Congregado Mariano
O Colégio São Luís do meu tempo de menino era muito menor do que se tornou depois, e nele não existia a grande capela que vemos atualmente1, mas uma sala transformada em modesta capela interna. Provavelmente os jesuítas haviam mandado derrubar algumas paredes intermediárias, reunindo dois ou três compartimentos para esse efeito2.
Todo o corpo discente cabia ali.
O quadro de Nossa Senhora do Bom Conselho
Havia no fundo da capela um único altar, e por cima deste erguia-se um retábulo de madeira, do qual me lembro bem: era de um azul bem claro – mais do que eu gostaria – com raios de metal incrustados, partindo de um quadro central, representando Nossa Senhora com o Menino Jesus nos braços. Era uma bela e respeitável reprodução da célebre imagem da Mãe de Deus, existente na igreja dos frades de Santo Agostinho, em Genazzano, na Itália, desde o século XV3.
Os jesuítas estimulavam muito a devoção a essa imagem, a qual tinha uma história milagrosa muito bonita4. Eu sabia que a invocação dela era Mater Boni Consilii – Mãe do Bom Conselho – mas conhecia apenas confusamente a sua origem.
Aliás, havia nela algo de curioso e singular, que eu nunca soube explicar, mas me intrigava e me deixava na dúvida: não entendia bem se a imagem era pintada sobre um vidro ou se era uma estampa colada atrás deste, de maneira que parecesse estar pintada numa placa de vidro5. Várias vezes eu me pus o problema sem ter resposta, e sentiria muito alívio na minha curiosidade de menino se pudesse ir por detrás do quadro e verificar como era. Não perguntei a ninguém sobre isso, pois percebia que seria uma questão muito trivial, e também para não ser inundado por uma explicação técnica sobre xilogravuras, da qual não era apetente e que, aliás, não entenderia bem… Portanto, nunca cnsegui desfazer essa dúvida.
O título da imagem era uma verdadeira beleza, pois indicava uma das tarefas mais maternas de Nossa Senhora, muito própria da sua condição de Rainha do Universo: ser boa Conselheira. Entretanto, inicialmente essa invocação não me dizia nada de especial, apesar de eu notar ser uma excelente devoção.
O mês de Maria no colégio
De vez em quando, os Padres faziam cerimônias religiosas na capela. Lembro-me bem de que no mês de maio, consagrado a Nossa Senhora, os alunos eram obrigados a comparecer à capela todos os dias, para celebrar o mês de Maria junto à imagem de Nossa Senhora do Bom Conselho.
Eu comparecia também, de bastante bom grado. Íamos todos em fila e entrávamos cantando:
– “Nossa Senhora do Bom Conselho, rogai por nós, rogai por nós!”
Alguns o faziam com piedade e outros levados pelo mero gosto de cantar com força, depois de haverem permanecido tanto tempo em silêncio nas aulas, mas a grande maioria participava daquilo mecanicamente, sem prestar atenção alguma, apenas porque os Padres mandavam. Eu, sempre com a voz forte, mas não afinada, preferia não cantar muito alto, a fim de não estragar a canção.
Para os Padres, não era fácil pôr em ordem todos aqueles meninos, que se mexiam e se agitavam continuamente. Levávamos algum tempo para encher a capela e, afinal, começava a cerimônia, com mais alguns cânticos em louvor a Nossa Senhora, um dos quais começava assim:
– “Neste mês de maio, lindo mês de flores, de Maria celebremos os louvores”.
Do resto não me lembro mais.
Dava-se também a bênção do Santíssimo Sacramento. Alguns coroinhas de batina, alunos do colégio, manuseavam o turíbulo. O incenso subia, o harmônio tocava e era cantada uma frase, muito bonita para os meus ouvidos de menino:
– “Panem de cælo præstitisti eis, alleluia”6.
Recordo-me também de um rito praticado no encerramento do mês de Maria, e que certamente remontava a tempos mais antigos: cada um escrevia num papel o pedido que desejava fazer a Nossa Senhora e, depois, todos esses bilhetes eram queimados juntos, aos pés d’Ela, como se subissem aos Céus. Tratava-se de uma ação meramente simbólica, mas traduzia algo de espiritual num fato palpável, o que ajudava a tornar a oração mais completa.
