As tardes de Plinio 4 – Após a sesta, sentindo o ambiente da sala de visitas e contemplando os bibelôs
Após a sesta, sentindo o ambiente da sala de visitas e contemplando os bibelôs
Em minha casa havia o que era clássico nas residências daquele tempo: uma boa sala de visitas, para receber as pessoas de categoria. A mobília, em estilo Luís XV, era dourada e forrada de tapeçaria de Aubusson. Pendiam quadros e gravuras antigas das paredes, as quais eram todas revestidas de um papel de boa qualidade, dourado também. Havia um grande espelho, um busto que até hoje está em minha casa, dois jarros de alabastro outrora pertencentes ao imperador D. Pedro II, um jarrinho que me encantava, miniatura de um outro existente no palácio do Czar, e uma bonita vitrine em estilo “Ancien Régime”, enfeitada com aplicações de bronze sobre madeiras preciosas, forrada de seda por dentro e tendo cristais bombeados.
Nessa vitrine eram conservados objetos raros e curiosos. Por exemplo, um grande anel de ouro, que diziam ter sido da rainha Maria Antonieta. Era revestido de uma pedra chamada crisólita, a qual imita o brilhante, e representava de modo magnífico o rei Luís XVI, em esmalte, tendo por cima um cristal bombeado que projetava reflexos.
Essa jóia fora trazida da Europa e doada à família por um velho personagem da São Paulo antiga, aparentado conosco: o primeiro diretor da Faculdade de Direito de São Paulo, General José Arouche de Toledo Rendon, que deu o nome ao largo do Arouche1. Esse objeto, depois, teve outro destino e não permaneceu em poder de minha mãe.
Também existia nessa vitrine um pequeno bibelô francês, representando uma marquesa com véu de tule cheio de furinhos, muito delicado, com sapatos de salto alto, sentada num banco e dando pedacinhos de pão a um bonito papagaio, de peito todo vermelho – cor “fraise écrasée” [morango amassado], de que eu gostava muito –, o qual estava dentro de uma gaiola. Essa ave tinha os ares de um cortesão do Ancien Régime… E a forma da gaiola, o jeito da marquesa e até o modo de o próprio papagaio comer os biscoitinhos eram tão leves e graciosos que eu seria capaz de permanecer horas olhando para aquele bibelô.
Assim, outros enfeites europeus me davam muito a idéia de delicadeza: vasinhos, jarrinhos, caixas e outras coisas representando cenas. Por exemplo, um grupo de pastores dançando no campo. Era o “minueto” de quem usava tamanco! As pastorinhas, todas “bouclées” [com os cabelos frisados], eram representadas com laço de fita azul ou cor-de-rosa amarrado no pescoço. E os pastores, todos bem-arranjadinhos.
Após levantar-me da sesta, lavar o rosto e pentear o cabelo, eu era obrigado a estudar. Entretanto, às vezes nesse horário eu encontrava a sala de visitas aberta, e entrava às escondidas, regalando-me com aquele ambiente. A penumbra permitia ver tudo perfeitamente, e eu começava a admirar os objetos. Retirava o anel da vitrine – eu era apaixonado por esmalte! –, aproximava-me da janela e o fazia “miroiter” [cintilar], causando-me a impressão de que a luz penetrava nele…
Certo dia, percebi que a vitrine era abaulada na parte inferior e tinha incrustações de marfim com figuras humanas, movendo-se em paisagens de aurora. Descobri então os prestígios e encantos do marfim, o que me deixou encantado. “Que beleza!”, pensei. “Como seria o mundo se fosse como ele parece ser quando é representado em madeira revestida de marfim?”.
Havia também uma sala menor e menos pomposa, para as visitas mais íntimas, onde estavam os quadros dos antigos antepassados da família. Ali existia um vasinho cor-de-rosa, feito de certa matéria vítrea, pertecente à minha família desde muito antes de eu nascer. Eu também entrava furtivamente nessa sala para olhar o vaso, e pensava: “Seria bom que houvesse no Universo algum lugar todo feito dessa matéria, no qual, ao entrar, ter-se-ia o deleite que os meus olhos recebem olhando para isso; em que o agradável seria deixar-se penetrar por ela. Essa substância deveria ter odores, sabores, sensações táteis e sons que coincidiriam com isto que vejo. Se bem que não valeria a pena passar a eternidade inteira assim, eu quereria ficar muito tempo nisso até mudar para um outro ambiente. Como seria bonito!”.
