As tardes de Plinio 2 – Após o almoço, as despedidas
Após o almoço, as despedidas
No fim do almoço, todos se espalhavam pela sala e continuavam a conversar. Vovó, invariavelmente, ia para um canto e sentava-se numa cadeira de balanço que hoje uso no meu escritório – a qual tinha sido enviada para algum antepassado dela por um parente que residia nos Estados Unidos – e cochilava um pouco. As pessoas sorriam e achavam graça nisso, mas ela não se incomodava e continuava. Entretanto, bastava alguém falar a favor ou contra a Monarquia, que ela se erguia e dizia:
– O que é?
E todos verificavam que ela acompanhava um pouco o tema enquanto dormia… Depois de um certo tempo, ela se levantava sem ajuda, fazendo certa força. Dava-me a impressão de um monumento sendo erigido! E começava a andar. Entretanto, tendo os pés muito pequenos e sendo volumosa, exatamente como Madame de Grand-Air, caminhava com seu típico passo vagaroso, sumindo nos seus aposentos para a sesta… A família permanecia conversando, mas a presença dela havia enobrecido a todos.
As despedidas eram feitas com muita calma, pois ninguém entrava ou saía correndo. Todos os fatos da existência eram vividos com densidade e, sem serem propriamente vagarosas, as pessoas levavam uma vida sem pressa. E o velho relógio de parede da sala de jantar dava duas horas da tarde, parecendo ritmar a atmosfera da casa com um bonito som do qual até hoje me recordo…
Essa regra comportava apenas uma exceção: a hora de tomar o trem. Minha família materna sempre foi um pouco atrasada em horários e, então, contavam-se “epopéias” muito engraçadas a respeito de trens tomados à última hora. Por exemplo, o episódio de um dos meus tios que chegou à Estação da Luz quando a bilheteria já estava fechada e não era permitido passar. Ele viu um elevador de carga descendo algumas bagagens e, como estava ainda longe do mesmo, deu um berro tão imponente que o ascensorista deteve o elevador instintivamente, dando-lhe tempo de entrar, o que, aliás, era proibido pelo regulamento da estação. O empregado estava tão surpreso que, sem dizer nada, levou meu tio até o trem e ele entrou no último vagão.
Era essa a única forma de pressa que tinha “cidadania” na família.
Mamãe era muito consonante com essa calma. Ela possuía todas as qualidades familiares levadas a uma espécie de auge, tendo, entretanto, a nota religiosa muito presente. A sua piedade pessoal reavivava e tonificava os aspectos católicos da tradição familiar.
Um pequeno professor de catecismo
Sendo obrigado a ficar quieto durante as conversas, quando acabava o almoço dos patrões eu me dirigia para a copa, onde a criadagem almoçava por sua vez. Punha-me em pé sobre a mesa do centro e dava-lhes aulas improvisadas com base no que eu sabia de catecismo e algumas “idéias políticas”… Havia ali umas oito pessoas, com alguns agregados pobres que vinham comer também. Eles ouviam com interesse, pois queriam ver se, de fato, eu estava aprendendo alguma coisa, e riam muito. Às vezes, eu dialogava com uma arrumadeira chamada Adelaide, a qual intervinha:
– Está errado! É tal coisa assim!
Como eu não tinha muita certeza sobre o assunto, não enfrentava a Adelaide. O meu vocabulário era tão excessivamente pobre que eu confundia as palavras “aluno” e “escravo” – conceitos incompletos em meu espírito! – e, de vez em quando, dizia:
– Vocês, que são meus alunos…
Eles, então, davam risada com muita cordialidade e a “aula” transcorria perfeitamente bem; mas, às vezes, eu afirmava:
– Vocês, que são meus escravos…
E a Adelaide ficava indignada e exclamava:
– Escravos, não! A escravatura já acabou, pois a liberdade foi proclamada no dia treze de maio!
Eu não sabia o que era “escravo”, nem o que era “treze de maio”…1 Tudo aquilo se dava nas brumas da mente de um menino de cinco ou seis anos. Então, eu perguntava:
– O que são, pois?
– Discípulos.
