Conhecendo a grandeza e as vastidões do Brasil
Na vida de uma criança, há um determinado momento em que ela começa a conhecer melhor os seus próximos e a analisar como é o pai, como é a mãe, como são os irmãos, os tios, o avô, a avó, como são os primos… E, forçosamente, estabelecem-se as afinidades e definem-se as heterogeneidades. Ela vai modelando um conceito e formando uma idéia da família em que nasceu e, também, de quem é ela mesma. Essa criança passa a olhar-se no espelho, sem vaidade, e pensa: “Que fisionomia eu tenho? Que efeito causo nos outros e em mim mesmo? Como é o meu nariz? Como é a minha boca? E os meus olhos?”. É mais ou menos como uma pessoa que vai dar início a um jogo e alguém lhe ensina quais são as cartas do seu baralho, para saber jogar…
Quando recebe um elogio, a criança presta atenção e reflete: “Então, sou capaz de tal coisa?”. Ou, pelo contrário, ouve às vezes a deploração do pai ou da mãe:
– Coitadinho, para tal coisa ele não tem jeito.
E, assim, o menino vai fazendo o balanço da vida… Lembro-me de ter feito isso na minha infância. Depois, em certa ocasião, comecei a analisar também o meu próprio país, pensando: “Brasil… Dizem que é colossal. Aqui está o mapa!”.
Nunca fui afeito a memorizar informações sobre quilômetros quadrados, mas, observando os espaços coloridos do resto da América do Sul, eu me dizia: “O Brasil tem um tamanhão mesmo!”. Olhava um pouco o mapa da Europa e concluía: “Como a França, tão gloriosa, é pequena! Como a Itália, a Espanha, a Alemanha, a Áustria e a Inglaterra são pequenas em comparação com o nosso Brasil! Nosso querido Portugal, do qual descendemos: que mãe pequena para um ‘filhão’ enorme!”.
Analisando o Brasil do litoral e do interior
E, às vezes, estando em Santos, ajoelhado na praia, brincando com a areia, deixava-me levar por uma série de impressões subconscientes, as quais só explicitaria inteiramente mais tarde. Tratava-se sobretudo de um contraste entre a “fisionomia” do Brasil marítimo e a do Brasil do interior, que eu já conhecia em parte. O primeiro era claro, luminoso, diáfano, branco, cristalino e refulgente, com todas as luzes do mar. Nele, as ondas investem continuamente contra os grandes rochedos, mas parecem sorrir antes de espatifar-se, enquanto eles, ao receber o golpe, parecem condescendentes com a investida… A onda se esvai, mas dir-se-ia que a muralha de pedra, apesar de haver resistido, tem saudades da maré montante e permanece esperando outros impactos. É uma peleja, mas com quanta harmonia!
Essas águas que se movem continuamente, mas possuem uma espécie de doçura, dentro da natural e digna ferocidade do mar; essa força dentro da suavidade do ambiente; essa estrada fácil chamada praia, diretamente feita por Deus para que os brasileiros passem; essa vegetação discreta como fundo de quadro, que timbra em não ser muito alta e em não chamar a atenção, sendo apenas uma moldura verde em torno do panorama, deixando ao mar as honras da sala… Como tudo isso é diferente do interior do Brasil!
Ele tem vastidões enormes e planícies imensas, a perder de vista! Com uma vegetação bastante grande para atestar a fecundidade da terra, mas não tanto, que possa tolher a expansão da vista. Em nenhum lugar o verde está ausente; pelo contrário, tudo é verde! E isso significa um futuro indefinido e sem obstáculos… De repente, encrespam-se montanhas e crescem serranias. Elas se tornam majestosas e imponentes, mas sempre afetuosas e amáveis, nunca ameaçadoras. Assim é, em geral, a serra brasileira.
Percebia, então, essas duas “fisionomias” e, harmonizando a força da serrania e a pujança da natureza com a suavidade das praias, vinha-me ao espírito uma idéia de síntese que, para mim, era o Brasil.
