Da França ao Brasil – 4 – O quadro de Dª Gabriela
O quadro de Dª Gabriela
Minha avó, Dª Gabriela, era uma dama muito pomposa e elegante, de uma beleza que se encontra poucas vezes. Eu mesmo, às vezes, olhava-a e pensava: “Mas como esta senhora aqui é bonita e bem-arranjada. É extraordinária!”.
Amável, mas solene e dominadora, habituada a mandar, reunia vários traços da tradição brasileira. Conversava muito bem, participando inclusive de discussões sobre religião, política ou qualquer outro tema, evidentemente dentro dos limites próprios a uma dama. Mas, apesar de seu jeito monumental, no trato com as pessoas ela sabia ser de uma suavidade, uma atenção e uma cortesia encantadoras, quando queria… Minha mãe admirava-a muito e via nela um símbolo da bondade.
Estando em Paris, mamãe fez questão de gastar as suas economias, que eram parcas, para mandar pintar um quadro a óleo de minha avó – e não de si mesma –, o que era muito caro. Os quadros permaneciam durante várias gerações nas paredes das casas, fazendo parte das tradições familiares.
Fotografias em traje de gala
Naquele tempo, a técnica fotográfica estava apenas em seus começos e na América do Sul ainda não havia grandes fotógrafos. Então, quando os brasileiros iam à Europa faziam-se fotografar em trajes pomposos, a fim de conservar uma recordação para seus descendentes. Era um bonito hábito, que exprimia a noção da continuidade da família através dos tempos.
Disseram-me, então, que devíamos ir ao fotógrafo, pois toda a família seria fotografada. Não entendi bem aquilo e me veio uma idéia assim: “Para que isso? Vão fotografar toda esta pirralhada? Depois vamos ficar adultos e as fotografias se tornarão amarelas, no fundo das gavetas…”.
E quando começaram a me vestir com a roupa de gala, eu, muito amigo da minha comodidade, achei aquilo desconfortável e pensei: “Eu percebo que esta roupa é mais bonita do que as outras, de uso diário. Será que toda coisa bonita é incômoda?”. E resmunguei:
– Está incômodo!
Então alguém que me ajudava disse:
– Pour être beau, il faut souffrir [para ficar bonito, é preciso sofrer].
E pensei: “Mas não pedi para ser beau! Estou querendo levar a minha vida! Deixem-me em paz na roupa cômoda! Além do mais, nem sei se fico realmente bonito…”.
Saímos, então, e eu refletia: “Quanto mais depressa puder me desembaraçar desse fotógrafo, desta roupa e deste incômodo, e voltar à minha vida, melhor será! Mas preciso começar por não brigar com ninguém, pois, do contrário, terei um castigo e outras amolações sucessivas, ‘pingando’ como uma goteira… Se eu fosse mais forte, resistiria, mas uma vez que não posso resistir, vou ceder. E farei tudo isso de uma vez, para acabar logo! Não vou estar de mau humor, pois isso é tedioso, irrita as pessoas e deixa uma impressão desagradável. Quero bom humor! Aqui estou: vamos agüentar! Lá vou para a fotografia… Fotografem logo! No fim, estenderei a mão para Monsieur le photographe [o Sr. fotógrafo] e direi: ‘Au revoir!’ [até logo!]”.
Aliás, eu trato assim muitos assuntos na vida, para permanecer a salvo de outras preocupações…
Então, nesses retratos, apareço com a atenção posta em tudo, menos na fotografia propriamente dita. Estou cogitando – tanto quanto se pode dizer de uma criança de quatro anos – em outras coisas e olhando para a máquina do fotógrafo apenas porque ele mandou.
Mamãe se fez fotografar sozinha, como costumavam fazê-lo as senhoras brasileiras, para serem bem conhecidas pela posteridade.
Essas fotografias mostram uma senhora de boa sociedade, antes da Primeira Guerra Mundial. O próprio modo de ela estar sentada é típico da Belle Époque, ainda influenciada pela era romântica. A preocupação do fotógrafo foi de apresentá-la sem nada de guindée [artificial, afetada], pois o francês aprecia a gala com naturalidade e, por isso, o fotógrafo também a dispôs subindo alguns degraus, na sua normalidade.
