Da França ao Brasil – 1 – Lembranças do Hotel Royal
Fomos para a França. Eu, que nunca gostei de viajar em estrada de ferro, sentei-me no trem e pensei: “Bom, agora tenho de aguentar este horror!”. Sentia enjoo durante a viagem e entravam pela janela fagulhas de carvão que iam parar nos meus olhos. Precisava pedir auxílio a mamãe que me limpava os olhos com um lenço molhado. Toda uma complicação!
Lembranças do Hotel Royal
Chegamos a Paris, denominada então “Cidade-Luz”, tida como a mais bonita do mundo e pólo de atração para todos os brasileiros. Fomos para um hotel em voga naquele tempo, chamado Hotel Royal, na avenida Friedland – menos faustoso e confortável do que o Fürstenhof –, no qual estivemos hospedados durante seis meses. Esse hotel parisiense deixou em meu espírito uma profunda recordação. O restaurante, no andar térreo, tinha muitas janelas com cortinas, dando para o entroncamento de duas ruas. E na janela da esquina havia um vidro arredondado, o qual produzia um certo reflexo cristalino, sobretudo nos jantares, quando passavam carruagens. Eu nunca tinha visto uma janela assim no Brasil e aquilo me deixava deslumbrado… Conservei uma nostalgia dos vidros arredondados até o tempo da minha adolescência e, quando apareceram os primeiros em São Paulo, tive a sensação de estar revendo um velho conhecido…
Ao entrar em meu quarto, tive a impressão de que todas as coisas eram inteiramente diferentes do mundo alemão. Tudo era menos alto, mais sorridente e conduzindo à gentileza, à amabilidade, à diplomacia e à graça. Era o reino das delícias, enquanto o ambiente alemão procurava inculcar a idéia de um dever a cumprir e algum valor a defender.
O tapete era todo adornado de pequenas grinaldas e florzinhas azuis encantadoras, sobre um fundo de cor creme. Eu tinha a sensação de estar andando num jardim maravilhoso! As janelas eram mais baixas do que as da Alemanha e as cortinas pareciam sorrisos, pois eram feitas de tecidos leves e bonitos, que o vento movia com ondulações graciosas. Os travesseiros e as camas eram tão macios que a pessoa afundava lentamente, de maneira que passava por várias “etapas” até o sono chegar, e eu me regalava com aquilo! Mas isso fazia com que, na hora do despertar, as crianças não tivessem vontade de se levantarem…
Os encantos de Paris
As minhas recordações da França são menos variadas e com menos episódios do que as lembranças da viagem pela Alemanha, a qual deixou-me impressões, em seu conjunto, muito mais profundas. Isso talvez se deva ao fato de termos permanecido apenas em Paris. Eu percebia que a França e a Alemanha eram dois países vizinhos… e não muito amigos, porém não sabia mais do que isso sobre ambos.
A respeito de Paris, guardei na memória certa quantidade de imagens fugidias daquilo que vi enquanto andava pela cidade. Recordo que fazia um pouco de frio e cheguei a ver a neve em certas ocasiões.
Lembro-me, por exemplo, de cachorrinhos muito bem-arranjados e cobertos com uma espécie de capote de inverno ou, então, um tecido vermelho, bordado de ambos os lados com o escudo da família à qual o cão pertencia, tendo às vezes uma coroa de conde ou barão, ou umas iniciais. Ficou-me então a lembrança de umas patinhas muito finas, correndo com agilidade sobre um chão bem lavado.
Recordo-me vagamente de alguns passeios de automóvel, do que eu não gostava, pois desde a primeira infância senti-me desagradado com aquele ruído… As ruas de Paris me deixavam encantado! Lembro-me também de alguns cavalos andando e ainda conservo na memória a imagem das patas deles, finas e leves, em meio a umas árvores esguias com folhas verde claro, que se moviam como quem dava um sorriso para os que passavam.