Então, em certo momento, de costas para o mar, eu olhava e pensava: “Aí está o Brasil… Que Brasilão grande! E pensar que isto se espicha até o Pará e, depois, até o Rio Grande do Sul… Que coisa extraordinária! Mas… isto é como um pão, do qual estou vendo apenas a casca, aqui na praia. Existe também o miolo do pão…”.
Um dia, conheci bem o “miolo” do Brasil.
Pela estrada, rumo a Araxá
Aproximadamente aos nove anos, fui com meus pais e minha irmã a uma estação termal que começava a se tornar conhecida no Brasil, e de cujas águas esperava-se muito benefício para o estado de saúde de minha mãe: Araxá, em Minas Gerais. Na época, tal cidade encontrava-se no fundo do sertão e essa foi a minha primeira viagem mais extensa dentro do Brasil, o que marcou muito a minha infância. Para mamãe constituiu um curativo e para mim um passeio; à medida em que tomávamos distância de São Paulo, eu me sentia caminhando rumo à periferia da civilização. Aquela estrada era freqüentada apenas por famílias paulistas muito abastadas ou por pessoas do campo.
Hospedamo-nos em vários hotéis, pois era necessário pernoitar algumas vezes antes de chegar a Araxá. Em Ribeirão Preto, pousamos no melhor hotel da cidade; mas, para mim, aquilo era um cárcere! Sem saber por que, eu receava que acontecesse qualquer coisa pela qual tivesse de permanecer a vida inteira morando ali, o que me causava uma angústia medonha! Ribeirão Preto depois progrediu enormemente e hoje é quase uma capital, mas naquele tempo não era…
Mamãe, estando adoentada e muito cansada, deitou-se logo e pediu a papai que levasse as crianças para fazerem um pouco de exercício, dando um giro pela praça pública. Ele foi, segurando um em cada mão para evitar que nos perdêssemos; mas eu nunca fui amigo de andar e sentia muito calor…
Recordo-me de uma quantidade exagerada de árvores grossas e tortas, cujos troncos, muito próximos uns dos outros, perdiam-se nas brumas da noite, num jardim escassamente iluminado. Eu olhava para tudo e, depois, analisava as fisionomias de meu pai e de minha irmã, para ver se eles também estranhavam aquilo, mas ambos tinham o ar mais natural do mundo! Ele, com seu otimismo característico e ela, talvez, prestando atenção nos vestidos das senhoras…
Em certo momento paramos junto à vitrine muito iluminada de uma papelaria. Pode-se imaginar a falta de entretenimento! Ali havia uns vidros de goma arábica e, por coincidência, a luz incidia neles fortemente. A cor daquele produto pareceu-me bonita e disse:
– Papai, eu estava querendo um presente do senhor.
– O que é?
– Que o senhor me comprasse esse vidro antes de ir embora.
– Esse vidro? Você quer comprar? Para quê?
Fiquei envergonhado, pois percebi que aquilo devia ter uma utilidade que eu ignorava, mas não queria dizer isso a ele… Então respondi:
– É muito bonito!
– Isso nunca, pois é uma extravagância e não tem bom senso. O que você vai fazer com esse vidro?
– Pô-lo contra a luz, em casa, para olhar a cor.
– Não tem propósito! Se você me pedisse um brinquedo eu comprava, mas isso não! Não há um brinquedo aqui, que você queira?
– Não. Eu quero ter isso.
– Isso eu não vou comprar para você.
Então pensei: “Bom, não irei travar uma batalha por causa de um vidro, mas é uma pena, pois eu gostaria de ser dono dessa cor dourada”.
