As tardes de Plinio 1 – Como portar-se durante as refeições
Em casa almoçava-se em torno do meio-dia. Comíamos freqüentemente picadinho de carne com pirão de batata, arroz com feijão e outras coisas do gênero, sempre acompanhadas de pão e manteiga. Depois, frutas – das quais, com algumas exceções, nunca fui muito entusiasta, sobretudo quando elas eram cruas – e, no fim, doces.
Como portar-se durante as refeições
Quando se estava à mesa, havia a obrigação rigorosa de não se encostar no espaldar da cadeira. Não era permitido inclinar-se para pôr o alimento na boca, mas era preciso permanecer teso, fazendo-o subir até os lábios, o que era muito bonito, pois o homem devia esconder sua preguiça, mostrando domínio sobre si. A colher, o garfo e a faca precisavam ser tomados pela parte superior do cabo, onde se devia fazer mais força, sem segurá-los perto da concha, do espeto ou da lâmina. Tudo devia resplandecer de dignidade!
O vinho era bebido segurando-se a taça com dois dedos – sem esticar o minguinho! – e tomando leves goles.
Durante algum tempo, foi considerado um mau costume comer até o último pedaço de alimento que se tinha no prato, diante de si. Era preciso deixar uma parte, que os alemães chamavam de “Anstandeinestück”: “o pedaço da decência”. As pessoas provavam, desse modo, que não comiam com fome de pantera, mas apenas com certo apetite, próprio ao ser humano. Lembro-me de que a Fräulein Mathilde quis habituar-me ao “Anstandeinestück”… Foi talvez o único ato revolucionário que pratiquei em minha vida: rebelei-me! Dotado de bom apetite, doía-me deixar um pedaço apetecível no prato e, então, comia tudo.
Eu sempre bebia muita água: às vezes, dois ou três copos seguidos, durante uma refeição, o que me levava a receber brandas mas insistentes advertências de mamãe, por meio de um olhar de ligeira reprovação, tanto mais que, para ela, os meus goles eram exageradamente grandes… Eu então a observava: ela bebia com goles mais razoáveis, incompatíveis com a minha enorme sede!
“Poire-duchesse” e manga
De vez em quando apareciam na mesa de casa umas “poires-duchesse” [pêras-duquesa] importadas da França. Eram de um verde claro delicado, com algumas zonas um pouco avermelhadas. Ao cortá-las com a faca, era preciso ter um certo cuidado pois já saía o suco… Eram saborosas! Quando as comia, eu tinha a impressão de uma delicadeza e um “raffinement” [refinamento] ducal; mas, ao mesmo tempo, de uma abundância de suco pela qual quase nem era preciso mastigar, dando-me a entender que existiam certas situações nas quais os problemas da vida não exigiam esforços e só era necessário engoli-los…
Mas, apesar do meu gosto pelas delícias da Europa, não tardei em colocar a manga numa grande altura, na minha escala gastronômica. Essa fruta não tem o “raffinement” da “poire-duchesse”, mas sua riqueza de sabores e seu perfume fazem dela um encanto do paladar, que a própria “poire” não possui…
A decoração da sala de jantar
Em casa, a sala de jantar era muito grande com uma mesa enorme. Nos cantos havia conjuntos de móveis estofados, de maneira que, terminado o almoço ou o jantar, os que quisessem sentavam-se por ali e continuavam a conversar. As paredes eram empapeladas, o que distraía a vista enquanto se comia, e estavam adornadas com três pratos. Um deles tinha toda a beirada de cor azul muito escuro com ornatos dourados, mostrando no centro uma cena mitológica clássica: homens e mulheres em meio a guirlandas de flores, dando-se as mãos uns aos outros na orla de um bosque, tendo ao fundo uma paisagem de aurora.
No segundo, a bordadura era inteiramente dourada e, no meio, viam-se uvas e pêssegos pintados.
Existia ali também um grande buffet, que comportava duas partes, semelhantes a dois edifícios ligados por uma espécie de “Ponte dos Suspiros” de Veneza, em cujo centro havia um adorno singular, imitando uma enorme noz, colocado sobre dois galhos. Acima desse objeto estava um prato feito na França, ostentando um brasão, que pertencera à família imperial brasileira.
Durante os almoços ou jantares, eu olhava, por exemplo, aquelas figuras mitológicas e, imaginando um campo semelhante ao que aparecia ali, eu supunha que deveriam existir em algum lugar maravilhas assim. Depois, analisava os comensais e pensava o seguinte: “Como eles são diferentes dessa gente representada no prato… Essas figuras são independentes das contingências… São inteiramente superiores, vivendo no meio da natureza. Nem precisam de cadeiras! Estão andando aqui, por jardas infinitas, sem se cansarem. Coisa formidável! Mas isto existe ou não? Estas pessoas de casa, se fossem mais animadas, não seriam assim? Bem, vou imaginar um mundo desse modo. Como seria ele?”.