Ela está vestida com um tipo de toilette de certa pompa e distinção que as senhoras daquele tempo usavam quando iam para uma reunião social. Trata-se de uma moda inteiramente européia e seu vestido – distinto, mas sem ostentação de riqueza – deve ter sido confeccionado por algum costureiro francês. Lembro-me bem de seus sapatos de tecido azul-marinho bem escuro.
Ela se arranjou com muito cuidado para ser fotografada de um modo condigno e respeitável. Sem embargo, percebe-se estar ela pensando em realidades muito mais elevadas, o que aliás era o seu modo habitual enquanto participava de algum ato social. Ainda que tivesse diante de si a perspectiva de uma solenidade – na qual uma senhora cônscia de suas responsabilidades deve saber conversar e apresentar-se com destaque, pois tem um papel a desempenhar –, ela deixava o melhor de seu espírito voltado para mais altas paragens, numa posição de alma muito séria. Por isso, ela não está sorridente, mas sua fisionomia dá a idéia de responsabilidade, o que, aliás, não fazia dela uma conviva própria para brincadeiras. Entretanto, nota-se um grande bem-estar no fundo do seu olhar, por causa dessa seriedade.
Seus olhos eram de um castanho comum, mas, quando ela considerava alguma coisa com especial atenção, a tonalidade destes mudava um pouco e aquela cor castanha se tornava mais escura, indicando o esforço de reflexão que havia por trás da aplicação visual. E é exatamente como o olhar dela está nessas fotografias: inteiramente sério e muito firme, enquanto a posição da cabeça indica a atitude de uma pessoa decidida, refletindo durante uma reunião social. O pensamento dela é profundo, próprio de quem está fazendo oração, no sentido exato do termo, que é “elevação da mente a Deus”, pois considera a realidade à luz da Religião Católica e está disposta a fazer qualquer esforço ou sacrifício por ela.
Aliás, essa é a mesma expressão fisionômica que possuía, sendo criança e mocinha, pois, já nessa época, ela tomava atitudes de pessoa madura, o que é próprio da inocência. Ela está ali como uma senhora que tem autoridade, mas que procura, entretanto, atenuá-la sob a forma do agrado. E, por isso, não toma o ar de quem está mandando em alguém, mas se apresenta doce e afável, como pessoa habituada a ser obedecida sem dificuldades, enquanto que, no retrato de minha avó, nota-se uma autoridade pronta a encontrar resistências.
Vêem-se em mamãe, então, três características especiais: elevação, serenidade e muita bondade, em todo o sentido da palavra, ou seja, querer fazer aquilo que é bom. E percebe-se o desejo contínuo de atender os outros, para saber do que precisam… Tudo isso compõe os aspectos de uma senhora profundamente católica, mas pertencente à ordem temporal, não desejando outra coisa senão viver catolicamente dentro dela.
Analisei muitas vezes a fotografia de mamãe sentada num banco de madeira e com a cabeça apoiada na mão, em atitude contemplativa. E o seu olhar, escuro mas cheio de claridade, amplo e profundo, refletindo os seus pensamentos, dava-me a impressão do nobre e sereno vaivém das ondas do mar, sobretudo quando ele não está parado nem muito agitado, mas movimentado e cheio de vida.
E eu pensava: “A mente e o coração dela são grandes como o mar”.
Uma nova Fräulein para as crianças
Em Paris descobriu-se que a Fräulein Mina estava tuberculosa, pelo que foi dispensada, pois, naquele tempo, havia pavor do contágio dessa doença. Preocupada, então, com o nosso futuro, mamãe fez o seguinte raciocínio: “Eu sou doente e não tenho meios nem energias para formar meus filhos convenientemente. Se eu morrer cedo, pouco depois deverá falecer minha mãe e eles permanecerão abandonados. Então, num ponto não farei economia: na educação de meus filhos. Eles terão tudo o que for preciso para aprimorar a sua inteligência! Portanto, devo contratar uma governanta de primeira ordem, pois, assim, eles lucrarão o que depois nenhuma universidade poderá proporcionar-lhes”.
Tinha razão! É melhor ser formado por uma grande governanta e depois estudar numa universidade medíocre, do que ter uma educadora medíocre e depois estudar numa grande universidade, pois o que se aprende na infância tem mais valor. Então, ela publicou um anúncio nos jornais, solicitando uma nova governanta; assim foi contratada a Fräulein Mathilde Heldmann, originária de uma cidade a qual é uma espécie de metrópole artística da Baviera: Regensburg.
