Compaixão e serenidade até o fim
Ao celebrarmos o 40º aniversário da passagem de Dona Lucilia para a eternidade, nada melhor do que evocar, pelas próprias palavras de Dr. Plinio, alguns aspectos da bondade de sua mãe, manifestada ao longo de uma edificante existência, até o derradeiro sinal da Cruz com que se despediu deste mundo. Talis vita, finis ita: tal como foi sua vida, repassada de fé e compaixão, tal se apresentou a Deus.
Um dos predicados morais de Dona Lucilia que mais me tocava e estreitava minha união com ela era sua compaixão. Em diversos episódios e circunstâncias me era dado notar a ternura de mamãe para comigo e o modo como considerava as necessidades de uma criança, máxime sendo filho dela. A fragilidade daquele ser pequenino despertava em seu coração materno um desejo de proteção, ao lado de uma compreensão íntima, pormenorizada e delicada das carências próprias às condições de um menino.
Compassiva nas doenças do filho
Ela percebia bem como eu mesmo sentia as minhas debilidades, e me acompanhava com um olhar solícito, como quem diz: “Essa é a trajetória de todo homem. Mas, é natural que um homem tenha uma mãe, e que esta seja toda ternura para ele. É conforme à lei da vida que as coisas se passem assim; você deve se sentir compreendido em tudo e não ter nenhuma espécie de amor próprio falso que lhe faça esconder de mim a sua debilidade. Pelo contrário, coloque-a em minhas mãos, que eu tratarei dela”. Essa disposição me era manifestada com um sorriso cumulado de afeto, e da promessa de que ela atravessaria comigo aquele caminho semeado de dificuldades.
De maneira especial, a compaixão de Dona Lucilia se mostrava inteira quando eu adoecia. Nessas circunstâncias, seu desvelo e seu carinho eram levados ao extremo, com uma preocupação inteira por causa de minha doença. Eu, sempre observador, não deixava de considerar sua atitude ao entrar no meu quarto nas pontas dos pés, sorrindo, com um copo de remédio de homeopatia nas mãos, e dizer-me: “Filhinho, chegou a hora de tomar o medicamento”. Na verdade, era a consolação de minha alma tê-la ali perto, e a presença dela compensava a dor que eu sofria.
Como se sabe, as analogias na cabeça de uma criança são vivazes, e eu fazia correlação entre o refrigério da água com que eu tomava o remédio e a bondade de mamãe. Pensava: “Ela é para mim o que esta água é para meu corpo doente — um refrigério. Sinto o meu espírito refrigerado na companhia dela”.
O mesmo desvelo na maturidade de Dr. Plinio
Essa compaixão manifestou-se invariável ao longo de toda a vida dela. Por exemplo, quando eu já era homem feito e formado, morávamos numa casa na Rua Itacolomi, onde tive uma indisposição física muito forte. Mamãe, num tom afetuoso e inquiridor de quem havia percebido, me perguntou:
— Filhão, você está indisposto, não é?
— Meu bem, realmente estou, mas prefiro não recorrer aos seus médicos. Eu não gostaria de dizer “não” à proposta da senhora de chamar algum deles, mas sobretudo não quero dizer “sim”.
Ela, com sua calma característica, aproximou-se de mim e colocou a mão sobre minha testa, e só aquele contato o frescor de sua mão me transmitiu alívio e tranqüilidade. Disse-me: “Você está com febre”. E eu pensei: “Agora ela vai colocar o termômetro e este indicará 38°, 39°. Mamãe ficará preocupada e eu vou me meter em uma engrenagem que não me agrada em nada”. Ela pôs o termômetro e, após alguns minutos, verificou a temperatura.
— Não é nada. O que você quer fazer meu filho?
— Meu bem, quero ganhar tempo, deitado e tranqüilo.
Então, ela trouxe uma cadeira do quarto, colocou-a próximo à minha cama, sentou-se e começou a rezar. Ali permaneceu durante horas, até anoitecer. Em certo momento, eu disse:
— Meu bem, estou com muita fome e a senhora vai querer que eu coma algo.
— Diga o que você quer que sua mãe traz.
Ela mesma foi preparar o que eu pedi, serviu-me, conversamos um pouco, e quando nos despedimos ela me disse, no mesmo tom de carinho e solicitude: “De outras vezes, você não esconda nada de sua mãe, porque ela percebe e não vai lhe impor coisa alguma”.
Só então eu percebi como ela não considerava bagatela aquela minha indisposição. Entretanto, a rogos de Nossa Senhora, a Providência me favorecera com boa saúde e na manhã seguinte eu já estava recuperado. Assim que me levantei, fui ao quarto de mamãe para cumprimentá-la, tranquilizá-la e agradecê-la pelos cuidados da véspera. E retomamos a vida comum de todos os dias.