Em certa ocasião, eu inclusive recitei em voz alta uma ladainha, na qual uma das invocações dizia “Jesu, gaudium angelorum”7. Então, por influência da Fräulein Mathilde, pronunciei:
– Jesu, gaudium “anguelorum”.
Os colegas caíram na gargalhada… Nunca mais me esqueci que devia dizer angelorum!
Oração diante de diversas imagens
Inicialmente, o quadro de Mater Boni Consilii era para mim apenas o que pode significar, para um menino católico, uma imagem de Nossa Senhora a qual ele vê com frequência. Portanto, não me causava especial entusiasmo.
Entretanto, a partir da graça que recebi na Igreja do Coração de Jesus, comecei a ser mais devoto e a rezar diante desse quadro com especial aplicação, pois ele me parecia ser muito expressivo e estar relacionado com Nossa Senhora Auxiliadora.
Essas eram as duas representações d’Ela que eu via com mais frequência, mas passei a rezar também diante de muitas outras, por tratar-se de Maria Santíssima.
Por exemplo, a imagem de Nossa Senhora das Graças, no oratório de minha mãe, com as mãos abertas, me parecia ter uma atitude muito maternal e bondosa, e me atraía de modo especial. Eu tinha a impressão de que Ela olhava para mim com compaixão e vontade de me ajudar, entendendo meu sofrimento, minha insuficiência e minha pequenez, o que me fazia sentir-me muito animado. Então, eu pedia a mamãe para osculá-la. Ela sorria e atendia o meu pedido.
“Ecce in pace amaritudo mea amaríssima”
Entre os santinhos que eu recebi como prêmio, dos Padres do colégio, não posso me esquecer de um que reproduzia um quadro de Nossa Senhora das Dores.
A imagem, em si, não era extraordinária, mas a cena era lindíssima: representava Nossa Senhora no momento da descida do Corpo de Nosso Senhor da Cruz. Ela O olhava numa atitude de dor e sofrimento, mas em paz. E na parte inferior da estampa estava escrita uma frase em latim, com estas palavras muito bonitas do Profeta Isaías: “Ecce in pace amaritudo mea amaríssima”8.
Com algum esforço, um menino podia entender bem o significado: “Eis que está em paz a minha amargura amarguíssima!” Era a primeira vez que eu lia essa frase. Ela me impressionou muito e pensei: “Está vendo? Nossa Senhora é apresentada pela Igreja como sentindo uma amargura muito amarga! Entretanto, Ela está in pace – na paz”.
Compreendi que também havia paz na amargura amarguíssima da minha existência, e era possível viver! A paz era um elemento indispensável no sofrimento: o açúcar sobre a amargura, a consciência tranquila, a certeza de ser amado por Deus e Nossa Senhora, a coragem e a força. No fundo, entendi que havia incomparavelmente mais paz na minha vida do que no gozo de muitas pessoas.
Às vezes, a fisionomia de mamãe me lembrava essa frase. Eu a via sofrer muito, mas em paz! Sem perder a tranquilidade ou a serenidade nas piores circunstâncias, de maneira que não era possível aproximar-se dela sem ter o sentimento dessa paz, feita de estabilidade, suavidade e doçura.
“Ó vós todos que passais pelo caminho…”
Lembro-me também que fiquei verdadeiramente emocionado quando recebi um outro santinho, onde se via Nossa Senhora das Dores, sofredora, com as sete espadas cravadas no Coração e, em baixo, escritas as seguintes palavras, que também li pela primeira vez nessa ocasião: “Ó vós todos que passais pelo caminho: parai e vede se há uma dor igual à minha dor!”9
Era a frase que se costumava aplicar a Nosso Senhor no caminho da Cruz, ou a Nossa Senhora seguindo-O, enquanto Mãe Dolorosa. Achei uma beleza!
Aquelas palavras me deram a ideia de uma pessoa sofredora, sentada à beira da estrada, coberta de uma dor tão visível e lancinante que se refletiria claramente na sua face, e dizendo aos que passam: “Ó vós todos que viveis! Parai no vosso caminho, olhai para mim e vede, não se eu tenho o melhor automóvel de São Paulo; não se vou passar o inverno nos melhores hotéis do Rio de Janeiro, ou se viajo para a Europa… Não! Parai e vede se há uma dor semelhante à minha dor! Conheceis alguém que sofra tanto quanto eu?”
