A formação e o convívio de Da. Lucilia – 2
Respeitabilidade, imaginação fecunda e lógica profunda
Entretanto, mamãe era muito cerimoniosa e sabia fazer-se respeitar, mas sem ter a intenção de exercer um domínio ou fazer sentir uma precedência. Pelo contrário, tratava-se de uma disposição de alma de quem se olha com respeito a si mesma e, naturalmente, espera o reconhecimento dessa respeitabilidade da parte dos outros, por um princípio de justiça. Por exemplo, não havia possibilidade de alguém fazer uma brincadeira de mau gosto com ela. Mamãe queria ser tratada com a distância que ela mesma transpunha quando desejava e, no seu trato, dava às pessoas o que mereciam, mas com enorme boa vontade de ver o mérito de cada um, em toda a sua extensão.
A nossa “Fräulein”, por exemplo, era uma mulher mais inteligente do que ela e muito viajada, tendo portanto um conhecimento geral maior do que mamãe. Eu as vi inúmeras vezes conversando amistosamente, sem ter, entretanto, o tratamento de duas amigas, pois mamãe sabia pôr adequadamente os limites necessários e a “Fräulein” nem pensava em transpô-los, dirigindo-se a ela com todo respeito, mas também fazendo valer o que havia aprendido nos lugares onde tinha estado. Seria aproximadamente a situação de uma pessoa que visitou vários museus, em relação a outra que conheceu uma situação viva e real.
Mamãe não era uma intelectual, mas possuía algo que não se aprende em nenhuma faculdade de nossos dias: um espírito reto, uma imaginação fecunda, porém muito ordenada, e uma lógica natural profunda. Tudo nela era proporcionado e, por isso, os seus conselhos eram retos como poderia ser uma régua, mas macios como se esse instrumento fosse forrado de veludo. Ela aconselhava com muito afeto, adaptando-se à mentalidade dos filhos e dando as explicações de que cada um precisava, como menino ou como menina.
Esses vários predicados na alma de mamãe, somando-se, constituíam uma espécie de síntese harmônica, um todo moral encantador.
Exigindo o cumprimento do dever, sem jamais reivindicar direitos próprios
Posso dizer que as minhas tendências afinavam com as dela, pois o seu modo de ser parecia-me corresponder exatamente com certo aspecto da minha personalidade que eu deveria fazer prevalecer em mim. De maneira que a união com ela não consistia apenas numa consonância, mas sobretudo num programa. E, na atitude dela para comigo, as notas mais características e mais preciosas, que me marcaram para a vida inteira – na ordem moral –, foram a bondade e a severidade sábia, cuja manifestação poderia ser resumida assim: “Ame a Deus, ame a verdade e o bem, odeie o mal e o erro, pois, agindo assim, você realizará sua vida. Eu lhe ensino o caminho do bem e da virtude, para a glória de Deus e para a salvação de sua alma. As obrigações que eu lhe indico devem ser cumpridas, por serem intrinsecamente boas, e você precisa admirá-las, tendo entusiasmo por quem age bem. A mais alta razão pela qual você deve me obedecer é porque sou um veículo da Igreja Católica para ensinar-lhe as vias de Deus. Eu sou tão boa para com você e lhe quero tanto bem! Veja: se eu o faço sofrer, exigindo-lhe coisas duras, sofro mais com essa exigência do que você padece em cumpri-las. Vamos carregar juntos esse peso, mas você tem de obedecer”.
Era uma mãe muito exigente no cumprimento do dever. Quando se referia a um ato reprovável praticado por alguém, fazia-o numa linguagem sempre respeitosa e serena, sem nunca tomar uma atitude irritada, mas com grande precisão de princípios e muito séria. Para ela, não existia o direito de fazer o mal sob pretexto de indulgência e bondade. Entretanto, nunca reivindicava um direito próprio, nem fazia uma reclamação por algo que houvesse atingido a ela. Pelo contrário, mostrava enorme bondade, perdão e paciência no que dizia respeito a si mesma, suportando o que lhe fizessem de pior. Eu presenciava às vezes atitudes horríveis de algumas pessoas em relação a ela: recebia aquilo quietinha e não dizia uma palavra!