Eu dizia com boa paz:
– Então, são meus discípulos.
– Muito bem!
E continuava. Os mais velhos da família sabiam de tudo isso e comentavam entre si:
– Está vendo? Nele confluíram o sangue do Conselheiro João Alfredo e do Dr. Gabriel José!
Esses episódios, talvez, ajudaram a criar neles a idéia de que algum dia eu seria deputado, professor ou jornalista. Isso estaria na ordem do que se esperava da expansão natural de minha pessoa. Entretanto, eles não viam o significado mais importante da minha atitude. Em mim, aquilo já era tendência para o apostolado! Fazia-o pelo manifesto desejo de dilatar o Reino de Deus e recordo-me de que aquilo me causava tanta alegria, que eu sentia o coração batendo forte. E eu pensava: “Não ouso fazer isso com aqueles da mesa grande, pois não gostariam. Então, faço-o aqui, junto à mesa pequena!”.
Simpatia pelos sofredores: analisando Florência e Magdalena
Analisando a criadagem de casa, eu percebia que certas pessoas sofriam muito e outras pareciam perfeitamente instaladas na vida, levando uma existência agradável. Notava que algumas destas últimas tinham um egoísmo, uma indiferença para com os outros e uma vulgaridade de alma que me causavam horror. Só tratavam sobre temas banais, e eram, elas mesmas, também banais. Pelo contrário, as que sofriam tinham um espírito superior, interessavam-se por temas religiosos e questões elevadas e até possuíam um vocabulário mais bonito para exprimir o que pensavam.
A cozinheira era uma senhora de cor.Ela cozinhava bem e conservava sempre um porte muito ereto e uma fisionomia de quem tinha vencido todas as ondas da vida. Chamava-se Florência.
A prima dela, Magdalena, era a lavadeira. Muito doente, toda dolorida, sentia dor nos pés quando andava. Era muito limpa e, apesar de ter reumatismo nas mãos, timbrava em ser lavadeira e não desejava outro serviço. Trabalhava apenas para a minha família, a qual, sendo numerosa, dava-lhe serviço para a semana inteira. Vivia do que ganhava em casa e era muito piedosa e religiosa, rezando com freqüência. Eu a via conversando com mamãe, que sentia pena dela e a ajudava de vários modos, como podia. Magdalena passava diante de nós com respeito e sem olhar-nos, como uma sombra ao longo do muro. Usava um pano branco, também muito limpo, sobre a cabeça, formando um toucado como eu nunca havia visto alguém utilizar.
Eu achava a Florência uma “boa vida” e não tinha uma consideração especial por ela, mas admirava a Magdalena, pensando: “Ninguém dá importância a essa lavadeira, mas eu dou, pois é uma pessoa sofredora. O sofrimento deu à alma dela um certo valor que não possuem algumas das senhoras bonitas, perfumadas e cheias de jóias que vêm visitar nossa casa”.
Então, comecei a ter simpatia e grande respeito pelo sofrimento, pois compreendi ser ele o que mais eleva a alma de uma pessoa. Nesta terra não há indivíduo mais indigente do que aquele a quem Deus não manda dores. E esse meu respeito aumentou, mais tarde, quando principiei a sofrer e compreendi o progresso que minha alma fazia por essa causa.
Praticando a caridade com os necessitados
Sendo a minha avó caritativa, a área da copa era também freqüentada por algumas figuras populares pitorescas, que apareciam às vezes para pedir esmola. Era uma espécie de “departamento de caridade”.
Havia uma velhinha italiana, mendiga, muito magrinha, toda ratatinée [encarquilhada] pela idade, muito branca, com cabelo também inteiramente branco – o que me dava a idéia de resignação total –, nariz aquilino, umas veias azuis que lhe cruzavam a face, e com mãos pequenas e arqueadas. Baixinha, penteadinha, arranjadinha e teatral. Não sei onde morava, mas ela vinha quase se arrastando para almoçar em casa, nos arcos embaixo da escada. Quando as crianças apareciam ali, assim que nos via, começava a falar conosco. Era uma história que não terminava mais! Ela fazia gestos com o braço e depois uma inclinação. Parecia um muezim muçulmano no alto de um minarete! E nós, não sabendo como responder, mas sentindo o pitoresco do personagem, parávamos para olhá-la um pouquinho. Em geral, lhe entregávamos uma, duas ou três moedas, as quais ela recebia com uma gentileza de primeira ordem, ficando muito contente. Nós lhe demos o apelido de Benedícite, pois, nessas ocasiões, ela dizia:
– Benedícite! Benedícite!