Tive também outra ideia, pressuposto da primeira: “Quem passa por qualquer via, até mesmo pelos caminhos da vida, não pode andar como um bobo, mas com olhar observador e contemplativo. E, quando presencia algum fato relevante, digno de especial interesse, tem a obrigação de prestar atenção, e não apenas do ponto de vista da comicidade e da brincadeira, pois essa é a quinta categoria da utilidade! Por exemplo, ao encontrar uma dor extraordinária, como não há semelhante, é preciso analisá-la, ainda que não se trate do sofrimento de Nosso Senhor ou de Nossa Senhora. Além do mais, não basta ver, mas é preciso refletir sobre o que se viu. Por isso, ‘Parai e vede!’”
Grande consolação
Junto ao quadro de Nossa Senhora do Bom Conselho, a minha atenção era solicitada de dois modos: pela Mãe de Deus com o Menino Jesus, considerados à luz da doutrina católica – como a mente de um menino a podia alcançar – e também pela seguinte ideia: “É Maria Santíssima, Aquela que me deu a graça no Coração de Jesus, que está aqui sob outra invocação e outra roupagem, mas é Ela! Já vi como é misericordiosa comigo e como me salva nas situações difíceis. Portanto, tenho mais uma oportunidade de me unir bem a Ela! Vou rezar para obter essa união, e pedirei a Nossa Senhora um bom conselho. Sei que não vou ter visão nem revelação, mas vou pedir que Ela ajude o meu intelecto, para entender o que devo fazer!”
Assim, nos anos em que estive no Colégio São Luís, rezei a Nossa Senhora do Bom Conselho para obter tudo aquilo de que eu precisava nas minhas lutas, e Ela me ajudou muito. Inclusive, numerosas vezes rezei com aflição diante d’Ela, nas horas de provação, pedindo a graça da minha perseverança. Em alguns dias, a imagem me tocava de modo especial e eu tinha, no fundo de minha alma, a sensação de que Ela me dizia: “Meu filho, Eu lhe quero bem e o protejo. Tenha confiança em Mim e vá andando, pois você encontrará seu caminho”.
Eu saía da capela com a impressão de que tinha sido atendido e algo iria acontecer. Não era uma graça extraordinária, mas me dava muito alento em minha vida espiritual de menino.
Uma ou outra vez, pareceu-me que algo se movimentava ligeiramente no quadro – não propriamente na imagem –, mas eu julgava tratar-se de alguma ilusão da minha vista, e nem me passava pela mente a ideia de tratar-se de um fenômeno sobrenatural.
Não se pode imaginar o bem que me fazia entrar na capela do Colégio São Luís e a grande consolação que me produzia esse quadro, assim como a presença do Santíssimo Sacramento.
Um pedido a Nossa Senhora
Em certa ocasião, no período em que eu mais temia por minha perseverança, obtive uma graça muito discreta. Estávamos no mês de Maria, e senti-me movido, em meu interior, a fitar a imagem de Nossa Senhora do Bom Conselho durante as cerimônias, de tal maneira que não me engajava de cheio nas mesmas, pois meu olhar era constantemente atraído para o quadro.
Certo dia, pareceu-me que Ela afagava o Menino Jesus de modo mais vivo e mais materno, e chamava-me a atenção a familiaridade natural e afetuosa entre os dois. Nossa Senhora mostrava muita intimidade e ternura, enquanto Ele, tão pequenino e tão débil, me dava a impressão de deixar-Se embeber por aquele afeto, deliciado com a presença d’Ela.
Não sem fundamento, eu vi alguma analogia entre essa familiaridade com a qual Nossa Senhora protegia o Menino Jesus, e o relacionamento d’Ela com todas as almas, portanto também com a minha. Vinha-me a ideia de que eu devia ter com Ela uma relação semelhante – guardadas as medidas –, cheio de confiança e sem me desesperar, pois Ela atenderia os meus pedidos. Senti-me muito incitado a me unir e consagrar-me a Nossa Senhora para a vida inteira, e pensei: “Vou pedir a Ela que me faça entrar na Congregação Mariana!”10
Então, junto com alguns outros alunos, pedi para entrar na Congregação do colégio. De fato, o meu nome foi proposto para tal.