Repreensões e castigos maternos
Eu notava também que ela acompanhava os meus atos com muita atenção e me fazia ver que, se não andasse bem, seria tratado com bondade, mas também com severidade. Por isso, quando ela me repreendia, era muito firme.
Toda criança faz pequenas travessuras e, quando eu fazia as minhas, já sabia que seria chamado… Quais eram esses delitos? Uma pequena desobediência, por exemplo: havia no jardim uns canteiros de flores nos quais estava proibido pisar e, às vezes, eram encontradas ali as marcas inconfundíveis de meus pés. Às vezes, eu dizia uma mentirinha… Por menor que esta fosse, ela me chamava! As primeiras idéias de pecado das quais me recordo foram-me apresentadas pela censura dela em relação à mentira e à desatenção para com os pais.
Eu era mais repreendido do que minha irmã, pois mamãe respeitava muito a diferença entre meninos e meninas, e tratava-a em consideração à sua fragilidade. Então, de vez em quando, vinha uma criada ou o copeiro, dizendo:
– Seu Plinio, Dª Lucilia mandou chamar.
A consciência já me dizia que tinha contas para acertar e eu pensava: “Chegou a vez”, pois já sabia que, mais cedo ou mais tarde, ela descobriria o que eu havia feito. Ela nunca me deu uma surra, mas eu ia com certo medo, já sabendo o que ia acontecer… Porém, pela minha reverência e respeito em relação a ela, eu tinha muito mais receio de desagradá-la do que de receber um castigo e, por outro lado, sentia-me atraído pela idéia de estar junto dela e ia ávido de ser repreendido, pela alta qualidade da repreensão!
Quando eu aparecia, ela estava recostada na “chaise longue”, com a cabeça apoiada na mão, na atitude de quem se encontrava entregue a uma profunda reflexão. Chamava-me com o indicador e dizia-me:
– Filhão, chegue aqui perto.
Às vezes, pelo contrário, ela apenas dizia:
– Pliinio.
E, nessas horas, o “i” era mais longo…
Eu obedecia imediatamente. Não sempre, mas com freqüência ela passava o seu braço por detrás de minha cintura, aproximava-me bem, acariciava-me e fitava-me de frente com seus olhos castanhos, que nessas ocasiões pareciam mais escuros, sem perder entretanto a doçura, e tomavam uma vida e uma força especiais. Mas enquanto o olhar era severo, quanta coisa “dizia” o seu braço! E o menor agrado dela tinha o dom de me transportar de encanto… Ela tomava uma atitude que nunca vi em outra pessoa: ao mesmo tempo se punha como se tivesse a minha idade e me falava como quem se dirige a uma mente muito pequena, mas mostrava a seriedade de uma pessoa madura. Então começava o interrogatório. Quando o meu delito era uma desobediência, ela perguntava:
– Meu filho, sua mãe ouviu dizer que você fez isto e aquilo. Isso é verdade?
Descrevia, então, de modo completo o acontecido, pois ela se havia informado bem. E, conhecendo a fraqueza humana, quando ela via que eu podia ser tentado a mentir, às vezes acrescentava:
– Não minta para a sua mãe, pois será pior. Você fez isso ou não?
Graças a Deus, eu não mentia para ela nessas ocasiões. Se eu dizia não ser aquilo verdade, ela pedia provas e depois me acariciava, beijava-me e mandava-me brincar. Entretanto, sendo culpado, eu dizia:
– Sim, senhora, fiz.
– Você se lembra que sua mãe proibiu isso?
– Lembro, sim, senhora.