Em Minas Gerais
Estrada para Araxá
Boa parte de nossa viagem foi feita de automóvel, pois não havia estrada de ferro contínua de São Paulo a Araxá. Em certo momento, chegamos à divisa de Minas Gerais. Vi umas montanhas altas do outro lado e me perguntei: “O que é isso?”. Havia ali um rio1 largo e colossal, o qual tínhamos de atravessar numa balsa que me agradou muito, e que parecia “sorrir” para mim! O panorama constituía um cenário diferente do que eu conhecia, habitado por outra gente, também brasileira, mas diversa… Aquilo era um outro mundo! E eu, sem ter nenhuma idéia de Federação, sentia no ar ser aquilo inteiramente o Brasil, apesar de não ser São Paulo. Perguntei então a papai:
– O que tem do lado de lá?
Ele, com sua bonomia simplificadora, respondeu:
– Do lado de lá é Minas.
– Mas, papai, o que é “Minas”?
– Você vai saber isso mais tarde.
– Mas, então, São Paulo acaba aqui?
– Sim, mas tudo é Brasil.
Daí a pouco, atravessamos o rio na balsa, tomamos um automóvel e nele seguimos para Araxá. Percorremos grandes distâncias e chamava-me a atenção a analogia e a contradição entre os panoramas que eu via e certos estados de espírito dos brasileiros.
Eram extensões enormes, planas, com uma vegetação rasteira revelando certa fertilidade da terra. De vez em quando, ouvia-se o canto da cigarra, o qual, aliás, não tem nada de canto, mas é um apito insuportável! Eu tinha a impressão de que essas vastidões se estendiam muito mais longe do que a vista alcançava e parecia-me que o apito da cigarra ia além, além, além, ao longo de planícies que se sucediam umas às outras e que lá, bem no fim, quando a terra parecia encostar no céu, morria aquele ruído…
Aquilo se me afigurava como um país destinado a uma tranqüilidade sem fim, ao mesmo tempo muito agradável, mas também um tanto monótona.
Em minha mentalidade infantil, imaginava deparar-me com um jacaré querendo comer uma cobra enorme, resultando daí um frege com a expectativa de um dramático desenlace. Não havia nada disso! Tudo tranqüilo, tranqüilo, tranqüilo… monótono, monótono, monótono… preguiçoso, preguiçoso… Delicioso? Sim… com as delícias do vazio e do interminável; mas, a seu modo, era de fato em algo delicioso.
O Brasil, um grande livro em branco
Ao longo da estrada poeirenta, viam-se na planície alguns montículos. Perguntei, então, a papai:
– Que montanhazinhas são essas?
– Ah! São cupinzeiros.
– Mas, como?! Estão cheias de insetos?
– Sim. Eles se reproduzem debaixo do chão e fazem galerias, às vezes até de um quilômetro, e isso causa certa pobreza no solo.
Aqueles montículos pareciam-me tumores que a terra não deveria produzir! Eu pensei: “É preciso raspar esses cupinzeiros. Como seria nobre e bonito apresentar uma terra restituída à sua fertilidade, porque o homem penetrou nas entranhas do solo e acabou com esses inimigos ridículos e pequenos, que são os cupins. As nações civilizadas, cujas fotografias são usadas como bonitas estampas nos livros de leitura para os meninos, não têm essas bolotas feias!”.
De repente, vi passar umas aves grandes, semelhantes a cegonhas, mas feias, cor de chumbo, com pernas enormes, bico curto e patas espalmadas. Elas corriam malucamente pelo meio daqueles cupinzeiros, à maneira de crianças fazendo algazarra. Percorriam as vastidões de um lado para outro, como quem não tem o que fazer e nem mesmo a preocupação de procurar alimento. Parecia-me que, em qualquer lugar onde se detivessem, elas encontrariam comida, mas estavam procurando fazer folia… Olhei para mamãe, para ver o que ela achava daquilo: nada! Ela estava pensando em alguma outra coisa. Olhei para papai: estava otimista! Perguntei, então:
– Papai, o que é aquilo lá?
– Seriema.