E esperei durante uns vinte dias.
Congregado Mariano
Afinal, numa ocasião em que estávamos estudando as lições na sala de aula, sem a presença de nenhum professor, o bedel abriu a porta e disse:
– Plinio Corrêa de Oliveira, o Pe. Roumanie está chamando o senhor!
Era o diretor da Congregação Mariana do colégio11. Quando entrei na sala dele, fez-me aproximar, dizendo:
– Plinio, venha cá. Vou dar-lhe a resposta do Conselho da Congregação Mariana, a respeito de seu ingresso.
Convidou-me a sentar e perguntou-me com amabilidade, mas com seriedade:
– Você o que pensa? É digno de entrar ou não? Vou aceitá-lo como congregado mariano ou não?
A pergunta era feita em termos que significavam o seguinte: “Se você fosse eu, aceitaria o Plinio na Congregação Mariana?”
Eu, que nunca fui emotivo, estava emocionado. Desejava muito ser aceito, mas não me achava digno e desconfiava que o Padre não quisesse receber-me. Então, pensei com meus botões: “Se eu disser a ele que não mereço entrar, fecharei as portas que me conduzem a Nossa Senhora. Isso não quero! Mas, como vou me arranjar?”
Fiz uma fisionomia amável, mas não respondi. Lembro-me que ele tomou minhas mãos entre as dele e disse:
– Esteja contente! Você foi aprovado, pois a opinião unânime é de que você é um muito bom menino. Pode entrar!
Pensei: “Então, Nossa Senhora me fez este contrabando?! Eu não sou bom, mas acabo passando como se o fosse!”
Assim consegui entrar para a Congregação Mariana12. Entendi que, sendo congregado, Nossa Senhora me protegeria mais, pois agora tinha um vínculo pessoal com Ela, nessa instituição tão santa. E relacionei essa graça muito especial com a ajuda que tinha recebido d’Ela na Igreja do Coração de Jesus.
Mesmo depois de sair do colégio, nunca fui ao São Luís sem me ajoelhar diante da imagem de Nossa Senhora e rezar muito a Ela, pois a lembrança dessa graça permaneceu indelevelmente gravada em meu espírito. Eu não sabia que, mais tarde, a invocação de Nossa Senhora do Bom Conselho teria grande papel na minha vida.
Rezando de longe
Poder-se-ia imaginar que eu, enquanto aluno, voltava à capela do colégio com muita frequência. Entretanto, não era assim, pois os meninos tinham raras oportunidades para isso. Alguns poucos faziam-no aos sábados ou nas vigílias dos dias santos de guarda, para se confessarem, e aos domingos para a Missa, o que não era o meu caso, uma vez que ia sempre ao Coração de Jesus.
Aliás, minha atenção estava muito mais fixada na imagem de Nossa Senhora Auxiliadora, nessa igreja, do que no quadro de Mater Boni Consilii. De maneira que eu ia à capela quando havia atos comuns, como as cerimônias do mês de Maria e outras ocasiões semelhantes.
Por outro lado, nesse tempo, eu ainda não era frequentador tão assíduo de capelas e igrejas, como me tornei depois. Então, de acordo com o meu modo de ser, muito plácido, eu fazia pedidos a Nossa Senhora de longe, e já estávamos combinados…
Portanto, rezava a meu modo.
Entretanto, eu não fazia parte dos coroinhas. Nunca utilizei a batinazinha vermelha nem ajudei a encher o turíbulo com incenso numa bênção do Santíssimo, assim como nunca cantei no coro dos meninos, mas destacava-me como aluno muito religioso, com sólidas razões.
Devoção ao Rosário
Com os Padres do São Luís aprendi a devoção ao Rosário.
Via mamãe rezando-o, e ela me havia estimulado a fazê-lo, depois da minha Primeira Comunhão, mas julgava tratar-se de um costume próprio de uma pessoa muito mais velha do que eu, tão piedosa e eminente em virtude. Para mim, já parecia penoso rezar um Padre-Nosso e três Ave-Marias, e, quando completava uma dezena, julgava ter praticado uma ação ínclita!
