Da França ao Brasil – 5 – Apreciando as iguarias da França
Apreciando as iguarias da França
Mamãe caminhava pelas ruas de Paris em atitude de admiração constante. Ela sabia apreciar a cultura e o modo de ser francês até nas menores coisas e dizia continuamente a minha irmã e a mim:
– Olhem, prestem atenção nisso. Vejam aquilo…
Nas ruas, o que mais me atraía eram as lojas de brinquedos… ou de comedorias – estas últimas mais do que as primeiras. Às vezes, passávamos diante de alguns estabelecimentos que expunham doces e eu, evidentemente, queria parar, enquanto minha irmã preferia deter-se nas lojas que vendiam tecidos ou pequenas flores para colocar no vestido. O mundo dos tecidos era para mim “brumoso” ou inexistente, mas o mundo das guloseimas era altamente atraente! Um bolo, por exemplo, tinha grande significado.
Até os variados tipos de bolos eram muito enfeitados. Formavam desenhos e guirlandas cobertos por um bonito glacé e, em cima, tinham uma flor. Eu olhava e dizia:
– Humm, bonitos! Devem ser gostosíssimos!
E, quando ainda não havíamos tomado o lanche, mamãe entrava para eu poder comer aquilo que tinha admirado. Depois explicava-me de que eram feitos os doces e como eram deliciosos. Ela fazia isso pois desejava que eu sentisse o gosto das coisas e me alimentasse bem. E eu, quase sempre, perguntava algo que a deixava feliz:
– Na saída posso levar alguns?
Ela sempre permitia e, então, levava um grande pacote para o hotel. Em outras ocasiões, ao terminar o lanche, eu dizia:
– Mamãe, eu quero mais um bolo!
– Filhão, só se for para você comer depois, pois o lanche agora acabou.
Ela e eu éramos de boa paz e combinávamos logo que seria para a hora do jantar… Quando minha irmã também desejava mais um bolo, ela decidia primeiro qual comprar; e eu, então, ficava olhando para tentar adivinhar, na sua fisionomia, se ela escolheria o mesmo que eu queria; mas, infelizmente, era sempre outro. Por exemplo, muitas vezes acontecia de ela escolher bolos de nozes ou amêndoas. E como mamãe já sabia que eu havia “excomungado” toda a “família” das nozes, amêndoas e congêneres, então me comprava uma brioche qualquer… Além do mais, Rosée pedia apenas um bolo, enquanto eu sempre desejava dois.
Eu achava os bolos com licor uma coisa maravilhosa e de grande sensação! Outras vezes, gostava de escolher um bolo de chocolate mas, com freqüência, minha decisão era um delicioso bolo de café. Entretanto, nessas ocasiões eu ficava intrigado, pensando: “Café… É o que se planta no Brasil! Mas nunca comi nada de café como isto. O que tem aqui? Açúcar! Também existe lá… Como é que aqui misturam café com açúcar e o gosto é este? Como é isto? O que tem este povo?”. E vinha-me a idéia de uma “Terra de eleição”…
Um bolo roubado
Lembro-me de um episódio acontecido no fim de nossa estada em Paris, exatamente naquele dia em que mamãe foi ao teatrinho. Após sairmos do guignol, passamos pela confeitaria Marquise de Sevigné, a qual estava no caminho para o nosso hotel. Entramos e ela mandou-nos escolher qualquer coisa. Minha irmã preferiu uns docinhos, mas eu, ao ver um enorme bolo de café, disse:
– Eu quero esse!
Assim que a balconista os empacotou, estendi os braços, tomei apenas o meu bolo e saí carregando-o, com grande zelo. Então minha mãe, com a intenção de ensinar-me as boas maneiras, disse-me:
– Meu filho, venha aqui. Você não vai levar o pacote de sua irmã?
– Não! O pacote é dela; ela carrega.
– Isso não. Um homem nunca deve deixar uma senhora carregando alguma coisa. Você tem de levar também os doces de sua irmã.