Depois, eu presenciava o modo de três ou quatro crianças brincarem, fazendo uma roda à maneira de “ciranda, cirandinha”, mas com tal delicadeza que eu tinha a impressão de que cada uma era uma guirlanda que segurava a outra…
Mais adiante, eu via algumas senhoras. Certas mulheres, na França, quando fazem cinqüenta anos, parecem monumentos e são figuras inseparáveis da paisagem francesa. Elas andavam com olhar inflamado. Uma delas tinha a perna inchada, e carregava um tufo de ervas e uma enorme bengala, enquanto outra senhora levava uma gaiola com um passarinho. Eu tinha vontade de pedir-lhe que parasse e me deixasse brincar com o passarinho, o qual eu achava um encanto, mas mil “regulamentos” me proibiriam fazê-lo! A minha família veria isso como um absurdo e alguém diria:
– Como você vai incomodar essa senhora? Ela não quer saber de você, menino bobo! Está indo para casa e não vai perder tempo com você.
E, se eu lhe pedisse para brincar com o passarinho, ela talvez pensasse: “Le petit bêta…!” [Que bobinho!], daria uma risada e diria:
– Ces étrangers de lá bas! [Esses estrangeiros lá debaixo!]
E me mandaria embora… Por quê? Porque era uma mulher que vivia contando os minutos e os vinténs, preocupada com seus afazeres domésticos. Então, não iria perder tempo comigo! Ela passava, e eu ficava olhando o passarinho…
Gostei enormemente do Bois de Boulogne, achando-o lindíssimo. Lembro-me também de olhar o rio Sena, com aquela água verde-glauco que corria lenta, majestosa e distinta, dando-me a idéia de cortinados líquidos que se desdobravam. E perguntei:
– Que rio é esse?
– O Sena.
– Sena, é? Ah!
O nome não me dizia nada, mas pensei: “Já vi rios em outros lugares… Não são como este!”.
Assim, as patinhas do cachorro, o passo do cavalo, a silhueta da árvore, tudo isso causava-me um conjunto de impressões. E eu pensava: “Isto aqui tem algo de especial, até no ar que se respira… Tudo tem um jeito diferente daquilo que conheço. Esta é uma terra de eleição!”.
Qualquer brasileiro, mais ou menos culto, falava francês com toda facilidade. E eu, que o entendia bem e o falava razoavelmente, ao ouvir as pessoas conversando refletia: “Olha como eles tratam esse assunto e liquidam aquele caso. Que língua maravilhosa!”.
E notava também que, em Paris, tudo era muito mais suave do que em Berlim. Por exemplo, os meninos podiam entrar com os pais na sala de jantar do hotel, onde havia muita liberdade; as senhoras riam mais e os homens falavam mais… A vida era mais elegante e menos pomposa do que na Alemanha.
Eu ia abrindo meu espírito gradualmente para esses valores e me perguntava: “O que é a elegância? O que é a pompa? O que é melhor: o elegante ou o pomposo? A Alemanha é pomposa, a França é elegante… Do que gostar mais?”. E um dos meus termos de comparação era mamãe. Com o amor e a admiração que tinha por ela, eu indagava interiormente: “Quando está vestida de gala, ela é pomposa como uma alemã, ou elegante como uma francesa?”. E logo chegava à conclusão de que ela não era tão pomposa, mas era muito elegante…
Visitando o palácio de Versailles
Certo dia, tio Gabriel cruzou-se comigo no hotel e, por brincadeira, sorriu e disse:
– Olha aqui, uma coisa para você!
Puxou do bolso uma libra esterlina e me deu. Naquele tempo a libra esterlina era muito prestigiosa e eu já tinha ouvido falar dela como sendo uma grande moeda, quase uma medalha! Fiquei agradecido, guardei-a “avaramente” e pensei: “Com isto posso comprar uma quantidade colossal de coisas”.
No dia seguinte, de manhã, minha mãe veio avisar as crianças de que iríamos conhecer Versailles. Sempre previdente, ela se empenhava muito em que visitássemos o maior número possível de lugares importantes, por não saber se mais tarde voltaríamos à Europa. Então, ela havia dito aos familiares:
– João Paulo e eu somos os menos abastados da família. Plinio e Rosée serão ricos no futuro? Ninguém sabe. É melhor que eles possam dizer: “Uma vez na vida estivemos em Versailles” – mesmo numa idade em que não se compreendem bem as coisas – do que morrerem sem nunca o terem conhecido.
Alguém objetou:
– Mas eles vão atrapalhar o nosso passeio! Essa criançada está continuamente perguntando.