Mamãe trouxe para o Brasil essa Fräulein – na época, a melhor de São Paulo – apesar do grande sacrifício financeiro que isso significou para a família, que sempre teve recursos pecuniários moderados. Ela me foi muito benfazeja e, realmente, não posso imaginar uma pessoa mais competente e mais capaz de influenciar os seus alunos do que a Fräulein Mathilde. Essa excelente mulher tinha – como todos os alemães – muito gosto em aconselhar. E com ponderável senso de adaptação e grande empenho, educou-nos aos três: Rosée, minha prima Ilka e eu.
Ela parecia mais prussiana do que bávara e formou-nos num método que me agradava enormemente: a disciplina, a energia e o modo de ser alemão, com tudo o que ele tem de ausgezeichnet [ótimo, primoroso], próprio a dizer o que é necessário, de modo definido e categórico, enfrentando a luta se for preciso. E ensinou-nos a vencer as dificuldades com energia, fazendo o seguinte raciocínio: “Aconteceu uma coisa desagradável? É preciso pugnar contra ela ao extremo! O normal será que você vença, mas se não vencer, mesmo assim gozará dessa forma de vitória que é realizar, em si, uma grande pessoa e ter uma existência à altura”.
Ela ia modelando a nossa educação com longas conversas e sabia premiar os nossos atos bons por meio de pequenos deleites. Ela era, como eu, muito sensível à boa comida e os prêmios eram iguarias alemãs muito gostosas que ela comprava. Eu não me interessava por outras recompensas! Então ela dizia:
– Plinio, você fez bem tal coisa e tal outra! Agora vai ter um prazer: sente-se aqui nessa cadeira cômoda; olhe este álbum agradável. Contemple isso! E aqui está um doce para você.
Nas primeiras vezes eu ficava surpreso e pensava: “Em vez de brigar com este dragão, vou obedecer, para ver no que dá isso…”. Começava a folhear o álbum, comia o doce, sentia a cadeira cômoda e concluía: “Essa mulher organiza bem as coisas!”. E depois eu ia brincar com a consciência tranqüila e o paladar aromatizado, certo do afago tranqüilo e aveludado de mamãe.
Para firmar a sua influência e justificar os seus conselhos, a Fräulein entendia ser preciso oferecer muitos exemplos. Então, narrava episódios da sua família na Baviera, mas também de crianças das quais ela havia sido governanta, em casas e castelos da nobreza britânica, francesa, alemã e polonesa. Entre outras, tratava-se de duas irmãs irlandesas chamadas Gladys e Monona, os meninos da família D’Auvigné, na França, e as filhas da condessa Pompovsky, da Polônia. Essas últimas moravam num apartamento em Paris, onde havia um salão com um espelho grande e bonito, primorosamente emoldurado. E, de manhã, quando os empregados abriam as janelas, já havia pessoas embaixo, desejando ver aquele espelho, tal era a sua beleza! E ela explicava:
– Essa gente da nobreza sabe como se deve viver, pensar, vestir e arranjar!
Eu, sendo sempre “bom garfo”, perguntava sobre as comedorias… e ela me explicava tudo o que eu queria. E assim aprendi diversas histórias do mundo transoceânico, que me parecia feito de fábula e feeria. Isso foi muito vantajoso para mim, pois, além de apresentarem situações individuais, essas narrações me desvendavam estágios de civilização e de modos de ser, nas culturas e nos povos. Donde, remotamente, no meu modo de pensar e sentir, as nações quase constituíam “pessoas” coletivas e os indivíduos, “gotas” de uma nação.
Minha mãe, apesar de estar sempre extremamente atenta a tudo quanto se passava conosco, mantinha às vezes uma certa distância em relação à nossa educação e deixava agir a Fräulein. Hoje percebo que muito do que a Fräulein fazia provinha do que mamãe mandava, mas essa situação dava a entender que a Fräulein possuía muita autonomia. A interferência aparente de mamãe era rara, exercendo-se, sobretudo, pelo contato pessoal, pela conversa, pelos agrados, pelas narrações ou pelas repreensões.
Posso dizer que um dos maiores benefícios que mamãe me fez na vida foi o ter-me dado como educadora a Fräulein Mathilde Heldmann.
