Da França ao Brasil – 2 – Adivinhando a doença dos primos
Adivinhando a doença dos primos
Já contei que na minha infância deram-se alguns fenômenos que talvez tivessem caráter telepático, os quais até hoje não sei explicar.
Estando em Paris, acompanhavam-nos meu tio Gabriel com sua esposa, Dª Gabriela, chamada familiarmente Bilé. Esse casal tinha muitos filhos e, durante certo tempo, hospedaram-nos num internato chamado Chansoleil, na cidade de Lausanne, na Suíça, junto com uma governanta, enquanto viajavam para outros lugares. Uma dessas minhas primas, com a qual eu tinha muita amizade e brincava com freqüência, chamava-se Cornélia; mas, familiarmente, era tratada de Nélia.
Certo dia, eu estava brincando, sentado no chão do quarto de meus pais, no hotel. A mãe da Nélia estava perto de mim, com mamãe e outras pessoas, num ambiente de família. E, de repente, eu dei um suspiro muito profundo e disse:
– Nélia está doente.
Minha mãe respondeu:
– Plinio, não diga bobagens. Você não sabe disso.
Eu continuei:
– Pode ser, mas é certo que ela está doente.
Então minha tia interveio:
– Como é?! O que aconteceu? Não atrapalhem o Plinio; quero ver o que ele diz.
Eu então repeti:
– Ela está doente! Nesta hora mandaram-na para um quarto e está deitada na cama, com febre e dor de garganta. É bom ver o que lhe aconteceu. E o irmão dela – tratava-se de um outro primo, da minha idade, o qual também brincava muito comigo – está começando a ter febre e gripe.
Tia Bilé ficou muito apavorada e nervosa, pois já conhecia os fenômenos que se davam comigo. Telefonou para a Suíça, mas, como era muito difícil naquele tempo fazer chamadas internacionais, teve de aguardar um certo tempo até conseguir comunicar-se com o internato. Veio ao telefone a governanta de meus primos, uma senhora de cor chamada Leonor, dizendo:
– Ah, Dª Bilé, eu estava querendo tanto falar com a senhora! Foi bom a senhora ter telefonado, pois tentei ligar para Paris e não consegui. A sua filha Nélia está doente, com febre e dor de garganta.
Aquela cena havia se dado exatamente naquela hora. Eu tinha visto, como num quadro, o dormitório das meninas e a Nélia indisposta, levada até a cama por uma pessoa. Minha tia tomou o trem e foi para a Suíça, onde encontrou os dois filhos doentes, como eu tinha dito.
A família achava esses fatos muito singulares e engraçados.
Uma soirée de gala no Opéra
Os brasileiros eram muito sensíveis à visualização européia. Ao ler os livros que vinham de lá, ao comprar os produtos da indústria européia, ao receber os ecos através dos jornais, ao tocar piano em casa, acompanhando óperas e outras peças dos grandes músicos, formavam uma idéia lendária da Europa, em que ela representava para a sociedade brasileira um papel parecido com o que a Grécia e a Roma antiga simbolizaram para os homens da Renascença. Ou seja, um mundo mítico e maravilhoso, para onde se ia quando se podia e onde se ficava tanto quanto se conseguia. Em São Paulo especialmente, até começar o advento da influência norte-americana, a Europa era o pólo do pensamento.
Mamãe voltou dessa viagem com muitas recordações e ainda mais “europeizada” do que antes era. Ela contava, por exemplo, como era uma soirée de grande gala no Opéra de Paris. Tratava-se ainda da sociedade da Belle Époque, portanto antes das catástrofes da Primeira Guerra Mundial. As senhoras deveriam comparecer em traje de baile, os homens, de casaca e os que tivessem condecorações deviam ostentá-las. Todas as grandes famílias da aristocracia de Paris tinham seus lugares reservados – alguns para todos os espetáculos, com antecedência de até seis meses! –, de maneira que os estrangeiros, ainda que fossem muito ricos, encontravam certa dificuldade em conseguir uma frisa ou um camarote.
Junto com o folheto, contendo os nomes dos artistas ou as peças executadas, era distribuído um impresso com a indicação de todas as famílias da sociedade parisiense que estavam nas várias frisas. Então, minha mãe dizia que uma das distrações consistia exatamente em ler o folheto e depois conferir, com a ajuda de binóculos: ali estava a família da duquesa de Uzès, mais adiante estava o príncipe de Sabran e assim muitos outros, com suas jóias e condecorações. Pode-se imaginar como tudo isso despertava a curiosidade e o interesse dos sul-americanos de passagem por lá. Os membros da minha família conservaram daquilo uma recordação maravilhada.
