A arte da discussão
Naquele tempo eu já possuía uma ideia clara – embora não inteiramente explícita – sobre o fenômeno da Revolução e da Contra-Revolução.
Notava que os alunos revolucionários, apesar de utilizarem premissas pobres ao divulgarem as próprias ideias, davam respostas brilhantes e leves, acompanhadas de brincadeiras, as quais agradavam as pessoas que não gostavam de pensar. Um deles, sobretudo, próximo de minha família, muito inteligente e revolucionário, exercia essa ação de tal maneira que apresentava os seus pontos de vista com chama e com ditos engraçados, simplificando os argumentos, tirando conclusões-relâmpago e sabendo levantar a arruaça dos outros contra mim.
Eu, pelo contrário, não tinha essa facilidade de caçoar nem sabia mover arruaças contra ninguém. Na conversa, os meus argumentos eram muito sérios, mas convidavam a pensar e, portanto, não interessavam àqueles que estavam deslumbrados com a brincadeira viva, animada e frívola.
Essa situação me era muito humilhante e tinha as aparências da derrota. Então, na solidão eu refletia: “Não posso ter raiva desta dor, mas devo manter-me no inteiro desapego de mim mesmo, conduzindo esta luta abnegadamente!”
Havia procurado em mim mesmo os recursos para responder a uma gargalhada com outra, a um dito de espírito com outro, mas não os encontrara. Era naturalmente tendente ao fleugmático e me encontrava desprovido de um espírito sarcástico ou cáustico, o qual, aliás, não devia nem desejar possuir, ou sequer lamentar que a Providência não me tivesse dado, pois ele me deformaria.
Tinha de encontrar um outro modo de lutar.
Então, em determinado momento, observando melhor a atitude dos revolucionários, cheguei a uma conclusão: “Agora eu vejo o quanto esses meninos são covardes. Em vez de procurar não irritá-los, vou fazer o contrário: apresentar as minhas convicções desabridamente diante deles, de maneira que, quando vierem atacar-me, saiba resistir com eficácia e me mantenha de cabeça erguida! Mas, para isso, devo tomar uma resolução que é das mais belas que o homem possa ter na vida: a disposição de correr risco. Pois eu posso errar e fracassar, mas esse fracasso ainda será melhor do que não avançar!”
Portanto, precisava aprender a discutir.
Admiração pela lógica do Pe. Costa
Eu me extasiava com o modo de argumentar do Pe. Costa. Prestava mais atenção na lógica coruscante da exposição dele, do que na própria matéria que lecionava e, por outro lado, notava que as repreensões dadas por ele aos alunos eram obras-primas de coerência! Eu o analisava e ficava enivré1 de encanto: “Olhe lá! A estrada do pensamento dele foi esta, esta e esta. Ele articulou tal raciocínio com tal outro e, no fim, vai amarrar o que afirmou! Vamos ver!”
De fato, quando chegava à conclusão, era irrespondível. Os alunos resmungavam e faziam caretas, mas não tinham o que dizer. Ele saía da sala de aula, baixinho, pimpão e satisfeito. Tinha vencido!
Eu refletia: “Com a ajuda de Nossa Senhora, hei de aprender a argumentar como o Pe. Costa, com fortaleza, provando até as últimas consequências o que tenho de afirmar, mas com serenidade e sem zangar-me, falando de tal modo que o adversário se sinta apertado, ao perceber o fio cristalino do meu raciocínio que chega até ele! Assim conseguirei responder muitas afirmações erradas, as quais não sei refutar agora.
Entendi que o modo por excelência de combater a Revolução era utilizar a arma da lógica, pois o raciocínio, de si, causava um efeito triunfal. Então pensava: “Eu alcanço o conhecimento da verdade objetiva pelo bom uso do raciocínio; logo, devo dar ao meu pensamento a sua forma mais lógica para convencer alguém de que tenho razão. Abrirei o meu caminho dentro da floresta da impiedade, com o machado da lógica!”
Cheguei a ter paixão pela lógica, a qual me parecia ser o canhão do espírito, assim como o raciocínio bem feito era a bomba da conversa. Eu tinha muito entusiasmo pela esgrima, apesar de nunca havê-la praticado, e pensava: “A esgrima é bela, mas ela é apenas uma introdução para compreender a elevação do raciocínio e dos argumentos bem dados”.
Comentários sobre a Companhia de Jesus
Entretanto, em casa eu ouvia, de vez em quando, a ala ateia de minha família falar muito mal dos jesuítas, acusando-os, entre outras coisas, de serem muito lógicos. Era o fim de uma antiga campanha contra eles, que ainda tinha algo de sua força. A palavra “jesuíta” vinha carregada com todos os venenos.
Eu pensava: “Onde estão com a cabeça?! Os jesuítas são lógicos, e vão falar mal deles?! Façam o que quiserem! Eu vou ficar com a lógica e não com essas elucubrações!”
Assim, esses ataques aos jesuítas me faziam simpatizar ainda mais com eles. Diziam também que eram finórios, velhacos e inteligentíssimos nos seus argumentos. Nesses comentários se delineava um filho de Santo Inácio continuamente preocupado em fazer tramas contra o liberalismo moderno; um leão e uma raposa que se sucediam alternadamente.
Eu continuava pensando com os meus botões: “Não quero outra coisa! Assim se deve ser! Se não, como é preciso ser? Bobo? Eu desejaria que os jesuítas conversassem com estes senhores para encostá-los à parede…”
E, em certa ocasião, vi algo que permaneceu para sempre gravado em minha memória.
O domador e o leão
Naquele tempo, os espetáculos de circo de cavalinhos e de prestidigitação eram muito apreciados pelas crianças. Um dia, eu estava num desses circos, quando vi, pela primeira vez em minha vida, o espetáculo de um domador com um leão.
Foi trazida ao centro da arena uma jaula enorme, sobre pequenas rodas, na qual estava o leão, naturalmente rugindo. A meninada, excitada, começou a fazer comentários e houve um burburinho. Então o apresentador anunciou:
– Agora, minhas senhoras e meus senhores, ides ver o famoso capitão que vai domar esta fera terrível, aparentemente invencível!
