As tardes de Plinio 3 – A sesta, uma obrigação cumprida com delícias
A sesta, uma obrigação cumprida com delícias
O que todas as crianças achavam tedioso, para mim era uma delícia: a hora da sesta. Meus primos, por exemplo, se dirigiam para a sesta protestando, ou simplesmente não a faziam, embora seus pais quisessem obrigá-los a descansar. Eu, pelo contrário, ia contente para a minha cama às duas ou três horas da tarde, quando a Fräulein Mathilde dizia:
– Plinio, siesta!
Ela utilizava alguns termos castelhanos, pois havia trabalhado antes no Uruguai.
A sesta era tomada muito a sério nesse período da minha infância e, levado pelo zelo de mamãe e pela autoridade da Fräulein, eu vestia a roupa de dormir e me colocava entre os lençóis. Entretanto, poucas vezes eu dormia, pois não tinha sono por haver descansado muito bem à noite; mas permanecia deitado, entregue às minhas elucubrações e análises. Lembrava-me um pouco do que havia acontecido de manhã, nos dias anteriores, ou um ano antes…
Sou muito tranqüilo e, portanto, amigo do repouso. Eu me deitava e a minha primeira impressão consistia no agradável do estender-me, sentindo as cobertas e o colchão. Minha cama, pintada de branco, tinha uma espécie de enxergão de arame, ultra-cômodo, cujo uso os médicos me proibiram depois, pois acentuava em mim o desvio da espinha. Eu era tão pequeno que minha cama ainda possuía grade. Lembro-me de notar o macio dos lençóis, passando a mão sobre eles e dizendo para mim mesmo: “Mas como isto é bom e bem feito! Estas coisas são boas de apalpar! Sinto-me muito bem alojado aqui”.
Logo fazia outra reflexão: “Isto é limpo. Eu também sou limpo e esta cama é própria para mim; aqui me sinto quieto e isolado do resto do mundo. Minhas idéias estão em minha mente como meu corpo está nesta cama, e eu me sinto bem de saúde. Que coisa correta, aprazível e digna de aprovação! Como isto está bem, e como sou bem aquinhoado!”.
A procura do maravilhoso, a partir dos enfeites do quarto
Eu pensava: “Mas agora, deitado na cama, vou fazer o quê? Devo dormir, mas não tenho sono”.
Na residência de minha avó, o espaço disponível para meus pais foi um tanto limitado, até ser construída uma ala nova da casa; por isso, minha irmã e eu tínhamos de dormir no mesmo quarto. Então minha mãe mandou fazer um biombo que o dividia desde o fundo até a janela e cada um ficava em sua parte, naturalmente sem ver o outro.
O quarto era muito bem-arranjado, agradável e espaçoso, adornado com um bonito papel de parede, pois, durante nossa viagem à Europa, a família havia comprado em Paris papéis para a casa inteira, diferentes conforme cada dependência. Em atenção à presença de minha irmã, o de nosso quarto tinha um desenho delicado que me encantava. Era uma série de estrias perpendiculares douradas, cor-de-rosa e bege muito suave, representando medalhões ligados uns aos outros por fitas azuis que pareciam cair ao acaso com voltas bonitas, entre as quais havia cenas pastoris, passarinhos e alguns cupidos subindo e descendo. Eu não gostava desses últimos e pensava: “Essas figuras são bobas… Poderiam mandá-las tirar!”.
Mas gostava das cores delicadas e, então, contemplava aquilo cem vezes e refletia: “Olha essa cor! E aquele medalhão! Aquilo combina com isso… Que bonito! Que engraçado! Que delícia!”.
E, na minha inocência, regozijava-me com aquela harmonia cromática, degustando-a e raciocinando: “Isso não é ouro, nem medalhão, nem fita, mas figura de ouro, de medalhão e de fita. Eu, portanto, devo imaginar um quarto ornado, não com simples papel, mas com verdadeiro ouro, autênticos medalhões e fitas, sobre uma verdadeira seda. Que efeito produziria? Como seria uma casa assim? E como seriam as pessoas que nela morassem? Que maneiras, que virtudes teriam? Como seria o resto da decoração da residência? Estou entrando numa espécie de mundo irreal, com cores incomuns. Estou me movendo no mundo interior das minhas idéias. Que lindo é isso!”.
Tratava-se da procura de um maravilhoso superior à realidade cotidiana e colocado numa linha arquetípica de belezas ideais. Para mim, nem era necessário que elas existissem, mas bastava-me entender serem concebíveis. Entretanto, não conseguiria descrever nem elogiar essa beleza para ninguém, e estranhava que os outros não a comentassem.