Na realidade não se referiam à “criançada”, mas apenas a mim, pois minha irmã era muito mais comedida. Eu queria saber tudo e, naturalmente, isso incomodava os mais velhos. Mas mamãe, pelo contrário, gostava de responder às minhas perguntas. De maneira que ela decidiu:
– Eles irão a Versailles!
Eu perguntei:
– Mamãe, o que é Versailles?
– É o castelo dos antigos reis da França. Foi construído por um monarca extraordinário. O palácio mais bonito do mundo! Vem gente do mundo inteiro para admirá-lo e vocês precisam conhecê-lo.
Fiquei muito aceso! Aquele foi o dia em que nossa estada em Paris atingiu o auge. Fui com toda a família, mas, no caminho – do qual nada me recordo – não pensei mais em Versailles. Porém, quando chegamos, de repente vi aquele edifício e exclamei:
– Oh, que castelo!
E, em meu deslumbramento, logo pensei se não valeria a pena comprar Versailles com a minha libra esterlina…
Meus pais declararam que eu tinha de andar continuamente dando a mão a um deles ou à Fräulein, pois eu era muito movediço e temiam que me perdesse. Sempre que podia, escapava da mão da Fräulein e passava – com delícias – para a mão de mamãe, que já estava bem melhor de saúde, enquanto meu pai levava minha irmã. Fomos andando pelo palácio adentro conduzidos por um guia, o qual dava explicações que eu não entendia. Anos mais tarde, mamãe me contava que teve dificuldade em fazer o passeio comigo e precisava arrastar-me, pois eu queria parar para observar tudo. Passamos por uma galeria do palácio onde havia várias estátuas de pedra, representando homens célebres. Lembro-me de que eu estava até um pouco ofegante, pois ela andava depressa, mas olhei aquilo com muita admiração e perguntei:
– Mamãe, o que é isso?
Ela, sempre amável e sorridente, respondeu:
– Meu filho, são estátuas, figuras feitas de pedra, imitando pessoas.
Eu era tão pequeno, que nem soube repetir corretamente a palavra “estátuas” e disse:
– Estuatas? Eu quereria vê-las melhor.
Ela achou graça, deixou passar o meu erro de português e contou-me alguns fatos sobre os homens representados ali:
– Esse realizou tal coisa; esse outro mereceu uma estátua porque fez aquilo…
Eu nem entendia bem o que eles tinham feito, mas compreendi que merecer uma estuata era algo fenomenal! Queria deter-me diante de cada uma e perguntar quem estava representado ali. Ela o permitia, com toda a paciência possível, mas, muitas vezes, também não sabia responder e, então, me puxava afetuosamente. Eu estava encantadíssimo, achando aquilo extraordinário. E naquele tempo, eu tinha o hábito de suspirar quando concluía uma reflexão. Então, em certo momento, dei um suspiro e disse:
– Mamãe, gosto muito dessas estuatas.
Ela sorria e, ao longo da visita, de vez em quando eu repetia:
– Mamãe, gosto realmente das estuatas!
De estuata em estuata visitamos todo o palácio… Meu entusiasmo foi crescendo até o momento em que me levaram para ver o parque, que também apreciei enormemente! Minha idéia, enquanto visitava Versailles, era a seguinte: “Tal coisa é deslumbrante; tal outra também…”. E, de repente, pensei: “Aqui, tudo é deslumbrante!
Encontro-me diante de uma conjuntura de fatos e de sensações inteiramente diferentes das que tenho em São Paulo. Isto é um paraíso, um lugar fabuloso, de beleza perfeita, a alegria do mundo inteiro!”.
É preciso dizer que meu deslumbramento por Versailles teve início quando comecei a perceber a admiração de minha mãe por todas essas belezas. Até a sua extrema velhice, eu via o quanto lhe agradou que me encantasse com o palácio. Ela me ensinou a entender Versailles.
As carruagens douradas
O ponto alto de nosso passeio foi a visita aos coches da família real, considerados como as carruagens mais lindas do mundo, as quais estavam num edifício separado do palácio.