Não sabia claramente haver uma distinção entre terço e rosário, nem entendia bem os mistérios, tendo a impressão de que bastava apenas rezar certo número de Padre-Nossos e Ave-Marias.
Entretanto, embora não tivesse o hábito de rezá-lo, eu respeitava e apreciava muito o Rosário, cuja forma material tinha, para mim, algo de belo e de indizível que me parecia insubstituível. Entendia que devia trazê-lo sempre comigo, inclusive ao dormir, no bolso do pijama. Aliás, arrebentava todos os meus rosários, sem querer, e depois comprava outros.
Um rosário moderno?
Lembro-me que certo dia, estando no colégio, vi aparecer um senhor que começou a fazer distribuição de novos rosários de tipo moderno. Pedi para vê-los e ele me mostrou. Era um dispositivo que não compreendi bem, com dois “andares” de contas, um em cima, para dez Ave-Marias, e outro em baixo, para marcar os mistérios. Era um objetozinho que se fazia ver o menos possível e tomava o mínimo espaço no bolso. Então ele disse:
– Olhe aqui! É muito prático.
Respondi:
– É, sim, senhor.
– Você não quer?
– Obrigado…
Aquele rosário tinha tudo a seu favor: era barato, portátil e fácil de esconder – o que trazia enorme vantagem para os indivíduos com respeito humano – mas não obteve sucesso…
Para mim, o rosário de sempre era uma verdadeira maravilha!
Rainha da pureza e da misericórdia
Por ocasião do episódio havido junto a Nossa Senhora Auxiliadora, assim como das graças recebidas da Mãe do Bom Conselho, eu tive uma noção dupla de realeza e de misericórdia.
Eu via Nossa Senhora como Rainha de todo esse setor do universo chamado pureza; de tudo aquilo que é puro a qualquer título, sobretudo quando se trata da alma humana. Ou seja, Ela possuía essa virtude num grau tão supereminente, que todas as purezas existentes não eram senão participações e corolários da pureza d’Ela.
E fazia parte dessa realeza aquilo que torna a castidade oposta – não contraditória – à misericórdia. A pureza tem algo em si, pelo qual é profundamente exclusiva. A pessoa pura é inquebrantável e altaneira em relação à impureza, e constitui em torno de si uma espécie de halo de distância, chamado pudor e amor à solidão.
Essa era uma ideia, pela qual a realeza e a pureza se harmonizavam com toda a intransigência inerente aos dois conceitos.
Também, eu via em Nossa Senhora uma enorme misericórdia, inclusive – e principalmente – para com o pecador; o filho d’Ela caído, mas que continua sendo filho e que Ela, com bondade sem nome, quer continuamente perdoar, reerguer e tirar do abismo.
Essa conjunção de duas expressões me falou à alma de modo inenarrável e, assim, a devoção a Nossa Senhora me marcou com dois princípios: de um lado, Ela era um ideal a ser imitado absolutamente, custasse o que custasse. De outro lado, Ela era um auxílio no qual se deveria confiar inteiramente, fosse como fosse. E eu devia ser incondicional na vontade de imitá-la e no propósito de esperar o perdão.
A corte da Rainha-Mãe
De tal maneira essas graças me fizeram ver o papel da bondade de Nossa Senhora e me deram o desejo de me unir a Ela até o fim de minha vida, que eu elaborei uma ideia infantil e às vezes dizia comigo: “No Céu, Nossa Senhora é certamente como uma Rainha-Mãe no reino de seu Filho. Assim, deve estar cercada de honra, dignidade e respeito, mas numa situação colateral. Imagino que haja uma corte enorme em torno de Jesus Cristo, e uma corte secundária e menos brilhante em torno de Nossa Senhora, constituída por almas de segunda categoria. Entretanto, quando eu chegar ao Céu – o que espero – esse será o meu lugar. Dir-se-ia que desejaria um bem menor, pois o mais razoável seria pedir um lugar bem próximo de Nosso Senhor Jesus Cristo, mas… não sei explicar o que há comigo: quero ser cortesão da Rainha-Mãe e estar a serviço d’Ela!”
