Contemplação do todo de Nosso Senhor
Algumas imagens do Sagrado Coração de Jesus exprimem a bondade, a atitude grave, tranquila, serena, as decisões irrevogáveis do Homem-Deus; em suma, mostram a totalidade de suas perfeições. E era justamente a consideração desse todo que enlevava e modelava a alma de Dona Lucilia, fazendo-a fiel aos princípios por ela amados.
Lembro-me de como o afeto de Dona Lucilia se manifestava em relação a mim, desde minha mais tenra infância. Eu não tinha ainda idade para perceber como era a relação dela com os outros, inclusive com minha irmã — essa noção viria depois —, porém, em relação a mim esse afeto se realizava sob a forma que passarei a descrever.
Seriedade e bondade
Esse afeto era uma espécie de globalidade e uma seriedade completa que estava no fundo da sua alma. Eu notava que ela entendia perfeitamente qual é o afeto que uma mãe deve ter a seu filho, até onde isso podia ir, que sacrifícios traz e, mais profundamente, o que é ser mãe.
Por outro lado, isso não ficava em tese, mas repousava em mim como filho dela. Quer dizer, ela não queria bem a uma abstração, a uma doutrina, mas àquele filho dela, em cuja pessoa ela procurava encontrar traços e aspectos que prenunciassem o filho o qual ela gostaria que fosse, quando se tornasse homem feito.
Daí, um querer bem a jorros, como se fosse um facho de luz muito poderoso assestado sobre mim, envolvendo-me, satisfazendo-me e tranquilizando-me por inteiro, acompanhado de um afeto tal que despertava em mim a potencialidade para ter um amor correspondente a esse. De onde o nascimento em mim de um afeto correlato, tanto quanto uma criança possa ter.
Na medida em que fui amadurecendo — não sei bem em que idade, mas na minha primeira infância —, eu percebia bem que essa globalidade, essa totalidade não era apenas o afeto, mas todo um modo de ver a vida, as coisas, as pessoas, de modo muito sério, embora com muita bondade.
Essa seriedade, absoluta, por assim dizer, era o traço donde emanavam as outras qualidades morais dela. Era uma espécie de alto-falante ou de lente de aumento posta em todas as suas qualidades morais. Se ela não tivesse essa tão profunda seriedade, as outras qualidades nela existentes não teriam o valor que de fato possuíam.
Inteligência comum, mas vivificada pela sapiencialidade
Eu notava isso em todas as circunstâncias da vida: nas consequências que ela tirava dos fatos, nas aplicações, na severidade dela como mãe, numa série de coisas assim, tudo levado por ela até o fim. Este era o ponto de partida do relacionamento de alma entre ela e eu, que só cessou nesta Terra com a sua morte.
Alguém poderia perguntar sobre o papel da inteligência dentro disso, e se não se tratava de uma altíssima qualidade intelectual. Suponho ser algo mais ligado à virtude da sabedoria, a qual não é privativa dos inteligentes, mas é uma inteligência dada pela graça, aos inteligentes e aos não inteligentes, desde que a Providência queira beneficiá-los.
Mamãe tinha uma inteligência comum, vivificada por essa posição sapiencial de muita seriedade diante de todas as coisas.
A visão da totalidade que ela possuía do espírito da Igreja Católica e de Nosso Senhor Jesus Cristo, tanto quanto eu podia perceber no contato com ela, apresentava-se no culto ao Sagrado Coração de Jesus.
Imagens do Sagrado Coração de Jesus: transbordantes de afeto, mas nunca sorrindo
Via-se que ela reconhecia, admirava, adorava no Sagrado Coração de Jesus exatamente o que se encontra nessa devoção, tal como era apresentada no século XIX, durante o qual Dona Lucilia formou seu espírito.
Naquela época, o Sagrado Coração de Jesus era apresentado sempre como profundamente bondoso, misericordioso, disposto a perdoar, mas profundamente sério. Então, algumas atitudes d’Ele perante as almas eram simbolizadas pelas imagens transbordantes de afeto, mas nunca sorrindo, revelando sempre um fundo de tristeza, de quem media até a profundidade a maldade dos homens, e sofria por causa disso inteiramente.
Essa postura interior era representada fisicamente pelo coração cercado de uma coroa de espinhos e com uma laceração decorrente da lança de Longinus, que simbolizavam essa tristeza afetuosa e paciente do Sagrado Coração de Jesus, de uma profundidade não mensurável, infinita, mas ao mesmo tempo sem irritação, sem vindita. Uma bondade a perder de vista, mas que, diante das ofensas feitas, sabia serem ofensas, tomava-as em todo o seu valor e sofria por elas em toda a medida que era próprio a elas fazê-Lo padecer. Portanto, tudo quanto Ele sofreu na Paixão por causa dos nossos pecados, estava simbolizado nessas imagens muito adequadamente.
Isso supõe uma avaliação profundamente séria do que se passa na alma de cada homem, da gravidade moral de todo o pecado, e uma disposição prévia a ver no homem um pecador a quem se perdoa, muito mais do que um filho dileto que dá alegria.
De maneira que as imagens do Sagrado Coração de Jesus da boa escola não O apresentam gaudioso, embora o Coração d’Ele fosse cheio de gáudios; por exemplo, quando Ele via Nossa Senhora, ou cogitava sobre Ela, o gáudio d’Ele não tinha limites.