E ela se erguia, no meio da sua pobreza e do seu infortúnio, para nos abençoar com a mão trêmula… Então dizíamos:
– Até logo, Benedícite!
– Até logo!
Aparecia também uma espanhola chamada Margarida, a qual, em tempos idos e vividos, muito anteriores ao meu nascimento, fora empregada em casa. Ela depois se casara com um vendeiro – creio que português – dono de um armazém em nosso bairro. Então, às vezes, por aquelas fidelidades dos antigos tempos e sem nenhum interesse, ela visitava nossa casa para saber como estava a família. A Margarida dava-me a impressão de ser uma mulher bem honesta. Às vezes, ela ia com as filhas, que me lembravam um personagem da história de
Bécassine… E, de vez em quando, alguém dava um serviço mais pesado para a Margarida fazer, com o que ela recebia uma gorjeta, a qual seu marido certamente apreciava.
Ela era magra, possuía um grande pescoço com uma cabeça pequena, e cabelos louros em cachinhos. Quando se irritava, seu pescoço ficava um tanto vermelho e azulado…
Eu, que tinha certa dificuldade em compreender o português falado pelos portugueses – de maneira que, às vezes, ouvindo um deles, eu não queria dizer que não entendera, mas ficava intrigado e pensava: “O que disse esse português?” –, não acompanhava o português falado por espanhóis e muito menos o próprio espanhol! Eu não entendia o que a Margarida dizia…
Ela era muito respeitosa: chegava pelo portão dos fundos e mandava perguntar à minha avó ou à minha mãe se lhe concediam licença para entrar. Se não estivessem recebendo visitas, elas lhe davam a permissão. Então, ela entrava em casa, interrompia a nossa conversa e começava a falar… Freqüentemente estava zangada com alguém e contava alguma desventura que lhe acontecera, declamando e discursando! Ao cabo de algum tempo, todo mundo estava informado sobre seus problemas…
Por fim, ela dizia:
– Pues entonces, me voy! [Pois então, vou-me embora!]
Ao cruzar a porta, às vezes voltava e recomeçava tudo! Entretanto, estando ali mamãe, eu percebia não haver meio de fazer a Margarida sair, nem sequer de insinuar que deveria retirar-se. Ela permanecia o tempo que desejasse…
Havia ainda duas ex-escravas. Uma delas – chamada Honorata –, vinda da África, tinha sido escrava da família de um médico, fazendeiro, muito amigo da minha família e, pela íntima relação com meus avós e minha mãe, ia muitas vezes conversar com os criados de casa. Ela acabou habituando-se a entrar em casa apenas para dizer “bom dia” a vovó e mamãe, e também contar casos… Não sei se o seu cabelo não crescia ou se ela mandava cortá-lo à maneira de um homem; era uma carapinha de um centímetro de espessura, toda branca. Suas orelhas tinham certa forma de abano e ela quase não possuía sobrancelhas, mas via-se bem o arco onde estas deveriam estar, de maneira que eu percebia como seriam aquelas sobrancelhas inexistentes. Ela se vestia com uma espécie de poncho ou cobertor marrom muito surrado e umas saias indefinidas, com as cores de todos os usos. E tinha uma fisionomia de drama…
Ela já entrava cumprimentando:
– Bom dia, Dª Gabriela! Bom dia, Dª Lucilia!
– Bom dia, Honorata, como vai você?
Bem entendido, o “bom dia” mais amável era o de mamãe.