E vinha-me à mente um universo ideal, que era a “arquetipização” de uma série de pessoas e coisas conhecidas por mim.
Eu analisava também os pêssegos e uvas pintados num dos pratos e refletia: “Gosto muito de manga, mas não ficaria bem pintá-la num prato! E a jabuticaba? Aquelas bolotas pretas estariam bem ali? Também não! São uma delícia, mas, para serem olhadas… tenho minhas restrições. Entretanto, a cereja…! Esta sim é fruta! E as uvas pintadas? São luminosas! Eu quase diria serem lâmpadas elétricas! Entretanto, as uvas plantadas aqui no jardim de casa, chamadas Princesa Isabel, nem servem para fazer suco, pois são ácidas! Ah! Essa pintura, pelo contrário, reflete uma natureza ideal, com gente ideal, num ambiente ideal. Uma vida ideal!”.
Existia também um quadro, sem grande valor pictórico, representando o lago Titicaca. Era um azul-prateado com certa delicadeza de tom, que me parecia uma enorme asa de borboleta, posta na excelência do elemento líquido e cobrindo uma superfície colossal! Eu gostava que a distribuição dos lugares à mesa me pusesse numa posição onde eu pudesse contemplar aquilo. Tanto quanto era possível, eu desviava minha atenção da conversa do almoço para olhar o lago Titicaca, discretamente, pois alguém poderia me perguntar:
– O que é isso? Por que está olhando nessa direção na qual ninguém olha?
E eu não saberia explicar…
As conversas à mesa: um pequeno “parlamento”
Freqüentemente dez ou quinze parentes compareciam à nossa casa para almoçar ou jantar, e vovó presidia a mesa, como uma espécie de matriarca. As refeições eram demoradas e as conversas, muitas vezes, se transformavam em longos debates que eu acompanhava; pois as crianças, que inicialmente almoçavam antes dos mais velhos, depois de certa idade eram admitidas a comer à mesa dos adultos. Entretanto, éramos proibidos de falar.
Naquela época não existia a idéia de que a conversa doméstica pode ser um ato no qual todos se põem inteiramente à vontade, num estado de completo “relax”. As pessoas eram estruturadas, física e psicologicamente, de tal modo que viviam em cerimônia e protocolo, inclusive quando estavam a sós no quarto, e encontravam nisso o seu repouso.
Por outro lado, homens e senhoras deviam ser completamente seguros; de maneira que ficava mal para uma pessoa mostrar-se hesitante, com temperamento flutuante e incapaz de tomar decisões. Isso era tido como vergonhoso! Mesmo quando alguém não era seguro, a educação mandava fingir que o era. Por causa disso, o tom de voz precisava revelar segurança e, portanto, a voz trêmula e incerta era desprezível. Cada palavra tinha de ser articulada inteira, dando a entender que se tomava a responsabilidade pelo que se estava dizendo.
Era realmente muito interessante acompanhar a exposição das matérias, perceber como as pessoas consideravam os assuntos e analisar o vocabulário que possuíam. Isso me fascinava e me encantava!
Dentro de casa, as pessoas mais velhas se tratavam mutuamente como se fossem muito importantes. Eram às vezes irmãos, tios, primos ou cunhados, dirigindo-se uns aos outros à maneira de “senador” a “senador”, dando às reuniões familiares o caráter literário do espírito parlamentar daquela época. O ambiente entre os homens era realmente senatorial e, entre as senhoras, dava-se a versão feminina desse mesmo trato: elas se beijavam dos dois lados do rosto, mas com grande aparato. E o “senado” funcionava especialmente na hora das refeições; pois todo almoço ou jantar era a ocasião na qual a família se reunia e tratava sobre os assuntos que definiam sua psicologia. Conversava-se com muita intimidade e naturalidade, mas sempre com muitíssima cortesia. De maneira que, no meu tempo de criança, nunca presenciei uma briga entre os adultos e nem sequer ouvi uma resposta ácida.
Eu notava que essas conversas consistiam num misto, inteiramente espontâneo, das pequenas coisas comuns da vida de todos os dias e de temas de caráter doutrinário.