Porém, ficara-me a certeza de que, se a doença se agravasse, o desvelo dela se desdobraria até o fim. E, provavelmente, se eu morresse, ela não sobreviveria por muito tempo.
Acolhida à sombra da árvore que plantara
É interessante constatar como essa compaixão de mamãe para comigo, embora se manifestasse sempre que as circunstâncias a despertavam, ia adquirindo feições novas ao longo de minha vida. Quando eu era menino, ela inteira se debruçava sobre mim para me amparar. Mais tarde, no período de constituição do meu caráter, a solicitude dela se fez sentir em relação à luta que eu era obrigado a travar, como adolescente, para a minha própria formação. Quando homem maduro, eu notava nela uma espécie de legítima ufania, à semelhança de quem construiu um barco e se compraz ao vê-lo navegar: “Deixe-o singrar, alegra-me ver como ele enfrenta as ondas; sinto satisfação por ter feito isso, em ter tido um filho e o haver formado para que depois enfrentasse a vida de peito aberto!”. Essa era a alegria dela.
E quando se aproximavam seus últimos anos de vida, a missão protetora e formadora da compaixão dela, enquanto mãe, ia cessando. Ela sentia esse compreensível minguamento e, por sua vez, passou a como que “se encostar” na minha compaixão para com ela. Portanto, deu-se uma nobre e natural inversão da situação antiga, ela veio se acolher à sombra da árvore que ela mesma tinha plantado.
Presença sempre enternecedora
Seja como for, já com seus 91 anos, a presença dela continuava sempre enternecedora, cumulando-me de agrado. Durante toda a vida, a conversa de mamãe foi agradável, mas sua presença era ótima, pelo fato de sua pessoa irradiar algo muito mais valioso do que a palavra humana possa exprimir, e de comunicá-lo com doçura, suavidade, alegria, ao mesmo tempo com tanto recolhimento, tanta dignidade e seriedade, que eu jamais me saciava de estar perto dela.
Lembro-me de que, às vezes, estando eu trabalhando no meu escritório, ela entrava, sentava-se na cadeira de balanço que ali havia e permanecia quieta ao meu lado, desfiando seu rosário. Quiçá, movida pela generosidade materna, ela encontrasse algum entretenimento na minha presença, mas a recíproca era inteiramente verdadeira, e eu me comprazia de modo prodigioso em estar com Dona Lucilia: dizia-lhe algo afetuoso, fazia-lhe um carinho, e a deixava contente.
Assim transcorreu nosso convívio, até alguns meses antes de ela falecer.
Na véspera da morte, calma e serenidade
Em fins de 1967, comecei a notar os primeiros sintomas da doença que haveria de me prostrar durante semanas, culminando numa operação(1). Quando retornei do hospital, mamãe ainda estava viva, mas havia envelhecido muito. Acredito que ela não tenha percebido que eu estive fora tanto tempo, ou ao menos não se manifestou a esse respeito.
A convalescença me obrigava a permanecer com a perna estendida durante todo o tempo, numa posição bastante incômoda e desagradável. Após esse período de penosa recuperação, quando eu apenas começava a poder andar com o auxílio de muletas, afirmaram-me que a saúde de mamãe se agravara de modo alarmante: ela caminhava para o fim.
Recordo-me que na véspera da morte dela, mamãe se achava muito pior do coração, e por isso passei o dia inteiro no quarto dela. A falta de ar a oprimia de tal maneira que a impedia de conversar, e ela sofria muito com o mal-estar e a agonia que a asfixia traz consigo. Entretanto, mantinha-se calma, tranquila, serena.
Um grande Sinal da Cruz antes de partir
Eu formara a ideia de que seria melhor, nas minhas condições, que mamãe não morresse durante a noite, pois a dificuldade de me locomover, somada a outros incômodos, não me possibilitariam de dar-lhe toda a assistência que eu gostaria de oferecer a ela nesse supremo momento. Quisera, antes, que fosse de manhã, depois de eu ter dado as orientações necessárias ao desenvolvimento do nosso apostolado naquele dia, e assim, poder estar ao lado dela quando Deus a chamasse a Si. Contudo, não imaginei que esse passamento se desse tão logo.
No dia seguinte, 21 de abril, acordei e perguntei por mamãe. Disseram-me que o estado dela permanecera mais ou menos o mesmo. Trouxeram-me o lanche da manhã e o jornal. Ora, mal acabara de lê-lo, o médico que a assistia entra no meu quarto e me diz: “Dr. Plinio, venha depressa. Dona Lucilia está morrendo!”