Eu tomei os pacotes pelos barbantes e fui caminhando na frente. Em certo momento, um homem passou por trás de mamãe. Ela me contou depois que ele sorriu, piscou sem malícia e cumprimentou-a tirando o chapéu, sem que eu percebesse, pois ia distraído, conversando com minha irmã. Era como se ele pedisse licença para fazer uma brincadeira, evitando assustá-la. Ela permitiu com amabilidade e ele então deu uma volta e pôs-se diante de mim. Ainda me lembro dele: devia ter mais ou menos cinqüenta anos, com cabelos grisalhos, meia altura, barbinha bem pontuda de que não gostei, chapéu-coco, terno cinza-claro, bengala – como os homens usavam antes da Primeira Guerra Mundial –, olhos maliciosos e um ar de muito esperto, que instintivamente tomei por malévolo. Parecia-me um homem cheio de segundas intenções… e realmente as tinha, mas não eram em nada malfazejas.
Ele, com muita habilidade, enfiou um dedo por baixo dos barbantes, suspendeu os dois pacotes que eu levava pendurados na mão e levou-os, dizendo:
– Muito obrigado, você é bem gentil por ter-me dado esses doces. Eu lhe agradeço. Até logo!
Sendo muito ingênuo, tardei a perceber que o homem estava levando o bolo. Olhei para mamãe: estava com um sorriso amável! Fiquei surpreso, mas não disse nada a ela. Ele fingiu que se afastava apressadamente, fugindo de mim, mas eu, indignado, comecei a correr atrás dele pensando: “Quando é que esse homem vai parar?! Que me entregue logo o bolo e acabe esta história!”.
Todo o mundo na rua estava percebendo tratar-se de uma brincadeira, a começar por mamãe. Voltei-me novamente para ela, querendo ver se afinal intervinha, mas ela andava com indiferença e continuava sorrindo! Eu entendia que mamãe desejava tranqüilizar-me com seu riso, mas eu não queria saber de tranqüilidade! A única tranqüilidade para mim consistia em ter o bolo na minha mão. Pensei então: “Ah, ela não me protege? Mas o que está acontecendo? Abandonou-me num momento de tanta provação? Não toma nenhuma atitude? Está do lado do meu inimigo? Isto é um mistério que nunca em minha vida entenderei!”.
E o personagem, para brincar comigo, em vez de correr com as pernas esticadas, se fazia mais baixinho para ficar ao alcance de uma agressão minha e corria com as pernas moles. Então pensei: “Este homem tem até as pernas moles! Eu o desdenho!”.
Em certo momento parei e cheguei à conclusão: “Naturalmente, com mamãe não posso discutir. E também não vou pedir apoio, pois não é próprio de um homem! Estou na contingência de ter de lutar sozinho contra ele…”. E novamente saí correndo atrás dele, protestando:
– Le gâteau est à moi! Rendez-le-moi! Rendez-le-moi! [O bolo é meu! Devolva-o! Devolva-o!]
Ele deu algumas voltas em torno de mamãe e de mim – aliás com respeito – e me deixava tentar pegar o bolo mas, sendo muito mais forte do que eu, tirava-o de minha mão e saía correndo novamente. Eu quis bater nele, mas não conseguia alcançá-lo, pois nunca fui muito ágil, e o apostrofava:
– Homem mau, homem feio! Restitua o meu bolo e os doces de minha irmã, pois foi mamãe quem os comprou!
Afinal, quase sem fôlego, agarrei suas pernas e ele se deteve. Pus-me na sua frente e comecei a dar argumentações:
– O bolo é meu, não é seu! É preciso, portanto, entregá-lo! O senhor ofendeu a Deus duas vezes: primeiro, me arrancou esses pacotes contra a minha vontade; portanto, isso é um roubo; em segundo lugar, mentiu, pois, está dizendo que eu os dei ao senhor e não é verdade!
Ele respondeu:
– Ora essa! Mas você agora quer me tirar os pacotes, depois de tê-los dado? Isto é uma coisa que não se faz!
Eu me senti ferido em meus direitos e exclamei:
– Não, senhor! O senhor está agora mentindo novamente!
Depois de algum tempo, afinal o homem me devolveu o bolo e os doces, fez-me um agrado, tirou o chapéu para minha mãe e disse lhe com muita cortesia:
– Excusez-moi, Madame! [Perdoe-me, senhora!]
Mamãe sorriu, respondeu amavelmente e ele continuou, após colocar de novo o chapéu:
– Madame, seu filho é um verdadeiro encanto. Todos os dias eu vou ao guignol para assistir às discussões dele.
Mas eu não entendi o que ele dizia… Mamãe percebeu que aquele homem estava tratando-me como um menino hors-série [fora de série], pois ele não faria isso com qualquer criança… Ele despediu-se de mamãe e retirou-se. Então, exclamei:
– Mamãe, esse homem…!