Nessa expectativa, fui desenvolvendo meu espírito no desejo de ir para a corte da Rainha-Mãe. Mas a figura de Nossa Senhora foi crescendo em mim de tal maneira que, sem me dar conta, a metáfora envelheceu e compreendi que Ela era muito mais do que uma simples Rainha-Mãe. A comparação era primitiva e continha apenas certa analogia com a realidade, mas não uma semelhança efetiva.
Os sinos de Santo Antônio e o triunfo de Nossa Senhora
Em certa ocasião, indo de bonde da minha casa para a cidade – provavelmente em direção ao Colégio São Luís –, eu refletia a respeito do que ainda não chamava “Revolução e Contra-Revolução”, mas que de fato era.
A vida se me apresentava com muita clareza: diante de mim havia um adversário que sintetizava e simbolizava tudo aquilo que eu execrava, que desejava derrubar tudo quanto eu amava e contra o qual, portanto, era preciso lutar de corpo inteiro, ao longo de toda a existência. E pensava: “Esse adversário é tão ruim que forçosamente tem de cair! Há de existir um movimento e uma ordem de coisas que representarão o contrário dele!”
Fazendo essas longas elucubrações passei pela Praça do Patriarca – ponto central de São Paulo – quando, por uma coincidência, os sinos da Igreja de Santo Antônio estavam começando a repicar. Não sei que solenidade haveria ou que horas seriam.
Tratava-se de um conjunto muito elementar e modesto: um menino de doze anos, a velha Praça do Patriarca da pequenina São Paulo daquele tempo, em cujo centro havia alguns lampadários desenxabidos, para iluminar a banalidade do ambiente; a igrejinha tão pobrezinha e tão camponesinha, mas tão engraçadinha, a qual poderia ser chamada de capela… Entretanto, aquele repicar de sino pareceu-me ser como a voz de minha consciência, tocando para mim mesmo e aprovando o que eu cogitava, dizendo-me: “Essa é a glória do que empreenderás. Esses sinos tocam o esplendor da vitória, para a qual trabalharás!”
Lembro-me perfeitamente: o bonde foi pelo velho Viaduto do Chá adentro, o qual era mais rendado, mais ornamentado, mais raquítico, menos insolente e grosseiro do que o atual. Ele trepidava um pouco quando passavam muitos bondes, e fazia-se certo ruído dramático de ferragens, mas nem o barulho do bonde nem o do viaduto apagaram em mim a impressão majestosa e grandiosa daqueles sinos que tocavam: voz da Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana.
Com a minha tendência de reportar tudo aos modelos
ideais, eu mitificava o toque dos sinos, achando-o magnífico e tendo, no fundo, a ideia do sino arquetípico. Entretanto, eu não estava empolgado ou arrepiado, mas totalmente calmo.
E uma outra ideia nascia em meu espírito, de modo muito discreto: imaginando uma solenidade que estivesse à altura daqueles sinos, pensei, pela primeira vez, em como seria o momento em que Nossa Senhora fosse proclamada Rainha do mundo inteiro.
Eu ainda não utilizava o termo, mas é evidente que já esperava o Reino de Maria13.
Talvez porque diante de mim se prolongava a Rua Barão de Itapetininga, veio-me também a ideia de um desfile ou procissão, numa via em linha reta. O Santíssimo Sacramento era levado em enorme glória, sob um pálio e exposto num ostensório magnífico, na adoração que Ele merece, e a imagem de Nossa Senhora estava nos mais altos esplendores da hiperdulia. De modo vago, como num fundo de quadro não inteiramente definido, eu também entrevia honras militares, com música marcial e cânticos sacros.
Na minha imaginação, estava presente toda a população do local onde a cena se passava, e gentes vindas de vários lados seguiam a procissão. Era uma humanidade com a mentalidade completamente transformada, tomada de entusiasmo, dando aclamações em transportes de felicidade e cheia de uma alegria indizível que se espargia pelos campos e cidades, enquanto toda a natureza parecia reconstituída e elevada por aquele triunfo.