Em duas ou três ocasiões, quando mamãe não se encontrava presente e minha avó estava na cadeira de balanço, eu cheguei a ver a Honorata sentada, com licença de vovó, numa cadeira perto dela e as duas muito entretidas, contando coisas dos antigos tempos, durante horas. Ninguém sabia exatamente o que conversavam, mas aquilo fazia parte do “mundo” onde minha avó vivia – não muito comunicado aos outros –, do qual a Honorata também participava.
A segunda ex-escrava fora criada de minha mãe no tempo em que ela possuía casa própria, antes da morte do meu avô, e se acostumou a freqüentar a nossa residência durante toda sua vida.
Havia também uma viúva chamada Serafina, filha de ricos produtores de caninha2, donos de uma plantação que existia na atual Freguesia do Ó3. Ainda no tempo do Império4, ela se casara com um homem de muito boa família, que recebera de D. Pedro II o diploma de Moço Fidalgo da Casa Imperial e faleceu pouco tempo depois do casamento. A Serafina herdou certa fortuna; mas, roubaram-lhe o dinheiro e os ventos do infortúnio acabaram trazendo-a para a nossa casa…
Serafina aparecia todo dia para comer e as pessoas da família tinham pena dela. Era cartomante e, às vezes, um ou outro mandava chamá-la para ler a sorte, no baralho. Ela “lia”, o interessado dava risada e ninguém tomava a leitura a sério. Foi esta a primeira mulher que vi fumar, no fundo do quintal de casa. Aquilo me chocou e ela, tendo me visto, imediatamente jogou fora o cigarro…
Ali comia também o Antônio Cego, um mulato velho e gordo – coitado! – que andava às apalpadelas e do qual nunca conheci bem a história. No tempo em que ele não era cego, houve uma confusão durante certas eleições que não correram bem e o Antônio teve de fugir da polícia. Acabou sendo transportado num caixão de defunto, com furos na parte inferior, viajando assim de Minas para São Paulo, onde alguém recebeu o “morto” em alguma casa…
Todos eles chegavam e sentavam-se no quintal: comiam, bebiam, conversavam e, quando precisavam, davam uma “facadinha”5… que mamãe arranjava: por exemplo, uma apresentação para a Santa Casa, a fim de tratar de um filho… Aquilo era uma verdadeira clientela que a família mantinha desinteressadamente e por bondade. Quase todas essas figuras apareciam pelo menos uma vez a cada três meses, sem reivindicações, sem inveja e sem ódio. Em tudo isso, no fundo, havia algo do feudalismo medieval e da civilização cristã. Sem embargo, a fé daquela gente tinha muito de superstição…
Lembro-me também de um relojoeiro que vinha a cada oito dias, para dar corda nos relógios de casa.
Solidão por falta de interlocutores
Houve um período, anterior às minhas “aulas de catecismo” para os criados, em que eu falava muito pouco, pois não tinha com quem conversar sobre os temas dos quais gostava e não sabia por que isso acontecia. Então, a Fräulein, às vezes, me dizia:
– Plinio, você é muito mole e quieto quando está com as pessoas. Você deveria ter vivacidade, pois ninguém acha graça em conversar com um “pirão de batatas”. Por que você não trata de se tornar interessante?
Eu ficava envergonhado e respondia:
– É mesmo! Em tal ocasião eu não disse nada, mas só ouvi o que os outros diziam. Como é que poderei me tornar interessante?
– Olhe: Fulano e Sicrano são interessantes. Veja o que eles fazem.
– Mas não dou para aquilo…!
Então, retirava-me acabrunhado para minha solidão e, na hora da sesta, pensava: “Vou ser desinteressante a vida inteira! E as pessoas sempre vão fugir de mim, por causa da minha fisionomia de ‘pirão de batatas’…”.
Porém, em certo momento compreendi que tinha o dever de modelar o ambiente no qual eu vivia e, então, minha falta de vivacidade acabou instintivamente, pela graça de Deus.
1 No dia treze de maio de 1888 foi promulgada a “Lei Áurea”, decreto que abolia a escravidão no Brasil.
2 Aguardente.
3 Bairro da cidade de São Paulo.
4 O regime monárquico no Brasil foi extinto em 15 de novembro de 1889.
5 Pedido de pequeno auxílio financeiro.
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