Depois, refletia: “Por que essas aves têm tanto medo? Por que são tão feias, quando as cegonhas da Europa são tão bonitas? Por que na Europa eu nunca vi essas feridas no chão que são os cupinzeiros? Qual é o papel de tudo isso num panorama?”.
Em certo momento, avistei duas ou três seriemas e, por entre as pernas delas, vi uma parte das montanhas e um trecho da paisagem. Percebi a beleza que havia em tudo aquilo, e concluí: “Agora entendo para o que servem as seriemas: elas vão correndo por essas vastidões e me ajudam a compreender como é enorme o Brasil. As distâncias não são nada para elas, que correm com uma celeridade de deixar-me pasmo. Entretanto, elas estão apenas no começo de uma corrida pelo Brasil”.
Aquela imensidão me dava também uma idéia de bênção. De toda aquela natureza se desprendia uma certa atmosfera de possibilidades enormes de amar a Deus e de possibilidades de pecado pavorosas! Parecia-me sentir no ar uma promessa, se o Brasil procedesse bem, e uma ameaça medonha se, pelo contrário, agisse mal. E, apesar da censura severíssima ao ambiente – naturalmente injusta –, foi-se formando em meu espírito a idéia de que o Brasil era como um grande livro em branco, onde os homens deveriam escrever uma história de heroísmo e de glória, numa atmosfera de serenidade e doçura, que um dia embelezaria as seriemas e acabaria com os cupins. Era a idéia de um grande futuro…
Olhares e ameaças na mata
Às vezes passávamos pela mata virgem, onde as estradas, em geral, eram boas, sem causar solavancos no automóvel e sem muita poeira. Do chão emanava uma certa umidade agradável, lembrando a impressão que se recebe, nos dias de muito calor, ao entrar em algumas igrejas e sentir um frescor especial e abençoado, que fala das vastidões do Céu. Eu começava a achar aquilo bonito e então a viagem se me tornava muito aprazível.
Daí a pouco, entretanto, chocava-me ver o mato bruto e agressivo, de um verde escuro e mal-encarado. Era um emaranhado de árvores e cipós embrulhados, disputando o espaço uns com os outros, o que me causava uma impressão dolorosa de luta pela vida. Cada vegetal empurrava o outro de lado e tentava crescer, chegando mais para o alto. E aqueles galhos pareciam-me garras estertorantes de avidez por estrangular o transeunte…
Havia também alguns bichos esquisitos. De vez em quando, na semi-obscuridade das seis da tarde, eu via uns olhos semelhantes a dois botões com cores lindíssimas! Se houvesse botões assim, seriam os mais bonitos da terra… Mas eram, ao mesmo, tempo malfazejos: olhavam e desapareciam… Eu tinha a impressão de que aquele animal ia alertar cem outros que estavam escondidos e olhavam também, para atacar quem passasse.
Eu observava, então, meus pais: ambos permaneciam comodamente sentados no fundo do automóvel, enquanto minha irmã e eu viajávamos em dois banquinhos na frente, agarrando-nos como podíamos… Não querendo preocupar mamãe, que eu percebia estar numa grande calma, voltava-me então para papai, a fim de ver se ele notava essa espécie de “mobilização geral” dos bichos do mato, anunciada por aqueles olhares terríveis. Mas ele estava num magnífico sossego pernambucano, olhando tudo com ar indolente e dorminhoco, como quem sabia que não podia ser atacado por nada e bocejava diante daquela “ameaça”…
Assim nos afundávamos pelo mato adentro, até encontrar de repente uma luz elétrica, avermelhada e feia, anunciando uma localidade próxima.