Entrava uma meia-luz pelas venezianas, nas quais, por coincidência, havia entre as várias tabuazinhas um espaço um pouco maior do que era o costume, de maneira que havia mais intensidade de luz em nosso quarto de dormir do que nos outros. Isso me agradava muito e eu continuava pensando: “Também é uma coisa boa…”. E depois me entretinha, por exemplo, com uma pequena aranha que descia por um fio de sua teia…
Análises durante a sesta
A janela do meu quarto dava para a escada de serviço, pela qual os empregados entravam para a copa, num lugar dos fundos do andar térreo onde havia uns arcos. Eu sentia o borbulhar daquela gente que conversava, subia ou descia. Eu reconhecia de longe as risadas, muito características, da criada Belmira.
Percebia quando chegava o vendedor de carne, numa enorme carroça puxada por cavalos Percheron. Simultaneamente, eu ouvia ecos de algumas conversas na sala de jantar, às vezes com risos e exclamações. Tocava o telefone e latia o cachorrinho bege de minha prima, de nome Svelte [esbelto], que eu, por preguiça, chamava de Suel.
Analisava também a musicalidade dos barulhos da rua. Ouvia, por exemplo, de repente, o ruído de uma serraria cortando toras, à distância de muitas quadras, na rua Vitorino Carmilo. Eu já havia estado lá e tinha visto aquilo funcionar: punham uma tora na ponta da serra e, depois, um homem ou dois iam afundando a lâmina na madeira até serrá-la inteiramente; então o som parava, pois estavam substituindo a tora. Reduziam, assim, vários troncos de árvore a “fatias” e vendiam-nas. A serraria emitia uma certa sonoridade bonita, que até hoje está em minha memória auditiva.
Quando o som cessava, eu prestava atenção no silêncio e percebia que aquele ruído ficava no meio termo entre o admirável e o gostoso. Notava antes de tudo o prazenteiro, pois sentia certo deleite quando ouvia aquele aço “cantar”: “piiuuoonnnnn”, produzindo um som metálico. O crescendo tinha algo de harmonioso e o parar de repente também era agradável. Formava um misto de cântico e de gemido lancinante, que cortava o ar morno e puro de São Paulo, dando-me a idéia de que na vida havia gemidos assim: algumas pessoas serravam e outras eram serradas. Existia a vida dura dos que serram e a vida dura dos que são serrados.
Eu percebia que, algum dia, a minha vida não teria a suavidade da minha cama, e dizia de mim para comigo: “Isso parece a voz de uma pessoa enorme que geme; alguém com uma personalidade muito maior do que a minha, lamentando-se a respeito de uma dor que eu não seria capaz de suportar. Se tivesse um sofrimento como o que está representado por isso, eu me desfaria! Mas… que possante! Que coisa extraordinária! Quando eu encontrar dores assim na minha vida, serei também um grande homem? Terei forças para agüentar tanto e gemer assim? Qual será o meu futuro?”.
Depois, pensava: “Entretanto, essas coisas têm o seu lado bonito: a árvore vai ser mesa, como a que está ali! Foi uma árvore; que promoção para ela! Uma árvore do mato se transformou em mesa bonita. A serra vence batalhas… Que belo esforço! Vou descansar bem, para me preparar para elas! E agora vou pensar em alguma coisa mais agradável…”.
E logo me vinham recordações gastronômicas: bolos, pães – estes últimos encantando-me muito mais do que os primeiros – e eu refletia: “Que bom era aquele pão com manteiga, que comi recentemente… Oh!”.
Em certo momento, o cacarejar das galinhas substituía o ruído da serraria, pois o galinheiro ficava no fundo do quintal de casa: “crequé, crequé”. Eu tinha muita reserva em relação às galinhas – quando não estavam no meu prato! – e nunca tocava nelas. Ouvia aquele “crequé” e pensava: “Isso é feio, mas esse som me dá um contato com a terra e com a realidade, que o “gemido” do aço não me proporciona, pois ele quase me conduz para o irreal. Esse cacarejar é o símbolo da vida cotidiana… A existência não está representada apenas pelas horas em que minha alma acompanha a música da serra, mas também pelos momentos em que o “crequé” da galinha é o próprio barulho da vida real e concreta, que se condensa e se levanta”.
De repente, ouvia mamãe falando com a criada:
– Belmira, você já pôs em ordem a roupa branca?
Era um assunto ultra caseiro, mas a voz dela, ao dizer “Belmira”, possuía um tom tão afável, aveludado, sonoro e agradável, que eu pensava: “A voz de mamãe causa-me a mesma sensação que tenho quando estou junto dela, recebendo seus agrados…”.