Eu concluía assim, num ponto alto, a meditação que havia começado durante a sesta. Tudo isso eram destilações e aplicações da fidelidade ao Sagrado Coração de Jesus. Assim era a minha piedade.
Dormindo no parapeito de uma sacada
No andar superior de minha casa havia um terraço cuja balaustrada era bem larga.
Um dia estava estudando nesse local e vi os tico-ticos, muito abundantes no jardim, que pousavam naquele parapeito, saltitavam e saíam voando. Às vezes, eles abriam as asas e tomavam vento, até que em certo momento a própria brisa os ajudava a voar… Eu olhava, devorado por um secreto desejo de voar também. Imaginei, então, que seria bem agradável sentir melhor a aragem de um bonito dia e pensei: “Vou parar este estudo e deitar-me para dormir ali, não com um sono muito profundo, mas vou ter a sensação de um passarinho quando está ali…”.
Não consultei mamãe e estiquei-me no parapeito. O problema da segurança interessa pouco nessa idade!
O fundo da idéia era o seguinte: sendo aquelas duas coisas – o jardim e o terraço – muito bonitas, seria bom dormir um soninho agradável na linha de junção de ambas, como que nutrindo-me da beleza delas. Lembro-me ainda de sentir o vento e o calor do sol sobre mim, vi os tico-ticos saltitando no jardim, a parede da casa e o chão desse terraço, o qual era calçado com um ladrilho do qual eu também gostava. Senti naquilo uma espécie de síntese e pensei: “Dormir aqui é tornar-me provisoriamente um ponto de confluência de todas essas coisas tão bonitas e congêneres”.
Adormeci embalado pelas brisas. Não sei quanto tempo fiquei deitado ali, mas, em certo momento, mamãe encontrou-se com a Fräulein e, não me vendo em companhia dela, perguntou-lhe onde eu estava. Ela respondeu-lhe que me perdera de vista e supunha que eu estivesse junto a ela. E mamãe disse:
– Vamos então procurá-lo. A senhora vai à parte superior da casa, enquanto eu verifico se ele está embaixo.
Não me encontrando, inverteram: a Fräulein passou a procurar-me no térreo e mamãe em cima. E, passando junto ao terraço, viu-me e percebeu logo o enorme perigo: um movimento que eu fizesse dormindo poderia fazer-me cair e morrer. Ela contava até o fim da vida o grande susto que teve! Compreendeu logo que, se fizesse barulho, eu poderia acordar sobressaltado e cair. Então chamou duas criadas das mais fortes e disse:
– Vocês desçam com um cobertor grande, segurem-no estendido e fiquem esperando. Eu só o acordarei quando vocês estiverem embaixo, pois, se ele tomar um susto, pode rolar e cair.
Minha mãe se aproximou e imediatamente passou as mãos sobre mim, de maneira que não houvesse perigo de eu cair, e acordou-me. Recordo perfeitamente a impressão que tive ao vê-la, sorrindo com o aspecto mais tranqüilizante possível, dizendo-me:
– Meu filho… Filhão!
Fiquei encantado com aquela fisionomia de expressão tão afetuosa, virei-me para dentro do terraço, a fim de acariciá-la e perguntei:
– O que é, mamãe?
Pensei que ela fosse retribuir os meus afagos, mas apenas respondeu:
– Agarre-se em sua mãe! Desça e venha comigo.
Pela idéia de ficar junto a ela, renunciei de bom grado ao meu bem-amado terraço. Ajudou-me a descer do parapeito – que era alto para uma criança daquela idade – e foi junto a uma cadeira ali perto. O perigo havia sido conjurado e ela estava evidentemente nervosíssima, mas sem sequer mudar de fisionomia. Perguntou-me então muito amavelmente:
– O que levou você a dormir ali?
– Foi para tomar vento.
Então me disse com um modo muitíssimo afável:
– Mas, meu filho, não convém fazer isso. Veja, você quase caiu e poderia ter morrido lá embaixo…
Ela me falou com uma seriedade que me deixou pasmo e obrigou-me prometer nunca mais fazer aquilo; mas isso não me impressionou tanto quanto o seguinte, que ela acrescentou:
– Mamãe sofreu muito por causa disso.