Pousando em Sacramento, algumas surpresas
Chegamos à última cidadezinha onde devíamos pousar antes de Araxá, a qual tinha um lindo nome: Sacramento. Ali havia um hotel pior que o de Ribeirão Preto, que me deixou horripilado…
Entretanto, eu analisava o modo com que as pessoas do interior presenciavam a passagem de uma família como a nossa. Nos hoteizinhos, vendo chegar uma senhora muito mais distinta do que aquelas com as quais eles costumavam tomar contato, e bastante doente, eles tinham uma verdadeira vontade de prestar-lhe homenagem e de vê-la sair satisfeita! Isso não era pelo interesse econômico de deixar uma boa reputação, nem de atrair pessoas finas e ricas no caminho de Araxá. Pelo contrário, tratava-se do desejo de ajudar uma senhora anônima que eles nunca mais veriam – a não ser no retorno – e que não iria alterar a vida deles em nada. No fundo, tentavam de algum modo oferecer-lhe uma situação digna que as condições da hospedagem não permitiam; mas ficava-lhes esta alegria que tem o perfume da Fé em Deus: uma pessoa passou e foi bem tratada. Esse afeto e essa benevolência em relação a qualquer um fazem parte da virtude da caridade.
Não havia água encanada no hotel. Entrei no quarto de mamãe, que estava se arranjando, e disse-lhe:
– Meu bem, como é? Vamos jantar?
– Não, eu ainda não consegui água para me lavar.
Ela havia recebido muita poeira ao longo da viagem… Imediatamente chamou alguém e entrou uma criadinha muito esmolambadinha, mas com boa vontade, dizendo:
– A senhora quereria alguma coisa?
Mamãe, com aquela bondade característica, respondeu:
– Sim, desejaria água para me lavar.
– Eu trago já.
A empregada trouxe um jarro com água e o pôs numa pia que tinha um tampão enorme. Nem era possível pensar num banho naquela hora, mas apenas podiam-se lavar mãos e rosto… Mamãe, então, disse:
– Eu precisaria de um balde para escoar depois a água servida.
A moça fez uma fisionomia espantada e respondeu:
– Não, aqui não precisa. Messê não está vendo essa tábua rachada, no chão? A senhora joga a água através da fenda e a terra bebe!
Mamãe tomou uma surpresa enorme e perguntou:
– Mas, como assim?
– A senhora, querendo, me chama que eu sei despejar essa água ali dentro.
Pouco tempo depois, ela mandou vir novamente a criada, que exerceu o jeitinho brasileiro certeiramente, fazendo a água escorrer inteira dentro da rachadura…
Ainda me lembro do jantar e do aviso que deram à minha família: não deviam mexer com ninguém, pois era comum a prática de morticínios em Sacramento. Isso, evidentemente, era um mero boato.
Mamãe, cansadíssima, foi se deitar. Mas, como o hotel no qual ela e meu pai se encontravam estava todo ocupado, a governanta, minha irmã e eu tivemos de pousar num outro hotel, menor e pior, ocupando um quarto grande na esquina de uma das ruas mais movimentadas da cidadezinha. Os transeuntes, que passavam junto à nossa janela, não faziam cerimônia de olhar para dentro, desejando saber quais eram as pessoas que haviam chegado, o que constituía um acontecimento! A Fräulein imediatamente fechou as folhas de madeira, pois não havia venezianas… Como o hotel carecia de iluminação elétrica, era preciso acender uma vela para arranjar-se. Recordo-me de que nossas camas ficavam bem distantes umas das outras, ao menos na minha óptica de criança. Pusemo-nos a dormir, mas, de repente, ouvi uma música: “Tarantatatá, tarantatatá, tarantatatá, tá!”.
Era a véspera do dia sete de setembro e as duas ou três fanfarrinhas locais, mais ou menos fanhosas e rachadas, mas impressionantemente ativas, tocavam euforicamente o Hino Nacional e outras músicas patrióticas, para festejar a independência do Brasil. Parecia-me que estavam concorrendo umas com as outras. Então, como não conseguíamos dormir devido ao barulho, a Fräulein levantou-se, foi à janela e exclamou:
– Ustedes [vocês] são uns vagabundos!