Os domadores se apresentavam com trajes muito vistosos, para animar a imaginação das crianças. Então, vi entrar aquele personagem, vestindo paletó e calças vermelhas, com galões, alamares e bordados de lantejoulas prateadas ou douradas. Parecia um marechal e dava a impressão de ser um dos mais famosos homens do mundo. Tinha na mão um bastão razoavelmente comprido, em cuja ponta havia uma espécie de grande retângulo, à maneira de uma pá.
A fera era um pobre leão cansado, com ares de haver dormido mal. Quando o domador entrou na jaula, pensei: “Como vai se arranjar com esse leão?”
Evidentemente, ele era sobretudo um ator e estava preocupado em dar às crianças a ideia de que era realmente colossal. Fazia gestos com o braço e olhava o público, para que todos vissem a sua faccia feroce2: uma fisionomia muito clara, com bigodes pretos, olhos também pretos e gaforinha da mesma cor. Apesar de ser um pouco ridículo, dava uma impressão de verdadeira vitalidade!
Começava a luta. Percebi que o animal não causava muitas dificuldades ao domador, o qual também não tinha grande categoria, mas exercia verdadeiro domínio sobre o leão, com esperteza, sem ter medo nem pena. Ele fazia estalar um chicote no ar e, quando a fera começava a avançar, rugindo, ele não recuava, mas introduzia-lhe na boca a ponta do bastão e revirava-o em vários sentidos, machucando-lhe bastante a língua, a gengiva e o céu da boca. O leão procurava quebrar aquilo com os dentes e, quanto mais o fazia, mais se feria e estrebuchava. Então, ele, que estava empinando uma grande cólera, ia criando “complexo de inferioridade” e se tornava quieto e bonzinho.
O homem retirava o pau e prestava atenção durante algum tempo, enquanto o leão permanecia ofegando, acumulando novas raivas. Em certo momento, quando se refazia um pouco e avançava de novo, o domador repetia o ato com grande violência e depois ia correndo atrás dele, até o canto da jaula, deixando-o muito machucado. Resultado: a cada dentada que o leão dava, a sua capacidade ofensiva era menor e, ao cabo de algum tempo, abatido, domado e espinafrado3, o animal se deitou. O domador saiu da jaula e agradeceu ao público, que batia palmas de pé.
Eu olhava tudo aquilo profundamente interessado e encantado, achando aquela tática formidável e pensando: “Essa é a violência do homem que apenas tem um bastão e, se não agir assim, está morto! Ou seja, se ele não vence o leão, este acaba com ele, uma vez que a jaula está trancada e ambos não podem fugir. Vaia e morte, aplausos e vitória: são as alternativas!”
Então, cheguei à seguinte conclusão: “Estou recebendo uma lição que em algo aproveitarei. Compreendo que os ambientes mais contrários devem ser enfrentados com serenidade e, diante das pessoas que propagam o mal e a imoralidade, é preciso ter algo à maneira da ponta dessa haste. Assim como o homem avança em direção ao leão com segurança, passo firme e sem demonstrar medo, e o faz silenciar, deve existir um princípio pelo qual o mesmo resultado possa ser obtido, transposto para o terreno da polêmica. Portanto, isso simboliza o meu dever face aos homens que não têm Fé! Logo que alguém se empinar e levantar contra mim uma objeção, não posso permitir rugidos! A única solução é ser ultra-afirmativo e fazer como o domador: dar de uma vez dois ou três raciocínios, ou ainda cinco, se os tiver! Assim poderei ‘quebrar as mandíbulas’ desses leões, e eles aprenderão que é melhor não abrir a boca. Depois, trancadas as feras, eu me sentirei como um domador fora da jaula…”
O menino e o crocodilo; o leão e a serpente
Certo tempo depois, lendo uma revista infantil europeia, vi um desenho, no estilo das ilustrações do Commandant Pinchon4. Tratava-se da historieta de um pequeno selvagem e um crocodilo, feita para divertir as crianças.
O menino estava em frente ao crocodilo, numa situação na qual não podia fugir nem avançar. O animal permanecia muito tempo olhando para ele, até que, em certo momento, adormecia. Era o que ele esperava: aproximava-se em silêncio do crocodilo, mas percebia que não conseguiria cravar uma faca naquele couro resvaladiço. Então, utilizava-se de uma técnica semelhante à do meu domador de leões, mas aplicada de outra maneira: apanhava um cilindro de madeira, o qual tinha nas pontas duas pequenas lanças de metal fino e pontudo, e, no momento em que o crocodilo abria a boca num bocejo, ele conseguia enfiar a mão dentro dela e introduzir aquele instrumento. O animal, furioso, tentava mordê-lo, mas, quando fechava a boca, feria-se com as pontas.
No final, o menino pisava sobre o crocodilo e o matava com toda a facilidade, não me lembro de que modo. O último desenho representava o pequeno selvagem rindo diante da mãe, com o crocodilo derrotado, ainda tendo o cilindro na boca.
Eu pensei: “Isso quer dizer alguma coisa! Agora não entendo tudo quanto essa cena significa, mas vou guardá-la na memória e um dia interpretarei certa situação, à luz desse caso do crocodilo!”
Mais tarde compreendi: “O domador de leões representa a eficácia da força no combate, enquanto o rapaz que vence o crocodilo simboliza a habilidade. Ele é fraco, mas introduz o seu bracinho dentro daquela boca… É a vitória dos hábeis contra os fortes!”
Nesse sentido, também me impressionava certa escultura existente na Praça Buenos Aires5, representando a luta entre uma serpente e um leão6. Aquelas figuras mostravam recursos desiguais, pelos quais o leão poderia dominar a cobra, tanto quanto esta teria condições de vencer o leão. Para um leão, a serpente desprevenida é semelhante a uma minhoca, mas, para um leão desprevenido, a serpente pode ser a morte.
Um novo estilo de demonstração
Como polemizar entre meninos?
Eu pensava: “Devo ter presente o que os colegas dizem de mim. Eles afirmam que sou carola; que o homem puro não é verdadeiramente másculo e, portanto, eu sou efeminado; que tenho ideias antiquadas, enquanto o futuro é a favor deles. Eu devo aprender a argumentar para replicar-lhes. Vou pensar e estudar, para ter a minha inteligência armada como uma fortaleza, mas não quero consultar livros, pois eu tenho de adivinhar quais são os erros dos argumentos deles. Pedirei ajuda a Nossa Senhora e não terei medo!”
