As maravilhas da cultura francesa
A Fräulein Mathilde me havia falado muito da Alemanha, sem elogios excessivos, mas fazendo narrações que me agradavam e me faziam bem.
Entretanto, a formação de espírito de minha mãe era toda francesa, e o ambiente de minha casa também era impregnado da cultura dessa nação. Eu tinha haurido profundamente essa influência, mas, sobretudo pela leitura clandestina das revistas da Université des Annales1, nas minhas furtivas horas de sesta – de que já falei –, senti-me fora de mim de entusiasmo, e a história da França começou a me atrair. Passei a comprar e, principalmente, a procurar em casa livros e revistas que apresentassem a doçura francesa.
Eu gostava muito de ambas as influências, e formei a ideia de que a luta entre a Alemanha e a França provinha de uma posição errada, e que era preciso encontrar na Igreja Católica a fórmula de uma boa convivência complementar entre as duas, como o verso e o reverso da mesma medalha de ouro.
É preciso dizer que eu tinha encanto pela comida francesa – como o vol-au-vent2 e certos pratos de massa muito leve –, delicada como um sonho, mas também pela comida alemã – pães, salsichas e cervejas –, forte e militar como um ideal.
A admirável ortografia francesa
Eu imaginava como seriam as vozes que narravam em francês todas aquelas histórias da Université des Annales. Tinha a impressão de finas lâminas de cristal que ressoavam com suavidade, ou de uma harpa que começasse a tocar, não movida por dedos humanos, mas dedilhada pelo vento. E, quando aprendi melhor a língua francesa, custou-me entender aquela ortografia inenarravelmente complicada, extravagante e lindíssima, mas depois compreendi o encanto dela e a saboreei com o gosto de um gourmet3. Achava o francês lindíssimo, um verdadeiro cântico!
Pensava, por exemplo, na palavra Bordeaux4: “O que fazem as letras E-A-U-X para dar um Ô? Não valeria a pena escrever Ô, de uma vez? Parece incontestável…” Porém, entendi que, nessa língua, o papel das letras que não se pronunciam é soberano, e a ortografia não fonética é própria a ser apreciada por pessoas inteligentes.
A meu ver, os franceses souberam exprimir em palavras, magnificamente, certa fórmula: ser forte e ter peso, mas com agilidade e elegância, de maneira que o peso não pareça pesar e a força não pareça oprimir.
Por exemplo, na palavra francesa exquis5, o E floresce no X, e ambos caem verticalmente no contrário deles: Q, depois do qual vêm o U e o I, assim como o S, que não se pronuncia. Dava-me a impressão de uma pirueta, um salto e uma música, com leveza e precisão.
Então, à força de raciocinar, encontrei uma comparação que me servia bem para exprimir a impressão que me causava a língua francesa.
Morango com chantilly: um princípio aplicável a inúmeras situações
Eu fui uma das pessoas que assistiram à entrada do creme de chantilly em São Paulo, e dos primeiros a comê-lo. Antigamente, quando era servido morango, vinha acompanhado de clara de ovo batida com açúcar. Não era desagradável, sobretudo quando se possuía a fome dos meus poucos anos, mas lembro-me do gáudio que tive quando a Fräulein von Ziegler me ofereceu creme de chantilly pela primeira vez, estando à mesa.Provei-o e pensei: “Que creme delicioso!”
Foi, para mim, uma revelação! Tive uma sensação de delicadeza, de leveza, de superioridade e de cultura, mas creio que os meus próximos não entenderam a minha ovação. Perguntei o que era aquilo e a Fräulein me explicou:
– Isto é crème fouettée6, Schlagsahne7 ou creme de chantilly.
Ao terminar, pedi mais e alguém me disse:
– Não pode, pois vai fazer mal para o fígado.
– Isso se resolve depois, mas, agora, eu quero outra taça de creme de chantilly…
Daí por diante, eu não ia a uma confeitaria sem comer algum doce com chantilly. Era sistemático! Eu não compreendia um sorvete sem esse creme, inclusive de laranja, e tudo era pretexto para pedir chantilly. Se pudesse, tomá-lo-ia sem acompanhamento algum!
Em geral, eu me servia dele da seguinte maneira: punha o morango, cortado ou inteiro – eu preferia inteiro, pois me parecia que o metal dos talheres tirava o gosto das frutas – dentro da pequena montanha de creme, e depois o retirava com um cocuruto de chantilly. Entretanto, certo dia uma pessoa me ensinou:
– Para comer morango com chantilly, você deve esmagar o morango com o garfo e depois pôr o chantilly em cima dele. Assim, o suco da fruta se despeja no creme, este se liquefaz sobre o morango, e o conjunto dá outro gosto. Você vai ver como é melhor!