Tão rápido quanto me era possível naquelas condições eu me dirigi ao quarto dela, e assim que entrei, o médico me disse: “Ela já morreu”. Contou-me, então, que a respiração de mamãe tornara-se cada vez mais ofegante, mas ela não quis me chamar. Quando ele percebeu que eram seus últimos instantes, foi me avisar e, ao voltar, a viu fazer um grande Nome do Padre e, em seguida, estender as mãos ao longo do corpo. Entregara sua alma a Deus.
Tristeza envolta em suavidade
Apesar dos meus 60 anos, à vista de mamãe morta, chorei copiosamente, e em altos soluços, entremeados com frases de gratidão e de amor para com ela. Na desolação profunda em que me encontrava, repetia que ela era a luz dos meus olhos, o que havia de mais precioso para mim na vida. Lamentei não ter podido vê-la no derradeiro momento, e rezei muito por sua alma.
Depois disso, era preciso que eu me aprontasse, e dei as recomendações necessárias para se preparar o velório e o sepultamento. Curiosamente, enquanto fazia minha toilette, não obstante a imensa tristeza que me confrangia, senti-me tomado de uma tranqüilidade suave e distendida, de maneira que o peso trágico do fato deixou de acabrunhar a minha alma. Assim me foi possível estar o tempo inteiro ao lado do corpo de mamãe, até a hora em que seria levado para o cemitério.
Era minha intenção acompanhá-la até à beira da sepultura. Porém, a ferida cirúrgica no meu pé ainda não estava inteiramente cicatrizada, de um lado; de outro, era-me muito penoso vê-la pela última vez no caixão, e este em seguida ser depositado no fundo da cova, coberto de terra… Não tive coragem. Permaneci no meu automóvel, à porta do cemitério.
No restante do dia passei recebendo os cumprimentos de parentes e amigos. Na manhã seguinte, atendendo aos conselhos dos médicos que cuidavam de minha recuperação, dirigi-me a uma fazenda que nosso movimento possuía no interior de São Paulo e ali fiquei até retornar para a Missa do Sétimo Dia de mamãe.
Um sorriso do Céu…
Uma última recordação. Como se sabe, segundo a doutrina católica, mesmo almas que praticaram a virtude neste mundo podem passar pelo Purgatório, a fim de se purificarem de alguma imperfeição. Se, conforme se lê em relatos de certas visões, até mesmo almas de grandes santos tiveram de pagar esse tributo, era natural que eu me perguntasse se a de mamãe não estaria ainda ali, purgando-se de qualquer defeito. Essa ideia me incomodava, e eu, com confiança na misericórdia divina, pedi a Nossa Senhora que me desse um sinal de que a alma de Dª Lucilia já estivesse na bem-aventurança eterna.
Com essa esperança, dirigi-me à Igreja de Santa Teresinha, no bairro de Higienópolis, onde seria celebrada a Missa do Sétimo Dia. Ocupei um lugar no primeiro banco, junto com pessoas de minha família, e notei que nos degraus do presbitério havia sido colocada uma mortalha feita de rosas vermelhas, tendo no entroncamento dos dois braços da cruz um lindo buquê de orquídeas.
Ora, no momento da Consagração, surpreendo-me com este fato extraordinário: pela fenda aberta num dos vitrais da igreja passou um raio de sol que incidiu exatamente sobre a cruz de rosas, deslocando-se de modo lento até se fixar no buquê de orquídeas. Mas, iluminou-o com tanta intensidade que a luz parecia penetrar as pétalas das flores e fazê-las refulgir por dentro.
Ao término da Consagração, o raio de luz deslizou em direção à porta oposta à sacristia e desapareceu. Porém, moveu-se de um tal jeito que me fez lembrar o andar de Dª Lucilia, e então me veio o pensamento, senão a certeza, de que aquele era o sinal que eu havia pedido: “ela está no Céu!” Essa ideia muito me consolou, e saí da igreja aliviado.
Sem dúvida, podem as almas do Purgatório rezar pelas que estão na Terra. A de mamãe, se lá estivesse, estaria pedindo por mim. Mas, que alegria saber que ela já o fazia na visão beatífica, inundada daquela felicidade eterna que um dia, pela misericórdia de Nossa Senhora, nos inundará a todos nós! v
Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências em 11/1/1982 e 20/4/1991)
Revista Dr Plinio 121 (Abril de 2008)
1) Em dezembro de 1967, em conseqüência de uma grave crise de diabetes, Dr. Plinio teve gangrena no seu pé direito, sendo submetido a uma cirurgia no Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, para debelar a infecção. Cf. “Dr. Plinio” nº 117, pp. 4-5.
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