É verdade que eu tinha como arma todo um conjunto de leituras e de estudos proporcionado à minha idade, mas, de fato, até os meus vinte anos quase nunca abri um livro para me auxiliar nas discussões, pois uma argumentação simplesmente tirada das gavetas do passado não me parecia responder, de modo exato, às objeções próprias à minha geração. Também, diante dos raciocínios “voltairianos”7 e “rousseaunianos”8 de muitos dos meus colegas, eu sentia a insuficiência das razões que normalmente se davam – inclusive nas conversas em minha casa – para defender a Religião Católica e as boas tradições.
Longamente, elucubrei os argumentos que daria a cada um dos que me interpelassem, assim como o modo de apresentá-los. Nunca fui muito apto para improvisar, e me parecia necessário possuir um arsenal de respostas pré-fabricadas, entendendo, porém, que não bastava apenas ter ideias, mas também saber exprimi-las com beleza.
Por outro lado, eu compreendia instintivamente que a época dos discursos ainda não havia passado, mas estes eram oportunos apenas para as grandes ocasiões, e não constituiriam o meio pelo qual me imporia. Era preciso criar um novo estilo de demonstração, adaptado às circunstâncias, próprio a um menino e não necessariamente brilhante, mas muito polêmico e feito para pessoas corajosas, capazes de tomarem a ofensiva.
Devia enfrentar a discussão em qualquer terreno, de maneira que os colegas começassem a temer a minha língua.
Em oposição à gíria…
Eu notava que a linguagem dos meninos da minha geração era invadida por um vocabulário reles, inferior ao dos maiores. As moças quase não usavam esses termos de gíria, mas os rapazes que desejavam fazer o papel de engraçados tinham de saber umas vinte ou trinta palavras assim, para estarem inteiramente atualizados.
Empregavam uma série de expressões, muitas delas sem sentido, à maneira de coringas que valiam para tudo. Por exemplo, para designar uma grande desordem ou um barulho forte, diziam frege-mosca. Suportar algo de muito desagradável era gramar no duro, assim como baita significava um objeto grande, cutuba era algo ao mesmo tempo engraçado e gostoso, e o adjetivo batuta era aplicado às situações agradáveis.
Assim havia outras palavras desse gênero, que eu detestava do fundo da minha alma, e cujo próprio som me desagradava, pois tinham conotação revolucionária e eram símbolos do espírito hollywoodiano que invadia o Brasil.
Então, um menino dizia:
– Meu pai me deu uma baita bicicleta!
E eu percebia que esse era um modo pouco inteligente de admirar o tamanho da bicicleta. Tratava-se da coisa grande apresentada na sua vulgaridade. Um outro dizia:
– Tomei um sorvete cutuba!
O que insinuava um modo desenfreado de saborear o sorvete, de maneira animalesca, e não como uma pessoa educada o faria.
Tudo isso me levava à percepção de que a língua portuguesa tinha vários “andares” de vocabulário: o porão, feito de batutas e de cutubas, o andar comum e o de gala.
…riqueza de linguagem
Eu precisava ter um português corretíssimo, de maneira que ninguém pudesse apontar erros em minhas frases, pois percebia que qualquer pretexto serviria para fazer-me a guerra. A minha armadura, portanto, tinha de ser a irrepreensibilidade de alguém que não pactuava com a oficialização do analfabetismo, o que era a última moda entre os meninos do Colégio São Luís.
Entendi a necessidade de possuir um amplo vocabulário, sempre à minha disposição para eu dizer o que desejava. Tinha de aprender a utilizar uma linguagem muito mais abundante que a dos meninos de minha idade, a qual era bastante restrita, pois eles eram campeões no pontapé e no murro, mas não na conversa. Então, era preciso cultivar o vocabulário dos antigos, mas também saber aplicá-lo na discussão com os modernos.
Para isso, comecei a prestar especial atenção em algumas pessoas de minha família, as quais se exprimiam melhor do que o comum, e tinham a arte da exposição.
Declínio da arte da conversa
Nessa época, a geração dos meus avós ainda conversava, a geração dos meus pais estava numa transição e a minha já não sabia mais apreciar uma conversa, nem tinha critérios intelectuais para acompanhá-la. Eu notava isso com muito pesar, pois a conversa me parecia ser uma impostação natural, um intercâmbio mental, tonificante e verdadeiramente humano, que depois me levava a pensar e a consultar os livros.
Minha avó e os irmãos dela, que frequentavam muito a nossa casa, tinham um bonito linguajar, frases bem construídas e muita naturalidade. Mas, quando entrava em cena alguém da geração de meus pais, eu já previa que o nível ia baixar. Exceto no caso de um ou outro, que possuía na voz as cordas necessárias para tocar a lira da antiga conversa.
Sensação de conversar com as estrelas
Mamãe, por exemplo, era fundamentalmente uma causeuse9. O prazer dela na vida consistia em conversar, o que fazia ao estilo antigo, longamente, sem pressa e com um charme envolvente e extraordinário, não fácil de definir, entretanto, pois estava no arrière-fond10 implícito do que dizia. Ela conversava muito mais pelo olhar, pelo timbre de voz e pelos gestos da mão, do que propriamente pelo sentido de suas palavras. Ou seja, não tinha o hábito de espremer o seu pensamento, extraindo dele o último suco por meio da explicitação, o que não ficaria bem a uma dona de casa.
A esse respeito, vou dar uma comparação que, nos lábios de um filho, pode parecer excessiva.
Nesse tempo, olhando o céu à noite, sozinho, eu tinha uma sensação curiosa. Parecia-me que a abóbada celeste não era inteiramente fixa, mas era como um grande toldo circular, o qual fazia um ligeiro movimento, à maneira de uma pulsação, ora dilatando-se, ora estreitando-se, disfarçadamente, de maneira que eu não podia apanhar o momento exato em que isso acontecia. E esse movimento comunicaria certo impulso de fole às estrelas, fazendo-as cintilar e mudar de posição.
