Considerações sobre a Revolução Francesa
Eu ainda não conhecia os episódios da Revolução Francesa. O quadro que as descrições me apresentavam era o palácio esplendoroso de Versailles, no qual entrava uma multidão durante a noite, que escangalhava tudo, depredava o castelo, destruía aquele mundo e levava o Rei e a Rainha ignominiosamente para Paris.
Eu me lembrava ainda de Versailles e do meu desejo de comprar o palácio com uma libra esterlina1. Tive uma sensação de sacrilégio contra o bom gosto humano, e uma indignação sem nome, de tal modo que sentia às vezes uma contração no coração. E pensava: “Que desaforo é este?! Que petulância, a dessas pessoas com péssimas maneiras, para se permitirem uma atitude assim! É o mundo da feiura e da sujeira, que entra berrando e vociferando nos lugares afáveis, amenos e interessantes que eu reverenciava!”
A coroa e o barrete frígio
Com simplicidade pueril, eu via a monarquia como uma instituição que conferia ao titular do governo o direito e a obrigação de usar uma coroa – a qual me parecia fascinante, belíssima e de alta categoria – enquanto a Revolução Francesa promovia o abandono da coroa, em favor do barrete frígio. Ora, aquele barrete de flanela mole e vermelha, com a ponta para a frente da cabeça, dava-me a ideia de algo cafajeste, disgusting2, que não se devia usar!
Então, uns seriam os partidários da sublimidade e outros da trivialidade. E eu me perguntava: “Por que essa revolução me indigna? Apenas por amor à arte?” E respondia para mim mesmo: “Não! Eu não sou um artista… Então, por quê? Como é isso? É por um princípio moral. Mas, o que há de moral nisso? Qual é o Mandamento da Lei de Deus que manda amar o que a Revolução Francesa destruiu?”
Tive de pensar longamente para chegar à conclusão: “É o Primeiro Mandamento!”
Além do mais, para mim, a trivialidade era conexa com a impureza, enquanto a sublimidade era conexa com a castidade. Portanto, o que eu procurava aí era também, em certa medida, o partido da castidade contra o partido da impureza. Então, tudo isso me fazia relegar a Revolução Francesa para os infernos do meu desprezo e da minha antipatia.
No fundo, eu começava a perceber a malícia da Revolução por inteiro e, ao mesmo tempo, aumentava em mim o amor à grandeza. Assim, já no primeiro contato com a Revolução Francesa, eu fui contrarrevolucionário em todos os sentidos da palavra.
Porém, quanto ao barrete frígio é preciso dizer que, algum tempo depois, fui obrigado a mudar em parte a minha opinião, vendo a figura de um doge da República aristocrática de Veneza, com nariz aquilino e fisionomia fulgurante de inteligência, usando essa cobertura. Mas, nesse caso, tratava-se de um objeto de qualidade, forma, dimensões e estilo muito diferentes do barrete da Marianne3, que eu via na minha coleção de selos.
Luís XVI e Maria Antonieta
Por outro lado, eu, que já tinha admirado Luís XIV como um suprassumo, entusiasmei-me ainda mais com a figura generosa, grandiosa e imponente de Maria Antonieta. Achava fantástica a atitude dela, apresentando-se com seu filho à horda de revolucionários, os quais começavam a gritar: “Sem o menino, sem o menino!” para ver se ela se arriscava a ser alvo de tiros. Então aparecia sem o filho, altiva e enfrentando o risco, de tal modo que o populacho batia palmas. Ela fazia uma elegantíssima reverência e se retirava4.
Outrora, eu tinha ouvido a Fräulein Mathilde – cheia de preconceitos contra Maria Antonieta, como boa alemã do tempo do Kaiser – contar, indignada, que o povo faminto havia entrado na galeria dos espelhos, em Versailles, e que a Rainha, elegantíssima, lindíssima e finíssima, havia perguntado a eles:
– Mais, quoi? Que voulez-vous5?
E as mulheres responderam:
– Du pain! Nous voulons du pain6!
Então, como não tinham pão, ela pensou um pouquinho e disse:
– Eh, bien! Si vous n’avez pas de pain, mangez des brioches7!
Ora, nunca houve nada de parecido com isso. Era pura fantasia! Mas a Fräulein aceitava aquela tolice como realidade. Então, eu já tinha começado a tomar as minhas distâncias em relação a esses preconceitos, e simpatizava com Maria Antonieta.
Paralelamente, eu era frio, até o gelo, em relação a Luís XVI, e inclusive começava a nascer em mim uma enorme indignação contra a moleza inominável e as ilusões dele, o que chegava a causar-me formigamentos na palma da mão!