Eu ia ficando “menor” ao ouvir cada pergunta… Tornava-se patente que não deveria ter feito aquilo em nenhum caso, mas, sobretudo, levando em conta que as ordens dela eram sempre muito equilibradas, razoáveis e bem pensadas. Portanto, eu não tinha nenhuma espécie de justificação. Ela então me dizia:
– Mas, meu filho, que coisa triste! Você entende que não devia ter feito isso?
– Sim, senhora.
– Então, como é que você o fez?
Evidentemente, não havia razão nenhuma… Às vezes eu dava um mísero pretexto:
– Eu tinha muita vontade de tal coisa…
– Mas você não pensou que essa ação é má?
– Alguma coisa pensei…
– Então, vou lhe explicar: isso foi mal feito por isto, aquilo e aquilo outro.
Ela mostrava por que a minha ação era ilógica e continuava:
– E as conseqüências são estas e aquelas… Você devia ter procedido de tal maneira, por tal razão e tal outra… Será que você é tão ruinzinho? Você quereria ter feito isso? Isso não seria razoável. E ainda escondeu o mal que fez. Não teria sido melhor procurar sua mãe e dizer-lhe: “Mamãe, desobedeci. Perdão”? Eu lhe daria uma bênção, beijá-lo-ia e estaria tudo encerrado. Agora, isso é caminho que se siga? Fique sabendo que sua mãe está profundamente triste com isso.
Às vezes, quando o delito consistia em alguma desatenção em relação a meu pai, ela me dizia:
– Filhão, você fez uma coisa muito feia.
A idéia dela não era a da atitude “feia” diante dos outros, mas a da feiúra moral… E eu perguntava:
– É? O que fiz?
– Em tal ocasião, você faltou com a educação, ou respondeu de modo impertinente para o seu pai. Isso não pode ser.
Eu esboçava imediatamente minha defesa:
– Não, porque ele também fez tal coisa!
– Isso não está direito. Ainda que você tivesse razão, deveria baixar a cabeça, pois trata-se de seu pai. Não foi ele quem lhe deu a vida? Ele é superior e você deve aceitar.
Ou, então, se a desatenção fosse em relação a ela, dizia:
– Mamãe ficou muito sentida com você.
– Por quê?
– Você fez tal coisa assim. Isso não está direito.
E, quando se tratava de alguma mentira de minha parte, ela dizia:
– Filhão, você mentiu?
Aquele “mentiu” vinha carregado de uma tal execração da mentira, que, pela expressão da fisionomia e pelo modo de “cantar” a pergunta, já ficava entendido o que a mentira tinha de horrível… Então ela explicava:
– Olhe aqui. Primeiro ponto: você não tinha o direito de fazer isso com ninguém; em segundo lugar, mentiu para sua mãe, a quem você deve dizer toda a verdade e, portanto, andou mal. Por causa disso, merece a minha rejeição e eu estou descontente com você. Por acaso, a língua lhe foi dada por Deus para dizer mentiras? Você acha que Ele é o Deus da mentira? Cuidado, pois a mentira é uma coisa muito feia! Preste atenção no uso que você faz de sua língua!
Não manifestava furor ou irritação pessoal, mas defendia um princípio ofendido – inclusive o princípio da autoridade materna – mostrando tal rejeição em relação à minha mentira que eu ficava admirado! Que seriedade! Que convicção! Quanta sabedoria nas suas palavras! A tristeza dela me fazia sentir a reprovação que o meu ato merecia.
Ela falava tão compenetrada, que eu sentia na sua voz, no seu olhar e na sua alma, a autenticidade dos seus argumentos. Havia algo em mamãe como um ímã que me fazia sentir atração pelo bem e horror ao mal. Segurando-me pela cintura com muito afeto, ela fazia uma análise inexorável! Descrevia tudo até o fim, sem poupar nada, e demonstrava detalhadamente tudo quanto o meu procedimento tinha de repreensível, com timbre de voz aveludado e nunca estridente. Aplicando uma severidade de juízo e uma lógica completas, mas com uma expansão de afeto que me “envolvia” inteiramente.