Discussões no guignol
Todos os dias, de manhã, eu saía do hotel com minha irmã e a governanta, para fazer exercício e respirar o ar puro de Paris. No centro da cidade há uma praça, o Rond-Point, onde estavam alguns teatrinhos populares de marionetes, chamados guignol e destinados especialmente às crianças, os quais me atraíam imensamente. E, nos dias de maior movimento, reuniam-se muitas pessoas em torno de cada um deles. A Fräulein levou-nos, então, a um dos mais famosos, que era cercado por umas cordas, pagou as entradas e fomos para os nossos assentos.
Como meu pai era de Pernambuco, onde as pessoas são muito loquazes, eu era um menino enormemente expansivo, de maneira que falava à vontade! O dono do guignol era bastante esperto e, quando viu que havia ali um assistente animado, dirigiu a representação de maneira a fazer-me participar. E eu, inexperiente da vida, não percebi a manobra dele…
Sabia que certamente um homem estava movendo as marionetes, mas tinha a sensação confusa de estas serem personagens vivos e de haver certa realidade na cena que se desenrolava no palco. Então, comecei a intervir quando não estava contente com o enredo. A certa altura, entrou um crocodilo que perseguia uma criança. Notei ser isso censurável e comecei a interferir, dizendo:
– Ne faites pas ça! [Não faça isso!]
A Fräulein ordenou:
– Plinio, fique quieto!
– Não posso deixar de intervir! Olhe lá o que está se passando!
Ela percebeu que eu não agia por travessura, mas por ingenuidade, e deixou-me falar.
Depois aparecia a figura de um homem que batia na esposa e no filho. Eu exclamava:
– Homem feio! Não bata em sua mulher, não bata no menino!
Aquilo chamava a atenção de toda a criançada… Então o ventríloquo, procurando reter-me, respondia:
– Menino idiota! Eu vou bater, sim!
E batia… Eu o apostrofava.
Estávamos numa época de forte anticlericalismo e, nesses teatrinhos, de vez em quando, faziam aparecer figuras de sacerdotes em cena, numa situação ridícula. O dono do guignol, vendo-me muito religioso, arranjou um modo de pôr dentro do caso um sacerdote que fazia algumas censuras ao crocodilo, o qual, por sua vez, queria morder o padre pelas costas e matá-lo. Então, “peguei fogo” e passei diretamente para a apologia do padre. Sendo muito equenino, pus-me de pé na cadeira e comecei a gritar:
– Méchant crocodile, je proteste! Il faut défendre le curé! [Crocodilo maldoso, eu protesto! É preciso defender o padre!]
Depois dava conselhos:
– Olhe para trás, Sr. padre! Tome cuidado com o crocodilo feio! Responda assim para ele!
Essa atitude revelava uma grande candura, ao lado de alguns conceitos e atitudes muito profundos: eu possuía uma inclinação contínua para a verdade, o bem e o belo, com grande tendência para tomar posição e lutar! Fazia-o com a maior seriedade e, de início, não tinha a menor idéia de que aquilo podia repercutir nos assistentes, pois toda minha atenção estava posta no palco. Mas, em certo momento, comecei a ouvir os risos. Notei que o público “torcia” e também tomava parte no “drama”. Eu não entendia claramente a diferença entre a cena e o público e, para mim, as pessoas da platéia também faziam parte dos acontecimentos do palco, quase como marionetes! Eu notava que o padre estava sendo atacado e que eu devia estar sempre do lado dele, sendo então preciso dar argumentos contra a outra marionete.
Certamente havia ali gente a favor do padre ou contra ele, mas velavam as suas preferências por uma questão de educação: não era para despertar polêmicas no público que as mães tinham levado as crianças ao guignol, mas para distraírem-nas. Os meninos um pouco mais velhos do que eu entendiam que não deviam falar nessa situação; e, por outro lado, tinham no fundo um misto de timidez e de sentimento de suas próprias limitações, o que lhes causava certa indefinição, levando-os a não querer tomar posição. Eu, entretanto, não tinha a menor idéia disso e sentia haver algo em mim que me obrigava a dizer o que pensava, por uma espécie de honestidade para comigo mesmo, de maneira que não tinha direito nem vontade de me calar. Tinha certa idéia de que as boas maneiras mandavam-me ficar quieto, mas achava-me “liberto” dessa regra, por causa do jorro de expansão que havia em mim. Eu não tinha um pingo de timidez, mas também não imaginava que essa minha atitude fizesse de mim, aos olhos das pessoas presentes, um menino especial. Julgava-me uma criança comum, falando com as figuras do guignol como poderia falar com qualquer um.