Então, eu tinha a impressão de que, nessas horas, as estrelas me olhavam e conversavam comigo, mas sem dizer nada. Eu sabia que essa sensação não tinha fundamento na realidade, mas dizia a mim mesmo que, também, não podia ser uma pura ilusão! E pensava: “De algum modo, tem de haver nisso algo de real…”
Depois de homem feito, encontrei a explicação: Deus criou o céu de maneira a causar em algumas pessoas essa sensação. E, se Ele não é o autor desse suposto movimento, é autor dessa impressão, a qual tem como origem suprema Ele mesmo, e diz, portanto, algo de Si, de modo simbólico e metafísico.
Pois bem, muitas vezes, fixando os olhos de mamãe, tinha a impressão de estar conversando com duas estrelas que pulsavam, fitavam-me e diziam-me coisas que não apresentavam relação muito imediata com os temas de que falávamos. E tinha também a sensação de que eu respondia a ela.
Esse foi o contributo que Dª Lucilia me deu para aprender a conversar.
Construção do próprio vocabulário
Meu tio Gabriel, por outro lado, era muito verboso e possuía um vocabulário ainda mais ornado do que vovó, amplo e abundante, de modo que nunca hesitava quando falava, pois sempre encontrava os matizes adequados para dizer o que desejava, deixando-me admirado. Eu pensava: “Quando vou encontrar as palavras certas para definir as coisas, como ele encontra?”
Então, quando meu tio vinha a casa, eu abandonava tudo para colocar-me perto dele e ouvi-lo conversar, a fim de aprender aquelas palavras carregadas de significado, que não se utilizavam todos os dias. Por exemplo, ele dizia:
– Fulano olhou com circunspecção…
E eu pensava: “O vizinho dele comenta o mesmo assunto, dizendo apenas ‘olhou com cuidado’. Como a palavra ‘circunspecção’ é mais bonita do que ‘cuidado’! Como esse senhor se prestigia utilizando-a! Pelo contrário, quem diz apenas ‘cuidado’ se torna comum, pois qualquer guarda de trânsito fala assim. Então, um homem mais soigné11 diz ‘circunspecção’… Humm!”
Depois, fazia propósitos: “Quais palavras novas aprendi hoje? Tais e tais outras… Está bem! Vou empregá-las durante a semana, custe o que custar, para me lembrar delas”.
Comecei assim a construir o meu vocabulário e a aprimorá-lo cada vez mais. Empregava uma grande variedade de expressões antigas – sem serem pedantes nem rebuscadas, de maneira a não cair no ridículo –, adequadas à minha idade e desconhecidas de muitos dos meus colegas, tirando delas o proveito necessário para exprimir verdades sérias e claras, com alguma beleza.
Também, prestando atenção no modo de certas pessoas conversarem em minha casa, refletia: “Ah! Em tal situação se deve enfatizar, enquanto, em tais outras, é melhor ser doce. Ainda em outros casos é preciso ser muito definido, e em outras ocasiões, um pouco enigmático. Assim se faz!”
Tudo isso era calculado por mim, com a intenção de produzir determinado efeito: esmagar os adversários na discussão e atrair os inexperientes, que não tinham ideias formadas, mas poderiam prestar atenção num bonito modo de falar, como alguém que se encanta com uma música.
Esse cálculo, entretanto, não era feito por mim com vistas a uma vantagem pessoal, mas em função da luta pela Santa Igreja e por Nossa Senhora.
Conselho paterno
Meu pai falava um português excelente, mas muito simples e sem ornamentos. Ele, às vezes, dava a entender que os Ribeiro dos Santos tinham um palavreado bonito e pouco claro, enquanto fazia parte do talento da família Corrêa de Oliveira um linguajar correto, mas brilhante pela clareza dos conceitos. Ele não me dizia isso abertamente, por receio de que perguntasse a mamãe se era verdade.
Entretanto, nesse tempo eu estava me deixando encantar mais pela forma da boa conversa, do que pela sua clareza e lógica.
Certa vez, meu pai estava no seu escritório em casa, tratando sobre negócios com certo parente de minha mãe, o qual utilizava palavras bonitas e rutilantes. Eu também estava nesse escritório – no qual possuía uma mesa, para estudar – e permaneci sentado, ouvindo-os conversar. Depois que o visitante se despediu, notei meu pai um tanto aborrecido, pelo tempo que havia durado a conversa. Então, voltou-se para mim com ar enfastiado e comentou:
– Como fala…!
E depois disse‑me:
– Vou dar‑te um conselho.
Fiquei espantado, pois nunca me tinha dado um conselho na vida. Pensei: “Vamos ver como é isso…”
Ele continuou, com grande calma:
– Meu filho, você precisa entender que o mais importante, quando o homem fala ou escreve, é fazê-lo com lógica e clareza! Muitas palavras de bonito som, mas que não são claras, não servem de nada e são uma farfalhada inútil! Olhe a pessoa que acabou de estar aqui! Ele fala, fala e fala… As pessoas prestam atenção, mas, no fim, o que guardam na memória? Nada.
Quando ele queria tratar assuntos com solenidade, chamava a minha mãe de “senhora”, e a mim de “rapaz”. Então concluiu:
– Você, rapaz, preste bem atenção e veja como fala e escreve… Se você possuir ideias bem construídas, expressas de modo claro, seus trabalhos terão valor. Não se preocupe em utilizar um palavreado muito bonito. Procure, antes de tudo, ser claro e lógico, de modo que as pessoas imediatamente entendam o que você diz, e terá feito o seu caminho na vida. O resto é enfeite e não tem importância. Porém, se você for claro, poderá enfeitar as suas palavras e será melhor ainda, pois o ideal é falar com beleza e clareza ao mesmo tempo. Entenda bem isso!
Foi o primeiro e o último conselho que recebi de meu pai. Logo depois ele saiu do escritório e foi cuidar de qualquer outra coisa, enquanto eu pensava: “Vale a pena refletir sobre isso”.
Então, analisando a apreciação dele, percebi que era justa, excetuando a pessoa que visava, pois a linguagem do parente de mamãe, apesar de ser um pouco enfeitada, era bonita e aristocrática, e não merecia aquela crítica.