Eu percebia que ela detestava o meu defeito, mas, por outro lado, estava sempre aberta para ouvir o que eu quisesse dizer para me justificar. E, às vezes, quando alguma criança conhecida havia andado bem naquele ponto pelo qual eu estava sendo repreendido, ela dizia, para dar-me uma santa emulação na virtude:
– Veja o Fulano, como age bem.
Essas eram as únicas comparações que ela permitia. Eu ouvia tudo aquilo com atenção e respeito extraordinários! Eu era “consonante” com aquela repreensão, pois ela era tão respeitosa para comigo, tão cerimoniosa e tão correta, que eu ficava encantado e “derretido”, pensando: “É verdade! Ela tem toda razão. Como ela é admirável e extraordinária! Vou fazer o que ela quer”.
Quando terminava a explicação, perguntava-me:
– Você entendeu?
– Sim, senhora, entendi.
– Você reconhece que fez mal?
– Mãezinha, eu reconheço: fiz mal.
Em certas ocasiões, não muito freqüentes, ela concluía perguntando:
– Você não sabia que eu ficaria muito triste e que teria de puni-lo? Sua mãe sofrerá mais do que você com esse castigo.
Às vezes eram punições bem sérias. Por exemplo, ela me privava de manteiga por alguns dias, penalidade à qual eu era bastante sensível e que produzia um efeito salutar sobre mim, mas, em geral, a repreensão terminava da seguinte maneira: ela possuía uma escova de prata que conservo até hoje, pesada e com fios de crina muito dura. Então ela dizia:
– Vá lá e pegue a escova.
Eu obedecia. Ela contava o número de batidas, conforme a ocasião e a gravidade do caso. E cada pancada na palma da mão era chamada de “bolo”. Ela então ordenava:
– Estenda a mão. Você vai levar cinco “bolos”.
Eu estendia a mão e mamãe me batia cinco vezes com a escova – nem uma a menos! – mas, apesar de ela não fazê-lo com força, aquilo era duro para a minha epiderme de menino e eu chorava. Entretanto, o que mais me fazia sofrer era o olhar dela. A cada palmatória, fitava-me com severidade e dizia:
– Isso foi muito mal feito. Você merece sofrer, mas saiba que sua mãe está padecendo muito mais do que você. Essas pancadas doem mais em meu coração do que na sua mão, mas sou obrigada a fazê-lo. Quando sua mãe o castiga, lembre-se bem de que a principal castigada é ela. Agora vamos continuar.
E batia novamente… Eu, de fato, percebia o quanto aquilo lhe doía e como ela sentia pena de mim na hora em que me castigava. Ela não me consolava, mas, ao terminar, quando percebia que eu estava bem compungido, perguntava-me:
– Você se arrepende do que fez?
Ultra-desejoso de não repetir a falta, eu respondia:
– Eu me arrependo.
– Está bem. Agora você me promete que você não faz mais?
– Prometo!
Ela mudava de jeito e dizia:
– Então peça perdão a Deus e a sua mãe.
– A senhora me perdoa, mamãe?
– Perdôo! Então fica tudo acabado. Ponha a escova no lugar, nunca mais faça isso e agora dê um beijo em mamãe porque você está perdoado.
Ela passava da repreensão para um transbordamento de afeto. Meu coração voava para ela! Eu me jogava nos seus braços, enternecidíssimo, e osculava-a na fronte duzentas vezes! E, todas as vezes sem nenhuma exceção, ela me dava uma bênção, me abraçava e me beijava. Eu ficava encantado, maravilhado, quase sem saber como respirar, inundado de contentamento e palpitante de admiração e de benquerença por ela, como se tivesse obtido uma indulgência plenária! Nada me deixava a alma mais “cheia” do que um pito! Aquilo trazia tanta harmonia e entendimento recíproco que eu não tinha vontade de retirar-me! Ela então dizia:
– Agora está tudo acabado. Vá brincar.