Eu pensei: “Ela, sofrer? Não pode ser!”.
Então ela viu que eu estava convencido, pediu-me um beijo, deu-me muitos e mandou-me brincar noutro lugar da casa. Muitos anos depois, entendi quão intensamente aquilo a tinha feito sofrer. A doçura dela foi completa durante todo esse tempo e nunca me recriminou pelo acontecido. E posso garantir que, depois desse episódio, nunca mais dormi no parapeito de um terraço.
Observando as árvores do jardim de casa
O jardim de casa também constituía para mim um regalo, com as suas alamedas e camélias de perfume intenso.
Eu tinha predileção pelas árvores floridas. Um dia, atraído por uma delas, fui caminhando e aproximei-me do tronco, pensando que este fosse liso e arranjado, como eu os via nas pinturas. Entretanto, aquilo que, a certa distância, se me apresentava tão bonito e aprazível, de perto pareceu-me rejeitável, feio, rugoso e “mal-educado”. Recordo que havia no tronco um buraco, dentro do qual uma pequena aranha havia tecido o seu fiozinho, e ela subia e descia ao longo dele. Havia ali restos de ciscos incrustados e pedacinhos de vegetação trazidos pelo vento. Eu tive uma repulsa em relação à árvore e pensei: “Se as árvores são assim, não quero nada com elas!”. Mas depois percebi ser aquele movimento inteiramente mal pensado.
No centro do jardim houve também, durante algum tempo, certa planta que depois cortaram e substituíram por uma linda acácia. Esta era maravilhosa! A única cujo tronco eu achava bonito: prateado ou cinzento-azulado, o que me encantava! Seus ramos erguiam-se com muita proporção, formando uma copa bonita, e suas folhas, pequeníssimas, pareciam inteiramente feitas de um veludo cinzento-prateado. Vicejavam nela florzinhas de um amarelo quase dourado e muito delicado, semelhantes a pequenas esferas feitas de fios que formavam uma espécie de esponjinha.
Havia perto dessa árvore um caramanchão e nele um banco de madeira pintado de cor verde-garrafa. Eu me sentava ali, ficava olhando a acácia, a qual produzia em mim certos efeitos agradáveis, e pensava: “O que se passa comigo quando chega até mim o perfume e quando percebo a bela ‘harmonia’ dessa acácia? Não sei exatamente, mas é algo pelo qual penetram em mim cultura e civilização… Isso é muito diferente de olhar, por exemplo, um ser feio e vil como uma minhoca”.
Agradava-me também perceber como eu ficava mais flexível e menos selvagem olhando para a acácia. E notava que eu crescia em alguma coisa, que no entanto não transparecia para os meus primos, mesmo quando corria de um lado para outro, na companhia deles.
Encantava-me também contemplar a luz do sol, cujos raios penetravam no ar despoluído de São Paulo; e tinha certa surpresa quando, aproximadamente às três da tarde, eu chegava ao jardim para brincar e percebia que este havia mudado de aspecto, pois a luminosidade não era a mesma que eu contemplara de manhã. Então pensava: “Isto não se fixa? Eu gosto tanto de examinar todas as coisas, mas elas mudam… O que aconteceu?”.
Brincando na terra, rejeição pelas taturanas
Dos quatro elementos: terra, ar, água e fogo, o único com o qual eu tinha certa implicância era a terra. Não tive – nem um pouco! – uma formação agrícola, e todo o meu modo de sentir não foi habituado a ver na terra o que ela é: a mãe generosa e farta que alimenta o homem. Eu via nela um elemento sujo e feio, às vezes úmido, cheio das minhocas do jardim que sujavam os dedos das crianças… Portanto, a terra não era matéria para ser tocada nem analisada, mas pisada e deixada de lado, ao contrário da areia…
Naquele tempo, as crianças brincavam com alguma freqüência nos jardins, com pequenos instrumentos e baldes. Às vezes, eu era obrigado a ficar sentado no gramado, o que me causava um certo desagrado a priori. Eu me sentia bem num tapete, mas não na grama, pois esta é áspera, cheia de surpresas e própria a arranhar, enquanto o tapete é civilizado, felpudo e obediente ao homem. Os insetos e os vermes da terra pareciam-me bichos recusáveis, que não valiam a pena nem olhar! Mas a Fräulein Mathilde achava aquilo muito saudável e dizia:
– É preciso ter contato com a natureza forte!