Eu tinha quatro anos de idade e, portanto, não era de nenhum modo um convidado bem visto para acompanhar minha família ao teatro, numa soirée de gala… Ficava enfurnado na cama, dormindo, aos cuidados da Fräulein.
Uma escrivaninha das Galeries Lafayette
Minha mãe prezava muito uma escrivaninha que eu conservo atualmente, a qual, sem ser propriamente de luxo, é um bom e bonito móvel. Ela comentava como era bem construída, como eram belas suas incrustações de bronze, a harmonia das linhas, como era bem trabalhado o mogno de que ela é feita… E chegava à conclusão: “Enfim, um verdadeiro móvel francês”.
Para mamãe, isto equivalia a dizer que havia sido comprada na “terra da perfeição”, pois, em sua opinião, os móveis, os perfumes, os bombons e os monumentos tinham ali a matriz da civilização, por excelência… A França era apresentada assim por mamãe, implicitamente. Então, o modo de tratar dos franceses seria o mais afável que havia na terra e ao mesmo tempo o mais distinto; a língua francesa seria como uma música, usada inclusive para as pequenas coisas de todos os dias.
Como foi comprada a escrivaninha? É um fato mínimo que tem importância apenas na vida de uma dona de casa, mas ela o narrava de maneira a pôr em realce o lado maravilhoso da vida e assim estimular em nós a admiração.
Ela foi fazer compras numas lojas de Paris, as Galeries Lafayette – tidas naquele tempo como monumentais – que vendiam mercadoria de boa qualidade a preços acessíveis. E toda dona de casa brasileira, quando ia para a França, comprava, se podia, alguns artigos de luxo, mas sobretudo muitos objetos correntes como, por exemplo, roupa de cama, pois era mais barato do que comprá-los no Brasil, por importação. E não só para os membros da família, mas também para os criados. Nessas Galeries havia algo que na época era considerado o ápice do progresso: as lojas tinham compartimentos de ambos os lados da rua e comunicavam-se por um corredor subterrâneo.
Ela estava na seção de lingérie quando viu aquela escrivaninha, posta de lado. Houve, então, o diálogo que ela – com uma memória que não herdei – gostava de contar, tintim por tintim. Não posso, naturalmente, repeti-lo com fidelidade, mas vou recordá-lo aproximadamente. Ela perguntou, em francês, para a moça vendedora:
– Mademoiselle, o que é aquela escrivaninha encostada no canto?
– Madame tem um senso de observação nada comum, pois os nossos clientes vêm aqui, passam de um lado para outro e nem olham esse móvel que, entretanto, é digno de atenção. Nosso ramo comercial não vende móveis antigos, mas uma senhora, freguesa nossa, que perdeu a fortuna e precisou vender os seus pertences, não quis levar esta escrivaninha a um antiquário e perguntou se nós podíamos vendê-la aqui. O diretor da casa então disse: “Madame, por uma exceção para com a senhora, o móvel fica aí, mas os nossos vendedores não o anunciarão, pois não faz parte do ramo. Se alguém se interessar por ele nós o venderemos”. E a senhora foi assez heureuse [bastante feliz] por notar a qualidade dele…
Mamãe se interessou, perguntou o preço e depois contou o fato a minha avó. As duas foram ver a escrivaninha novamente no dia seguinte e compraram-na. Ela foi, então, primorosamente engradada, remetida ao Brasil por navio e desembarcada em Santos sem dano algum.
Esse era o modo característico de ela contar um episódio. Tratava-se de uma imersão nos fatos da vida de todos os dias, mas apresentados como num mundo mítico, no qual até as pequenas coisas eram adornadas por um certo pulchrum [beleza], que as crianças aprendiam a notar pela narração.
Surpresa de Ano Novo
Muitas pessoas pensam que na mente das crianças só existem bobagens. Minha mãe, entretanto, compreendia que as almas infantis contêm tesouros, os quais é preciso saber estimular para que venham à luz do sol e brilhem como a Providência quer. Eu, por exemplo, tive uma reflexão íntima a respeito dela, que pode mostrar quantos pensamentos profundos um menino pode ter.