Eu ia brincar e aquela pequena “tragédia” estava encerrada em dez minutos. Mas eu saía impressionado e, em todas as ocasiões, querendo-a e respeitando-a mais do que antes. Era o fim invariável de todas as repreensões! Por isso, eu sentia desejos de voltar e pedir-lhe:
– A senhora não quer passar-me mais um pito?
Raramente eu repetia a ação repreensível que havia praticado.
Entretanto, o que mais me agradava, no modo de ela se conduzir nessas repreensões, era o equilíbrio entre o afeto e a tristeza, fazendo-me sentir, com habilidade, a seguinte condição: “Se você deixar de ser bom filho, continuarei a querer-lhe bem, mas será em outros termos”. Ou seja, ela via em mim muito mais o filho que devia amar os princípios, do que o filho que deveria querer bem a ela.
Eu percebia com apreensão que, se não conformasse a minha vida com esses bons princípios, valeria muito menos para mamãe, deixaria de merecer aquela forma de amor materno e perderia com ela certa comunhão de alma, que eu não queria abandonar de nenhum modo. Entretanto, apesar disso, eu notava haver entre nós um vínculo como que indissolúvel, pois sentia no seu coração enormes profundidades de misericórdia. Se eu não andasse bem em minha vida, ela teria comigo todas as franquezas, porém acompanhadas de muita paciência. Poderia censurar-me muito e até morrer de dor com alguma má ação que eu praticasse, mas seria sempre minha mãe e nunca me abandonaria! E eu percebia que a fonte dessa bondade era o Sagrado Coração de Jesus.
Essa convicção, aliás, está na origem do meu equilíbrio. Se eu não a possuísse, não teria resistido aos vagalhões da vida. Foram tantas as dificuldades que, se não houvesse alguém na terra em quem pudesse depositar confiança sem limites, eu não teria conseguido viver.
Por tudo isso, tenho saudades dos pitos de mamãe!
“Num filho meu, ninguém bate”
Ela também mantinha um princípio com muita firmeza: para os filhos, é excessivamente humilhante apanhar de alguém que não seja o pai ou a mãe. Lembro-me de tê-la ouvido dizer mais de uma vez, com o dedo indicador erguido:
– Num filho meu, ninguém bate, nem com a ponta do dedo. Só João Paulo ou eu.
Mas papai nunca o fazia, e nem sequer a “Fräulein” Mathilde nos dava a menor punição física. Aliás, se ela me batesse, eu imediatamente falaria com mamãe, a qual era capaz de despedi-la. Por isso, a “Fräulein” apenas nos impunha uns pequenos castigos como, por exemplo, permanecer em pé num canto, voltados para a parede, durante dez ou quinze minutos. Eu não me incomodava muito de olhar para a parede, mas achava horrível permanecer naquela postura e, então, começava a bater o pé no chão, com força. Então a “Fräulein” dizia:
– Plinio! Nada desse pé!
Eu pensava: “Lá vem esse dragão…”.
Mas não podia reagir, pois seria ainda pior.
Experimentando um novo traje
Mamãe era muito artística e imaginativa, e ela própria desenhava meticulosa e metodicamente os planos dos trajes que minha irmã e eu tínhamos de vestir. Naquele tempo, quase não se usavam roupas fabricadas em série, e as costureiras confeccionavam as vestimentas das crianças de acordo com as indicações dos pais. Naturalmente, ela se aplicava com um cuidado todo especial aos trajes de minha irmã, mas também se interessava muito pelos meus, pois desejava que seus dois filhos se apresentassem bem.
Então, de vez em quando, ela decretava ser preciso fazer-me uma roupa para festas. Vinha a costureira a nossa casa, trazendo umas caixas que me pareciam enormes e, em certo momento, mamãe me chamava:
– Filhão, venha cá.