Entretanto, admirando a lógica de meu pai, pensei: “Isso é verdadeiro! Vou procurar ser claro, mas, sobretudo, devo conjugar e equilibrar a clareza e a beleza”.
E sempre tentei cumprir esse propósito.
A importância do tom de voz
Por outro lado, dei-me conta de que, para vencer as discussões, também era preciso possuir um tom de voz bastante alto, a fim de compreenderem que eu exigia para mim um lugar à luz do sol, com toda a segurança de ter a razão comigo.
Eu já era dotado pela Providência de um timbre naturalmente muito forte, e nessa competição não perdia de ninguém. Habituei-me, então, a pronunciar as palavras com muita clareza, evitando certo modo de falar empastado, pelo qual cada sílaba é quase devorada pela próxima, e se confunde na terceira. Eu devia falar palavra por palavra, quase letra por letra! Tinha de aprender a ir elevando a voz sem gritar e sem fazer descompostura, mas cobrindo as outras vozes.
Encantava-me com as bonitas sonoridades da língua portuguesa bem pronunciada, e também procurei modelar as tonalidades da minha laringe, à maneira de uma música. Entendi que não podia gaguejar nunca, pois isso seria o fracasso da minha polêmica. Era preciso falar torrencialmente, de modo marcante, martelado e, sendo necessário, tonitruante!
Em certo momento, senti-me aparelhado para enfrentar as objeções do adversário. A perspectiva daquela luta me causava alegria e esperança, como alguém que vai ser retirado de um poço… Era preciso apenas começar.
Então, passei a conversar mais com os colegas, procurando os meninos mais inteligentes, entrando nas suas rodinhas para adestrar-me e percebendo bem que desde logo começaríamos a discutir.
Era o que eu desejava!
Convicção, energia e amabilidade
Iniciaram-se os duelos. Os colegas começaram a me interpelar e eu apresentava categoricamente os argumentos que havia preparado, e aprofundava-me cada vez mais na arte da discussão.
Eu tinha uma convicção e energia que eles não possuíam, mas tratava-os sempre com respeito, sem jamais empregar um insulto ou fazer uma brincadeira descomposta, e mantendo uma amabilidade grave e distante, de maneira a obrigá-los a agirem comigo do mesmo modo. Sustentava as minhas opiniões com muita franqueza e interpelava-os:
– Olha aqui: meu argumento é este. Agora, se tiver coragem, responda, demonstrando o contrário. Vamos ver!
Não tinham saída! E quando alguém me fazia uma ofensa, eu replicava:
– Não! Desaforo não resolve! Eu quero argumentos. Vamos lá, responda!
Em certas ocasiões, ao ouvir a intervenção de um deles, eu dizia:
– Vou demolir o seu argumento, mas, antes de tudo, repita-o!
E permanecia olhando para ele, em atitude de ave de rapina, para cair em cima do erro que pudesse cometer, o que lhe causava bastante insegurança. Inclusive, tomei o hábito de levantar uma das sobrancelhas, com ar de ameaça, o que servia para a minha política contrarrevolucionária.
Vantagens do sangue pernambucano
Havia algo que me favorecia: meu pai era de uma parte do Brasil onde a facilidade de expressão é proverbial: o Estado de Pernambuco. Em geral, os nordestinos possuem muito mais essa facilidade do que os sulistas, tanto na composição das frases quanto na escolha do vocabulário. E eu, sempre muito falador, conversava com todo mundo, em inúmeras ocasiões, com o barbeiro, longamente, na hora de cortar o cabelo; com o chauffeur do táxi que tomava. Então, eu explorava e fazia valer essa tendência natural a me expandir e a me comunicar, para dar brilho à minha argumentação. De maneira que, enquanto os outros meninos precisavam pensar para encontrar os termos que desejavam utilizar na discussão, estes vinham aos meus lábios aos borbotões, de modo torrencial e escachoante, e nunca hesitava diante das palavras a serem escolhidas. Dir-se-ia que, antes de eu ter pensado, elas já estavam à minha espera!
Assim, os colegas começaram a ter certo medo de discutir comigo, pois acabavam se encontrando numa situação desagradável. Enquanto um deles procurava um argumento, os outros, que assistiam à discussão, diziam-lhe:
– Ande! Você não sabe responder? Está gaguejando? O que é isso?!
Essas circunstâncias criavam em torno de mim uma esfera de natural superioridade e destaque na discussão, que deixava os piores alunos indignados, pois parecia uma provocação.
Oposição até nos menores detalhes
Então, eu discutia sobre tudo, desde a existência de Deus até a personalidade do Marechal Deodoro da Fonseca, que proclamou a República no Brasil. Tratava de questões religiosas, artísticas, literárias ou políticas de que ouvia falar em casa, especialmente sobre certos pontos essenciais de choque, em que as opiniões dos meus colegas eram diferentes das minhas.
Eu notava que, apesar de serem meninos, a respeito de qualquer ponto eles pensavam como a Revolução, ou seja, diretamente o oposto de mim. E essa oposição se manifestava nas menores coisas.
Por exemplo, os jornais apresentavam muitas fotografias do Woodrow Wilson12, Presidente dos Estados Unidos no fim da Primeira Guerra Mundial. Aquele homem não me agradava, mas todos os meus colegas simpatizavam com ele.
Outro caso característico era o do Kaiser Guilherme II, Imperador da Alemanha. Após ter sido deposto, ele foi morar exilado no castelo de Doorn, na Holanda, com a esposa dele, a Kaiserine13. Quando esta morreu, o Kaiser esperou algum tempo e, em certo momento, casou-se novamente14. Entretanto, esse casamento causou sensação nos jornais, os quais mostravam grandes fotografias dele com a futura esposa e faziam críticas ácidas, como se tivesse cometido um crime por unir-se a uma Princesa de linhagem menos importante que a dele.
Ora, parecia-me que o Kaiser fazia bem, e o seu casamento não era nenhuma vergonha, pois não implicava nem sequer em mésalliance15, uma vez que a segunda esposa era da mesma categoria que a primeira. Mas todos os meninos revolucionários achavam que o Kaiser procedia mal e diziam:
– É um horror! Que homem insuportável! Vai diminuir a dignidade da família!
