A bondade de Dona Lucilia
Em Dona Lucilia havia uma apetência de espírito para o sobrenatural, porque ela queria ter sua principal relação com Deus, e todos os outros afetos dela eram decorrentes desse primeiro afeto. No fundo, quem ela mais amava era Nosso Senhor Jesus Cristo. A bondade dela a conduzia a considerar as pessoas com muita elevação, envolvendo-as de doçura e afeto.
Dona Lucilia foi a última semente da árvore da Idade Média que, ao cair no solo, fez germinar o futuro. Ela é uma alma profundamente medieval, mas não apenas enquanto uma síntese do passado. Era chamada a ser, sobretudo, esse começo do futuro.
Uma bondade que ultrapassa a medieval
Por exemplo, no tocante à bondade. Não se pode dizer que a bondade dela fosse estritamente medieval. A Idade Média está ali dentro, mas é uma bondade que ultrapassa a medieval, é um desenvolvimento da que existia naquele período histórico. A bondade de Dona Lucilia é feita de uma elevação de espírito que multiplica a bondade pela bondade. Custo a realizar como é que existia na Idade Média a bondade debaixo desse ponto de vista.
Em mamãe havia uma tendência, uma apetência do espírito para um contato com Deus, porque ela queria ter sua principal relação com um Ser tão elevado, nobre e sublime, e todos os outros afetos dela eram decorrentes desse primeiro afeto. No fundo, o que ela amava era Nosso Senhor Jesus Cristo.
Isso conduzia a que toda a bondade que ela tivesse fosse constituída de um modo de considerar os outros com uma elevação muito alta, envolvendo de doçura e afeto a pessoa a quem ela considerava. Esse afeto descia dessa eminência, por assim dizer, quase raptando a pessoa para uma esfera sobrenatural muito elevada também.
Tomemos, por exemplo, o cântico Anima Christi. Há quase uma diferença entre as palavras e o tom de voz com que aquilo deve ser cantado, de um lado, e a música do outro. Porque há qualquer coisa de arrebatado no estilo inaciano desse cântico. Mas existe ao mesmo tempo uma ternura levada a uma elevação, a uma coisa que é o extremo no gênero! Da elevação de quem considera a sublimidade de Nosso Senhor Jesus Cristo e quase a fraqueza d’Ele.
No Anima Christi existe uma espécie de compaixão com que é tratado Nosso Senhor, mas, de outro lado, um arrebatamento. Há naquilo um misto de veneração muito profunda e respeitosa, e de ternura que, tomando em consideração a grandeza do Redentor, mas também a Ele chagado, tem quase receio de se exprimir, pelo medo de tocar n’Ele de um modo insuficientemente delicado. Mas no fundo e no centro está uma evocação da Pessoa d’Ele e dos sentimentos que essa Pessoa desperta. Assim, aquele cântico, de algum modo, descreve a Ele.
O Sagrado Coração de Jesus era o píncaro de seu amor
Havia tudo isso no modo de ser de mamãe, por onde o Sagrado Coração de Jesus era o ápice, o píncaro de seu amor. Isso dava a marca medieval dela. Porque, embora a devoção ao Sagrado Coração de Jesus não tivesse nascido na Idade Média, ela levava a ternura do medieval para com Ele até o último ponto. É bonito que Nosso Senhor tenha aparecido em Paray-le-Monial, cujas origens remontam à Ordem de Cluny.
A consideração de tudo isso me levava a respeitá-la profundamente e, ao mesmo tempo, ter para com ela uma ternura a mais delicada possível. Mas com a sensação de que tudo quanto eu fizesse não bastava, pois ela estava acima disso.
Quando Dona Lucilia morreu, senti uma dupla lancetada: de um lado, a noção de que uma pessoa assim acabava de ser, inexoravelmente, “desfeita” pela justiça divina… Porque a morte é isso. Os dois elementos constitutivos do ser humano, a alma e o corpo, são separados. Portanto, nesse sentido desfeita. Aliás, se não fosse a ressurreição, seria um absurdo. Eu me lembrava de uma cançãozinha que se cantava quando as Filhas de Maria faziam procissão na Igreja de Santa Cecília: “Misteriosa justiça nos prende, só por filhos à culpa de Adão; mas a lei quebrantada anulou-a a tua santa e feliz Conceição.” Quer dizer, realmente é uma misteriosa justiça.
De outro lado, a irreparável ausência dela. Porque encontrar outra pessoa assim… Pode levar a lanterna de Diógenes que não descobre nada…
Reveses e provas
Pouco antes de ser acometido de diabetes1, estávamos jantando, só ela e eu, em casa. Falávamos, mas o melhor da conversa era a presença. Portanto, eu estava mantendo a prosa quase por polidez, mas de fato me embevecendo fantasticamente com ela.