Não me lembro do momento preciso em que eu soube que Luís XVI e Maria Antonieta haviam sido guilhotinados, mas me recordo de ter lido sobre o processo de ambos, fervendo de furor. Eu, que até então não tinha ideia de que alguém pudesse decapitar um rei, tive a impressão de uma obscuridade particularmente negra e sinistra que entrava no quadro da História, e compreendi que essa finsternis8 tremenda e horrível era a entrada de um corredor de fatos análogos, os quais deveriam repetir-se em quantidade, indefinidamente. E já aparecia em minha mente uma ideia assim: “Prepare-se! Porque tem de haver finsternis assim em grande número. Você verá e terá de aguentar!”
E essa impressão vinha acompanhada da seguinte reflexão: “Essa revolução foi causadora de todos os males do mundo moderno, o qual veio piorando cada vez mais e ainda será pior!” Então, fiz muitas leituras sobre a Revolução Francesa, pois sentia que esse tema enchia os meus reservatórios de ira santa. Era uma leitura espiritual. Há um salmo que diz: “Eu os odiei com ódio perfeito…”9 Assim, a minha aversão à Revolução Francesa foi perfeita, pois a detestava com todo o ódio ao mal de que um coração de menino pode ser capaz.
No fundo, o que eu procurava era o caminho da fidelidade à Igreja.
Napoleão Bonaparte: simpatia inicial, restrições e horror
Em determinado momento, lendo a respeito de pessoas e de fatos, de reinos que caem e se sucedem, deparei-me com Napoleão.
Recordo-me que, certa vez, estávamos todos os membros da família na sala de jantar de casa, conversando a respeito de qualquer coisa e, completamente contra todos os cânones, usos e costumes, um copeiro, natural de Campos, no Estado do Rio de Janeiro, entrou na prosa dos patrões e disse qualquer coisa alegando Napoleão. Ninguém respondeu ao aparte dele, mas, quando se notou que ele já estava longe, um tio meu disse:
– Vejam! Isso é uma forma de glória: até o Olinto ouviu falar dele!
Esse foi um dos pálidos reflexos da glória de Napoleão que chegaram até mim. Depois vi – como todo mundo – bustos e fotografias representando Napoleão, com a característica posição da mão. O personagem tinha um espírito meditativo e profundo, e uma deliberação que contrastava com a era de Hollywood. E, a esse título, ele me era um tanto simpático, mas, mesmo assim, eu pensava: “Não vou com esse tipo!”
Ele não me agradava, apesar de não estar ainda definida em meu espírito a razão pela qual não gostava dele, pois eu nem tinha uma ideia muito clara de que tivesse ocupado o trono dos Bourbon10. Por outro lado, notava em todos os meus colegas entusiasmo por Napoleão, mesmo sem serem militaristas.
Entretanto, essa antipatia se transformou em verdadeiro horror, quando, de fato, entendi que apesar de ele haver posto um fim à Revolução Francesa, não tinha entregado o trono aos legítimos monarcas, mas havia feito o papel de usurpador.
Outras leituras históricas e elucubrações solitárias
Comecei a ler episódios sobre os emigrados11, o exército de Condé12, e a chouannerie13. Pareciam-me cruzadas dos devotos da Santa Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo contra os adversários da Religião e da ordem. Compreendi também a conveniência da colaboração da opinião pública em determinadas situações, pois entendi que a população civil de certas regiões era aderente à posição dos chouans e criava dificuldades para os revolucionários.
Lembro-me também do momento em que estava lendo certo livro do historiador Malet14, no qual era descrito um episódio ocorrido com Carlos X15, que dizia respeito à legitimidade. E, ao tratar disso, o autor dizia: “Constituiu-se então a corrente da légitimité”16. A palavra légitimité vinha em itálico, por razão didática, mas quando eu a li, exultei e pensei: “Nunca mais em minha vida posso me esquecer desse termo! Legitimidade! É uma música para mim, um cântico de Anjos!”
Nessas leituras, em certo momento esbarrei também com a ideia de igualdade, pregada pela Revolução Francesa. E percebi que esta visava igualar todo mundo por baixo. Lembro-me que logo veio à minha mente a ideia: “Mas, isto é o comunismo!” E entendi que a Revolução Francesa havia produzido seu primeiro fruto pleno e estável, remotamente, com o comunismo. Tentei tocar esse assunto na conversa com certas pessoas, mas não encontrei a mínima receptividade. Não entendiam e, inclusive, me diziam:
– A França não é a Rússia; a Rússia não é a França! O ano de 1917 não é o ano de 1789! Há uma enorme diferença! Depois, uma é a revolução política, enquanto outra é a revolução socioeconômica. Então, é impossível juntar as duas coisas. Seu pensamento não “cola”…
Mas eu pensava com meus botões: “Cola, sim! Eu realmente não sei demonstrá-lo, por enquanto, mas um dia conseguirei!”
Então, as minhas elucubrações eram absolutamente solitárias, pois não falava mais com ninguém sobre isso, percebendo que não encontraria ressonância. Por outro lado, eu via muito o nexo entre a mentalidade dos meus colegas e a Revolução Francesa, da qual, aliás, eram entusiastas.