Eu pensava com os meus botões: “Mas essa natureza forte me invade e me dá uma tonicidade que quebra as expressões delicadas do meu próprio ser. Daqui a pouco estarei mugindo com toda a força, quando não fui feito para mugir! Por que esta senhora quer dar-me fórmulas de expansão vital que não me são próprias? Deixe-me tranqüilo!”.
Mas não havia remédio: davam-me uma pazinha e eu devia brincar na grama, se bem que não tivesse nenhum estro botânico… Certa vez, quando vi uma minhoca, cortei-a ao meio e fiquei horrorizado ao notar que as duas partes dela, ainda com vida, se mexiam nervosamente. Imediatamente cobri-as com terra.
Lembro-me de certas taturanas com incontáveis perninhas em cada lado do corpo, as quais andavam por cima dos pedregulhos ou da areia, e cada uma se movia sobre pormenores de terreno um tanto diferentes, dirigidas pelo instinto da taturana numa espécie de rumo geral.
Não posso me esquecer que, numa dessas ocasiões, vi uma dessas taturanas movendo-se de modo repugnante. Ela se encolhia e se espichava, toda coberta de pequenos pelos horríveis, de um verde claro, lindo e maravilhoso, o qual, apesar de tudo, me deixava encantado! O verde claro pode ser bonito, mas uma bela cor a serviço da feiura me parecia particularmente horrenda. Eu me contorci de repulsa! Estava entre a vontade de matar a taturana e o encanto pelo verde que me desarmava! O resultado é que cortei a taturana com a pá; e, com horror para mim – pois não imaginei o que podia acontecer –, ela deitou um líquido nojento, de um amarelo horroroso, o mais recusável que se possa imaginar! Paguei caro o “taturanicídio”! A minha exclamação interior foi a seguinte: “Como é possível que exista isso?”. E tive vontade de fechar a ferida, para que não manchasse o mundo com aquele líquido… Entretanto, a minha pazinha não tinha propriedades cirúrgicas…
Apesar de eu gostar razoavelmente do amarelo, aquela cor dava-me a impressão de ser um símbolo do desespero. E guardei a idéia de que, assim como existem cores bonitas, o horror também toma coloridos. E certas tonalidades, aplicadas em algum sentido, podem ser lindas e, em outro sentido, horrendas. Entendi que todas as belezas têm a sua antípoda na feiura, e que certas cores podem ser reflexo dos vícios, dos erros, dos desgovernos do temperamento e das molezas da vontade.
Uma lição das formigas
Havia também umas formigas muito pequenas que faziam seus formigueiros nalgum canto. O jardineiro português – Sr. Joaquim – vinha cuidar do jardim uma vez por semana e punha ali um líquido que as matava. Mas, às vezes, antes que chegasse o Sr. Joaquim, já havia uma pequena “construção” montada. Eu lançava a perturbação ali dentro com a ponta do sapato, e depois esmagava aquilo.
Qual era a minha atitude interior ao praticar essa ação? Dois fatores se somavam. Em primeiro lugar, a repulsa pelos bichos subterrâneos; depois, o impulso de um menino que permaneceu horas estudando e que, ao chegar ao jardim e encontrar a imagem de uma outra operosidade, sente-se contundido e decide eliminá-la.
Entretanto, vendo aquela dispersão das formigas, comecei a perceber que elas eram organizadas. Eu estava implantando certa desordem numa coisa ordenada que, a seu modo, parecia refletir certo pensamento. E a minha ação de contra-ordem era, portanto, ruim. Assim mesmo, ainda depois dessa reflexão, esmaguei os formigueiros umas duas ou três vezes, pois a idéia ainda não se me afigurava com toda clareza. Mas, em certo momento, cheguei a uma conclusão e pensei: “Isto tem algo que merece existir!”.
Nunca mais destruí um formigueiro.