Eram altas, com rodas grandes e estribos de dois degraus. Algumas eram douradas, com pinturas delicadas e plumas nos ângulos do teto, o que me pareceu a perfeição da beleza. Fiquei pasmo de admiração! Era assim que eu imaginava a carruagem do Marquês de Carabás, da história do Gato de Botas! Parei diante de uma carruagem linda, especialmente ornada: era para o uso do rei e da rainha, toda feita de madeira dourada e cristal ligeiramente bombeado, como uma bombonière. O que mais me atraiu foram os reflexos e jogos de luz magníficos que aquilo produzia! Senti-me arrebatado por ver aquela maravilha; foi, para mim, quase um êxtase!
Do lado de fora da porta desta carruagem, entre o vidro e o piso, havia uma cena de cores muito suaves, representando um pastor e uma pastora, com cordeirinhos, numa paisagem de aurora, rósea e azul, com uns rios de fundo. Aquela natureza mirífica me parecia tão amiga dos pastores; o verniz Martel que cobria a cena dava-lhe um aspecto tão belo, que tive uma impressão de delicadeza de todas as coisas, fascinando-me como sendo o ambiente e a pátria de minha alma.
Observei que havia um espaço na parte da frente, do lado de fora. Perguntei a minha mãe quem ia ali e ela respondeu:
– Vão os postilhões.
– O que é um postilhão?
Ela me explicou tudo o que eu desejava, dizendo que os reis viajavam naquela carruagem, sendo precedidos por corneteiros. Os postilhões guiavam os cavalos e os lacaios iam atrás. Quando o rei ia descer, eles abriam a porta…
Para minha felicidade, a porta estava aberta e era possível ver a carruagem por dentro, iluminada. Era uma maravilha! As paredes eram acolchoadas com tecidos magníficos. Havia cordões para os viajantes segurarem-se, com pingentes muito bonitos; assentos revestidos de uma seda de primeira categoria, cuja cor estava entre o cinza quase prateado e o azul muito claro; tapetes…
Dava-me a impressão de um pequeno palácio ambulante!
Então, vendo que o interior era conforme à parte externa, tive uma sensação de autenticidade, como uma criança que dá uma mordida num bonito bombom e o acha delicioso. Essa nota acentuou ainda mais o valor que eu sentia na carruagem e não consegui resistir! Entrei correndo e comecei a passar a mão sobre aqueles tecidos, pois embora eu tivesse ótima vista, a minha tendência era sempre tocar. Enquanto não tocasse as coisas, parecia-me que não as conhecera inteiramente! Porém, quando tocava, às vezes quebrava… E isso se prestava a protestos de certas pessoas.
Uma tia disse-me então:
– Monsieur Touche-à-tout, não pegue nisso.
Eu respondi:
– Madame Remarque-tout, pense em outra coisa!
Mamãe não gostou da minha resposta, mas eu a achei saborosa. Senti-me muito bem servido com a réplica que dei!
Entretanto, meu pai interveio:
– Não pode entrar! Tem de olhar a carruagem de fora. Dê-me aqui sua mão! Quem vai tomar conta de você sou eu.
Ele receava que minha mãe não tivesse força para me segurar… Eu me senti derrotado, fiquei quieto e continuei analisando o coche, entusiasmado, pensando: “Quanta doçura tem aqui! Quanto Jesus Cristo está presente nisto!”. Mas sem conversar com ninguém.
Quem quereria ouvir os comentários de uma criança dessa idade? Regalei-me com a carruagem; mas não pela idéia de que seria gostoso entrar nela e passear. Sentia que, em si mesma considerada, ela era delicada, harmoniosa e fina, possuindo uma categoria em função da qual minha alma se sentia “em casa”…
Em nenhum momento passou-me pela mente a idéia de possuir a carruagem. Eu queria vê-la e dar graças a Deus, por aquilo existir com tanta pompa! E desejava que todos os homens vissem e dessem glória a Deus. A idéia de desejar alguma daquelas maravilhas para mim, me pareceria tão louca quanto olhar o céu durante a noite e querer possuir uma estrela. Seria um absurdo! Do mesmo modo, eu não queria as grandezas da terra que não fossem proporcionadas a mim, senão para admirá-las. E este meu pensamento era exatamente este: “Vou comprar Versailles com a minha libra esterlina, para poder admirá-lo!”. Não me lembro de um panorama no mundo que me tenha deixado tão encantado como aquele coche.
Chegou a hora de sair. Percebendo que eu estava demorando demais junto à carruagem, mamãe disse várias vezes:
– Meu filho, é preciso ir andando. Vamos embora.