Falavam principalmente os homens. Era tido como falta de educação e sinal de mau gosto tratar de negócios durante uma reunião de família, por serem assuntos de baixo nível nos quais ninguém achava graça. Quando alguns ali tinham de resolver uma questão financeira, reuniam-se no escritório de meu pai.
Às vezes, um irmão de vovó fazia um comentário: Ao passar pelo jardim da casa dela, notara que uma planta estava mal cuidada pelo jardineiro. Outra pessoa dava um parecer diverso e começava então uma conversa a respeito disso e de mil temas semelhantes: uma pequena doença de alguém, um conselho sobre determinado remédio, o encontro na rua com um conhecido que há tempo não viam… Coisinhas e banalidades. As senhoras trocavam informações sobre lojas, falavam de figurinos vindos da Europa ou de fotografias da vida social na alta nobreza, misturando tudo isso com observações sobre a sociedade de São Paulo e do Rio de Janeiro. E essas conversas transcorriam numa espontaneidade sábia, natural e tranqüila.
Depois, vinham à tona notícias da política internacional, com comentários e opiniões divergentes, nas quais havia argumentação de uma parte e de outra, sempre cordial, mas muitas vezes “quente” e quase declamatória. Aquilo funcionava como um pequeno parlamento, no qual de vez em quando estourava uma discussão, em geral de três modos.
Discussões sobre a Guerra Mundial, religião e formas de governo
Em primeiro lugar, sobre o tema dominante em São Paulo: a Guerra Mundial. Quando ela eclodiu, em julho de 1914, eu tinha cinco anos e, apesar de ainda não ler jornal, ouvia as narrações e comentários dos mais velhos, entendendo mais ou menos no que consistia a guerra. Aquelas batalhas me pareciam muito dignas de nota, mas eu tinha, sobretudo, noção da enorme distância existente entre o Brasil e a Europa, percebendo como as pessoas gostavam de celebrar a boa vida brasileira, tranqüila e folgada. O Brasil não entraria no conflito e, portanto, todo aquele sofrimento da Europa não chegaria até aqui…
Por certa solidariedade latina e devido a outros charmes e encantos – aos quais eu não era nada insensível –, quase todo o mundo estava a favor da França. Eu também não queria que a Alemanha ganhasse! Pela recordação das tortas de café, dos doces os mais variados e de Versailles, eu torcia muito pela França. Mas, apesar de toda a minha francofilia, havia um aspecto da Alemanha do qual eu gostava com entusiasmo: o militarismo. Aqueles capacetes com ponta davam-me a idéia da manifestação de um desejo de fazer vencer o país e de morrer, se fosse necessário. Eu achava aquilo fenomenal!
Havia um ou outro germanófilo na família, e isso causava debates formidáveis:
– A Alemanha tem razão!
– Não, não tem!
O Kaiser era o “bode expiatório” do assunto, contra o qual eram feitas longas diatribes, em que a
França era elogiada e o Marechal Foch glorificado. Eu notava confusamente serem os argumentos válidos, desde que os fatos alegados fossem verdadeiros, do que eu não tinha certeza.
Entretanto, causava-me estranheza o silêncio quase completo a respeito da Áustria, ao longo das invectivas. Não falavam dela nem para deblaterar! E eu, já naquele tempo formando meus critérios próprios, dizia de mim para comigo: “Não entendo bem esta gente. Esse silêncio não tem propósito! A Áustria tem razão ou não? Se não tem, por que eles não a associam a todos os vitupérios feitos contra a Alemanha, já que ela é aliada e, portanto, participa dos mesmos crimes? Agora, se ela tem qualidades que os levam a não atacá-la, então digam quais são! Não mencionam nunca esses lados bons? Isto é um mistério! Eu não compreendo!”.
Em segundo lugar, havia um tema muito prezado: a religião. Deus existe ou não? A Igreja Católica é verdadeira ou não? Grandes argumentações católicas e anti-católicas:
inquisição, jesuítas… Os velhos assuntos!
Por último, Monarquia e República. A família estava dividida em dois grupos, dois partidos e duas escolas de vida: uma parte era católica e monarquista, enquanto a outra era atéia e republicana. Os monarquistas, que lamentavam muito a extinção do Império Brasileiro em 1889, estavam ligados às tradições européias. Enquanto os republicanos eram muito influenciados pela América do Norte, principalmente pelo cinema, que começava a ser uma grande potência publicitária, e eram mais modernizados do que os outros, inclusive na maneira de conversar e de trajar-se. E as discussões eram calorosas entre ambas partes. O tema da Revolução Francesa entrava a todo propósito, o que para mim foi muito formativo, pois pude sentir bem que a posição em face desse assunto comandava todas as mentalidades. E, freqüentemente, os argumentos eram assim:
– A rainha gastava demais, empobrecia o povo…
– Mas, também, não era o caso de matá-la. Coitada…
– É que o povo estava enfurecido pela falta de pão.
