– Mas, de que religião são?
– É uma religião que existe na Rússia.
E explicou-me o que era a Igreja Ortodoxa, de modo próprio a uma criança. Pensei: “Nunca mais me esquecerei disto. Não é a Igreja Católica, cujos ares eu respiro desde que nasci. É uma coisa diferente!”.
1 Lado esquerdo de quem olha para o altar-mor.
2 “Roma Sparita” (desaparecida): termo cunhado para designar certos aspectos pitorescos – e hoje quase desaparecidos – da Cidade Eterna, imortalizados pelas aquarelas do pintor italiano Ettore Roesler Franz (1845-1907)
3 O Colégio Santo Adalberto, da Congregação de Santa Catarina, V. M., localizada na rua Conselheiro Crispiniano, 352.
4 Soldados de cavalaria ligeira.
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