Eu tinha vontade de dizer: “Mas vocês, que desejam acabar com todas as dignidades, agora reclamam porque o Kaiser tomou uma atitude que lhes parece uma diminuição? Entretanto, esse passo foi inteiramente legítimo e admitido por todas as leis da realeza europeia! Quem são vocês, ou quem sou eu, para discordar disso?”
Assim, percebia que meus colegas e eu éramos contrários em tudo e que eles nunca mudariam, o que me fazia compreender que a Revolução penetrava nas almas das pessoas profundamente e as fazia agir à maneira dela, enquanto o meu ideal penetrava em minha alma, também até o fundo.
Do mesmo modo, a minha experiência começava a me ensinar um princípio, que eu ainda não sabia explicitar, mas entendia de modo intuitivo: quem parece ter apenas uma opinião revolucionária, no fundo é simpatizante de todas, pois, onde há um fragmento de Revolução, aí ela está inteira. Ou seja, pelo dedo se conhece o gigante, e por uma só opinião se conhece o homem inteiro.
Então, os colegas tinham gosto em discutir comigo, por causa de minha facilidade de expressão e argumentação, mas o nosso desacordo era completo. Quando estava numa roda deles, notava que sempre aparecia algum dos meninos mais revolucionários para participar da discussão e evitar que houvesse receptividade dos outros ao que eu dizia.
Em defesa da Religião…
Uma vez que muitos deles eram ateus militantes, escarnecendo da posição católica – segundo a moda da época –, eu fazia propaganda de minha Fé, tomando a defesa furiosa da Religião contra o laicismo.
Um deles começava a discutir, dizendo:
– Isso de Religião é bobagem!
Eu respondia:
– Não é não! É a única verdade que existe!
– Como? O que você está afirmando?!
– É isso mesmo! Vamos demonstrar!
Um outro menino, mais velho do que eu, caçoava:
– É verdade que você reza?
– É!
– Mas não existe Deus!
– Por que não existe?
– Porque eu não o vi, nem o peguei.
– Você não pegou nem viu?! Devia ter vergonha de não ver o que os outros veem!
Ele continuava, com um sorriso de desdém:
– Mas você viu Deus? Ele falou com você?
Eu apontava a minha própria cabeça com o dedo e respondia:
– Não! Os homens veem por aqui e não é só pelos olhos! Pense!
– Ah, ah, ah!
– Ah, ah, não! Argumentos! Você vai dizer que é ateu? Por que você é ateu? Eu vou lhe explicar por que eu sou católico! Vem cá! Vamos formar uma roda aqui, para discutir diante de todos! Eles depois dirão quem de nós tem a razão! Olhe aqui: Deus existe, por tais e tais motivos!
A discussão se tornava feroz. Às vezes, quando eles davam argumentos, eu os atacava por outro lado, dizendo:
– Vocês dizem que o raciocínio é tudo, mas utilizam uns raciociniozinhos de meia taquara, que não valem nada! Olhe tal ideia sua e tal outra! Você errou em tal ponto e caiu em contradição em tal outro. Do que vale a sua razão? Há algo que vale mais do que a razão: é o bom senso! E há uma coisa que vale mais do que bom senso: é a Fé! Vocês me perguntam por que eu creio? Porque eu vejo que a Fé nunca contraria a razão! Se não veem, pior para vocês!
Quando ouviam falar de Fé e de bom senso, eles percebiam que não sabiam se mover naqueles temas…
…e da castidade
Eu não defendia apenas a Religião, mas também a moralidade. Naturalmente, entrava na discussão o assunto da castidade e do celibato, promovidos pela Igreja Católica, o que me tornava ainda mais antipático junto aos partidários do outro lado. Eles fingiam não perceber que eu mantinha a pureza, e eu também nunca o proclamava, pois isso provocaria uma explosão. Entretanto, sabiam que eu nunca pronunciava uma palavra imoral e me desagradava quando o faziam diante de mim, e isso significava que, se insistissem, cortaria as relações com eles, o que não desejavam. Sentiam inclusive que, se um deles me convidasse a algo contra a moral, a minha reação seria tão forte que lhe “cairia o mundo” sobre a cabeça!
Monarquia e república
Também discutia com os colegas sobre o tema da monarquia e das formas de governo, o qual ainda tinha certa atualidade nos anos 20, pois, após a proclamação da República em 1889 e o exílio da família imperial, um setor da opinião pública brasileira continuara monarquista, enquanto outro permanecera republicano.
Em minha casa, por exemplo, eu percebia isso de modo muito nítido: uma parte numerosa da família era monarquista e outra republicana, sendo que, em geral, os meus tios monarquistas eram católicos, enquanto os republicanos eram ateus. Eu estava habituado a vê-los discutirem à mesa, e conhecia, portanto, algo sobre o assunto.
Desde tenra idade me sentira monarquista, mas antes me sentira católico. Enquanto católico, as energias de minha alma propendiam para a monarquia e, enquanto monarquista, admirava a beleza monárquica da Igreja. Eu via na monarquia um complemento que a Igreja havia escolhido para se adornar, pois a própria palavra “monarquia” tinha para mim o sentido de um padrão e de um modo de ser, que eram prolongamentos da fonte católica.
Num colégio onde quase todos os alunos eram republicanos, vários deles, sabendo qual era a minha posição, começaram a me procurar no recreio para discutir, e eu declarava a qualquer um que era monarquista:
– Eu sou monarquista! E você? O que é?
– Ah, ah, ah! Você é partidário da monarquia? Absurdo! Viva a república! Todos nós somos iguais! Você é a favor do Imperador? Isso tinha que acabar!
– Acho melhor a monarquia! Tenho tal razão e tal outra!
E muitas vezes dizia:
– Essa igualdade é uma lorota de vocês! A desigualdade existe por todo lado, inclusive na república!
Eu sustentava a minha tese. Entretanto, esquivava-me de tratar questões diretamente políticas, pois o meu tema era, sobretudo, a Religião.
Discussões sobre a Revolução Francesa
Por outro lado, nessa época eu lia a revista histórica Les Annales e o tema da Revolução Francesa estava muito presente em meu espírito.