Como íamos todas as manhãs ao Rond-Point, algumas pessoas começaram a freqüentar o teatrinho para assistir às minhas intervenções. Naturalmente, o proprietário percebia que o público aumentava com a presença do menino brasileiro e esperava que eu chegasse para começar. E sempre me fazia falar, dirigindo a peça de maneira a provocar-me…
Nos primeiros dias, minha mãe não sabia de nada, mas quando foi contratada a Fräulein Mathilde, esta quis absolutamente que mamãe fosse presenciar o meu desempenho naquele guignol – para que visse até onde podia chegar a minha expansividade – e contou-lhe o que estava acontecendo:
– Madame, seu filho causa um verdadeiro sucesso no teatrinho. Ele serve de atração.
Ela se surpreendeu e perguntou:
– O que tem? Por que esse sucesso?
– Quando o Plinio entra, todo mundo se volta para trás. Até as pessoas que estão em pé, além das cordas, permanecem esperando a chegada dele! E em certo momento, o dono do guignol começa a fazer uma discussão com ele.
Ela achou aquilo muito estranho e ficou curiosa. Não queria que seu filho fizesse um papel ridículo ou estivesse numa situação que pudesse fazer-lhe mal espiritual.
No dia seguinte fomos ao teatrinho pela última vez, pois se aproximava a data de nossa partida, e mamãe resolveu ir conosco, apesar de suas dificuldades. Chegamos na hora certa e, quando entramos, toda a assistência se voltou para nós começando a cochichar, dizendo que ali estava o pequeno brasileiro. Sentamo-nos e a peça iniciou. Novamente apareceu o crocodilo e começou a caluniar o sacerdote. Eu fiquei em pé no assento e comecei a bradar, com o dedo em riste:
– Ce n’est pas vrai! Ce n’est pas vrai! [Não é verdade!]
Até esqueci de que mamãe estava ali, mas, de repente, encontrei o seu olhar posto em mim. Ela estava atrás, talvez para eu não perceber até que ponto ela ficava embevecida com as minhas intervenções… Em última análise, para eu não ficar vaidoso. Várias vezes eu olhava para trás e a encontrava; era um encanto para mim! Lembro-me até hoje da expressão da sua fisionomia. Era de quem estava achando graça, mas com medo de que eu fizesse uma bobagem ou dissesse algo sem propósito; por exemplo, cessar as minhas manifestações repentinamente, tomar qualquer atitude de criança caprichosa e dizer:
– Bom, agora não quero mais!
Eu notava nela um gosto enorme por ver-me naquela situação, pois, no tempo da sua infância, os oradores tinham muito prestígio e ela certamente pensava: “As inteligências do tio Gabriel José e do tio João Alfredo estão convergindo nele. Que coisa ótima!”. Como era muito compreensiva, em vez de mandar-me calar – o que seria normal – deixou-me falar, pois percebia que o público compreendia aquela expansão inocente de minha parte, na qual não havia mal nenhum. A peça acabou e eu bati palmas, pois o dono do guignol sempre organizava as coisas de modo a concluir como eu desejava e no momento que eu queria… No fim, saímos.
Se eu houvesse tomado alguma atitude errada, terminado o espetáculo ela diria:
– Filhão, tal coisa assim não estava bem…
Esse episódio mostra a maneira de mamãe me educar. Apesar de ser muitíssimo carinhosa, ela era tão cautelosa que nunca me perguntou o que havia acontecido comigo no teatrinho ao longo daqueles dias. Apenas informou-se com a Fräulein, fingindo entretanto a maior indiferença, como se o fato fosse inteiramente irrelevante, para eu não me tornar pretensioso. Ela não tomou a seguinte atitude, que nessa circunstância poderia ser comum: mandar o filho repetir várias vezes o feito, ensinar-lhe argumentos para a discussão no guignol e contar o episódio aos familiares na presença do filho, mostrando o bonito papel desempenhado por ele… Absolutamente, nada disso! Os adultos da família nem tiveram conhecimento do que se passara. E ela nunca me explicou isso, pois não queria gabar-se de ser uma boa educadora…
Hoje, percebo que esse fato ajudou-me a explicitar a minha vocação, que então começava a delinear-se. Eu, que era um menino muito puro, tornar-me-ia com o tempo um homem muito piedoso, exatamente porque, na primeira infância, Nossa Senhora quis favorecer-me com vislumbres de uma noção religiosa sobre os acontecimentos que presenciava.
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