Ela falava um português um tanto misturado com o espanhol, pois havia sido governanta no Uruguai… E continuou:
– Por que não param de tocar? Não sabem que amanhã têm de trabalhar? Amanhã vão chegar atrasados ao emprego, o serviço será mal feito e vão estar dormindo na hora do trabalho, por terem ficado apitando nesses aparelhos fora da hora!
Pensei: “Agora vai sair encrenca!”. Mas percebi que eles olhavam para a “muié”2 com certo espanto, mais ou menos como se tivessem visto uma girafa cantando… Talvez a explicação estivesse neste pormenor: a Fräulein era quase completamente calva e usava peruca. Eu nunca a tinha visto a não ser com a cabeleira, mas nessa ocasião ela foi até a janela sem colocá-la na cabeça! Creio que isso espantou os meus compatriotas mineiros, que se assustaram de ver essa mulher sem cabelo, falando um português mesclado com castelhano. Era quase o contraste da Europa calva e velha, com o Brasil surgindo da sua poeira natal, trazendo na mão os esplendores com que se deveria ornar, para a glória de Deus.
– Mas, amanhã é feriado! – respondiam eles.
– Então precisam ir dormir agora! Onde é que se viu isso?
Eles não brigaram com ela, nem disseram o mínimo desaforo, mas continuaram tocando! A fanfarra passou inúmeras vezes junto ao nosso quarto e eu ouvia o Hino Nacional que se aproximava e se distanciava de nós. A Fräulein não se conformava, levantava-se da cama e ia à janela para discutir com aquela gente.
Aquilo me causava uma estranheza indescritível, uma impressão trágica!
Três aspectos impressionantes de Araxá
Finalmente chegamos à pequeníssima cidade de Araxá e hospedamo-nos num hotel com pé-direito desmedidamente alto, cujos encanamentos “cantavam”, pois a caixa d’água não devia funcionar bem… Era a cidade mais primitiva que eu vira até então, da qual três aspectos me impressionaram muito desagradavelmente.
Em primeiro lugar, o número de pessoas que contraíam uma moléstia chamada “do papo”, desenvolvendo uma enorme protuberância no pescoço. Alguns dos atingidos enlouqueciam e, então, andavam cantando pelas ruas, com aquele bócio… Lembro-me de um desses, que cantava pela cidade durante o dia, com uma vela apagada na mão. Uma coisa horrorosa! Naquele tempo algumas pessoas acreditavam que a doença era causada pela picada de um inseto conhecido como “barbeiro”. Avisaram-nos que devíamos tomar cuidado com qualquer inseto voador e eu, então, passava a mão pelo meu pescoço, olhando qualquer bichinho com enorme atenção…
Em segundo lugar, a cadeia, que era uma construção no meio de uma praça, tendo grades de todos os lados. Os presos passavam boa parte do dia sentados, com os pés fora das grades, sem ter o que fazer, olhando o movimento da rua e, às vezes, chamando as pessoas:
– Ó Fulano, vem cá!
Naturalmente, alguns parentes ou amigos iam conversar com eles, mas outras pessoas fingiam não ouvir e então eles gritavam mais alto:
– Você não está me vendo? Venha cá!
Aqueles presos me davam uma impressão melancólica e terrível! Tanto mais que a Fräulein tinha umas idéias estranhas… Ela pedia dinheiro a papai, a fim de comprar cigarros para os detentos, apresentando isso como um ato de caridade; e ele, muito bonachão, sempre o dava. Mas a intenção dela era um tanto diferente do que dizia: fazia a compra em alguma loja ou armazém e levava as crianças para verem a prisão. Quando ela se aproximava, os criminosos corriam para junto das grades, pois sabiam ser chegada a hora da distribuição dos cigarros… Ela então parava a certa distância e dizia para um deles:
– Usted, por que está preso?
– Eu sou inocente. Estou preso injustamente.