Alguns meninos do Colégio São Luís, furiosamente entusiastas dos acontecimentos de 1789, tratavam sobre o assunto e defendiam o igualitarismo, dizendo que não deveria haver reis, uma vez que a realeza era apenas uma manifestação de orgulho. Isso chocava o meu modo de ser, pois eu julgava receber um benefício de Deus quando encontrava alguém superior a mim, a quem pudesse admirar.
No fundo, a minha oposição era contra uma mentalidade: o liberalismo. Por exemplo, tomava a defesa da Europa contra a América do Norte, e elogiava sempre a França e a Alemanha, às vezes a Itália e a Espanha.
Então, de repente, um colega dizia:
– É verdade que você é contrário à igualdade absoluta das fortunas e das condições sociais?
– É verdade! Sou a favor da hierarquia social harmônica e bem ponderada.
– Uuuuh!
– Venha cá! Não fuja, pois não tem pretexto! Vou discutir com você. Está caçoando de mim? Eu vou caçoar de você!
Outros exclamavam:
– Intransigente! Intolerante!
– Como? Intolerante?! Devo tolerar que ele me faça desaforos e ria de mim? Isso eu não permito!
Também, em certa ocasião, um aluno exclamou:
– Hoje é 14 de julho, aniversário da queda da Bastilha! Festa da Revolução Francesa! Que grande data!
Eu respondi:
– Grande data? Não! Grande crime!
– Lá vem você…!
– É, estou aqui. Tenho o direito de falar ou não tenho?
– Diga o que você quiser!
– Claro, vou dizer!
E começou uma discussão homérica.
Reflexões sobre os argumentos utilizados
Com frequência, no bonde de volta para casa eu refletia e repassava mentalmente as discussões que tivera: “O que foi bem respondido? O que foi mal respondido? O que intimidou o meu adversário e o que não o intimidou? O que deu uma impressão de força e de eficácia aos que assistiam à discussão?”
Pensava em certos argumentos dados por eles contra a doutrina católica e percebia que, às vezes, eu havia esquecido tal elemento ou tal demonstração. Então, preparava-me melhor e, na polêmica do dia seguinte, introduzia o assunto, lançando a “bomba” que havia fabricado.
Porém, entendia que também devia saber defender as tradições do passado que eu amava. Ou seja, aprender como se tinham dado os acontecimentos da História, de forma que se alguém me dissesse: “Tal escritor fazia tal acusação contra a Igreja!”, eu deveria saber responder: “Mas isso não é verdade! Eu li obras de tal outro autor, que dizem o contrário. Se você quiser, amanhã posso trazer-lhe o texto!”
Os alunos ateus mais intelectualizados do meu recreio gostavam de citar um autor norueguês, o qual estava muito em moda:
– Você não leu o Ibsen16?
Eu pensava: “Jamais!” E nunca lia as obras de Ibsen…
Católico forte, seguro e corajoso
Assim, eu fazia o papel de pequeno orador popular, nos recreios e nos intervalos das aulas. Agradava-me muito discutir e tinha polêmicas rijas, enormes, monumentais, enfrentando às vezes dez ou quinze colegas ao mesmo tempo. Muitos temiam a discussão e fugiam, mas, às vezes, aproximava-se de mim um grupo de colegas, um dos quais dizia:
– Agora apareceu um que vai saber discutir com você! É este!
– Pois não! Prazer em conhecê-lo! Quais são seus argumentos?
– Ah, eu os tenho!
– Está bem! Vamos conversar!
E, como eu me sentia muito seguro, gostava de discutir interpelando:
– Agora, diga-me tal coisa! Explique-me tal outra!
E assim evidenciava que o outro não tinha resposta…
Em certas ocasiões, o tema fervia e começávamos espontaneamente a discutir em altas vozes, propriamente aos berros, chegando quase até a briga. Entretanto, todos eles sempre terminavam por recuar, uma vez que eu tinha a razão de meu lado, pois não defendia o meu pensamento pessoal, mas a doutrina da Santa Igreja Católica Apostólica Romana.
A minha argumentação não persuadia ninguém, mas produzia certo efeito no subconsciente dos colegas, de maneira a sentirem o quanto a posição deles era errada. Por outro lado, impunha respeito às minhas ideias, pois não podia ser considerado carola ou efeminado quem “empurrava na parede” os que pensavam de outra maneira, mas, sim, um homem na força do termo.
Assim, aquele que guardava a castidade e deveria ser tido como o último era visto bradando, tomando atitudes varonis e fazendo entender que o católico era antes de tudo um forte, pois não temia a discussão e a dominava pela sua segurança, avançando sempre com coragem, sem sacrificar aos ídolos de Hollywood e prestigiando a tradição. Desse modo, a minha religiosidade era tomada quase como uma posição política, o que ajudava a me dar certa cidadania no meio intelectual da pirralhada.
E em pouco tempo sobressaía-me tanto na expressão e na argumentação, que era tido como o primeiro discutidor do Colégio São Luís.
A roda dos torcedores e a primeira vitória
As discussões tiveram também outro resultado que obedecia a uma de minhas intenções: eu percebia que um ou outro jogador de futebol começava a se sentir atraído e, entre duas chutadas na bola, deixava de jogar, ia ouvir-nos e dava alguns palpites.
Em breve, uma corrente de alunos passou a assistir às nossas discussões, interessando-se por nossas pelejas e fazendo em volta de nós uma roda de torcedores, desejando, no fundo, provocar briga para se divertirem. Apesar de estarem em desacordo comigo, gostavam de ver-me polemizar e eu os recebia bem, dirigindo-me a eles e deixando-os contentes. Abria-se para esses meninos um outro polo de atenção, um novo lugar no espaço mental.
Com isso, eu obtivera que eles se afastassem um tanto da sua posição revolucionária, rumo a um nível mais alto de preocupações, no qual a palavra cultura tivesse alguma significação… Formava-se assim um grupinho à parte, que não conversava sobre imoralidades ou temas vulgares, e no qual eu gozava de certa consideração, podendo “cantar de galo”, ao mesmo tempo que os piores se sentiam um tanto intimidados.