Todos afluíam aos poucos em torno de um ponto central, onde havia uma espécie de quadrilátero vazio no qual se via a grama. E algo no céu se movia, dando a ideia de que Nossa Senhora iria aparecer.
Eu disse de mim para comigo: “O que estou pensando é tão bom, tão justo e tão nobre, que isso acontecerá! Um dia ouvirei sinos como esses repicando ao longo de um extenso trajeto, e verei um imenso desfilar de pessoas aclamando Nossa Senhora!”
Entretanto, nesse grande desfile não havia apenas o sabor doce da festa, mas o magnífico sabor da justiça, pela vitória sobre a Revolução. E todo o reluzimento da alegria parecia dizer: “Venceu uma doutrina, derrotando outra. A Serpente está esmagada por todos os séculos dos séculos. Amém!”
A sublimidade de um grande chamado
De modo confuso me vinha também a ideia – em que procurei não me deter – de minha presença na cerimônia, entre os filhos de Nossa Senhora e aclamando a vitória d’Ela, à maneira de um porta-estandarte que levasse o símbolo daquilo que venceu.
Refletindo posteriormente, eu julgava que, em certo momento se irradiaria de minha personalidade uma determinada forma de brilho – não físico, mas global –, o qual não proviria apenas do talento, mas seria, sobretudo, fruto da Fé Católica, da prática dos Mandamentos e, em especial, da pureza. Esse brilho seria capaz de atrair centenas e milhares de pessoas para altíssimos fins, cuja elevação extraordinária eu conseguisse apontar. E, sem pensar muito em episódios e pormenores – pois não tinha imaginação suficiente para isso – confusamente entendia que a causa do bem seria levada por mim a um auge de triunfo, pois eu teria arrastado a favor dela as pessoas de espírito elevado, fazendo-as conhecer e sentir a grandeza desse ideal, e revelando-lhes uma espécie de novo mundo.
Nesse sentido, eu também me imaginava triunfante.
Entretanto, é preciso dizer que nessa consideração não entrava amor-próprio nem vaidade. Eu percebia a sublimidade desse chamado, mas me julgava, instintivamente, desproporcionado em relação a ele. Parecia-me que alguns rapazes de minha época eram muito mais inteligentes, dotados e finos do que eu, com melhores condições para conduzir esse estandarte, mas sentia que ninguém tinha coragem de fazê-lo. Portanto, já que outros não haviam aceitado esse papel, eu tinha o dever de desempenhá-lo, apenas por amor desinteressado a essa grande causa: antes de tudo, o triunfo da Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana!
Assim, eu não me via entrando numa cidade e aclamado por uma multidão, mas apenas assistindo à grande manifestação de uma população, reunida no Vale do Anhangabaú, por exemplo, para celebrar e instaurar o Reino de Maria. Eu estaria esperando essa reunião, placidamente, num prédio que existia junto ao Viaduto do Chá – em estilo um tanto afrancesado, digno e bonito –, chamado Rotisserie Sportsman, onde havia uns arcos enormes, dando para o vale.
Pensava também na chegada de um Papa arquissanto a São Paulo, para ser recebido com as manifestações mais apoteóticas.
Essa coligação de inteligências e de boas vontades desejada por mim seria a dos partidários da pureza, daqueles que a praticassem e a admirassem, travando a luta dos puros contra os impuros. E a festa triunfal que eu imaginava era a de uma humanidade recuperada, afinal, para a pureza, entusiástica dessa virtude e toda integrada na Religião Católica, palácio da pureza, trono da castidade, sede própria de todas as virtudes que eu amava.
Então pensava: “Lutarei a vida inteira, deitando nessa luta todos os haustos de minha energia, todos os recursos de meu ser e todas as forças que a misericórdia de Nossa Senhora me conceder!”
E parecia-me que minha vida não se extinguiria sem que Nossa Senhora me desse a graça de vê-La vitoriosa. Essa era a grande esperança que me punha em movimento e me ajudava em minha luta, compreendendo e admirando cada vez mais a Ela e tendo sempre maior proximidade com Ela.
Depois desses acontecimentos, eu não cogitaria sobre o meu triunfo, mas desejaria viver a sós, lendo e pensando, em algum local próximo ao mar.