Mas eu não ouvia. Ela ter-me-ia deixado permanecer ali o dia inteiro, se eu quisesse, mas os familiares fizeram certa pressão; ela então pediu a meu pai, que estava um tanto distraído:
– João Paulo, traga o Plinio.
Recordo-me de que ele estava usando capote. Puxou-me pela mão – sem brutalidade, pois era um homem muito pacífico – e disse:
– Plinio, nós agora vamos! Chegou o momento de sair.
Eu não disse nada, mas permaneci onde estava. Ele me puxou um pouquinho mais, dizendo:
– Plinio, vamos!
Eu respondi:
– Não! Nós não vamos.
Ele não esperava essa resposta e disse:
– O quê? Venha logo, estou mandando. Você vai ter de ir embora!
– Não! Vou provar que não vou!
Escapei da sua mão, agarrei-me com ambos os braços aos raios de uma das rodas da carruagem e disse:
– Agora quero ver!
Ele possuía um temperamento muito calmo e indulgente, mas não ia perder tempo com um menino de quatro anos… Lembro-me dele, disfarçando um sorriso, e fingindo estar zangado. Tomou-me pelo braço e disse com afeto:
– Você vai ou não vai? Porque senão eu te levo.
– Eu não vou. Daqui eu não saio. Vou ficar aqui, olhando.
– Você vai ver.
Ele ia resolver isso de modo paterno – ou seja, com um safanão – mas, nesse momento, mamãe se aproximou e perguntou:
– O que há?
Eu disse:
– Mamãe, diga-me uma coisa: qual é o preço deste castelo?
– Meu filho, há certas coisas no mundo que valem tanto, que ninguém possui dinheiro para comprá-las. Este castelo não tem preço.
Mas continuei, tirando do bolso a minha libra esterlina:
– Não, isso não é tanto assim! Meu tio me deu ontem uma moeda! Quem sabe se, entregando isto, posso ficar dono de Versailles e morar aqui? Vamos falar com o gerente e compramos o palácio!
– Hii, meu filho! Não dá nem para comprar uma pedra do caminho do castelo!
– Mas é de ouro…
Ela sorriu com muita amenidade e explicou-me que, mesmo assim, era impossível. Eu não fiquei muito persuadido, mas tive de aceitar. Foi o primeiro cálculo financeiro que fiz em minha vida e, desde então, nunca consegui bom resultado nas finanças… Então meu pai me suspendeu pelo tronco, tirou os meus braços de lá e levou-me para o táxi, no qual fomos até a estação. Aquilo me deixou profundamente inconformado e muito saudoso da carruagem. O automóvel não me causava o menor interesse, mas tive de ceder diante da força. Comecei a aprender que os acontecimentos da vida nem sempre transcorrem como desejamos…
O que se passou comigo nessa ocasião? A carruagem com aquelas sedas fez revivescer em mim uma impressão que vários outros objetos já me tinham causado: “Tal coisa é muito bonita, mas apesar de ela existir e ser tão bela, tem entretanto algo de insuficientemente bonito. Minha alma deseja mais!”. E percebia que essa beleza, imaginada por mim como uma espécie de luz ou conjunto de luzes, de algum modo deveria existir. Sentia uma espécie de “carícia” que me era feita pelos objetos que possuíam uma beleza delicada, a qual remetia para um ambiente mais elevado do que a atmosfera circundante. Eu percebia que nas encostas dessa “montanha” de belezas devia existir também o valor social, mas que valia apenas na medida em que dele fosse exigido um certo valor moral elevadíssimo, sem o qual ele seria uma frustração. E daí vinha, então, meu respeito pelas maravilhas de Versailles.
Eu quis me agarrar naquela carruagem, pois ela representava para mim um valor moral, muito mais do que um valor social. Eu queria, no fundo, “agarrar-me” naquele mundo, o que revela muita candura, pois deveria perceber que não era possível permanecer lá. Pelo contrário, eu pensava: “A carruagem é dourada e está acabado! Para qualquer efeito, ainda que seja preciso desvincular-me da autoridade paterna – não da materna, pois com a intervenção de mamãe tudo mudaria – eu não me incomodo absolutamente! Ficarei aqui e deixarei os outros irem passear”.
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