Minha avó, meus pais e meus tios foram a uma grande reunião social em Paris, uma espécie de réveillon por ocasião do Ano-Bom. Antes de sair, já toda preparada para a festa, mamãe despediu-se de minha irmã e de mim, que estávamos deitados e prontos para dormir, tratando-nos com afeto transbordante. E eu adormeci tranqüilamente, embalado pelo seu carinho.
Ela voltou com um par de cotillons, os quais eram objetos decorativos que distribuíam para as senhoras segurarem na mão enquanto dançavam. Ela não dançou, mas trouxe-os para nós e, chegando ao hotel, prendeu-os aos pés de nossas camas. Eu acordei durante a noite, entrevi o cotillon e pensei: “Mais uma de mamãe…! Eu já estou vendo: ela foi à festa para fazer companhia a meu pai e voltou cansada. Saiu indisposta e voltou pior ainda, mas no meio do réveillon estava pensando em nós, pois tem um grande amor! E quando chegou, apesar de ser muito tarde e ter dificuldade de andar, ela permaneceu um certo tempo aqui, em pé, amarrando isto”.
E a imaginava sorrindo para mim e regalando-se com a minha surpresa. Virei-me para o lado e voltei a dormir, encantado por sentir mais aquela efusão do seu afeto.
Nos primeiros albores do dia, entrou um raio de sol pelas cortinas do quarto e me acordou. Olhei os pés da cama: ali estava o cotillon, firmemente amarrado. Não me lembro dele exatamente, mas era uma haste comprida com enfeites pendurados. O quarto dela era contíguo ao meu. Levantei-me, fui logo acordá-la e agradei-a como bem se pode imaginar…
O encontro com a princesa Isabel
Nossa família teve um encontro com a princesa Isabel, a quem mamãe admirava muito, apesar de conhecê-la apenas por fotografias. Foi ela que assinou o decreto de libertação dos escravos, enquanto Regente do Império Brasileiro.
Num domingo, vovó e mamãe foram assistir à Missa em Saint-Germain l’Auxerrois, igreja próxima do hotel onde estávamos hospedados, sem saber que a princesa – uma dama extremamente piedosa – costumava freqüentá-la. Antes de começar a Missa, elas viram uma senhora que entrava pela sacristia e ocupava um lugar especial, reservado no presbitério. Qual não foi a surpresa quando reconheceram a princesa Isabel! E durante a celebração olharam muitas vezes para ela, sentindo-se às vezes observadas por ela também.
Quando acabou a Missa, elas permaneceram certo tempo rezando e viram que a princesa se voltou para uma senhora extremamente fina e distinta que estava ao seu lado, disse-lhe qualquer coisa e continuou a rezar. Esta senhora desceu os degraus do presbitério e dirigiu-se a vovó e mamãe, falando em português:
– Eu sou a Baronesa de Muritiba, dama de honor da princesa Isabel. Ela notou logo que as senhoras são brasileiras e mandou-me verificar. Com quem tenho o prazer de falar?
Apresentaram-se então e ela continuou:
– Se as senhoras estiverem de acordo, ela gostaria de conhecê-las.
Foram logo subindo à sacristia, onde houve grandes cumprimentos. Conversaram sobre as respectivas famílias e lembraram vínculos de relacionamento entre algumas pessoas de minha família com D. Pedro II e a Imperatriz Dª Teresa Cristina. A princesa tinha conhecido o meu bisavô e um tio de meu pai, o Conselheiro João Alfredo, que trabalhou com ela para a libertação dos escravos. Ela amava muito o Brasil e ficou encantada por ter a oportunidade de tratar com brasileiras. Então, num tom muito amável, convidou-as para tomar lanche, num dia determinado, na sua residência em Boulogne-sur-Seine. Era uma bonita casa apalaciada, num excelente bairro de Paris. E, por educação, ela disse:
– Peço que não vão apenas as senhoras, mas toda a sua família que está em Paris.
Todos foram, evidentemente, no dia e na hora marcada, exceto alguns, que acharam não ser de acordo com a coerência republicana irem visitar uma princesa…
Por que as senhoras quiseram levar as crianças? Devido a um modo de considerar as coisas naquele tempo, aliás muito razoável: para que elas sempre pudessem dizer terem conhecido a princesa Isabel, uma grande figura da História do Brasil. Isso devia marcar-lhes a vida e, quando crescessem, teriam a ufania de poder contar o episódio.