– Depois eu lhe explico.
Tranqüilizei-me, para fazer a sua vontade, mas recordo muito bem que de minha parte não houve nenhuma tristeza ou recriminação a ela, por não ter me ajudado. Eu possuía a certeza de mamãe não agir mal em nada e, se ela o havia feito, estava bem, apesar de eu não entender naquele momento. Isso fazia parte de minha benquerença em relação a ela.
Depois soube que mamãe já conhecia aquele homem, inclusive de nome, pois era um dos assistentes mais entusiasmados das minhas intervenções no guignol. Possivelmente, era um bom católico, encantado com o meu clericalismo…
Gratidão bem merecida
Tito, meu primo surdo, era às vezes de um trato difícil! Ele ia procurar vovó para discutir, mas ela sentia pena dele e não o expulsava, pois uma avó tem a obrigação de agüentar um neto nervoso… Mamãe permanecia olhando, mas, quando percebia que a irritabilidade do Tito chegava a um certo paroxismo, dizia-lhe:
– Tito, venha aqui falar comigo.
E levava-o para outra sala, onde permanecia conversando com ele. Mas, como era surdo, não graduava bem o volume da própria voz, de maneira que falava muito mais alto do que o necessário e, às vezes, até se exaltava, exprimindo-se aos gritos. E assim eu, de vez em quando, ouvia parte do que ele dizia. Entretanto, ao cabo de longo tempo, às vezes uma hora e meia, o Tito se tranqüilizava, beijava mamãe, despedia-se e saía muito calmo.
Ela teve uma enorme paciência com esse sobrinho, também em Paris. E, no momento de preparar as bagagens para voltar ao Brasil, ela encontrou em sua mala um vestido muito fino e bonito, que não havia encomendado. Intrigada, retirou-o da caixa onde estava e verificou estar perfeitamente de acordo com o seu tamanho. Então, viu cair um cartãozinho com os seguintes dizeres:
“À querida Tia Lucilia, mil agradecimentos do Tito”.
Não foi ele quem escreveu, mas a mãe, Dª Bilé. Era um agradecimento dela, pela enorme paciência de mamãe.
Em Gênova
Mamãe me contava que quando saímos da capital francesa, rumo à Itália, o trem atravessava os bairros e ela ia sentada, chorando, pois sentia que nunca mais voltaria a Paris. Isso dá uma idéia de quanto ela admirava a “Cidade-Luz”. E assim terminam as minhas recordações da França, aos quatro anos de idade.
Chegamos a Gênova. Lembro-me de nosso hotel e das conversas na família a respeito do cemitério dessa cidade, o qual é muito famoso. Creio que fomos visitá-lo, mas dele nada me recordo. Entretanto, aconteceu um episódio muito corriqueiro nessa cidade: minha irmã sofreu uma dor de dente e fomos ao dentista com ela. Guardo lembrança do consultório, muito simples, sem nada digno de nota.
A impressão mais forte que tive na Itália foi causada pelo extraordinário sabor do macarrão que comi no hotel. Uns regatoni deliciosos! Lembro-me da Fräulein Mathilde ordenando:
– Du must dieser nudeln essen! [Você tem de comer esse macarrão!]
Eu impliquei com aquele alimento de formato singular, mas como ela obrigou, comi. Entretanto, quando o pus na boca, achei-o fenomenal! Até hoje me recordo do gosto que tive, sobretudo pela manteiga derretida que vinha em cima… E exclamei:
– Oooh!
Não conhecia ainda a palavra “arquetípico” mas fiz uma reflexão: “Este é o macarrão dos macarrões! E qualquer macarrão que se preze tem de se parecer com este ou não serve para nada…”.
Impedidos de ir a Roma
A intenção de minha família era dirigir-se a Roma, a fim de conhecer o Papa São Pio X.
O embaixador brasileiro na Santa Sé, um gaúcho chamado Bruno Chaves, era muito amigo de um dos meus tios e havia convidado vovó e todos nós para a audiência geral numa sala do Vaticano; mas, nessa época, grassava uma epidemia de gripe muito forte na Cidade Eterna e mamãe temia que Roseé e eu fôssemos atingidos. Por outro lado, estando ela ainda convalescente, os familiares tiveram receio de continuar a viagem. Além do mais, o Pontífice estava doente e não dava audiência nesses dias. Decidiram, então, partir logo para o Brasil.