Uma batalha
A corneta dá o alarme e 2 mortais exércitos, um diante do outro, palpitam num só coração e cada qual, doido de amor pela pátria, contempla o seu estandarte (trêmulo), que garbosa e galhardamente parece querer com o seu tecido cobrir maternalmente aqueles que por sua honra morrem. Mas, ó dissonância! De um lado flutua, erguido pela brisa, um estandarte que ostenta a Coroa, e do outro, um símbolo de igualdade e fraternidade que, apenas sendo um ideal, e que os míseros humanos, querendo-o realizar, mostraram toda a negra ladroeira que estas palavras encerram. De um lado, toda fidelidade ao legítimo soberano, à legitima autoridade, sentimento que embriaga, por assim dizer, a alma sensível que o sente. De outro, uma tropa maior, mas composta em pequeno número de ladrões, que querendo tornar-se célebres, não podendo, pelo caminho da honestidade, senda realmente difícil de trilhar, ganhar a fortuna, mistificam com belas palavras a maior parte de homens, que pensam, com seu sangue, abrir as portas do caminho da felicidade, da humanidade, sentimento belo mas falso, e que por isso deve ser rejeitado.
O primeiro golpe de canhão desferido dá o sinal da mortandade, e imediatamente os dois exércitos, jogando-se um sobre o outro, tornam tudo numa confusão enorme. Dos montes circunvizinhos outras legiões mortais vêm reforçar as fileiras já enfraquecidas. Aqui, um amigo levanta o corpo inerte de seu companheiro, e, morto com este nobre fardo, cai abraçado com um cadáver, e não sente a bala que o torna um morto. Ali, cai dum espumante corcel um jovem cavaleiro, todo audácia e valor, todo coragem e ardor. A crina que seu casco suporta, que antes, elevava-se garbosamente nos ares, tinge-se agora em contato com o seu sangue, dum vermelho sinistro. Mais além, um velho general, figura da batalha em pessoa, calmo no perigo, sublime na morte, continua, banhado em seu sangue, a comandar as suas tropas, e, tendo perdido o seu braço direito que sustentava sua nobre espada, a torna a pegar com a mão esquerda e com ela ainda desfere um derradeiro golpe.
Plinio Corrêa de Oliveira
1 Cf. Volume I desta coleção, p. 165.
2 Em inglês: repugnante.
3 Figura alegórica representando a República Francesa, sob a forma de uma mulher com a cabeça coberta por um barrete frígio.
4 Episódio acontecido no dia 6 de outubro de 1789, quando a turba revolucionária invadiu o palácio de Versailles.
5 Em francês: “Mas, o quê? O que desejais?”
6 Em francês: “Pão! Queremos pão!”
7 Em francês: “Ora! Se não tendes pão, comei brioches!” (A brioche é um pequeno pão redondo, feito de farinha, ovos e manteiga).
8 Em alemão: escuridão, treva.
9 Cf. Sl 138, 22.
10 A dinastia régia de Bourbon, cujo primeiro Rei foi Henrique IV (1553-1610), sucedeu-se no trono da França até a deposição e execução de Luís XVI em 1793, e, posteriormente, até a abdicação de Carlos X (1830), depois da restauração monárquica de 1814. Napoleão I, proclamando-se Imperador dos Franceses em 1804, passou a ocupar o trono dos Bourbon.
11 Assim eram chamados os franceses descontentes com a Revolução de 1789, especialmente certos membros da nobreza, os quais abandonaram o país e emigraram para as nações limítrofes.
12 Muitos dos emigrados constituíram um verdadeiro exército, sob as ordens de Louis Joseph de Bourbon, Príncipe de Condé (1736-1818). Junto às fronteiras da França, esperavam a ocasião de voltar ao seu país.
13 Nome dado ao movimento popular contrarrevolucionário que surgiu em certas regiões do Oeste da França, para defender a Igreja Católica e a realeza contra as forças da Revolução Francesa, a partir de 1793. Os que se engajavam em ditos movimentos eram chamados de chouans, por referência a certa ave noturna (chat-huant) e por terem sido assim cognominados os irmãos Cottereau, primeiros camponeses a insurgir-se contra o novo regime na região do Maine.
14 Albert Malet (1864-1915), escritor francês, autor de manuais escolares sobre História. Plinio possuía o Cours complet d’Histoire (Curso completo de História), obra em sete volumes (ver frontispício do segundo volume, em ilustração da página 686 desta obra), e a Nouvelle Histoire Universelle (Nova História Universal), segundo ele próprio afirma em conversa do ano 1993: “O Malet fez um compêndio de História Universal em três volumes, realmente muito interessante. Eu tenho a edição de luxo, que me deu um tio, com ilustrações maravilhosas”.
15 Carlos X (1757-1836), segundo irmão de Luís XVI, sucedeu a Luís XVIII no trono da França, e abdicou em favor do Conde de Chambord.
16 Em francês: “a corrente da legitimidade”. Esse “legitimismo” originou-se na França em 1830, a favor dos Bourbon, após a abdicação de Carlos X, último Rei dessa dinastia.
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