– Não é verdade. Se usted me contasse seu crime eu lhe daria estes cigarros, mas como não me contou, vou dá-los àquele velho que estou vendo aí, no fundo da prisão.
Havia uma competição entre os presos para ganharem os presentes e nem todos conseguiam aproximar-se das grades. Então, voltando-se para um ancião vestido de branco, ela dizia:
– Usted, lá no fundo, não quer ter este maço de cigarros?
– Quero!
– Então conte-me qual foi o seu crime.
O homem gritava:
– Eu não fiz nada, fui mal julgado!
– Não acredito! O juiz não o teria mandado aqui se não houvesse cometido algum crime! Usted não sente vergüenza [vergonha] de ter cometido um crime, com essa idade?
– Está mentindo! – gritava outro. Ele assassinou!
Então começava uma briga, pois evidentemente eles não se davam bem entre si. E ela perguntava a um outro:
– Mas, como é? Ele assassinou? Conte-me o assassinato dele.
Aquilo se transformava numa bagunça horrível… Outro preso, então, confessava:
– Eu matei um homem, porque ele era ruim!
– Não devia matar! A lei proíbe! – respondia a Fräulein dando conselhos. Eu olhava aquilo horrorizado e não compreendia como eles não tentavam romper as grades para pular sobre ela e agredi-la, depois de todas as perguntas… No fim da conversa, ela dizia:
– Ustedes são uns mentirosos, mas apesar de tudo eu vou distribuir alguns cigarros!
Então, colocando-nos por detrás dela, entregava os presentes. Era uma alegria geral para os presos! Minha irmã e eu ficávamos olhando aquilo sem achar graça nem ter interesse; e eu concluía que a Fräulein tinha uma psicologia singular, sendo inclusive muito pouco brasileira… Mas ela havia feito o que desejava e saía satisfeita.
Por último, outro aspecto da cidade deixava-me pasmo: ali não havia pão! Quando eu soube disso, recebi a notícia como uma pancada. Existiam apenas biscoitos de polvilho trazidos de uma cidade próxima, enormes e vazios por dentro, que formavam uma pasta dentro da minha boca quando os comia… Também não havia manteiga (éramos obrigados a mandar trazê-la, salgada, de São Paulo) nem leite, sendo preciso encomendá-lo em alguma fazenda. Eu pensava: “Mas, que cidade é esta…?”. E às vezes reclamava. Recordo-me de que escrevi uma carta ao meu tio Gabriel, que estava em São Paulo, perguntando se ele podia mandar pão para Araxá. Ele achou graça em minha carta mas não atendeu o meu pedido…
Eu me sentia afrontado ao último ponto com tudo aquilo, mas pensava: “Enfim, para a saúde de mamãe, vale tudo. Vamos ficar…”.
Admirando o pôr-do-sol, a aurora e as malacachetas
Aspectos de Araxá
Na tarde seguinte à nossa chegada, saindo do hotel, olhei para o céu e vi um pôr-do-sol lindo, de um rosado tendente a cor de vinho, sobre um fundo de céu de “azul ferrete”, formando estrias. Uma verdadeira beleza! Poderia servir de moldura para o parque de Versailles… Sentia-se também um aroma de flores, talvez proveniente dos jardins ou do mato próximo, pois a cidade, sendo muito pequena, era um tanto integrada na vida do campo. Apesar de as casas me parecerem feias, percebi com surpresa que as calçadas das ruas brilhavam, pois eram feitas de uma pedra chamada malacacheta. Sempre gostei de pedras e aquela podia ser decomposta em várias chapas de cores diferentes, com a ajuda de um canivete. Eram camadas cor de vinho, douradas, azuis, vermelhas, brancas e prateadas…
No dia seguinte fomos à fonte das águas medicinais, que era distante. Logo no início da viagem pude contemplar uma aurora rosada, a mais bonita que se possa imaginar! Eu sentia que me distanciaria do amor à Igreja do Sagrado Coração de Jesus se não amasse aquela aurora. E tenho certeza de que, no fundo, eu estava amando a Deus.