A bordo do Duca d’Aosta
Lembro-me confusamente de uma cena, ao embarcar no transatlântico italiano Duca d’Aosta: o navio estava parado no porto, com umas rodelas abertas das quais jorrava água em quantidade. Tive a impressão de que haveria alguma máquina funcionando para fazer sair aquela água às torrentes, e olhava pensando: “Está vendo? Ali está essa água que sai de dentro do navio e vai escorrendo. Assim é a vida! Os fatos vão saindo de dentro do possível para se tornarem reais e depois se perdem no que já passou, como essa água desaparece no mar. É bonito ver como isso se sucede. E o ruído que faz essa água caindo no mar é como o rumor dos fatos da vida, quando acabam de acontecer e se perdem no passado. É uma água que vai, vai e de repente acaba. Assim é a vida… Que bonito esse jorro! Como é bom que comece, como é bom que dure, como é bom que acabe!”.
Havia ali qualquer coisa que ia além da cogitação normal de um menino de quatro anos. Eu reservava o meu tempo livre para pensamentos análogos, mas não conversava com ninguém sobre esses assuntos, pois notava que seria imprudente, já que causaria inveja em certas pessoas…
Recordo perfeitamente que os quartos ocupados por nossa família estavam na parte mais alta do navio, uns em frente aos outros, separados por um corredor minúsculo em cujas duas pontas podia ver-se o mar. Isso propiciava um acesso constante e fácil das crianças ao tombadilho, o qual era muito seguro e onde nos deixavam ir quando quiséssemos. E sendo as cabines estreitas e o tombadilho largo, naturalmente o freqüentávamos muito para correr e brincar. Não sei por que razão, ficávamos ali em certas horas à espera dos adultos e, evidentemente, contemplávamos o mar.
De volta ao Brasil
Afinal aportamos em Santos, terminando assim a viagem, o que parecia um acontecimento sensacional. Meu pai havia voltado antes ao Brasil, por razões de trabalho e, quando chegamos, ele estava esperando-nos no porto.
Eu desci do navio, de capote, tocando uma sanfoninha. E ele, então, começou a suspender-me e abaixar-me, e colocou-me sobre uma barrica, dando gargalhadas e dizendo:
– Toca a sanfoninha!
Ele fazia isso por instinto paterno, com certo carinho. Tomamos o trem para São Paulo, mas não me recordo da chegada.
O Cavalo “Enorme” e a procura do maravilhoso
A criança desejosa do maravilhoso – e, por isso mesmo, apetente de Deus – tende para aquilo que é mais excelente. Pode ser que, depois, pela desordem existente na natureza humana, ela abuse dessa tendência e tenha a mania de possuir certas coisas. Entretanto, esse primeiro movimento, pelo qual o homem deseja o melhor e o que mais lhe convém, é, em si, reto. E, por causa disso, a imaginação da criança é muito fértil e ela facilmente atribui aos seus brinquedos qualidades que estes não possuem. Esses movimentos existem nas almas de todas as crianças e fazem o maravilhamento da infância.
Eu possuía um brinquedo comum: era um cavalinho de pano, posto sobre rodinhas com eixo de metal e com uma pequena fita pela qual eu podia puxá-lo. Para os meus braços, era um cavalo muito grande e eu tinha, inclusive, certa dificuldade em movimentá-lo. Então, chamava-o de “Enorme”.
Durante a viagem, de vez em quando eu falava sobre o “Enorme”, e, quando voltamos, eu disse:
– Quero o meu “Enorme”!
Lembro-me como se fosse hoje: levaram-me para o quarto do andar térreo da casa, no qual existia um armário trancado, onde haviam sido guardados os brinquedos das crianças da família. Abriram-no e tiraram o “Enorme”. A minha primeira reação foi de exclamar:
– Esse não é o “Enorme”!
Duas ou três pessoas em torno de mim deram risada, afirmando ser o “Enorme”. E, de fato, era terrivelmente parecido… Mas para mim era muito inferior! Qual a razão?
Eu tinha crescido e o “Enorme” tinha deixado de ser enorme… Mas, por outro lado, ficando mais velho, eu notava tratar-se de um boneco de pano, enquanto que, antes da viagem, via-o quase como um ente vivo. Portanto, eu tinha atribuído ao “Enorme” algumas qualidades que um cavalo deveria ter e que um boneco não podia ter. No fundo, eu estava à procura de alguma coisa superior: era o cavalo vivo!
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