Lembro-me de ter pensado nisto: como seria difícil mãe e filho se quererem tão bem no mundo de hoje. E me vinha ao espírito a ideia: “Esta salinha de jantar é, no fundo, uma espécie de torrãozinho onde Nossa Senhora ainda conserva um pequeno resto, mas em mamãe um resto solar! Será que está nos desígnios da Providência permitir que tudo isso se dissolva com uma antecedência relativamente grande dos acontecimentos previstos em Fátima? Mamãe falece; de repente eu morro também, isto tudo aqui é vendido, se dispersa, e é mais uma coisa boa que desaparece no mundo…”
Quando me apareceu aquela infecção no pé, recordei-me imediatamente daquilo que eu tinha pensado. Passei os dias em casa fazendo todo o possível para que ela não percebesse a gravidade de meu estado de saúde.
Certa ocasião mamãe estava sentadinha junto à mesa da sala de jantar, eu passei pelo hall e tive um tombo sem que ela visse. A empregada me disse num tom meio atrevido e revoltado:
– Mas o que é que tem? O senhor informe a ela de uma vez sobre o estado em que o senhor se encontra!
Eu manifestei desagrado com ela e afirmei:
– A senhora não está vendo que eu não quero aborrecê-la?
– Mas assim, até esse ponto?
– Até esse ponto. Quem gradua isso sou eu.
Entrei na sala pensando: “O que eu tinha previsto está se realizando… Esse negócio que tenho aqui é uma gangrena.” Mandei chamar os médicos e afundei num túnel. Cogitei: “Um vendaval vai me tomar e ela ainda morrerá por esses dias…”
Ficava transido de pena de mamãe ao pensar o que poderia acontecer se eu morresse antes dela. E me punha o seguinte problema: Recomendo que não digam a ela que eu faleci? Porque o problema se punha. Quer dizer, para não lhe comunicarem que eu morri, tinha que entrar pelo caminho das mentiras. Mas ela, no estado em que se encontrava, tinha o direito à verdade?
Mas, de outro lado, se Deus a queria provar, possuía eu o direito de poupá-la dessa prova? Quer dizer… uma coisa tremenda!
A cadeira de rodas de Dona Lucilia
Quando me vieram avisar que ela estava morrendo, eu acabara de tomar o café da manhã e de ler o jornal. Dirigi-me ao quarto dela tão rápido quanto minhas condições físicas permitiam e, ao chegar, ela já estava morta. Chorei muito e, afinal de contas, fui para o meu quarto. Inexplicavelmente – creio que foi uma graça obtida por ela – invadiu-me uma paz, uma tranquilidade que era quase uma alegria.
Fui ao cemitério para o enterro, mas não ousei ir até a sepultura.
No dia seguinte parti para nossa sede, em Amparo, voltando de lá para a Missa de sétimo dia durante a qual se deu aquele fenômeno do raio de sol sobre as orquídeas, que tomei como sendo o sinal pedido por mim a Nossa Senhora de que mamãe não estava mais no Purgatório2.
Lembro-me, por exemplo, de uma bagatela. Eu me desagradava muito da cadeira de rodas dela. Eu gostaria que mamãe caminhasse. O passinho dela era uma das muitas coisas que me encantavam. Como ela conseguia andar com gravidade e com um passinho rápido! Dona Lucilia era muito grave no que ela fazia, mas rápida no andar. Não sei como ela conciliava isso.
Apesar de antiga e de já não se usar mais cadeiras de rodas daquele tipo, por ser mais alta tinha mais dignidade do que os modelos recentes. E eu não queria vê-la metida nessas cadeiras muito melhores, porém menos dignas. Então arranjei aquela mesma. Ela, então, vinha altinha sobre aquilo.
Quando ela morreu, mandei devolver a cadeira de rodas à Santa Casa e pagar o preço de um aluguelzinho. Uns cinco dias depois, comecei a sentir saudades da cadeira de rodas e ordenei perguntar à Santa Casa se podiam me vender.
São recordações que me dizem muito. Embora o recuo do tempo, neste caso, não melhore a perspectiva, nem me leve a querê-la mais bem por causa disso, por alguns lados convida a uma atitude mais admirativa em relação a mamãe.
Plinio Corrêa de Oliveira (Extraída de conferência de 20/4/1991)
Revista Dr Plinio 243 (Junho de 2018)
1) Em dezembro de 1967, em consequência de uma grave crise de diabetes, Dr. Plinio teve gangrena no seu pé direito, sendo submetido a uma cirurgia no Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, para debelar a infecção. (Cf. Revista Dr. Plinio n. 117, pp. 4-5).
2) Cf. Revista Dr. Plinio, n. 121, p. 19.
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