Fidelidade aos princípios até as últimas consequências
Mas os homens, na sua relação com Deus, precisam saber que Ele é assim. E que o Sagrado Coração de Jesus, na Humanidade santíssima de Nosso Senhor, sendo um reflexo do que é na Divindade, é a atitude de Deus diante dos pecados dos homens.
Daí frases que se pintavam, gravavam ou esculpiam junto a essas imagens, e que exprimiam isso. Por exemplo: “Filho, dá-me teu coração”; e Nosso Senhor com a mão indicando o Coração d’Ele. Era uma proposta de troca de corações, mas como quem diz: “Filho, tu não me deste teu coração. Eu sou Senhor do teu coração. Dá-me teu coração!” Isso de um lado.
De outro lado, uma frase que está pintada no teto da Igreja do Coração de Jesus1. Nosso Senhor Jesus Cristo, aparecendo a Santa Margarida Maria Alacoque, num convento da França, mostrando o Coração d’Ele e dizendo esta frase, que está na narração das visões que ela teve: “Minha filha, eis aqui o Coração que tanto amou os homens, e por eles foi tão pouco amado!”
Vê-se aí aquele equilíbrio absoluto, de um amor que chega a imolar-se na Cruz — não é preciso dizer mais nada — para salvar os homens, mas que toma inteiramente nota das ingratidões de que esse amor é objeto e se entristece com elas. Não é o Coração de Jesus enquanto cheio de espírito de justiça — por exemplo, maldizendo Corazim e Betsaida2 —, nem o Cristo gladífero de que fala o Apocalipse3; é o Cristo cheio de misericórdia, mas uma misericórdia cuja imensidade se calcula pela medida que Ele toma dos pecados dos homens.
É bem evidente que isto é o todo d’Ele. Não é apenas uma atitude afetiva, e todas as boas imagens do Coração de Jesus, no porte, no gesto, no modo de se apresentar, fazem ver Nosso Senhor Jesus Cristo numa atitude grave, tranquila, serena, mas numa decisão irrevogável: o que Ele decidiu, decidiu; e o que é, é; o que não é, não é. É assim que Ele deve ser interpretado.
Assim foi que Ele fez um bem enorme à minha alma. E eu notava que era essa consideração que concorria muito para modelar a alma de mamãe. E quando ela rezava a Ele, punha-se inteiramente nesse diapasão, nessa posição.
Cabe aí uma visão de um todo, porque isso é um todo. Na visão desse todo estava a alma de Dona Lucilia, quer dizer, ela era toda assim, e contemplava, apreciava, ponderava as coisas desse modo. Nosso Senhor é o exemplo, e ela era a discípula que seguia com muita fidelidade o exemplo.
Notava-se no olhar de mamãe uma resolução de ser fiel aos princípios até o fim, custasse o que custasse. Isso a tornava, por vezes, isolada, o que se acentuou muito no período posterior à Primeira Guerra Mundial, quando entrou no Brasil o americanismo, o espírito difundindo por Hollywood, e São Paulo se tornou muito cosmopolita.
Visão profunda, límpida, serena, objetiva e bondosa da realidade
Nessa época as senhoras mudaram muito, tomando um ar mais moderno. O modo de elas conversarem, de dizerem alguma coisa de engraçado entre si, mudou muito, e mamãe ficou à margem. Não sei quanto tempo ela levou para perceber isso inteiramente.
A mãe dela era uma senhora que eu nunca vi fazer um gracejo com ninguém. E uma vez ou outra, quando ela procurava brincar com minha irmã ou comigo para nos distrair, quando éramos muito menininhos, ela fazia brincadeiras sem graça, mas por causa dessa seriedade dela.
E o fato de uma senhora habituada a abrir-se inteiramente, sem a menor reserva, para o americanismo que entrava, para Dona Lucilia era uma coisa inteiramente alheia aos padrões nos quais ela havia sido educada.
Entre as senhoras daquela época entrou o costume de darem risada, de brincarem uma com a outra, de falarem da vida das outras o tempo inteiro, a ponto dessa atitude tornar-se moda. Dona Lucilia não fazia nada disso. E quando diante dela se apresentava um assunto, ela entrava no tema com umas considerações longas, tão ajuizadas, criteriosas e diferentes do que as pessoas queriam ouvir, que ela ficava sem graça, permanecia só.
Essa postura séria e reflexiva diante da vida conferia a Dona Lucilia uma visão profunda, límpida, serena, objetiva e bondosa da realidade, que eu notava no olhar dela, mas notava também, naturalmente em grau infinitamente maior, no Sagrado Coração de Jesus e na Igreja Católica. E pensava: “Assim é a Igreja Católica, assim se é santo, assim se vê a realidade como deve ser vista, este é o caminho!”
Eu hauria dela essa mentalidade, muito mais pelo convívio do que por ensinamentos explícitos. Sua ação benfazeja auxiliou enormemente meu livre-arbítrio a se inclinar para o bem. E naquelas coisas a que ela se conservou fiel, eu, com a graça de Nossa Senhora, não só me mantive fiel, mas remontei até a Idade Média. Quer dizer, é o caminho da fidelidade subindo à fonte.
Tenho consciência de que sirvo de eco a uma tradição que me é muito anterior, mas um eco consentido pela minha alma, pelo meu feitio de espírito, pelo que recebi e quis guardar. v
Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 17/3/1990)
Revista Dr Plinio 200 (Maio de 2014)
1) Situada em São Paulo, Bairro Campos Elíseos.
2) Cf. Mt 11, 21.
3) Cf. Ap 19, 11-16.
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