Entretanto, depois eu nunca quis aprofundar essa ideia da instauração do Reino de Maria, pois não tardei em perceber que as galas e as pompas da vitória deveriam ser tais que excediam a qualquer descrição hipotética e não haveria imaginação que pudesse condignamente apresentá-las.
1 A presente anotação é do ano de 1982.
2 Pormenor confirmado no livro comemorativo Colégio São Luiz, 75º aniversário, editado em 1942: “1918. 4 de agosto. É inaugurada, com Missa do Sr. Arcebispo, a capela, que ocupa o espaço de quatro antigas salas” (p. 187).
3 O Autor se refere ao afresco de Mater Boni Consilii – Mãe do Bom Conselho – cuja permanência na pequena cidade de Genazzano remonta ao dia 25 de abril de 1467, data em que essa imagem, miraculosamente vinda da Albânia, pousou nos muros de uma capela em construção, hoje Santuário de Nossa Senhora do Bom Conselho, dos Padres agostinianos. Tanto o fato mencionado quanto as abundantes curas e favores obtidos nesse local são atestados por inúmeros relatos e crônicas de grande credibilidade histórica.
4 Em 1760, quando a Companhia de Jesus foi fechada em Portugal, dois noviços jesuítas brasileiros, os irmãos Miguel e José Campos Lara, partiram desse país para Roma, onde receberam a ordenação sacerdotal. Pouco tempo depois falecia Miguel e, em 1773, o Papa Clemente XIV extinguia a Companhia de Jesus.
No ano de 1785, o Pe. José passeava por uma praia da Itália quando se deparou com um jovem, o qual lhe ofereceu um quadro representando a Mãe do Bom Conselho, dizendo-lhe que o levasse para o Brasil, pois, no lugar onde ela fosse venerada, erguer-se-ia um dia um grande colégio jesuíta. Imediatamente, o misterioso personagem desapareceu ante os olhos do Pe. Campos Lara, o qual se decidiu a partir para o Brasil e assim o fez, levando o quadro. Chegando à sua cidade natal, Itu, no Estado de São Paulo, erigiu uma capela para a veneração da imagem, na chácara de sua família.
Em 1814, o Papa Pio VII restaurou a Companhia de Jesus e, em 1830, cerrou para sempre os olhos o Pe. José Campos Lara, cuja capela foi depois doada aos jesuítas, que então reiniciavam as suas atividades no Brasil. Nesse local, em 1868, os filhos de Santo Inácio fizeram erguer um grande colégio, em cuja igreja foi entronizado o quadro de Mater Boni Consilii, oitenta e sete anos após sua entrega ao jesuíta brasileiro. No ano de 1918, quando esse colégio da Companhia foi transferido para a cidade de São Paulo, com ele foi também o quadro de Nossa Senhora do Bom Conselho. A este se refere a narração de Plinio. (Cf. Scognamiglio Clá Dias, João.Mater Boni Consilii. São Paulo: Edições Brasil de Amanhã, 1992, p. 156 ss.)
5 De fato, o quadro poderia dar essa impressão, visto de longe, mas trata-se de uma tela pintada.
6 “Vós lhes destes o Pão do Céu, aleluia”. Versículo cantado (durante o Tempo da Páscoa) após o hino Pange lingua, nas bênçãos do Santíssimo Sacramento.
7 Em latim: “Jesus, alegria dos Anjos”.
8 Is 38, 17.
9 Lm 1, 12.
10 No dia 7 de abril de 1872 foi inaugurada no Colégio São Luís, ainda na cidade de Itu, a Congregação Mariana sob a invocação de Nossa Senhora do Bom Conselho, continuando a existir quando o estabelecimento foi transferido para São Paulo.
11 O Pe. Luís Roumanie, SJ, foi diretor da Congregação Mariana Nossa Senhora do Bom Conselho entre os anos de 1920 e 1922.
12 No dia 21 de junho de 1921.
13 Grande admirador de São Luís Maria Grignion de Montfort, Dr. Plinio citava com frequência os escritos desse santo, notadamente o famoso Tratado da verdadeira devoção à Santíssima Virgem, no qual é prevista uma era histórica de grande fervor religioso e devoção marial, o Reino de Maria.
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