O morango foi realmente esmagado e reduzido a pasta. Provei-o e percebi que da mistura resultava algo que não era apenas a soma dos sabores originários. Dei-me conta de que certas coisas só dão seu inteiro sabor quando esmagadas e trituradas, e que essa regra ou princípio era transponível para um número incontável de casos e situações.
Então, quando procurei explicar para mim mesmo a beleza da ortografia francesa, compreendi: aquelas letras inúteis, como E-A-U-X, esmagadas e misturadas, formavam um Ô mental. Possivelmente, nos antigos tempos se dizia bor-de-aus. Mas a elegância da pronúncia foi afinando o tom e fundindo os sons, de maneira a produzir um Ô final. E, ao saber que esse Ô resultou de outras letras, esmagadas numa espécie de chantilly, eu passei a senti-lo de outro modo. Para mim, essa interpretação era uma delícia.
Assim, o que eu pensava sobre essa grafia fazia parte da minha admiração pelo mundo da França. Eu tinha um verdadeiro entusiasmo por ler e entender o francês.
Leçons de choses
Por exemplo, eu possuía um álbum francês, chamado Leçons de choses8, no qual eram mostradas cem coisas exquises da França, tendo descrições acompanhadas de ilustrações. Uma delas mostrava, por exemplo, uma argola presa na laje do chão de um cais, de tal maneira que se via uma perfuração dentro da pedra, por onde entrava o círculo de ferro, fortemente chumbado. Aquilo, tão comum, era apresentado com todo o jeito francês, de modo admirável, inclusive com a luz do sol incidindo, fazendo aparecer todos os pormenores com muita exatidão.
Era a realidade do granito bruto, o qual tinha algo de beleza e de nobreza. Eu via aquela argola, percebendo que inúmeros navios, vindos de incontáveis lugares, haviam sido amarrados ali durante longas horas, e me fazia bem olhar aquilo.
A França do século XIX
A França! Quanto eu me maravilhava ao tomar contato com aquilo que poderia chamar a substância francesa! Dizia: “Santa Joana d’Arc: que admiração! São Luís IX, a Catedral de Notre-Dame, em Paris; a Catedral de Reims, quanto entusiasmo!”
Inclusive, ouvindo alguém falar da história de países vizinhos dessa nação, sobretudo a Itália e a Espanha, eu percebia que conhecia o garbo espanhol, a inteligência e a sutileza italiana, e mil outros aspectos da Europa, através dos olhos, da adjetivação e do senso de descrição do francês.
Entretanto, nesse mundo francês eu via mais raramente a Idade Média, pois, antes de tudo, tinha diante de mim os personagens do fim do século XIX e da Belle Époque9. Era a França que estava na imaginação de mamãe e dos mais velhos de minha família, os quais a descreviam para mim. Nessa França eu via a galeria dos homens típicos, os quais se apresentavam de modo muito claro em meu espírito: o juiz, o médico, o advogado, o senador, o embaixador, o almirante, o general, o Bispo, o príncipe, o marquês, o barão ou a grande dama, todos nos seus últimos pormenores.
Os romances da Condessa de Ségur
Essa era também a França dos livros encantadores que eu lia, as histórias de Bécassine e de Madame de Grand-Air ou, por exemplo, os romances da Condessa de Ségur, née10 Rostopchine, filha do homem que mandou incendiar Moscou11.
Ela escreveu livros muito interessantes para meninas, os quais se tornaram célebres, e que eu lia em edições de capa grossa, vermelha ou azul, com tranche dorée12, numa composição gráfica ideal. Havia neles desenhos a bico de pena representando os personagens, homenzarrões fortes e mulheres saudáveis, numa casa, por exemplo, em meio a uma propriedade agrícola, sentados em grandes cadeiras num terraço, do qual se viam criancinhas brincando e um chafariz ao longe.
Nesses livros eu via também vinhetas em forma de rosácea com arabescos que, apesar de não terem nenhum significado especial, me agradavam muito pois percebia que, no fundo, queriam dizer algo que eu não sabia definir.
As histórias da Condessa de Ségur eram, entre outras, Les malheurs de Sophie13 e L’Auberge de l’Ange Gardien14. Esta última era ultrapitoresca, e se passava em torno de um personagem russo, o General Dourakine, riquíssimo e obeso, que havia sido feito prisioneiro de guerra dos franceses e recebera licença para morar num lugarzinho da França, instalando-se na melhor hospedagem da região, que era o Auberge de l’Ange Gardien. A narração era um encanto, um mimo de civilização e apresentava uma atmosfera da qual ainda me lembro com saudades. Para mim, aquele era o auberge dos auberges!