Ela se sentava numa cadeira e eu tinha de ir ao meu quarto vestir o traje e me apresentar. Para outro menino, talvez, isso fosse razão de alegria, mas eu não sentia o menor interesse naquilo, pois sempre fui antipático a essas experiências. Que outros dessem importância a isso, ainda era compreensível, mas eu preferia pensar em outras coisas! A minha idéia era: “Ainda bem que mamãe vai estar perto”. Não manifestava o meu desagrado, pois a presença dela conferia doçura às coisas. Entretanto achava aquilo tudo detestável! E ela, sem tom imperativo, mas com imenso afeto, ordenava:
– Caminhe!
Eu devia andar um pouco pela sala, com o novo traje. E ela dizia à costureira:
– Olhe, prenda um alfinete; aqui tem pano demais; ali tire mais, ali mais…
E continuava:
– Agora levante o braço, meu filho… A senhora está vendo? A manga, quando sobe, faz isto assim.
Ela dava um jeito no meu braço e dizia:
– Aqui… Levante o braço de novo.
A costureira tomava um giz e desenhava um sinal onde deveria acrescentar alguma coisa, o que levava um tempo imenso, parecendo-me não acabar mais! A complexidade e a demora daquilo me enfastiavam! Eu queria sentar-me, mas não podia. E dizia para mim mesmo que a posição natural do homem é estar sentado…
Afinal, a prova terminava e eu saía correndo… Nisso era o oposto de mamãe, pois, até a mais extrema velhice, ela foi muito “soignée” [elegante]; e, em geral, ela mesma fazia os desenhos dos seus próprios vestidos, inspirada – bem entendido – em figurinos franceses, como todas as senhoras de sociedade daquele tempo. Quando se tratava de provar esses trajes, ela fazia isso em casa, com meticulosidade muito notável e sem jamais perder a paciência.
Encanto pelos botões de madrepérola
Naquele tempo, os botões das peças de roupa mais comuns eram, com freqüência, feitos de madrepérola, mas tinham um inconveniente: trincavam-se com facilidade e deles saíam algumas lascas.
Às vezes, a “Fräulein” se descuidava um pouco e me dava uma camisa com algum botão desgastado, arranhado ou quebrado. Eu o tomava e gostava muito de ver na madrepérola certos reflexos mais irisados e mais bonitos que ela não possuía quando o botão estava inteiro, e fazia a seguinte reflexão: “Se mamãe, a “Fräulein” ou uma criada perceberem que este botão está quebrado, jogá-lo-ão fora; mas eu, se pudesse, colecionaria esses objetos, pois aqui existe algo que me agrada muito e vale mais do que o botão íntegro… Essa matéria – como tantas outras coisas que vejo – está um tanto deformada; mas, na sua essência, vale mais desse modo e é uma maravilha!
“Existe, portanto, um tipo de beleza à maneira do interior da madrepérola, com cores agradáveis, mutáveis e opalescentes… Percebo que deve haver no mundo uma quantidade enorme de coisas semelhantes; mas as pessoas que me rodeiam, e um número ‘infinito’ de gente como elas nesta grande cidade, não fixam a sua atenção nessas modalidades fugidias de beleza nem tratam sobre isso. Por quê? Por exemplo, se eu aparecer no “living” com este botão quebrado e quiser conversar sobre a madrepérola, elas vão dar um risinho condescendente, como diante de um menino bobo, dirão que é linda e depois não prestarão mais atenção nela. Eu, então, distancio-me sem beligerância nem hostilidade – mas com um fundo de decepção e de gelo – e vou prestar atenção noutra coisa, noutra coisa, noutra coisa… mais ou menos indefinidamente”.
Comment (1)
Tenho a impressão de que Deus quis fazer-se conhecer na sua intimidade através do Dr Plínio. Ele é formidável.