– Não, não havia falta de pão.
Eu ainda vejo um dos monarquistas ficar azul de cólera e dar um murro na mesa – apesar de toda a delicadeza do trato! –, pois minha avó sustentava, de acordo com o testemunho oral de um cirurgião, que o delfim Luís XVII não havia morrido no Templo. E ele, furioso, repetia:
– A senhora diz isso apenas para justificar a república, por ter cometido um crime a menos.
Esse era o calor da discussão… Porém, em geral, minha avó assistia como um juiz materno e majestoso, sendo apesar de tudo monarquista e muito amiga da princesa Isabel. O seu pronunciamento era, portanto, sempre a favor da Monarquia. Papai era monarquista platônico e não se entusiasmava muito pela questão, pois, como “bom garfo”, as ideologias lhe interessavam pouco na hora de comer… Mamãe, com muita doçura e afeto, era também uma incondicional monarquista.
De repente, alguém exclamava:
– O povo tem o direito de se governar a si próprio!
Um outro dizia:
– São uns loucos! Ou põem um rei ou cai-se nesta situação em que estamos!
Então, uma pessoa se levantava para falar com mais entusiasmo e ouviam-se declamações monárquicas a favor de D. Pedro II, respondidas pelos republicanos, defendendo o Marechal Deodoro…
Para as crianças, valiosa leçon de choses
Assim, num almoço ou num jantar, a Monarquia ou a república, a religião ou a irreligião, as potências aliadas ou as do centro1 faziam os seus avanços naquele microscópico “tabuleiro” dos acontecimentos; mas todos os comensais falavam com compenetração, como se daquilo devesse resultar, de fato, algo muito relevante, o que dava uma certa graça à conversa.
Com isso, as crianças aprendiam a entender qual era o grau de importância intrínseca dos temas tratados, o que constituía uma “leçon de choses” [lição sobre coisas] do começo ao fim da refeição. Eu, num ângulo da mesa, ouvia tudo e morria de vontade de intervir, mas um olhar suave de Dª Lucilia reduzia imediatamente ao silêncio o filho por demais loquaz. Por sua vez, os pequenos discutiam depois o que tinham ouvido à mesa e começavam a ler livros em que esses assuntos eram abordados, acompanhando a política internacional ou nacional com referência a esses temas. Tudo isso me ajudou a falar em público e, assim, uma certa seriedade de espírito se transmitia – já depauperada, entretanto – das gerações anteriores para a minha.
Discursos caseiros e calma benfazeja
Todas essas discussões eram feitas em ligeiro tom de discurso. Era preciso saber dar os argumentos numa voz que, sem fazer gritaria, fosse nobremente retórica, de maneira a cobrir as outras vozes que haviam falado até então; porém deveria ser agradável de ouvir, como um cântico. Não se tolerava um timbre de voz feio, nasalado ou muito estridente, para conversar! A pessoa tinha de arranjar-se para adquirir uma bonita voz! E eu, ouvindo, tinha a impressão de que a voz de um comentava a do outro. Não me pareciam ser instrumentos diferentes que tocavam, mas as notas de um mesmo teclado.
O vocabulário das pessoas era incomparavelmente mais elevado e bonito do que é hoje, sendo o dos homens superior ao das senhoras. Aliás, ficava um tanto pedante para uma dama utilizar um linguajar muito “soigné” [acurado], pois elas deveriam ser mais simples… Sem embargo, não se compreendia que uma senhora não soubesse falar pelo menos francês e inglês.
Depois, quando o tema “baixava”, a conversa voltava a ser completamente caseira, mas sempre com o mesmo vocabulário. Falava-se lentamente e havia algumas pausas. Quando o assunto chegava a uma parte mais significativa, conversava-se ainda mais devagar e fazia-se a fisionomia apropriada para o caso. De maneira que, por exemplo, quando alguém descrevia uma situação delicada na qual estivera, dizia:
– Bom… bom… Você pode imaginar o meu apuro.
E isso era acompanhado de um gesto, uma expressão fisionômica e uma pequena pausa, o que ajudava a completar o ambiente. Depois a narração continuava.
1 As nações beligerantes da Primeira Guerra Mundial foram denominadas de Potências Aliadas (especialmente a França, a Inglaterra e a Itália) e Impérios Centrais (a Alemanha, a Áustria-Hungria e a Turquia).
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