Continuidade ou aventura?
Outro livro contava a história de uma menina, filha de um militar francês que havia perdido uma perna na guerra contra os alemães em 1870. Era viúvo e morava com a filha numa cidadezinha do interior da França, onde levava uma existência muito virtuosa, mas sempre igual a si mesma e, naturalmente, com aspectos penosos. Por exemplo, apoiado numa perna de pau, ia todos os dias ao correio a certa hora da tarde, para verificar se haviam chegado cartas para ele. Depois voltava para casa e tomava um refresco que a menina lhe preparava.
Eu sentia que se expusesse isso aos meninos de minha idade eles não gostariam da pergunta e, se tivessem de escolher, todos se precipitariam na aventura e teriam horror à vida de continuidade e de grandeza, mas eu percebia que esta possuía uma beleza que imitava melhor as perfeições de Deus. Então, a estabilidade seria o locus15, a moradia da perfeição.
“La gloire de son village”
Também li um livro cujo título era muito saboroso: Bernard, la gloire de son village16 – “Bernardo, a glória de sua aldeia”. Lembro-me confusamente do enredo. Tratava-se de um rapaz que era a glória do vilarejo onde havia nascido, pois aprendera a ler e escrever mais depressa do que os outros de sua idade, e também serrava madeira e assobiava melhor do que eles. Era o filósofo da aldeia, “inteligentíssimo” e “cultíssimo”! Então mudou-se para Paris e a família o acompanhou até a carruagem na qual viajaria, pois todos estavam certos de ele ser um futuro Napoleão Bonaparte, que tornaria célebre a cidadezinha.
Assim, a vida dele transcorria numa espécie de tristeza muito digna, cheia de recordações e imersa num presente que parecia uma garrafa dentro da qual se tivesse entornado o passado. Ele vivia de lembrar aquele passado, dentro da uniformidade e da continuidade do presente.
Quando li esse livro, tive um émerveillement especial por essa continuidade magnífica que é, no fundo, a explicitação e o aumento de esplendor daquilo que existe, à maneira de uma longa caminhada, lenta e majestosa. Veio-me então à mente um problema, com a seguinte pergunta: “Em última análise, o que é mais bonito? Viver assim ou atirar-se a uma aventura?”
Chegou a Paris, hospedou-se embaixo de uma ponte e conseguiu um emprego de engraxate, mas não conseguiu nem sequer ser o primeiro da engraxataria. Ele escrevia para a sua terra natal dizendo que já tinha celebridade, mas, afinal de contas, não obteve resultado e anos depois voltou triste como um mendigo, compreendendo como era pouco ser a glória de sua aldeia.
Então, a partir de todas essas leituras eu levantava voo para o Ancien Régime, bem certo de que o melhor que existia na França do século XIX não era senão um resto do que houvera outrora, quase na época das fadas…
Considerações religiosas sobre o Ancien Régime
Quando comecei a me interessar pelo Ancien Régime e pelos personagens da história da França, o passado ainda não representava para mim um processo revolucionário gradual17. Então, a consideração daquela sociedade e de seus admiráveis aspectos de virtude me impressionava muito, enquanto sendo maciçamente anti-hollywoodiana e diferente do ambiente moderno no qual eu vivia. E, por isso, não via os defeitos dos quais ela também era portadora. Inclusive, em certa ocasião, lendo as conferências da Université des Annales, de repente pensei: “Mas, isto se parece com aquilo que eu quero conservar!”
Por exemplo, contemplava os cumprimentos, elegantes e magníficos, entre as pessoas dessa época: como se tratavam com distinção! Via a figura de um homem que se inclinava profundamente diante de outro, enquanto tirava o tricórnio18 completamente. Ele manifestava tanto respeito, que parecia dignificado diante da elevação daquele a quem saudava. E o segundo, ao receber o cumprimento, levantava o tricórnio apenas um pouquinho, mas com tanta afabilidade, que parecia aspergir com superiores doçuras aquele que se inclinava.
De outro lado, quando dois iguais se encontravam, cada um saudava o outro como se ele mesmo fosse inferior, e assim a igualdade se afirmava pelo mútuo respeito. Eu pensava: “Como é bonito ser igual a alguém, mas com nobreza!”
Assim, certas coisas muito delicadas do Ancien Régime produziam em mim uma espécie de frisson estético, de fundo religioso, o qual correspondia à minha contínua procura do mais delicado, do mais majestoso, do mais esplêndido, do mais chatoyant19 e do mais multicolor.