Desse modo, a atmosfera geral do colégio começava a mudar, sem que os meus interlocutores mais inteligentes percebessem ser essa a minha intenção. Era uma pequena vitória inicial da Contra-Revolução, que me causava grande alegria.
Para esse resultado ser alcançado, a condição havia sido que eu não me incomodasse em ser apedrejado, desprezado ou caçoado, mas que avançasse sempre, não restituindo uma pedrada com outra, mas com argumentos.
Recordações de um colega
Chamava-me a atenção certo aluno do São Luís, de minha idade, o qual era bastante renfrogné17 e não tinha muitas relações. Não me atacava nem me apoiava, pois parecia não prestar atenção em nada além do futebol, do qual não era jogador, mas apenas torcedor convicto e pensativo. Muitos anos depois, esse antigo colega conversava com um sobrinho seu a respeito de recordações do Colégio São Luís, e este lhe perguntou:
– O senhor conheceu Plinio Corrêa de Oliveira?
Ele fez um comentário assim:
– Ah! O Plinio! Não fui amigo dele, mas conheci-o bem e observava-o muito. Era um discutidor católico temível! Os meninos ateus iam com argumentos por cima dele, atacando-o de inúmeros modos, mas ele estava bem preparado: defendia-se e discutia com todos com tanta lógica que os “empurrava na parede”! No dia seguinte, eles iam procurar em livros argumentos contra a Fé Católica, e tinham ânimo de voltar à carga. A briga recomeçava, mas, assim mesmo, a cada vez ele os fazia calar! Era inútil discutir com ele! No fundo, o Plinio desejava reformar o mundo.
“Jesuitinha” e ultramontano
Lembro-me também que, certo dia, um tio meu fez uma afirmação com a qual não concordei, e eu lhe respondi com argumentos, apesar de ter apenas doze ou treze anos. Então, ele disse à minha mãe:
– Lucilia, você precisa tirar esse menino do colégio! Está ficando um “jesuitinha” perfeito! Ouça como ele fala! Isso é argumentação de jesuíta!
Em outra ocasião, um dos meus tios-avós, positivista, o qual tinha vivido no pontificado de Pio IX, ouviu-me dizer algo que não lhe agradou. Voltou-se para mim, rindo com certa bonomia, e disse:
– Você está se tornando um ultramontano18!
Era a primeira vez que eu ouvia essa palavra. Sem saber o seu significado, pareceu-me que ela possuía lampejos de sublimidade e pensei: “É isso mesmo! Vou escrever essa palavra no meu coração! Pelo modo com que ele diz ‘ultramontano’, deve ser algo muito bom, em primeiro lugar, porque é certamente o contrário dele, e, como também sou o contrário do que ele é, logo sou ultramontano. De outro lado, o ultramontano é “ultraqualquer coisa”, e isso é melhor do que não ser “ultra” em nada, como tantas pessoas. Então, esse sou eu!”
Lembro-me de mim mesmo nos momentos de solidão, repetindo a palavra mentalmente, analisando a sua sonoridade, fazendo-a cantar aos meus ouvidos e pensando, entusiasmado: “Não sei bem o que significa, mas como é bonita! Percebo tratar-se de algo que vai além de toda medida. É o que eu quero! Assim eu sou: ultramontano!”
A tática do isolamento
Em certo momento, os meus colegas deixaram de polemizar comigo e voltaram a adotar a tática que eu haveria de enfrentar muitas vezes em minha vida: o isolamento.
Eu entrava nas rodas, de argumento em punho, mas, sentindo que não tinham facilidade para redarguir, eles deixavam logo morrer a discussão e os grupos se desfaziam, deixando-me a sós. A hostilidade contra mim continuava furibunda, mas passava a ser velada. Em torno de mim se fazia um ambiente de vazio e de indiferença glacial.
Era preciso aguentar essa nova situação, tremenda para um menino. Eu fazia de conta que não me incomodava com a atitude dos colegas e aparentava sentir-me muito bem no meu isolamento, mantendo sempre a precaução de ser polido com eles, mas agindo como se dissesse: “Vocês não me querem nas suas rodas? Está bem! Não faço a mínima questão de participar delas. Vou mostrar que vivo muito bem assim”.
Entretanto, tinha esperança de que, algum dia, polemizaria do alto de uma tribuna, e essa perspectiva me dava uma confiança jubilosa, tranquila e alegre.
1 Em francês: embriagado, inebriado.
2 Em italiano, literalmente: “face feroz”; expressão teatral de furor ou de ameaça.
3 Desmoralizado, ridicularizado.
4 O autor das ilustrações nas histórias de Bécassine, contidas na revista juvenil La Semaine de Suzette. Cf. Volume I desta coleção, p. 246 ss.
5 No Bairro de Higienópolis, em São Paulo.
6 Monumento chamado Leão atacado. A peça foi feita na França pela fundição artística Du Val e inaugurada em São Paulo no ano de 1912.
7 Da corrente de pensamento liberal propulsionada pelo famoso escritor francês François Marie Arouet, apelidado Voltaire (1694-1778).
8 Da corrente de pensamento iniciada pelo escritor e filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778).
9 Em francês: boa conversadora.
10 Em francês: o fundo mais recôndito.
11 Em francês: esmerado, bem educado.
12 Thomas Woodrow Wilson (1856-1924) foi Presidente dos Estados Unidos de 1913 a 1921.
13 Augusta Vitória de Schleswig-Holstein, Imperatriz da Alemanha.
14 No dia 9 de novembro de 1922 Guilherme II casou-se em segundas núpcias com a Princesa Hermine Reuss zu Greiz (1887-1947).
15 Em francês: casamento desigual.
16 Henrik Ibsen (1828-1906): autor dramático norueguês, escritor de obras históricas e peças teatrais de inspiração filosófica e social, imbuídas de pessimismo.
17 Em francês: fechado em si mesmo.
18 Apelativo com o qual foram designados, na França do século XIV, os defensores do poder do Papa, os quais recebiam diretrizes vindas de Roma, além das montanhas, ou seja, os Alpes. Posteriormente, o termo se estendeu a outros países e, no século XIX, eram chamados de ultramontanos os partidários da independência da Igreja em relação ao Estado, bem como da autoridade da Santa Sé em toda sua extensão.
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