Tudo isso me dava a idéia da harmonia de todas as coisas, levando-me a imaginá-las no maior auge de beleza possível e tendo no centro uma pessoa que possuía em si toda essa harmonia. Eu refletia: “A criatura humana é mais harmônica do que tudo quanto a cerca, desde que seja boa. Olhe a maravilha que há em mamãe! Ora, tenho uma consonância completa e enfática com isso que existe nela. Eu quereria ser assim e que todo o mundo também o fosse! Desejaria que o mundo inteiro não tivesse apenas o som das galinhas e das rodas de aço, mas possuísse outras harmonias. Quais seriam? Como seriam?”.
Eu percebia, pelos ruídos, que minha irmã acordava da sesta e logo arrumava as suas coisas, saindo imediatamente para fazer toilette, enquanto eu me deixava ficar deitado, pensando: “Como sou calmo! Tudo em mim transcorre de modo tranqüilo e me sinto bem nesse sossego”.
E as figuras de santos que mamãe tinha posto no meu quarto pareciam sorrir para toda aquela harmonia. Tudo era agradável e eu não imaginava que pudesse haver outra posição a respeito da vida.
Pouco antes de adormecer, deitado de lado e com a mão posta debaixo do travesseiro, recordo-me de que o torpor vinha chegando e eu o recebia como uma espécie de requinte dentro de tudo aquilo, pensando: “Agora vou embarcar na quintessência disso”.
E entrava no sono.
Reflexões sobre a imagem do Sagrado Coração de Jesus
Entretanto, em certas ocasiões, diante do contraste entre o ambiente da copa e o do meu quarto, eu já fazia durante o horário da sesta reflexões sobre a nobreza, a partir da idéia da infinita majestade de Nosso Senhor Jesus Cristo, que me parecia a própria personificação do nobre.
Mas o que sentia eu em presença de Nosso Senhor, possuindo sobre Ele o conhecimento que pode ter uma criança tão pequena?
Eu O considerava através das imagens d’Ele que via num livrinho infantil sobre religião, e tinha a sensação evidente de ser Ele o Homem-Deus, pois mamãe explicava isso com toda a clareza. Mas sobretudo porque, devido a uma circunstância providencial, na minha imaginação Ele era exatamente como está representado na imagem do Sagrado Coração existente no oratório do quarto de mamãe, a qual ela prezava extraordinariamente. Junto a essa imagem havia uma outra, pequena, de Nossa Senhora das Graças, e eu estava habituado a ver esses objetos. Lembro-me de mim mesmo analisando-os pela primeira vez num determinado dia e pensando: “Afinal, como é Ele?”.
Sentia que, se quisesse fazer uma idéia d’Ele, deveria ter a certeza de que sua mentalidade era precisamente aquela, ali representada. Conhecê-Lo, pois, para mim, era interpretar aquela figura. E eu refletia: “Essa imagem me compraz e está de acordo com minha retidão, da qual estou certo, pois ela é uma evidência interna nascida em mim, proveniente de algo que não erra!”.
Eu não sabia que isso era o senso do ser1.
Então, o que a imagem parecia tornar patente aos meus olhos?
Sobretudo firmeza: Nosso Senhor estava tão bem posto sobre os próprios pés e tão ereto; o seu porte era tão varonil, tão próprio a quem pensa em tudo seriamente e tem uma grande amplitude de visão do universo, que Ele era para mim a própria imagem da certeza firme. O fato de seus cabelos serem divididos em duas partes parecia marcar uma simetria universal, indicando que tudo no mundo pode ser visto em dois aspectos distintos, constituindo uma harmonia superior. Também, o modo de eles caírem ao longo da cabeça e sobre os ombros, sem um fio em desalinho, tinha uma ordem impecável e perfeita, mas suave, acolhedora e afável. E o olhar que Ele deitava sobre o fiel era cheio de convicções e reflexões, acumuladas num prodigioso depósito de certezas. Mas tudo isso se dava num plano tão alto e extraordinário que Ele me parecia, ao mesmo tempo, o verdadeiro Rei e Mestre por excelência. Aquele era, portanto, realmente, meu Deus, Jesus Cristo, Filho de Maria, que nasceu em Belém! De onde a minha inteira adesão a Ele!
Era a voz da Igreja, por meio daquela humilde obra artesanal, apresentando-me a figura de Nosso Senhor Jesus Cristo. E eu, maravilhado, sentia que Ele atingia as aspirações do meu senso do ser e correspondia totalmente a tudo quanto eu achava bom e direito. Mais ainda: punha em mim horizontes e aspectos novos, com uma extraordinária elevação. No contato com Ele, eu me sentia tratado como gostaria de sê-lo! Ele possuía o olhar por excelência, do qual eu desejava que participassem todos os olhos que me viam.
1 Senso do ser: expressão muito utilizada por Dr. Plinio para explicar o senso que existe na alma humana, desde as suas primeiras apreensões da realidade – juntamente com a inclinação natural para o bem, a verdade e a beleza – e que confere à pessoa uma noção da existência de si mesma e dos outros seres.
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