Em certo momento, o Rei-Sol20 se apresentou a mim nos fulgores das primeiras impressões, e eu me interessei prodigiosamente pela pessoa dele. Percebi que esse monarca havia elevado a condição régia a tal ponto que era o Rei por excelência: majestoso, distinto e ordenador como ninguém, envolvendo todo mundo no seu ambiente. Para mim, Luís XIV era o verdadeiro gerador, não de uma nova civilização, mas do tônus supremo que a civilização do tempo dele podia alcançar e, por causa disso, sob certo ponto de vista, mestre do gênero humano.
No fundo, era a graça que despertava em mim esse movimento de imensa admiração pela cultura francesa, a qual reforçava enormemente o meu amor à tradição doméstica que eu recebera.
Ponderar, admirar e rejeitar
Entretanto, um pouco mais tarde, às vezes eu olhava fotografias do palácio de Versailles, do Trianon21, do Petit Trianon22, de Fontainebleau23, onde tudo parecia sorrir de modo encantador, e pensava de mim para comigo: “Em todo esse mimo e nessa graça falta algo: seriedade! Além de todo esse sorriso, eu quereria ver a carranca e a força! Vejo que essa nação descende de cruzados, mas não vejo quais cruzados poderiam descender dessa nação…”
Era verdade que o heroísmo francês durante a Primeira Guerra Mundial tinha sido muito grande, mas esses heróis quase foram derrotados, por imprevidência, pois na paz eles não gostavam de se preparar para a guerra. A indecência, a imoralidade e a corrupção também faziam parte da França. Então, eu devia ter um critério de fundo de alma, com base no que via da Santa Igreja Católica Apostólica e Romana, para poder pesar, ponderar, comparar, admirar, censurar ou rejeitar, a cada passo, o que a França me apresentava.
1A revista Journal de l’Université des Annales, coleção pertencente a Dª Lucilia e muito lida por Plinio. Cf. Volume II desta coleção, p. 480 ss.
2 Em francês, literalmente: “voo-ao-vento”. Prato de entrada, de massa folhada, formando uma espécie de recipiente no qual se deita algum recheio, quase sempre salgado.
3 Em francês: apreciador de iguarias finas.
4 Capital do departamento da Gironde e da região de Aquitânia (França).
5 Em francês: delicioso, requintado.
6 Em francês: creme batido.
7 Em alemão: creme batido.
8 Em francês: “Lições sobre coisas”.
9 Em francês: “Bela Época”. Período que abrange os anos posteriores à Guerra Franco-Prussiana (1870-1871), até os primórdios da Primeira Guerra Mundial (1914-1918).
10 Em francês: nascida.
11 Sophie Rostopchine, Condessa de Ségur (1799-1874), romancista de origem russa, casada com um nobre francês, escreveu numerosas obras para a juventude. Seu pai foi Fedor Vassilievitch (1763-1826), Conde Rostopchine, general e Governador de Moscou. Em 1812, antes da chegada do exército de Napoleão Bonaparte, evacuou a cidade e foi-lhe atribuída a responsabilidade pelo incêndio que a destruiu.
12 Em francês: o corte das páginas tingido de dourado.
13 Os desastres de Sofia, editado em 1859.
14 A pousada do Anjo da Guarda, editado em 1863.
15 Em latim: lugar.
16 De autoria de Georges Fath, editado em 1888.
17 Sobre o caráter processivo da Revolução, o próprio Autor assim se expressa, no seu livro Revolução e Contra-Revolução: “Essa crise não é um fato espetacular e isolado. Ela constitui, pelo contrário, um processo crítico já cinco vezes secular, um longo sistema de causas e efeitos que, tendo nascido, em momento dado, com grande intensidade, nas zonas mais profundas da alma e da cultura do homem ocidental, vem produzindo, desde o século XV até nossos dias, sucessivas convulsões”. (Corrêa de Oliveira, Plinio. Revolução e Contra-Revolução. São Paulo: Editora Retornarei, 2002, p. 25.)
18 Chapéu de três bicos.
19 Do verbo francês chatoyer: mudar de cor ou emitir diferentes reflexos, segundo os jogos da luz.
20 Título dado ao Rei da França, Luís XIV (1638-1715), pelos seus contemporâneos.
21 Um dos palácios existentes nos jardins de Versailles, construído em 1687.
22 Pequeno palácio dos jardins de Versailles, construído em 1762.
23 Palácio em estilo renascentista, na região de Seine-et-Marne (França), construído pelo Rei Francisco I, em 1527.
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