De vez em quando, via também passar uma ou outra formiga, carregando um pedaço de folha que havia recortado. Era um fragmento tão grande, que eu tinha a impressão de que ela ia cambaleando e espantava-me, pensando: “Como pode ser que uma formiguinha faça isso?”. Sentia, inclusive, certa má vontade para com a formiga e remoía com os meus botões: “Isto não se faz! Nenhum ser deve praticar uma ação tão desproporcionada em relação a si mesmo, de maneira a tornar-se quase ridículo! A formiga, transportando essa folha, fica deselegante. Não é de bom-tom nem de boa educação fazer isso!”.
Entretanto, considerando depois ser a formiga um bicho feito para viver no chão – o qual é deteriorável pelas chuvas e decomponível em poeira – e, portanto, na camada mais baixa do nosso mundo, morando dentro do solo, compreendi que lhe ficava bem ter muita força, mais do que outros predicados. E tirei a seguinte lição de caráter moral: “Também você, durante sua vida, deve ser capaz de carregar ‘folhas’ muito superiores a seu próprio peso… Não será por sua preguiça que você está implicando com o êxito da formiga, pois sente nisso uma censura? Você não quer nem carregar o que pode, e antipatiza com quem carrega o que não pode! Fique sabendo que até as criaturas que moram no chão, portanto no porão do mundo, lhe dão uma lição! Olhe essa formiga e aprenda! Mais ainda, ela é um símbolo da onipotência divina, pois manifesta uma força superior ao que, aparentemente, seu corpo estaria na proporção de possuir. Isso lhe é concedido por Deus de um modo natural, para fazer-nos compreender que no mistério da Criação há, por vezes, grandezas que você ignora e tesouros de sabedoria que não é capaz de alcançar. Agora, admire a formiga!”.
Pequena caminhada na tarde do sábado
Aos sábados à tarde, as crianças de casa jantavam mais cedo do que o normal e gozavam do direito a um passeio pelo bairro, com a Fräulein. São Paulo tinha naquele tempo uma luminosidade natural muito bonita e, às cinco ou seis horas da tarde, havia um belo pôr-do-sol com raios ainda esplendorosos, mas que já não queimavam.
As calçadas estavam arborizadas com uns plátanos que me pareciam muito grandes, e havia uma espécie de neblina dourada nas ruas calmas. As casas eram bem-arranjadas e tinham bonitos jardins, revelando fartura, ordenação e dignidade de vida. Nós passávamos por elas, víamos pessoas conhecidas e as cumprimentávamos de longe, amavelmente. Chegávamos até a praça dos Guaianazes, dávamos algumas voltas e retornávamos.
Lembro-me de haver perguntado à Fräulein o que significava aquele nome estranho de “Guaianazes”, e ela me explicou tratar-se de uma antiga tribo de índios. Ao longo do passeio, várias vezes me vinha ao espírito a seguinte idéia:
“Eu cumpri bem todos os meus deveres durante a semana e tenho um domingo inteiro diante de mim. Estou inteiramente em dia com a Lei de Deus, com a vontade de mamãe e com os imperativos da Fräulein. E sinto a limpeza da minha consciência numa especial leveza que até parece tomar o meu próprio corpo. Possuo um bem-estar em meu ser, mas sei que isto não aconteceria se eu tivesse algum remorso. Isso põe alguma coisa na minha alma muito parecida com a luz numa paisagem. O que acontece quando batem os raios do sol num panorama? Nenhum objeto mudou de lugar nem se acrescentou nada ao que já existia. Apenas houve este fato: baixou a luz!”.
Assim, o “quadro” de minha vida me parecia luminoso!
Essa alegria era feita de um misto de elementos terrenos e celestes. Quais eram os terrenos? Poderiam exprimir-se da seguinte maneira: Tudo está em ordem, não terei amolações, apreensões, desordens ou torcidas. O que vai acontecer comigo é moderadamente agradável, sem excitação nem bagunça. Estou em minha calma”.
Por outro lado, eu tinha a impressão – aliás, fundada – de que Deus me dava essa alegria para premiar-me por estar agindo bem. E esse era, então, o elemento celeste, do qual o outro não era senão um símbolo.
Quando retornávamos a casa, já era noitinha. Mamãe contava-nos uma história e preparávamo-nos para dormir.
1 Situado no centro da cidade de São Paulo.
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