Alguém – pode-se bem imaginar quem foi… – teve a idéia de levar também o Tito1, o pobre surdo, alegando:
– Então, ele é o único que não pode ir visitar a princesa? Pobre coitado! Só porque é surdo? Ele vai sentir-se inferiorizado.
Todos ficaram com pena dele e não o quiseram deixar… Ele havia feito um curso especial e já falava torrencialmente, muito alto e com voz rouca. Explicaram-lhe quem era a pessoa que iriam visitar e ele entendeu tratar-se de uma princesa.
Mamãe costumava lembrar a cena da princesa entrando na sala de visitas e toda nossa família levantando-se. Ela percorreu a roda das pessoas, fazendo “le tour du salon” [a volta do salão] e cumprimentando cada um. Eu guardei mais na lembrança os móveis do que a princesa… Lembro-me dela vagamente, com chapéu – pois esse era o modo de uma senhora receber as visitas de cerimônia na Belle Époque –, o que estranhei, mas não ia me pronunciar a esse respeito. Aliás, eu nem tinha exatamente idéia de quem ela era. Já ouvira falar de princesas e príncipes, como todo menino, mas as idéias que se fazem nessa idade são muito imprecisas.
Todas as crianças haviam recebido a recomendação de oscular-lhe a mão. Ela me tratou tão bem quanto aos outros e depois chegou junto a um dos pequenos, estendendo-lhe a mão com muita afabilidade. Ele então fez a reverência e, tomado por uma reação incontrolada, disse com voz forte:
– Tia Lucilia, esta é a princesa?
Todos já estavam com medo de alguma extravagância… Mamãe respondeu:
– É, meu filho.
– Não, não é! Não quero falar com ela!
Mamãe era a protetora natural dele e de todas as crianças da terra… Ela era a única pessoa que suportava tudo com paciência. Então disse:
– Meu filho! Por que isso?
A mãe do menino fazia sinal para que ele se calasse e dizia:
– Fique quieto!
– Não, eu falo mesmo e digo as coisas como são! Prometeram-me uma coisa diferente!
A princesa então perguntou:
– O que você está dizendo, meu filho?
A mãe queria enterrar-se no chão, de vergonha, mas aquilo já não tinha remédio… A situação só podia piorar se ela interviesse! E a princesa Isabel, sorrindo, continuou:
– Meu filho, o que há? Alguma coisa lhe desagradou?
– A senhora é princesa?
– Sim.
– Eu pensei que as princesas e os reis usassem coroa! Onde está a sua coroa? Eu sempre vejo rainhas e princesas com coroa, até no baralho! Não estou vendo coroa nem manto com cauda bonita, e a senhora não tem uma flor na mão. As princesas têm vestidos com pedras preciosas e a senhora está vestida como vovó! Eu vejo a minha avó todos os dias. Não precisava vir aqui! Que desaponto!
Apesar de ser uma dama de muito alta categoria, a princesa estava vestida com os trajes que se usavam naquele tempo na Europa. Não tinha o esplendor que meu pobre primo imaginava… Ela então continuou cumprimentando as crianças e, no fim, aproximou-se dele novamente com muita amabilidade e bondade, dizendo:
– Meu filho, é assim, você tem razão. Eu não tenho mais coroa! Hoje em dia os príncipes e princesas se vestem assim, mas sou muito amiga de sua avó.
– Isso não me importa. Eu queria ver uma princesa de verdade.
Ela então fez-lhe várias carícias e o pobre coitado, diante da doçura, deixou-se amansar e sossegou, sem causar mais problemas. Todos foram para o lanche e a visita transcorreu normalmente.
Minha família costumava recordar esse episódio pitoresco, o que ajudou a reforçar nossa relação de afeto com a princesa Isabel. Por ocasião do Ano-Bom, mamãe e vovó escreviam para ela e para a Baronesa de Muritiba, recebendo logo depois as suas respostas. E, quando o correio trazia uma carta da princesa, minha avó cessava a conversa, abria-a e lia-a para todos ouvirem.
Entretanto, aquela atitude de bondade dela era sempre lembrada por mamãe com tanta admiração, que eu, ao ouvi-la narrar o fato, evidentemente ficava encantado com a princesa, mas muito mais com mamãe, por ver como sabia admirar…
1 Os filhos do Dr. Gabriel já haviam retornado da Suíça e encontravam-se em Paris.
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