Então, durante a estada em Araxá, eu procurava malacachetas bonitas pela rua e guardava-as no quarto do hotel, para admirá-las. Também, às vezes, eu andava pelo leito da estrada de ferro, à procura de pontinhas insignificantes de cristal, que rolavam no meio da poeira. Eu as recolhia e, sendo amorosíssimo de cristais, lavava-as e guardava-as num caixote, trazendo-as depois para São Paulo.
De vez em quando, no meio da capoeira, eu vislumbrava ipês floridos lindíssimos! Esses eram os aspectos maravilhosos de Araxá… Então, procurava não pensar no pão que faltava, não olhar as pessoas com papo e evitar que a Fräulein passasse pela prisão… Para mim, Araxá não era a terra onde faltava pão, onde havia pessoas doentes e onde existiam presos, mas era a terra da malacacheta, das ruas embaumées [perfumadas], dos cristais e dos belos entardeceres.
Nisso consiste o meu processo mental e psicológico: selecionar o que me causou uma “oxigenação” na alma e procurar recordá-lo. O resto não tem importância.
No caminho, o relato de um crime
Em certo momento, o chauffeur que nos conduzia para a fonte disse:
– O assassinato foi aqui.
Papai e mamãe, pelo visto, já sabiam do que se tratava e perguntei-lhes o que acontecera. Então, eles contaram-me, muito resumidamente, que um senhor de São Paulo ia de automóvel com a senhora e os filhos para se tratar na fonte de Araxá e, como o veículo andava muito devagar, ele perdeu a paciência e gritou ao chauffeur:
– Depressa! Isso não anda?
– Eu vou lhe mostrar como é que anda – respondeu o motorista, voltando-se para trás e degolando o senhor. Em seguida, o assassino subiu num poste que havia lá perto, cortou o fio telefônico para que ninguém pudesse chamar a polícia e depois saiu correndo pelo meio do mato, deixando a família com o cadáver dentro do carro.
Esse fato causou-me uma impressão horrorosa! Mais tarde, eu vim a ser muito amigo do filho do falecido.
Analisando as águas terapêuticas de Araxá
Por fim, chegamos à zona das águas, em pleno campo. Havia ali umas duas ou três pequenas construções utilizadas para o serviço das águas e, por todos os lados, apresentava-se uma terra grossa, úmida e feia, com borbulhas vindas de não sei que profundidades e calores subterrâneos, explodindo aqui, lá e acolá. E aquela massa sulfúrica se mexia em várias direções, com movimentos desordenados. As ações dos focos de lama se encontravam, se chocavam, faziam um remelexo desagradável e incongruente, voltavam de novo e daí se desprendia um odor sulfídrico dos mais desagradáveis… Eu notava, também, tufos de fumaça escura e feia, como a poluição, que se evolavam de vários lugares, o que me parecia serem sinais de desastres causados por entrechoques de massas líquidas e produzindo aquele fumo.
Tudo não era senão feiúra e horror, exceto as misteriosas qualidades terapêuticas daquela água. Havia pessoas peritas que tomavam um copo na ponta de um pau, aproximavam-no daquele líquido, apertavam um pouco as massas de lama, encontravam um modo de encher o copo de água e não de barro, e ofereciam-no ao pobre doente que bebia aquilo e parece que se sentia bem…
Olhei tudo e tive a seguinte impressão estranha: “Eu já presenciei certas coisas que, na ordem intelectiva, espiritual e mental, são semelhantes a esse lodo. Já vi isto, mas não sei com o que compará-lo. Não sei o que é, mas é algo que verei de novo e com o qual terei de me defrontar durante a vida. Mais tarde conhecerei…”.
1 O Rio Grande.
2 Corruptela da palavra mulher.
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